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1.2.2. O discurso das sambista do ÉPreta

verdadeira natureza democrática, para facilitar a comunicação entre os seres humanos, ligando-nos à análise e à ação social do Sul Global, ao seu surgimento, e nos convidando a refletir, a olhar para frente ou para trás, ou ainda mais para dentro. (HIDALGO RUBIO, 2018, p. 87)18

Portanto, para pensarmos as mulheres sambistas cantoras e compositoras como sujeitos, me valho dos quatro modelos metodológicos de artistas estabelecidos por Suzanne Lacy e apresentados por Hidalgo Rubio. A autora categoriza diferentes práticas artísticas que buscam se inserir no contexto, quais sejam: (1) os artistas como experimentadores; (2) os artistas como informadores; (3) os artistas como analistas; e (4) os artistas como ativistas ou artivistas (HIDALGO RUBIO, 2018, p. 82-83). Interessam-me os artivistas, pois eles:

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(…) organizam-se espontaneamente para criar e executar ações de ativismo social ou político por meio de manifestações criativas muito diversas (performance, teatro, movimento, artes plásticas) e conseguem envolver ativamente o público e a sociedade civil. As experiências tornam-se coletivas e a/o artista se torna o catalisador e promotor de certas mudanças sociais (HIDALGO RUBIO, 2018, p. 83)19 .

Portanto, acredito que a análise de discurso das músicas não afasta o papel artístico dessas, visto que a arte, também entendida como discurso, constrói um conhecimento da realidade, a partir das liberdades do autor e do receptor, sem separar o contexto em que a obra de arte se situa (HERRERA FLORES, 2009, p. 169). Enquanto obras artísticas, as músicas do ÉPreta carregam consigo o que as suas compositoras e cantoras propuseram – mulheres brancas e negras sambistas artivistas –, mas também o contexto em que foram compostas e onde e por quem são ouvidas – nas rodas de samba da cidade do Rio de Janeiro.

1.2.2. O discurso das sambistas do ÉPreta

Ao contextualizar o discurso das cantoras e compositoras do grupo ÉPreta, ideológica e historicamente, buscamos compreender seu lugar de fala, afastando a ideia de neutralidade e podendo tirar sentido da linguagem utilizada por elas nos sambas que compõem. Junto à

18 Tradução livre. No original: “Precisamente es desde un nuevo viraje cultural que se proponen otras maneras de pensar el arte, desestimando las raíces de la creación artística como dominación hegemónica a lo largo de la historia, alejándonos de esa concepción elitista y patriarcal, y abriéndonos a nuevos planteamientos que acercan el arte a su verdadera naturaleza democrática, la de facilitar la comunicación entre humanos, vinculándonos al análisis y a la acción social desde el Sur Global, a su devenir, e invitarnos a la reflexión, a mirar más adelante, o más atrás, o más adentro”. 19 Tradução livre. No original: “ se organizan espontáneamente para crear y ejecutar acciones de activismo social o político a través de manifestaciones creativas muy diversas (performance, teatro, movimiento, artes plásticas) y consiguen involucrar al público y a la sociedad civil activamente. Las experiencias se tornan colectivas y la/el artista se convierte en el catalizador y promotor de ciertos cambios sociales”.

perspectiva de gênero, raça e classe defendida por Zoppi-Fontana, verificaremos se as letras das músicas se posicionam como feministas, e mais, questionam a ordem existente, propondo a mudança através da luta por direitos humanos. A roda de samba ÉPreta, e seu projeto de gravação, surgiu em 2017, após a realização do clipe20 da música “Pra matar preconceito”, em 2016, protagonizado por diversas mulheres negras, entre elas as cantoras Marina Iris e Nina Rosa. Cada uma das cantoras que faz parte do projeto já possuía, antes deste, uma carreira consolidada no samba no Rio de Janeiro. Conforme texto retirado da página do YouTube do vídeo de divulgação da campanha de financiamento do projeto21, lançado em fevereiro de 2017:

Diversas mulheres vêm reivindicando seu espaço hoje nas rodas de samba do Rio, seja como cantoras, compositoras ou instrumentistas, e tornando, assim, aos poucos, esses espaços mais igualitários e democráticos. Com o objetivo de apresentar suas vivências, tanto na música como fora dela, e as experiências, os afetos e as visões de mundo de tantas outras mulheres negras, reuniram-se então Marcelle Motta, Maria Menezes, Marina Iris, Nina Rosa e Simone Costa, cinco vozes expressivas da música popular carioca. Maria Menezes. Cantora de timbre marcante, de grave potente e raro, Maria já compôs alguns grupos de samba e, desde 2009, integra o Arruda. De lá pra cá, foram gravados um CD e um DVD, além da participação no DVD do Samba Social Clube - nova geração. A cantora já se apresentou em palcos tradicionais do Rio de Janeiro: Teatro Rival, Parque Madureira, Samba Luzia, Feira das Yabás, Rio Scenarium. Marcelle Motta já contabiliza dez anos de carreira, sua interpretação impressiona pela potência vocal. Já se apresentou em diversos estados do país e dividiu palco com grande nomes, como Elza Soares. Hoje faz parte do projeto Celeiro Samba Clube, se apresentando com regularidade no Samba Luzia. Marcelle está gravando seu primeiro disco. Marina Iris completa este ano 10 anos de carreira. Desde 2013, se apresenta no show principal do Carioca da Gema. Seu disco de estreia foi lançado em dezembro de 2014, no Teatro Rival. De lá para cá, a cantora vem mostrando seu trabalho em Sescs, casas de show e festivais em diversas cidades. São Paulo, São Luis, Curitiba, Salvador, Berlim (Alemanha), Colônia (Alemanha), Rietberg (Alemanha). Marina está gravando seu segundo disco. Nina Rosa é cantora e compositora. Nos seus mais de dez anos de carreira já passou por muitos palcos do Rio e de outros estados. É também foliã e canta em blocos e bailes da cidade durante o carnaval. Hoje, além de outros projetos, avança na produção de seu primeiro trabalho solo. Simone Costa é nascida no subúrbio carioca, já passou por diversas casas shows e rodas de samba da cidade, hoje participa da Roda de Samba da Cabeça Branca, na zona oeste e compõe também a Roda de Samba Mafuá no Quintal, na Praça Mauá.

Das sete músicas que fazem parte do disco, cinco são compostas exclusivamente ou em parceria com mulheres (nem todas cantoras do projeto, como, por exemplo, Manu da Cuíca), e serão essas cinco as analisadas neste trabalho. Somente duas das músicas serão

20 O clipe alcançou mais de 80 mil visualizações nas redes sociais e a música passou a ser cantada em diversas rodas de samba cariocas.

21 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c7mDIzU13_M>. Acesso em 10 dez. 2018.

analisadas nesse ponto, pois são as que mostram mais nitidamente uma compreensão de direitos humanos. As outras três serão analisadas mais adiante, em momentos do texto onde elas também reafirmam esse lugar de fala feminista. A primeira música que analisarei, Abayomi (ÉPreta), é composta por todas as cantoras e cantada também por todas:

ABAYOMI (É PRETA)22 (Marcelle Motta, Maria Menezes, Marina Iris, Nina Rosa, Simone Costa)

1 Abayomi, menina 2 Entre pernas de mãe e de vó 3 A trança que nos aproxima 4 Ensina na vida, desata nó

5 Solto a voz da memória 6 Sou toda negra mulher 7 Som da reciprocidade 8 Sororidade é

9 Firma o passo, nega / Estende a mão (firma o passo, nega) 10 Firma o passo, nega / Estende a mão 11 Não somos inimigas 12 Somos a revolução 13 E nossa luta é nesse chão

14 A noite odara 15 É preta 16 Tulipa mais rara 17 É preta 18 É vida que desabrocha 19 Em cores e facetas 20 Nossa união 21 É preta

“Entre pernas de mãe de vó” (linha 2) e soltando “a voz da memória” (linha 5), a letra demonstra a tentativa de buscar na ancestralidade a força e o conhecimento necessário para a revolução, para a luta (linhas 12 e 13). Além disso, ao usarem o termo sororidade (linha 8), que é a solidariedade feminista, compreende-se que a revolução será organizada pelas mulheres. A sororidade pode vir a ser uma ferramenta poderosa na luta das mulheres, conforme bell hooks, mas “somente confrontando as maneiras pelas quais mulheres – por meio de sexo, classe e raça – dominaram e exploraram outras mulheres, e criaram uma plataforma política que abordaria essas diferenças” (hooks, 2018:20). E reforça:

A sororidade feminista está fundamentada no comprometimento compartilhado de lutar contra a injustiça patriarcal, não importa a forma que a injustiça toma. Solidariedade política entre mulheres sempre enfraquece o sexismo e prepara o

22 Escolhi apresentar as letras das músicas nas formas de versos, com a forma das frases como elas são cantadas, a fim de preservar a identidade do discurso.

caminho para derrubar o patriarcado. É importante destacar que a sororidade jamais teria sido possível para além dos limites de raça e classe se as mulheres individuais não estivessem dispostas a abrir mão de seu poder de dominação e exploração de grupos subordinados de mulheres. Enquanto mulheres usarem poder de classe e de raça para dominar outras mulheres, a sororidade feminista não poderá existir por completo (hooks, 2018, p. 36).

Assim, afirma Vilma Piedade, complementando bell hooks, que deve haver “dororidade”:

Dororidade, pois contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, dor causada pelo Racismo. E essa Dor é preta. (…) Dororidade carrega no seu significado a dor provocada em todas as Mulheres pelo Machismo. Contudo, quando se trata de Nós, Mulheres Pretas, tem um agravo nessa dor. A Pele Preta nos marca na escala inferior da sociedade. E a Carne Preta ainda continua sendo a mais barata do mercado. É só verificar os dados... (PIEDADE, 2017, p. 17)

O conceito apresentado por Piedade mobiliza politicamente a dor sofrida pelas mulheres negras (CITAÇÃO LIVRO BELL HOOS. ENSINANDO A TRANSGREDIR). Nesse sentido, pode-se afirmar que a sororidade referida na música é, na verdade, uma dororidade, pois o sentido da luta é encontrado na união a partir das mulheres negras. Na referência à “abayomi” (título da música e linha 1) e na frase “Nossa união/É preta” (linhas 20 e 21), as compositoras trazem referências às culturas negras como representações da união e resistência, já que abayomi eram as bonecas feitas pelas mães africanas com retalhos de vestido em tranças ou amarras para acalentar seus filhos durante as viagens nos navios negreiros, e o termo “significa ‘Encontro precioso’, em Iorubá, uma das maiores etnias do continente africano cuja população habita parte da Nigéria, Benin, Togo e Costa do Marfim”23 . As bonecas ficaram conhecidas como símbolo de resistência e força da mulher

negra.

Isso também se afirma ao analisarmos as linhas 6, 9 e 10. A união, força e resistência das mulheres estão marcadas nas frases “Sou toda negra mulher”, “Firma o passo, negra / Estende a mão” e demonstram a convicção das compositoras de que a revolução, a mudança dos estado das coisas como estão – machismo, racismo, desigualdade, pobreza – é possível a partir da união liderada pelas mulheres negras. A união que vem do coletivo também pode ser compreendida na composição e interpretação coletiva da música analisada.

23 O blog Geledés publicou texto contando a história das Abayomi, entitulado “Bonecas Abayomi: símbolo de resistência, tradição e poder feminino”. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/bonecas-abayomisimbolo-de-resistencia-tradicao-e-poder-feminino/>. Acesso em 15 dez. 2018.

Além disso, ao olharmos para os verbos ser e estar eles aparecem repetidas vezes: “Sou toda negra mulher” (linha 6), “Não somos inimigas” (linha 11), “Somos a revolução” (linha 12), “E nossa luta é nesse chão” (linha 13), “É preta” (linhas 15, 17 e 21). Isso mostra uma marcação de sujeito, tanto ele se colocando como pessoa falante e existente, quanto colocando a existência de outros iguais a ele. Esses verbos trazem a existência (somos, eu sou) e a caracteriza (somos o quê? A revolução). A segunda música que será analisada nesse ponto é a última música do disco, e é a que dá título a esse trabalho. “Pra matar preconceito” não possui como compositora nenhuma das intérpretes do álbum, mas sim uma das grandes parceiras de Marina Iris, Manu da Cuíca. Contudo, a música também é interpretada por todas as cantoras do ÉPreta, trazendo mais uma vez o sentido de coletividade e união ao discurso.

PRA MATAR PRECONCEITO (Raul DiCaprio Cedro Rosa e Manu da Cuíca Cedro Rosa)

1 Na rua me chamam de gostosa 2 E um gringo acha que eu nasci pra dar 3 No postal mais vendido em qualquer loja 4 Tô lá eu de costas contra o mar

5 Falam que meu cabelo é ruim 6 É bombril, toin-oin-oin, é pixaim 7 O olhar tipo porta de serviço 8 É um míssil invisível contra mim

9 Sou criola, neguinha, mulata e muito mais, camará! 10 Minha história é suada igual dança no ilê 11 Ninguém vai me dizer o meu lugar

12 Sou Zezé, sou Leci, Mercedes Baptista, Ednanci 13 Aída, Ciata, Quelé, Mãe Beata e Aracy 14 Pele preta, nessa terra, é bandeira de guerra porque vi 15 Conceição ou Dandara 16 Pra matar preconceito eu renasci.

A música aborda já no título sobre o preconceito e a posição ativa de antagonismo a esse preconceito quando sugere metaforicamente “matá-lo”. Ela retrata, no geral, o cotidiano das maioria das mulheres negras que são vistas como objetos (linhas 1 e 2), que são diminuídas por seus traços negros (linhs 5 e 6), discriminadas não só em função da raça, mas também em função da classe (linhas 7 e 8), mas que pra resistir a tudo isso tiveram que ter muita força, assumindo sua identidade negra e lutando por respeito e reconhecimento (linhas 9 a 11). Nela se reiteram identidades e a luta pela visibilização e por um lugar de protagonismo das mulheres negras, buscando na ancestralidade das predecessoras a força para

mais uma vez se afirmarem como personagens principais de suas próprias histórias. Nas linhas 12, 13 e 15 são citadas diversas mulheres negras, artistas ou não, com histórias de luta e resistência que são o exemplo para o grupo ÉPreta ao declararem um renascimento da força dessas mulheres nelas mesmas para “matar” o preconceito. Nessa perspectiva:

Para o africano em geral e para o Banto em particular o ancestral é importante porque deixa uma herança espiritual sobre a Terra, tendo contribuído para a evolução da comunidade ao longo da sua existência, e por isso é venerado. Ele atesta o poder do indivíduo e é tomado como exemplo não apenas para que suas ações sejam imitadas mas para que cada um de seus descendentes assuma com igual consciência suas responsabilidades. Por força de sua herança espiritual, o ancestral assegura tanto a estabilidade e a solidariedade do grupo no tempo quanto sua coesão no espaço. Assim, o culto dos ancestrais (míticos, reais e familiares) tem uma repercussão inestimável na estatuária e na escultura da tradição negro-africana, que são as manifestações mais características da Arte Negra como um todo (e da arte banta em especial), distinguindo-a da a arte europeia, por exemplo (LOPES, 2011, p. 152).

Ainda ressalta Helena Theodoro:

Através de sua fé, de seu axé, as mulheres negras de diferentes comunidades religiosas conseguiram trazer até nossos dias imagens sacralizadas de seu passado, que se volta para a mitologia africana, apontando, insistentemente, por meio da tradição oral, para as estratégias mais diversas de insubordinação simbólica, que lhes possibilita criar mecanismos de defesa para a sobrevivência e a manutenção de seus traços culturais de origem (THEODORO, 1996, p. 114)

Percebe-se, então, que o cantar em memória às mulheres negras tem ampla ligação com as culturas negras, e mais, busca-se a força e o conhecimento na ancestralidade, na história dessas mulheres, todas lembradas como lutadoras, heroínas e batalhadoras, para lutar contra a imposição da branquitude. Além disso, ainda que haja um marca forte da questão de raça/cor na linha 14, quando falam “Pele preta, nessa terra, é bandeira de guerra porque vi”, ao usarem o termo preconceito – e não racismo – podemos entender que as mulheres não se colocam somente antirracistas, mas também contra qualquer forma de desigualdade, como a desigualdade social, o machismo, a homofobia, a transfobia, a intolerância religiosa e o capacitismo. Por óbvio que a música ressalta a relação com o racismo, tendo em vista os mais de três séculos de escravidão do povo negro que fazem parte da nossa história e ainda não foram reparados. “O olhar tipo porta de serviço” (linha 7) expõe a relação de prestação de serviço que foi imposta à população negra. Com o fim da escravidão, não lhes foram possibilitadas outras oportunidades de emprego, educação, moradia, etc., permanecendo a relação de trabalho do

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