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contra saúde pública
from “Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos.
racismo novo se alimenta na noção de etnia definida como um grupo cultural, categoria que constituí um lexical mais aceitável que a raça (falar politicamente correto)” (MUNANGA, 2003, p. 10-11). Nesse tópico falarei sobre o controle social do Estado sobre esse produto cultural e como o direito (que também é um produto cultural), foi e segue sendo utilizado como instrumento para esse controle, como bloqueio regulador do circuito de reação cultural do qual o samba faz parte.
2.2.1 Controle social e “criminalização” do samba: vadiagem e crimes contra saúde pública
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O controle social, tido como mecanismo de bloqueio regulador utilizado como tendência totalitária, desponta a partir do Estado Absolutista e seu intervencionismo, no qual o positivismo, a partir do século XIX, surge como método científico que justifica esse controle social. A criminologia e o direito penal nascem concomitantemente àqueles nesse processo, já que era necessário criar instrumentos que explicassem e amparassem a estrutura desse Estado. Para Juan Bustos Ramirez:
O Estado moderno requer, necessariamente, em quaisquer de suas expressões existentes, uma forte sistema de controle. A criminologia e o direito penal têm sido suas bases formais fundamentais. A guerra coloca-se como uma maneira de desenhar um véu sobre suas tensões e conflitos estruturais, e a exploração dos povos como uma forma de equilibrar os seus processos de acumulação (BUSTOS RAMIREZ, 2015, p. 46).
Essas questões são de relevância para pensar a atuação do Estado brasileiro na recém República no processo de “criminalização do samba”. “Criminalização do samba” encontra-se em aspas pois o samba nunca foi crime, tipo penal (criminalização primária). Ele passou por um processo de criminalização secundária ao ser associado a outros tipos penais. Essa compreensão de criminalização primária e secundária41 , contudo, é recente comparada a proposta da criminologia positivista e o paradigma etiológico, vertentes de pensamento que predominavam no século XIX e até pelo menos a metade do século XX. A criminologia positivista, desde o paradigma etiológico, tem por base o estudo no
41 A partir da criminologa crítica entende-se que é o próprio sistema que constrói a criminalidade, ao editar as leis e definir o que é crime (criminalização primária), selecionar quem será etiquetado, através da Polícia e de toda a mecânica do Poder Judiciário (criminalização secundária), e estigmatizar como criminosos aqueles que passam pelo sistema (criminalização terciária) (CASSOL, 2018, p. 05 apud ANDRADE, 2012, p. 136).
criminoso e o controle social dessa figura que é previamente identificada a partir da sua periculosidade, e teve como um dos seus maiores representantes Cesare Lombroso42. Tendo por base o positivismo, parte do pressuposto que a ciência é neutra, legitima o conhecimento criminológico e transforma-o numa disciplina. Associados, então, ao racismo científico, o direito penal e a criminologia se converteram em ferramentas estatizadas para a construção do controle social dos corpos negros no Brasil a contar da abolição da escravidão. A compreensão desse controle se faz necessária para entendermos o lugar que o Estado coloca esses corpos e junto deles, sua cultura, especificamente, o samba. Nessa perspectiva:
A Lei de Terras de 1850, a Lei 1331-A de 1854, o Decreto 528 de 1890, o ensino da eugenia nas Escolas Públicas e normas de imigração previstos no texto constitucional de 1934, o Decreto 7.967 de 1945, as normas que criminalizaram a capoeira, o curandeirismo e a vadiagem refletem com nitidez não apenas o grupo social excluído das condições necessárias a uma existência digna como o ‘perfil’ do criminoso que se consagrou na sociedade brasileira (PIRES, 2013, p. 301).
Para Luciano Góes, “com a abolição da escravatura brasileira, a humanidade do negro foi, enfim, declarada por uma cidadania retórica que mantinha sua objetificação no controle racial de uma sociedade excludente e com intenções exterminadoras” (GÓES, 2016, p. 172). Se antes da abolição da escravidão o modelo escravocrata era a base da sociedade brasileira, após ele, o racismo se tornou fundamental para o controle do Estado desse corpos negros agora libertos. Quem teve um papel fundamental nisso foi o pesquisador maranhense Nina Rodrigues, “legítimo representante da classe escravagista de um país marginal que acabara de abolir o maior e mais importante sistema escravagista do mundo ‘traduziu’ aquele paradigma [etiológico] a partir de uma base racista” (GÓES, 2016, p. 22). Nina Rodrigues traduziu a teoria lombrosiana para o controle racial na margem logo após a abolição da escravidão, possibilitando “a base para a construção do primeiro apartheid criminológico marginal, e, portanto, teórico, uma política segregacionista velada pelo discurso liberal, mas explícita na prática genocida racial de uma ordem racial/social excludente” (GÓES, 2016, p. 20, grifo no original). Assim:
Na descrição de nosso histórico genocida, ressaltamos o paradigma objetificante e o racismo ontológico sobre os quais foi construído e se desenvolveu o maior, mais duradouro e mais importante sistema escravagista do mundo, no qual a morte física
42 Cesare Lombroso foi um cientista italiano que a partir de estudos realizados com condenados pelo sistema penal italiano, formulou uma teoria que buscava nas características físicas e biológicas da pessoa a justificativa para a sua criminalidade – o criminoso nato –, criando assim, a partir do positivismo científico, o paradigma etiológico criminológico.
é somente uma faceta do extermínio negro como nos ensina Abdias do Nascimento ao apontar para a destruição do “Ser Negro” pela negação da sua da negritude que deu origem a uma ninguendade em decorrência da metamorfose que transformou toda diversidade continental africana em simplesmente “coisas” (GÓES, 2016, p. 28).
Diversas foram as leis promulgadas – no início da nova República e depois – a fim de negar a cidadania de mulheres e homens negros. Posso citar a Lei de Terras (lei nº 601 de 18 de setembro de 1850); o Regulamento para a reforma do ensino primário e secundário do Município da Corte (Lei 1331-A, de 17 de fevereiro de 1854); o Decreto 528, de 1890, que regulamentava a imigração no Brasil; o Código Penal da Primeira República (Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890); a Constituição de 1934, que previu o ensino da eugenia (“Art 138 – Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica”) e fixou restrições étnicas na seleção dos imigrantes (121, § 6º: “A entrada de immigrantes no território nacional soffrerá as restricções necessárias à garantia da integração ethnica e capacidade physica e civil do immigrante”43); o artigo 2º do Decreto-lei n.º 7.967, de 18 de setembro de 1945 – que dispôs, até 1980, sobre a Política de Imigração e Colonização brasileira; além de outros decretos e regulamentações que explicitam o racismo institucional brasileiro (PIRES, 2013, p. 92-100). A partir de uma perspectiva crítica, passamos a compreender que essas legislações são instrumentos utilizados para a manutenção do status quo e perpetuação da branquitude. E é a partir dessa perspectiva que analiso dois tipos penais criados a fim de realizar o controle dos corpos negros no Rio de Janeiro que influenciaram na “criminalização” do samba: a vadiagem e a prática de curandeirismo e magia. O crime de vadiagem passou a ser previsto no Código Penal de 1890:
CAPITULO XIII – DOS VADIOS E CAPOEIRAS Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes: Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias. § 1º Pela mesma sentença que condemnar o infractor como vadio, ou vagabundo, será elle obrigado a assignar termo de tomar occupação dentro de 15 dias, contados do cumprimento da pena. § 2º Os maiores de 14 annos serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, onde poderão ser conservados até á idade de 21 annos. (…) Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou
43 As referências a legislações antigas mantêm a grafia original.
desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Em outras palavras, salvo se tivesse um emprego fixo, qualquer pessoa na rua “à toa” era conduzida à delegacia. Contudo, a aplicação desse tipo penal pelas autoridades policiais era feita com um forte viés racial, sendo que negros, principalmente capoeiristas e músicos, passaram a ser presos e processados pela simples reunião nas ruas da cidade, demonstrando o controle sobre os corpos negros exercido pelo Estado. Nesse sentido:
A nova legislação entrara em vigor apenas dois anos após a abolição, quando milhares de negros, recém-libertos de seus senhores, não possuíam a devida qualificação profissional e, por isso, estavam a margem do mercado de trabalho. Os implicados na “Lei da Vadiagem” ficavam sujeitos à prisão por um mês e, findo o prazo, ao sair da cadeia, eram obrigados a firmar o compromisso “de tomar ocupação dentro de quinze dias”. A simples posse de um instrumento de percussão podia ser interpretada como indício de vadiagem. (LIRA NETO, 2017, p. 70).
O autor ressalta o recorte racial que o tipo penal apresentava, corroborando o que Luciano Góes também afirma, de que a tipificação da vadiagem, assim como outras legislações promulgadas no período pós-abolição, agiram como ferramenta para o controle dos corpos negros. A capoeira também foi tipificada como crime, como exposto, e possuía o mesmo viés de resistência e perpetuação das culturas negras que o samba, diversas vezes associada a esse. Contudo, ela não é objeto de estudo desse trabalho, motivo pelo qual não me debruçarei sobre o assunto. Vale ressaltar que a abolição da escravidão praticamente só deu aos ex-escravos possibilidade de venderem sua mão de obra, que não sendo qualificada e não tendo políticas públicas de ensino e empregabilidade para essa população, significava não dar-lhes nada e mantê-los na mesma condição social de antes. Destaca-se uma notícia do Jornal do Brasil de 31 de dezembro de 1922: “No domingo passado, último dia da Festa da Pena, as autoridades policiais apreenderam todos os pandeiros que surgiram isolados, isto é, cujos donos não integravam conjuntos musicais”44. Nesse sentido, diversos são os relatos de músicos que tinham seus instrumentos apreendidos e que permaneciam presos por até 24 horas por levarem consigo seus instrumentos musicais,
44 Tal notícia está na exposição que aconteceu entre 28 de abril de 2018 e 30 de março de 2019 no Museu de
Arte do Rio, “O Rio do Samba: resistência e reinvenção”, que aborda o samba desde o século XIX até os dias de hoje, passando pela música, artes plásticas, esculturas e vestuário. Ver mais em: <http://www.museudeartedorio.org.br/pt-br/exposicoes/atuais?exp=5111>. Acesso em 02 ago. 2018.
autuados como vadios e vagabundos. Lira Neto relata o conhecido caso de João da Baiana que a caminho da Festa da Penha, abordado por policiais, teve seu pandeiro recolhido e só não foi preso porque provou possuir emprego fixo. Na ausência do pandeiro, acabou não indo a um evento organizado na mansão do senador Pinheiro Machado, que notando sua ausência e ficando sabendo do ocorrido, comprou-lhe um novo pandeiro no qual foi escrito: “A minha admiração, João da Baiana –Senador Pinheiro Machado”. E assim o pandeiro nunca mais foi confiscado (2017, p. 70-71). Percebe-se com essa história, como bem aponta Lira Neto que:
O pandeiro de João da Baiana, oferecido por Pinheiro Machado e transformado em uma espécie de salvo-conduto, expressava toda a complexidade da convivência entre as elites sociais e os músicos populares. Por um lado, havia a enorme carga de preconceito inerente ao novo modelo civilizatório do urbanismo positivista. Por outro, os diversos pontos de contato cotidiano entre “os de cima” e “os de baixo” possibilitavam não apenas uma efetiva rede de proteção contra a violência policial. Também inauguravam novas oportunidades profissionais, no âmbito da embrionária indústria de diversões no país. (LIRA NETO, 2017, p. 71)
Ismael Silva também teve diversas passagens pela polícia do Rio de Janeiro. Autuado pelo crime de vadiagem, chegou a ficar trinta dias preso e só conseguiu ser solto com a condição de que arrumaria emprego em quinze dias, passando a trabalhar no escritório de Venceslau Barcelos, advogado que o defendeu (LIRA NETO, 2017, p. 176-180). Ele convivia com um grupo de “malandros” do Estácio, não que malandro fosse mancha moral, pois “a malandragem, entendiam, era uma maneira de não ceder a lógica perversa que condenava negros e mestiços à mendicância, ao desemprego e à extrema pobreza” (LIRA NETO, 2017, p. 182). Diferentemente dos sambistas e capoeiristas, as rodas de músicos que tocavam choro eram compotas por pequenos funcionários públicos ou músicos de bandas militares, trabalhadores da alfândega, entre outros, que “desfrutavam de salvo-conduto para tocar em casas de famílias brancas e nos seletos salões de baile da sociedade carioca. Nos subúrbios e
nas festas das tias baianas, eram recebidos com idêntica fidalguia” (LIRA NETO, 2017, p. 59). Justamente pela presença nos ambientes frequentados pela elite branca e pela amizade com a classe baixa, mas perseguido pela polícia, do subúrbio, os músicos de choro serviam de disfarce às rodas dos terreiros, criminalizadas pelo Estado:
Tinham direito a entoar suas flautas, violões e cavaquinhos na sala de visitas, bem à vista de quem passasse pela rua, enquanto o terreiro ficava reservado aos atabaques e agogôs dos batuqueiros, protegidos por esse “biombo social” dos olhares indiscretos e das batidas policiais, que ainda associavam a música negra à
vagabundagem e à prática de feitiçaria (LIRA NETO, 2017, p. 59).
A música negra, então, era perseguida porque associada à vadiagem, associada à capoeira e à resistência negra, o que preocupava a elite branca de uma possível revolta contra o sistema que ela tentava impor e por isso a necessidade do controle por parte do Estado. Nessa época, o capitalismo e a indústria cultural ainda não haviam se apropriado no samba como produto comercializável, por isso ser músico não era profissão, cenário que começa a mudar com a consolidação da indústria fonográfica e com a institucionalização do samba, em meados do século XX.
Há também outros tipos penais que acabaram, por associação, criminalizando o samba, as práticas de curandeirismo e magia:
CAPITULO III – DOS CRIMES CONTRA A SAUDE PUBLICA Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos: Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. Paragrapho unico. Pelos abusos commettidos no exercicio ilegal da medicina em geral, os seus autores soffrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos crimes a que derem causa. Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica: Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. § 1º Si por influencia, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas: Penas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000. § 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação, incorrerá o medico que directamente praticar qualquer dos actos acima referidos, ou assumir a responsabilidade delles. Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado curandeiro: Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. Paragrapho unico. Si o emprego de qualquer substancia resultar á pessoa privação, ou alteração temporaria ou permanente de suas faculdades psychicas ou funcções physiologicas, deformidade, ou inhabilitação do exercicio de orgão ou apparelho organico, ou, em summa, alguma enfermidade: Penas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000. Si resultar a morte: Pena - de prisão cellular por seis a vinte e quatro annos.
Percebe-se que os tipos penais incluíam qualquer uso de ervas medicinais, além de práticas espirituais, ambas as práticas realizadas por povos africanos diaspóricos. Bem verdade, não eram as práticas que eram criminosas, mas as pessoas que as realizavam na lógica branca e elitista. A Igreja Católica sempre esteve presente no processo de escravização dos negros,
fornecendo justificativas para a exploração de outros seres humanos a partir da sua teologia, como já demonstrei. Por isso, durante o Império, a prática de religiões que não a católica, religião oficial, era crime. Com a proclamação da República e o Estado laico, não havia mais como criminalizar especificamente outras religiões e novos tipos penais. Assim, criou-se uma política de criminalização da religião dos negros a partir de uma visão sanitarista:
A relação estabelecida aqui entre o estado e as religiões afro-brasileiras são agora traçadas com base no discurso médico, sanitarista. São as orientações dos médicos, diretores de serviços e departamentos de higiene pública que aparecem no Capítulo III do Código Criminal da República no ano de 1890 sob o título crimes contra a saúde pública, entre os quais aparecem as práticas de curandeirismo e magia (SANTOS, 2013, p. 07, grifo no original).
Além disso, “para as autoridades políticas e policiais a religião dos negros e de seus descendentes era sinônimo de insubordinação e perigo de revolta principalmente por agruparem os indivíduos por ocasião dos rituais” (SANTOS, 2013, p. 03). No entanto, “ao associar congadas, moçambiques, ticumbis, maracatus, etc. às igrejas, o negro mantém os valores ancestrais e a realeza africana” (THEODORO, 1996, p. 40), proporcionando espaços de união e identidade de grupo, dentro das estruturas da sociedade que o reprime, e salvaguardando homens e mulheres. É nesse sentido que aponta o Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro:
(...) é considerado o candomblé seminal a casa de João Alabá, de Omulu, na rua Barão de São Félix, no caminho da zona portuária para a Cidade Nova, instituição popular que se constituiu numa garantia para o negro no Rio de Janeiro, vitalizandoo para resistir e sustentar seus novos caminhos na cidade e no país. Suas filhas-desanto marcaram época como as rainhas negras do Rio Antigo: tia Amélia, Amélia Silvana de Araújo, mãe do violonista e compositor Donga; Perciliana Maria Constança, ou melhor, tia Perciliana do Santo Amaro; tia Mônica e sua prodigiosa filha, Carmem Teixeira da Conceição, a Carmem do Xibuca, a filha de Alabá que vive, sábia e soberana, até a década de 1980 com seus mais de 110 anos; a tia Bebiana dos ranchos; tia Gracinha, que foi mulher do grande Assumano Mina do Brasil, sacerdote islâmico; tia Sadata do rancho Rei de Ouro; e a grande tia Ciata (1854-1924), Hilária Batista de Almeida, mãe-pequena do candomblé de João Alabá, lideranças fundamentais para uma verdadeira revolução que se travaria no meio negro naquela zona depois da libertação. (CENTRO CULTURAL CARTOLA, 2006, p. 16)
Nesse contexto de religiosidade e de perseguição, de música e resistência, que surge o samba-de-terreiro, patrimônio do Rio de Janeiro. As comunidades-terreiros tinham uma grande importância para a preservação das populações negras, por isso se adaptavam conforme a região do país, segundo influência do grupo africano de maior atuação no local (THEODORO, 1996, p. 89). Desse modo:
A religião como forma de coesão possibilitou a formação de grupos e associações, cujo sistema de crenças veiculou maneiras particulares de inter-relacionamentos, normas, ações e valores que deram a essas comunidades características próprias. Analisando tais conteúdos, encontram-se não apenas aspectos da religião, mas, também, a continuidade e a reelaboração de um complexo cultural básico que insiste feroz e dinamicamente em existir, com valores singulares e diversificadas formas (THEODORO, 1996, p. 90).
As religiões de matriz africana, assim, possibilitavam união, força e uma outra maneira de ver o mundo, propiciando a permanência de saberes na diáspora. Nelas, mulheres e homens negros passavam de figuras subjugadas para protagonistas de seus rituais e portadores de conhecimentos. Tudo o que a elite branca brasileira não queria e do que morria de medo. O medo branco, portanto:
(...) foi responsável pela criminalização de toda manifestação ou ato que reunisse negros, originando uma série de ‘infrações sem vítimas’, pois esses ajuntamentos poderiam dar origem à tão temida revolução, o fantasma negro que sempre perturbou os sonhos leves e dourados da sociedade branca. No ano seguinte a abolição, o Estado criminaliza a capoeira e a vadiagem, apresentando, como punição aos vadios, vestígios do disciplinamento central pelo trabalho (GÓES, 2016, p. 181).
A criminalização da vadiagem e das religiosidades africanas, isto posto, reafirmava o privilégio de um discurso colonial e de uma cultura branca e de classe média-alta, em detrimento de vozes periféricas, que eram consideradas inadequadas e, logo, criminalizadas. Como explica Herrera Flores, “o processo ideológico bloqueia o circuito de reação cultural para impedir formas distintas de reação cultural, impedindo o processo de humanização da natureza humana” (HERRERA FLORES, 2005, p. 143, grifo no original)45 . Do mesmo modo:
Os velhos cordões – Destemido das Chamas, Chuveiro do Inferno, Teimoso de Santo Cristo, Tira o Dedo do Pudim, entre tantos outros – tinham sido banidos das ruas pelas autoridades sanitárias e policiais do início do século, sob a acusação de serem grotescos sujos e violentos. Incompatíveis, portanto, com o projeto político higienista e civilizatório então em voga, que buscava embelezar, sanear e modernizar a capital do país (LIRA NETO, 2017, p. 13).
Uma mudança ocorre nesse cenário quando se começa a abordar a mestiçagem, a feliz convivência entre as três raças que formavam o Brasil e que constrói o mito da democracia racial . Conforme Góes:
45 Tradução livre. No original: “el proceso ideológico bloquea el circuito de reacción cultural al impedir formas distintas de reacción cultural, deteniendo con ello el proceso de humanización de la naturaleza humana”.