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1.1. Direitos humanos como processos de luta
from “Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos.
buscarem o reconhecimento de seus direitos.
Esse capítulo pretende analisar melhor, então, os direitos humanos, a partir dos que nos propõe Herrera Flores e do discurso das músicas compostas por mulheres do álbum do grupo ÉPreta, trazendo, por fim, uma outra epistemologia para pensar e entender o direito.
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1.1 Direitos humanos como processo de luta
Para compreendermos melhor o que entendemos como direitos humanos, é preciso situá-los no seu contexto histórico. Os direitos humanos, como interpretamos hoje, surgem a partir do pós II Guerra Mundial, dentro de um contexto de Guerra Fria, “como resposta às reações sociais e filosóficas que pressupunham a consciência da expansão global de um novo modo de relação social baseada na constante acumulação de capital” (HERRERA FLORES, 2009, p. 36). Surgem dentro de uma modernidade e desde um pensamento colonialista de perpetuação de privilégios, para que a acumulação de capital fosse possível, pois não buscouse materialmente proporcionar direitos humanos para todos. No entanto, antes disso, já houve discussões sobre direitos humanos aquém e além das ocorridas após o fim da II Guerra Mundial. Conforme Antônio Carlos Wolkmer:
Há que se identificar certas matizes originárias de reconhecimento dos direitos indígenas na conquista hispânica dos séculos XV e XVI, das formulações específicas da concepção dos direitos humanos liberal-burguesa dos séculos XVIII e XIX, da construção socioeconômica do século XX e da configuração transindividual e intercultural dos primórdios do século XXI (WOLKMER, 2015, p. 257).
Em outras palavras, diversos foram os modelos teóricos de discussão sobre direitos humanos que se propuseram no decorrer da história do ocidente. O modelo que temos hoje –que já não é mais esse pós II Guerra Mundial, mas um modelo que se coaduna ao neoliberalismo global – é somente mais um, mas não o único, pois “(...) a formulação teórica dos direitos humanos tem simbolizado valores exigências e conflituosidades sociais em momentos culturais distintos na historicidade da sociedade moderna ocidental” (WOLKMER, 2015, p. 256). A partir disso, então, podemos entender que o debate sobre direitos humanos não são mais aqueles pós II Guerra Mundial, que impulsionou o Estado de Bem Estar Social, pois hoje vemos a diminuição do Estado provedor para o aumento das “liberdades” individuais –que não são bem liberdades, pois qual é o real poder de um empregado para negociar suas condições de trabalho com um empregador?
Acontece que, nesse início de século XXI, temos um predomínio do cumprimento dos interesses do mercado global e das multinacionais por parte dos Estados, que preterem direitos sociais, ambientais, trabalhistas à acumulação de capital. No sistema de neoliberalismo global em que vivemos, existem pessoas que não possuem os bens mínimos necessários para uma vida digna, considerando-se que “apenas seis pessoas possuem riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres”, conforme relatório da OXFAM publicado em setembro de 2017. Toda essa desigualdade não pode ser aceitável, a ausência de dignidade de viver não pode ser tolerada por nós. Conforme o mesmo relatório, em média, uma mulher ganha 38% a menos que um homem, sendo que quando o componente racial é incluído nos gráficos, em média os brancos ganhavam o dobro do que recebiam os negros em 2015. Esse é o contexto no qual se insere o debate sobre direitos humanos atualmente: um contexto de desigualdade econômica com recortes de gênero e raça, que impede a maior parcela da população de ter acesso a bens materiais necessários para uma vida digna. A dignidade à qual me refiro é justamente um fim material “um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem com que a vida seja “digna” de ser vivida” (HERRERA FLORES, 2009, p. 31), e não um conceito abstrato ou um princípio constitucional que poucos sabem conceituar. Nessa perspectiva:
Ter dignidade supõe, pelo contrário, obter o suficiente poder – espiritual e, sobretudo, material – para desenvolver essa estrutura de sentimentos que nos capacite para a indignação e nos revele que, ao lado de dogmas e preconceitos, também existe a vontade de mudança e transformação do real (HERRERA FLORES, 2005, p. 11, grifos no original).14
A luta pelos direitos humanos vai além dos bens necessários para a existência. Buscamos uma existência digna. Não somente acima da linha da extrema pobreza, ganhando mais de US$1,90 por dia, mas podendo usufruir da vida com alegria e respeito por si mesmo, pelo outro e pelo meio ambiente. Não podemos nos esquecer dos objetivos fundamentais do Brasil como país, previstos na Constituição de 1988, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
14 Tradução livre. No original: “Tener dignidad supone, al contrario, obtener el suficiente poder –espiritual y, sobre todo, material – para desarrollar esa “estructura de sentimientos” que nos capacite para la indignación y nos revele que, al lado de los dogmas y prejuicios, también existe la voluntad de cambio y transformación de lo real”.
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por isso, o debate sobre os direitos humanos deve ser encarado também como um debate político, recuperando possibilidades de antagonismos, e rompendo “(...) com as posições naturalistas que concebem os direitos como uma esfera separada e prévia à ação política democrática” (HERRERA FLORES, 2009, p. 72). Podemos pensar os direitos humanos, então, num plano político como as “reações antagonistas frente a um determinado conjunto de relações sociais surgidos em um contexto preciso, temporal e espacial: a modernidade ocidental capitalista” (HERRERA FLORES, 2009, p. 109). É a partir desse conceito que devemos refletir a emancipação e solidariedade nas relações antagonistas que possibilitam a alteração da realidade de subjugação e opressão que os grupos às margens vivem hoje. O político é essencial para compreendermos que a realidade é provisória e que existem diferentes maneiras, dependendo dos interesses, a partir das quais a realidade pode ser lida. Nesse sentido, Herrera Flores diferencia a realidade dos estados de fato. Enquanto os estados de fato são os fenômenos, a realidade é como compreendemos esses fenômenos. Para o autor, “(...) a diferente concepção da realidade – não dos estados de fato – que mantemos, depende da nossa posição e da nossa percepção das relações sociais, psíquicas e naturais em que vivemos” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 129)15. Ou seja, não se trata de relativismo ou perspectivismo, que é uma concepção individualista e solipsista, mas de concepções diferentes da realidade que são formadas dependendo das relações que as construíram, da maneira como se reagiu aos estados de fato. Direitos humanos são também “o resultado de lutas sociais e coletivas que tendem à construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídicos que permitam o empoderamento de todas e de todos para lutar plural e diferenciadamente por uma vida digna de ser vivida” (HERRERA FLORES, 2009, p. 109, grifos no original), num sentido mais social.Ainda, num sentido cultural:
São produtos culturais que instituem ou criam as condições necessárias para implementar um sentido político forte de liberdade (oposto à condição restritiva da liberdade como autonomia: minha liberdade termina quando começa a sua). Desse ponto de vista, minha liberdade (de reação cultural) começa onde começa a liberdade dos demais; por isso não tenho mais remédio que me comprometer e me responsabilizar – como ser humano que exige a construção de espaços de relação com os outros – com a criação de condições que permitam a todas e a todos “pôr em
15 Tradução livre. No original: “(...) la diferente concepción de la realidad – no de los estados de hecho – que mantenemos, depende de nuestra posición en, y nuestra percepción de, las relaciones sociales, psíquicas y naturales en las que vivimos”.
marcha” contínua e renovadamente “caminhos próprios de dignidade” (HERRERA FLORES, 2009, p. 108).
Por isso Herrera Flores fala sobre uma visão complexa dos direitos, para que busquemos a compreensão desse todo que são os direitos humanos. Os direitos humanos, logo, são um produto cultural criado a partir das reações e processos culturais que ocorreram e ocorrem – portanto, provisórios – a partir da relações que temos conosco mesmo, com os outros e com o ambiente que nos cerca. Se hoje eles são compreendidos a partir da lógica neoliberal individualista em que prima o lucro, isso ocorre em função da metodologia de ação social que temos hoje. O neoliberalismo individualista age, porém, globalmente, querendo impor essa mesma metodologia de ação social no mundo todo, ignorando as diferentes concepções de realidade que podem ocorrer em diferentes grupos. O neoliberalismo é a atual forma do capitalismo, e nesse ponto, devemos destacar que esse capitalismo é patriarcal, racial, étnica, sexual e classistamente estruturado, que possui como modelo de sujeito o homem branco, europeu, cisheteronormativo, cristão, de classe média, sem deficiências. Como afirmar então um universalismo dos direitos humanos se esse é o sujeito tido como universal? Nessa perspectiva:
A eficiência da crença na universalidade e neutralidade dos direitos humanos, aliada no contexto pátrio com o compartilhamento do mito da democracia racial promoveu a ineficiência de sua utilização para promover o enfrentamento das desigualdades raciais, de gênero, sexualidade e deficiência (PIRES, 2017, p. 08).
Questionar a forma como se entende os direitos humanos, no entanto, não retira a importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, tendo em vista que a institucionalização e consolidação das lutas por direitos humanos em normas internacionais é também importante. Mesmo assim, devemos compreendê-la como a reflexão teórica dominante – mas não única –, que possui como conteúdo básico o direito de ter direitos, e esquece das condições materiais necessárias para isso. Os direitos reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, “(...) só poderão ser colocados em prática se instaurada uma estrutura social que permita o desenvolvimento dos países e se o contexto internacional geral facilitar a decolagem econômica dos países pobres ou uma maior redistribuição da riqueza nos países desenvolvidos” (HERRERA FLORES, 2009, p. 96). Os direitos humanos, então, são os processos lutas para buscar essa outra estrutura social, bem como as condições econômicas, que possibilite a materialização de direitos. Desse modo:
Assim, quando falamos de direitos humanos, falamos de dinâmicas sociais que tendem a construir condições materiais e imateriais necessárias para conseguir determinados objetivos genéricos que estão fora do direito (os quais, se temos a sufi ciente correlação de forças parlamentares, veremos garantidos em normas jurídicas). Quer dizer, ao lutar por ter acesso aos bens, os atores e atrizes sociais que se comprometem com os direitos humanos colocam em funcionamento práticas sociais dirigidas a nos dotar, todas e todos, de meios e instrumentos –políticos, sociais, econômicos, culturais ou jurídicos – que nos possibilitem construir as condições materiais e imateriais necessárias para poder viver (HERRERA, FLORES, 2009, p. 29).
Quando estudamos ou pesquisamos sobre direitos humanos, num primeiro momento, nos deparamos, geralmente, com a limitação do que são direitos humanos aos tratados internacionais, e com o debate entre universalismo versus relativismo. As duas posições, ditas antagônicas, refletem uma visão ocidental que limita o conceito de direitos humanos ao aceite ou não dos referidos tratados, sem restrições ou com limites impostos pela “cultura” local, respectivamente. Contudo, não há como afirmar um universalismo quando assistimos, diariamente, à violação de direitos por países signatários de tratados internacionais de direitos humanos. É um universalismo abstrato, que não leva em consideração as diferentes realidades, e busca impor um único modo de pensar e ser no mundo, qual seja, o modelo ocidental colonialista. Assim, “o único universalismo válido consiste, então, no respeito e na criação de condições sociais, econômicas e culturais que permitam e potencializem a luta pela dignidade ou, em outras palavras, na generalização dos que nunca contaram na construção das hegemonias” (HERRERA FLORES, 2009, p. 164). Do mesmo modo, não se pode afirmar um relativismo justificado pela “cultura” local quando o que se define como cultura são processos que buscam a manutenção das desigualdades e opressões baseadas em raça, classe, sexo, gênero ou religiosidade. Esse relativismo, baseado num essencialismo, em padrões de comportamento, também impede a assimilação de outros modelos de entender o mundo, e imobiliza as diversas maneiras de ser e estar no mundo. Como afirma Thula Pires:
A aposta na universalidade para desarmar o relativismo de valores e interesses (dramatizados por conflitos sociais, políticos, econômicos, culturais, religiosos, etc.) teve como uma de suas consequências a fixação de uma lógica binária dentro da qual o universal e o relativo são mutuamente excludentes. Para além de reforçar a necessidade de proteção de determinados sujeitos e sua forma de vida, tal concepção, porque incapaz de absorver outros perfis, (re)produz hierarquizações entre seres humanos, saberes e cosmovisões que terão que ser sufocadas e invisibilizadas para que não ponham em risco o desenvolvimento do projeto de dominação colonial que a sustenta (PIRES, 2017, p. 03).
O que devemos buscar compreender é que existem diferentes concepções de realidade, mas que isso não é relativismo. Essas diferentes concepções de realidade são válidas enquanto buscam uma vida digna, respeitando as diferenças, sem exploração e opressão, enquanto um relativismo universaliza particularismos, impondo uma identidade, uma tradição ou etnicidade, e restringindo liberdades. Devemos, portanto, buscar debater o que são direitos humanos, a partir de uma perspectiva relacional. Para isso, Herrera Flores afirma que:
(…) não basta rechaçar o universalismo, pois também é necessário denunciar que, quando o local se universaliza, o particular se inverte e se converte em outra ideologia do universal. Ao se converter em universal e necessário, o particular, que nada mais é que um produto da contingência e da interação cultural, se apresenta como uma verdade absoluta. O universal e o particular estão sempre em tensão. Referida tensão é que assegura a continuidade tanto do particular como do universal, evitando tanto o particularismo como o universalismo. Dizer que o universal não tem conteúdos prévios não significa que ele seja um conjunto vazio em que todo o particular se mescla sem razão. Falamos de um universalismo que não se imponha, de um modo ou outro, à existência e à convivência, mas sim que se descubra no transcorrer da convivência interpessoal e intercultural. Se a universalidade não se impuser, a diferença não se inibe (HERRERA FLORES, 2009, p. 158)
A esse processo o autor denomina “multiculturalismo crítico ou de resistência”, a partir do qual podemos pensar um universalismo de contrastes, de entrecruzamentos, de mesclas que:
(…) nos sirva de impulso para abandonar todo tipo de posicionamento, cultural ou epistêmico, a favor de energias nômades, migratórias, móveis, que permita nos deslocarmos pelos diferentes pontos de vista sem pretensão de negar-lhes, nem de negar-nos, a possibilidade de luta pela dignidade humana (HERRERA FLORES, 2009, p. 159).
Esse multiculturalismo crítico ou de resistência, Caterine Walsh chama também de interculturalidade crítica, “(...) percebida como projeto político, social, epistêmico e ético de transformação e descolonialidade” (2009, p. 02), “que procura intervir na re-fundação das estruturas e ordenação da sociedade que racializa, inferioriza e des-humaniza, ou seja, na matriz ainda presente da colonialidade do poder” (2009, p.02). Os dois autores teorizam sobre uma mesma coisa, sobre diferentes maneiras de ser e estar no mundo que busquem o respeito às diferenças e possibilitem a expressão das liberdades sem desigualdade e exploração. Bem verdade, essas diferentes maneiras de ser e estar no mundo se concretizam nos modelos dos indígenas brasileiros, das comunidades-terreiro, dos quilombolas e do Movimentos dos Trabalhadores sem Terra, por exemplo. Catherine Walsh fala que:
Diferente do colonialismo que se entende tipicamente como relação política e econômica que envolve a soberania de um povo ou nação sobre outro em qualquer parte do mundo, a colonialidade é o padrão de poder que emerge no contexto da
colonização européia nas Américas – ligada ao capitalismo mundial, o controle, a dominação e subordinação da população através da idéia de raça, - que logo torna-se natural – na América Latina, como também no planeta – como modelo de poder moderno e permanente (WALSH, 2009, p. 08, grifo meu).
Por isso a necessidade de uma interculturalidade crítica, como projeto político e epistemológico. Nesse sentido:
Reivindicar a interculturalidade não se restringe, por outro lado, ao necessário reconhecimento do outro. É preciso, também, transferir poder, “empoderar” os excluídos dos processos de construção de hegemonia. Do mesmo modo, trabalhar na criação de mediações políticas, institucionais e jurídicas que garantam os acima referidos reconhecimento e transferência de poder (HERRERA FLORES, 2009, p. 164).
Para que haja um empoderamento material dos grupos marginalizados, precisamos retirar o debate sobre direitos humanos do plano abstrato e trazer para realidade concreta, contextualizando-o histórica, econômica e politicamente. A realidade nos mostra as diferentes possibilidades de luta pelos bens materiais necessário para uma vida digna, seja pelo samba carioca, seja pela resistência indígena e quilombola, seja pelo trabalho realizado no Museu da Maré, e todos os outros movimentos que buscam alternativas ao pensamento hegemônico que segrega e oprime. Desse modo:
A universalidade dos direitos somente pode ser definida em função da seguinte variável: o fortalecimento dos indivíduos, grupos e organizações na hora de construir um marco de ação que permita a todos e a todas criar as condições que garantam de um modo igualitário o acesso aos bens materiais e imateriais que fazem com que a vida seja digna de ser vivida (HERRERA FLORES, 2009, p. 19)
Para Herrera Flores, então, direitos humanos são os processos de luta – com resultados sempre provisórios – que seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens materiais necessários para um vida digna. Assim, “os direitos virão depois das lutas pelo acesso aos bens” (2009, p. 28) e “as normas jurídicas resultantes [dessas lutas] nos servirão para garantir – como dissemos, de um modo não neutro – um determinado acesso a tais bens” (2009,p. 29). Assim:
Promovemos processos de direitos humanos, primeiro, porque precisamos ter acesso aos bens exigíveis para viver e, segundo, porque eles não caem do céu, nem vão correr pelos rios de mel de algum paraíso terrestre. O acesso aos bens, sempre e em todo momento, insere-se num processo mais amplo que faz com que uns tenham mais facilidade para obtê-los e que a outros seja mais difícil ou, até mesmo, impossível de obter. Falamos, por conseguinte, dos processos de divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano. Segundo a “posição” que ocupemos em tais marcos de divisão do fazer humano, teremos uma maior ou uma menor