editorial Encontro de Boteco
O
encontro poderia ter acontecido em um dos bares da década ou 30: no Café Nice, numa cantina do Bixiga, no Largo da Banana, no Ponto de Cem Mil Réis. Mas isso não aconteceu. Embora os dois tivessem nascido em 1910, a carreira musical de Adoniran começa a ganhar impulso quando a de Noel se aproximava do final. A morte prematura do compositor carioca, temporalmente, é próxima à entrada de Adoniran no rádio. Depois de algumas tentativas frustradas, João Rubinato )assim se chamava o paulista de Valinhos) consegue passar num programa de calouros em 1933, cantando com sua voz característica, Filosofia, de Noel Rosa. Quatro anos mais tarde Noel partiria de uma forma abrupta, deixando um vazio enorme na música brasileira. Mas se Adoniran inicia sua carreira reverenciando Noel, o toque paulistano na obra do carioca entraria também neste glorioso 1933, quando ele conheceu, por obra e força do acaso, Osvaldo Gogliano, o Vadico, paulistano do Brás, com quem Noel comporia obras primas como Feitio de Oração, Feitiço da Vila e Conversa de Botequim, entre outras. Não seria exagero então dizer que as melhores canções de Noel têm um pouco do sotaque italiano da Rua Catumbi. Noel e Adoniran viveram tempos de transformações políticas e econômicas de nosso país, que só a sutileza de suas canções poderia alcançar. A introdução da modernidade e os valores que mais tarde marcariam o Estado Novo (que Noel não viu mas antecipou em suas letras); a industrialização do país , o “pogressio” que Adoniran escancararia em suas composições; mas principalmente as mudanças de comportamento, homens e mulheres assumindo novos papéis numa sociedade urbana permeada pelos contraditórios valores capitalistas, que deixavam para trás o universo agrário do Brasil do século XIX. Esta revista talvez seja a tentativa de reunir, num mesmo boteco, essa dupla genial, que sempre esteve distante geograficamente, mas muito próximos em suas concepções musicais. Nesta mesa reunimos renomados botequeiros históricos (em todos os sentidos que a palavra possa alcançar), para tentar resgatar um pouco daquilo que estes dois gênios tentaram traduzir em versos e notas musicais. O leitor poderá apreciar onze artigos nos quais são tratadas diversas facetas da vida e da obra desses dois compositores-cronistas que marcaram profundamente a história da música brasileira. Marcaram e continuam marcando, como comprova o escrito elaborado por alunos da PUC-SP, Saudades da saudosa maloca. Jovens reverenciando a Adoniran. A revista Cultura Crítica também abre passagem para esses novos botequeiros.
Sumário Entre Arnestos e Ernestos Valdir Mengardo Cultura, política e modernidade em Noel Rosa Antonio Pedro Tota Mal traçadas linhas de um sambista no território da metrópole mais moderna do país Francisco Rocha
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Noel Rosa em seu tempo ou o samba em forma de arte Dmitri Cerboncini Fernandes
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Um sambista italiano em São Paulo: Adoniran Barbosa Maria Izilda Santos de Matos
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O samba reverente de Noel Rosa: o feitiço, a oração e o problema Mayra Pinto
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Rosa e Rubinato: histórias e discursos João Hilton Sayeg-Siqueira
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Noel Rosa: a maturação do samba José Adriano Fenerick Gírias, provérbios e frases feitas na canção “Com que Roupa?”, de Noel Rosa Caio de Almeida Bassitt História das histórias de Noel e Adoniran Valdir Mengardo
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Saudades da saudosa maloca 71 Américo Fazio Neto; Érica Molon; Janaina Bantim;Larissa Storti; Mona Hassanie; Raiane Imairô; Raul Baronetti orientação: Francisco das Chagas Camêlo
Diretoria da Associação dos Professores da PUC-SP
Presidente Maria Beatriz Costa Abramides Vice-presidente Victoria Claire Weischtordt 1a Secretária Priscilla Cornalbas 2o Secretário Leonardo Massud 1o Tesoureiro João Batista Teixeira revista cultural da apropuc-sp
Conselho Editorial João Batista Teixeira da Silva Maria Beatriz Costa Abramides Priscilla Cornalbas Victoria Chaire Weischtordt Editoria-Geral João Batista Teixeira da Silva Valdir Mengardo
2a Tesoureira Sandra Gagliardi Sanches Suplentes 1o - Wagner Wuo 2a - Maria Lucia Barroco
Editor Executivo Ricardo Melani (MTPS no 26.740) Preparação e revisão Véra Regina Maselli Projeto Gráfico, Capa e ilustrações Ricardo Melani Editoração eletrônica Mauro Teles Fotos Divulgação Impressão - Polo Printer Tiragem: 2.500 exemplares
Rua Bartira 407 – Perdizes CEP 05009-000 – São Paulo – SP Fone: (11) 3872-2685 apropuc@uol.com.br http://www.apropucsp.org.br
Cultura Crítica 12
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Pastiche Crônicas de Adoniran I
Entre Arnestos e Ernestos Valdir Mengardo
O
nome de Ernesto Paulelli não significava nada para mim, até que o Kanec, dono de um famoso espaço musical na Vila Madalena, me procurou: “Nosso próximo homenageado vai ser o Adoniran e você precisa fazer um roteiro bem redondinho porque o seu Arnesto vai estar presente”. Fiquei surpreso e nem de longe imaginava que o inspirador de um dos maiores sucessos do Adoniran ainda estivesse vivo, em pleno século 21. “É, o velhinho tá firme e forte, com mais de 90, e ainda mandando brasa na cervejinha. O Nando conhece a figura e vai trazê-lo para ser homenageado”, completou Kanec. De repente um filme começou a passar pela minha cabeça, um filme que começava numa sala antiga, com uma enorme rádio-vitrola num canto. Era só girar o botão e o disco caía; um disco pesado, daqueles de 78 rotações, tão frágil que só de vê-lo cair do suporte me dava medo de que ele espatifasse no prato que não parava de girar. E se ele se partisse, pronto! Lá se iam pro espaço o “Samba do Arnesto” e “Conselho de Mulher”, um dos primeiros discos que
6 Cultura Crítica 12 passou pelas minhas mãos, não sei se comprado pelo meu pai ou meu avô, que se divertiam demais com a fala italianada do Adoniran. O Arnesto nos convidou pra um samba Ele mora no Brás, Nois fumo, não encontremo ninguém, Nois vortemo com uma baita de uma reiva Da outra vez nois não vai mais.
A memória percorria os caminhos de um Brás que hoje não existe mais, onde talvez num sobrado amarelo, perto do Gasômetro, entre o Balila e o Castelões (quem sabe?), um certo Arnesto preparava uma presepada monumental com o Charutinho (vulgo Adoniran Barbosa) e seus amigos de maloca. E agora o Kanec me contava que o Arnesto estaria em carne e osso na minha frente, talvez para reparar aquela mancada indescritível de convidar a cambada para um samba e ir embora sem nenhuma satisfação. Pois é, mas de qualquer maneira eu tinha que preparar o roteiro, e rapidinho porque o Kanec sempre avisa essas coisas em cima da hora. Mas enfim chegou o domingo da homenagem. Casa cheia, apesar do futebol na telinha, e lá me plantei na frente do palco esperando o Arnesto chegar. Por mais que a lógica tente nos dizer que já se passou meio século entre o samba do 78 rotações e aquela tarde de domingo, era impossível deixar de imaginar a figura malandra do sujeito que enganou Adoniran. E quando o seu Ernesto entrou no bar, consegui vislumbrar em seu rosto envelhecido alguns traços daquele memorável sambista.
Quem é do samba sabe bem a magia de se encontrar pelo caminho algum pedaço de história, e agora estava na minha frente um baita pedaço da música popular brasileira. Abracei Ernesto Paulelli e perguntei para o dono da casa o que iria acontecer. “Ah! o seu Ernesto é nosso convidado e vai assistir todo o show ali sentadinho na primeira fila.” Mas o repórter que ainda sobrevive ao professor me cutucou pelas costas e lá fui eu saber se podia fazer umas rápidas perguntinhas ao seu Ernesto. “É claro que sim, pode me perguntar que eu respondo com o maior prazer”. E era a pura verdade. Mal desci do palco para fazer a primeira pergunta e o Seu Ernesto se apossou do microfone e ficou falando um tempão com um desembaraço e uma
carreira; foi logo depois que ele passou por aquele programa de calouros cantando “Filosofia”, do Noel Rosa. Fui com a cara do sujeito e dei o meu cartão pra ele. Adoniran olhou bem e falou em voz alta ‘Arnesto’. ‘Não, Ernesto’ retruquei. Mas ele, nem aí, disse: ‘Fui com a sua cara Arnesto e vou fazer um samba pra você’”. Ernesto Paulelli não acreditou no papo do sambista e continuou tocando na rádio, por vezes acompanhando Adoniran. Até que no ano seguinte encontrou a mulher de sua vida que, muito ciumenta, queria casar-se com ele, mas exigiu que ele largasse a música. O músico rendeu-se à amada, e Ernesto virou auxiliar de contador numa fábrica de cera, ironicamente também chamada Record. A música ocupava então um espaço bem menor na vida de Ernesto Paulelli quan-
Mas essa história que o Adoniran conta nunca aconteceu. lucidez pouco comuns em pessoas de sua idade. Logo de cara fui perguntando sobre o entrevero entre ele e Adoniran: “Mas como o senhor foi dar uma mancada dessas com o Charutinho?” “Bom, a história não é bem essa que ele conta. Eu conheci o Adoniran em 1938, quem nos apresentou foi a Nhá Zefa, cantora de primeira daquelas modas de viola. Eu tocava violão na Rádio Record e o Adoniran estava no começo da
do, lá por volta de 1955, sua mulher ouve assustada uma canção de Adoniran Barbosa. “Minha mulher me chamou correndo dizendo ‘Olha aí o que o Adoniran fez pra você’. E eu comecei a ouvir e a chorar junto com minha mulher, ao ver que 17 anos depois de nosso primeiro encontro o Adoniran cumpria a sua promessa, fazendo aquele ‘Samba do Arnesto’, do mesmo jeitinho que ele me chamou um dia.”
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7 Foto: Arquivo particular
Valdir Mengardo entrevista Ernesto Paulelli, o famoso Arnesto de Adoniran Barbosa.
“Mas quando o senhor fechou a casa para o Adoniran...”, insisti. “Mas essa história que o Adoniran conta nunca aconteceu. Eu não toco violão faz muito tempo e nunca fechei a minha casa pra ninguém.” “Pois é, mas a música é bem descritiva, conta que o senhor morava lá no Brás...” Seu Ernesto, meio surpreso, emendou: “Mas eu nunca morei no Brás; a maior parte da minha vida passei na Mooca, que é perto do Brás.” Naquele momento a conversa parecia ir para outro lado. Eu procurava o personagem que povoou minha infância e animou boa parte das rodas de samba de que eu participara, mas seu Arnesto, ou melhor, Ernesto Paulelli, insistia em apresentar o lado real de uma história que um
dos maiores compositores paulista ousou modificar. “Nada do que o Adoniran contou aconteceu. Eu gostei muito da história, me emocionei demais com a lembrança dele, mas tudo era só imaginação do Barbosa.” O relato do homenageado era tão cativante que a descoberta de que Adoniran teria inventado a história do samba soava deliciosamente. Mas naquele momento o inesperado aconteceu: enquanto todos riam das histórias daquele lúcido sambista, apareceu lá no fundo da plateia outro senhor, tão idoso quanto Ernesto, uma boina marrom jogada no lado da testa, e pôs-se a retrucar a fala do nosso homenageado. “Olha Arnesto, você sabe que a história do Adoniran é pura verda-
de. Eu estava lá na sua casa no Brás e presenciei tudo.” Houve um silêncio geral na plateia e seu Ernesto arregalou os olhos, estupefato. Primeiro perguntou baixinho para mim: “Mas quem é o sujeito?” Depois, vendo que eu estava tão surpreso quanto ele, desandou a responder: “Olha, meu senhor, primeiro eu nem sei o seu nome e depois eu já tenho bastante idade para vir aqui e falar mentiras. Se eu disse que o Adoniran, meu grande amigo Adoniran, inventou essa história é porque isso aconteceu, queira o senhor ou não.” Lá do fundo o outro velhinho retrucou: “Arnesto, meu nome é Joca, você deve saber bem. Eu estive lá no Brás em 1955, quando você nos convidou para aquele samba na
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Foto: Adoniran Barbosa- anotações com arte 2009.
Ernesto aos 93 anos.
sua casa. Lembro-me bem que fomos, eu, o Adoniran, a Iracema e o Laércio. Tocamos e tocamos a sua campainha e você não atendeu. Seu cachorro começou a latir e você nem apareceu. Aí eu fiquei revoltado e disse para o Adoniran: ‘Poxa! Pelo menos ele devia ter deixado um recado na porta!’ “Poxa digo eu!”, retrucou seu Arnesto meio indignado.– “O cidadão vive 94 anos, para depois, numa tarde de domingo, descobrir que tinha um cachorro e que fazia rodas de samba em sua casa, que era num bairro em que ele nunca tinha morado!” “Senhor apresentador, se me permite, eu gostaria de ler só um pedacinho desse depoimento do Adoniran que está aqui neste livrinho”, insistiu Joca. O velhinho sacou de um pequeno livro laranja, que eu conhecia bem: era um exemplar da coleção A
música brasileira deste século, que reproduzia os shows que o grande Fernando Faro produzia. Meio apreensivo, mas em nome da democracia, falei para o Joca continuar. “Pois é, neste depoimento o Adoniran diz o seguinte: ‘O Arnesto existiu, morava no Brás o malandro, irmão do Nicola Caporino, Ernesto Caporino. Ele convidou a gente para o samba. Eu fui lá com os meus maloqueiros, com fome. Disse que tinha comida e chegando lá não tinha nada. Ele marcou ao meio-dia, nós chegamos à uma. A panela estava com a casca do arroz embaixo.’” Percebi que seu Ernesto começava a perder a calma diante do discurso do estranho personagem, e então decidi interferir: “Bom pessoal eu acho que o Joca poderia vir aqui numa outra oportunidade e contar as suas histórias com o Adoniran − que, tenho certeza, devem ser maravilhosas. Hoje o homenageado é o Seu Ernesto e ainda tem muita gente para cantar. Por exemplo, tem uma figura aqui na casa que canta este samba maravilhoso do Adoniran, que é o Roque. Vamos lá, Roque, mande o Samba do Arnesto, para homenagearmos o Seu Ernesto.” Roque pegou o microfone e começou a cantar, eu me senti um pouco como naquele samba do Billy Blanco, o “Piston de Gafieira”: “E nessa altura, como parte da rotina, o piston tira a surdina e põe as coisas no lugar”. Desci do palco enquanto o sambista fazia o público delirar e fui atrás do Joca. Procurei na entrada do Clube, mas nada dele, saí pela Fradique e nem sombra do velhinho, o
cara devia andar bem depressa. Perguntei então para a Meirinha, que ficava passando a régua nas nossas despesas, quem afinal era aquele sujeito. “O Joca? Ah ele é um tipo muito estranho. De tempos em tempos ele aparece por aqui, senta naquela mesinha onde ele estava sentado, fica quietinho, e se alguém puxa conversa ele fica contando histórias do tempo em que ele conheceu Adoniran. Depois vai embora e fica um tempão sem aparecer. Acho que agora vai demorar mais tempo ainda, porque ele não gostou muito do que o seu Ernesto falou. Mas em se tratando do Joca...” Tive que interromper a Meirinha porque o Roque já estava terminando o seu número e eu tinha que chamar o meu parceiro, Nando Távora, que ia cantar seu grande hit, o “Barraco Apertadinho”, que fizera em homenagem a um tal de Rubinato, que se estivesse presente ia estar rachando o bico. cc Valdir Mengardo é professor do departamento de Jornalismo da PUCSP e editor do jornal PUCviva. Nota do autor Boa parte do que foi dito acima é fruto da entrevista que realizei com Ernesto Paulelli, em 31 de maio de 2009, no Clube Etílico Musical, na Vila Madalena; a outra parte talvez esteja perdida nos pedaços daqueles 78 rotações, tão frágeis, que foram se quebrando com o tempo. Talvez um dia consiga achar e juntar todos os cacos dessas lembranças e a partir daí pode ser que as duas realidades se transformem numa só.
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RM Pastiche Crônicas de Noel Rosa I
Cultura, política e modernidade em Noel Rosa
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Antonio Pedro Tota
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o plano estético, Noel de Medeiros Rosa, ou simplesmente Noel, foi um dos que livrou o samba do ritmo amaxixado, dando-lhe uma pontuação mais elaborada e em sintonia com o processo de urbanização. No plano das representações, sua obra pode ser um adequado instrumento para se pensar o paradoxo tradicional/moderno em nosso país. Por exemplo, quando o cinema falado tomava o lugar do mudo, Noel compôs, em 1932, “São coisas nossas”, uma clara referência ao primeiro filme falado brasileiro, Coisas nossas (Catani e Souza, 1983). A letra do samba revela a tensão entre o moderno e o tradicional, num quase lamento pelo processo de urbanização da sociedade brasileira: Queria ser pandeiro prá sentir o dia inteiro a tua mão na minha pele a batucar Saudade do violão e da palhoça Coisa nossa... coisa nossa.
10 Cultura Crítica 12 A sensualidade e a musicalidade da mão tocando na pele do pandeiro/ corpo brasileiro despontam a saudade daquilo que está distante e impossível de ser revertido, isto é, o Brasil do sertão, da vida simples e do bucólico da palhoça. A repetição enfatiza a nossa peculiar modernização. Os versos seguintes desnudam a razão básica de nossas contradições:
explorando os já explorados, enquanto o vigarista, com sutis diferenças, tem aqui quase que o mesmo sentido do agiota: tanto um como outro evitam o caminho mais árduo do batente, para a sobrevivência. Nada de labuta. Nada da inserção no conflito capital-trabalho. O bonde e a carroça. O primeiro é o próprio ícone da modernidade coletivizadora lembrado por um João
O samba, a prontidão e outras bossas, São nossas coisas... São coisas nossas!
Noel , como extraordinário crítico da sociedade , é também o flaneur moderno...
Além da bossa e do samba, a prontidão também é coisa nossa. No jargão popular, a palavra pronto significa “sem dinheiro” e, na música de Noel, o termo prontidão é usado com um claro sentido indicador da miséria, condição da maioria da população brasileira. Baleiro, jornaleiro Motorneiro, condutor e passageiro Prestamista e vigarista E o bonde que parece uma carroça Coisa nossa, coisa nossa (...).
Personagens urbanos, vivendo no limite do miserê (miséria), corporificados nas “profissões”, no cotidiano. Profissões de deserdados, de um lumpenproletariado subproduto da modernidade. Baleiro e jornaleiro – “profissões” de homens sem profissão. A ideia de que o Rio de Janeiro é a cidade do ócio (sempre tendo como contraponto São Paulo, a cidade do trabalho) (Fausto, 1976) parece se confirmar naquele começo da década de 1930: Noel coloca sentados, lado a lado, no bonde da modernidade, o prestamista e o vigarista. O primeiro pode ser identificado tanto com aquele que compra a prestação como com o agiota que empresta a juros extorsivos,
do Rio, na realidade carioca, ou cantado por um Mario de Andrade, na sua pauliceia desvairada. Eletricidade, apitos de fábricas, chaminés madrugadoras, gramofones e rádios são, afinados ao bonde, os elementos da modernidade. Já o segundo ícone – a carroça – simboliza o Brasil-sertão-colonial e essencialmente agrário. Menina que namora Na esquina e no portão Rapaz casado com dez filhos, sem tostão Se o pai descobre o truque dá uma coça Coisa nossa, muito nossa!
Tensão no mundo material, tensão no mundo afetivo. Menina que namora no portão guarda restos do namorico inocente, em que o toque de mão seria o gesto mais lúbrico e “sacana” (“tua mão na minha pele a batucar”). Esse namorico inocente de portão é posto em xeque com a revelação do namorado rapaz casado com
dez filhos (e o que é pior, sem tostão). Noel é o crítico da sociedade burguesa e de suas contradições em meio ao impacto da modernidade. Burguesia que carecia de uma verdadeira identidade burguesa, isto é, sem a tradição das burguesias forjadas nas lutas liberais de moldes europeus. Daí sua tendência ao mimetismo. Pode-se dizer que essa classe média só vai ad-
quirir identidade com a futilidade proporcionada pela mídia impressa, radiofonizada e depois televisiva das décadas de 1950 e 1960. Noel, como extraordinário crítico da sociedade, é também o flaneur moderno que atribui à multidão uma alma. O artista valia-se de métodos modernos para denunciar o impacto da modernidade. O moderno, em certos momentos, como limitador das manifestações lúdicas do amor, pode ser combatido com a própria modernidade. É o caso de “Três apitos”, composição de 1933: Quando o apito Da fábrica de tecidos Vem ferir os meus ouvidos Eu me lembro de você Pois você anda Sem dúvida bem zangada E está interessada Em fingir que não me vê Você que atende ao apito De uma chaminé de barro Por que não atende ao grito tão aflito
Cultura Crítica 12 Da buzina do meu carro? Sou do sereno Poeta muito soturno (...).
O flaneur luta contra o apito da fábrica de tecidos, utilizando outro instrumento da modernidade: a klaxon, isto é, a buzina. Os duelos baudelerianos davam-se entre o proletariado-esgrimista e a modernidade burguesa que o gestava e o aniquilava de um só golpe (Berman, 1989). No Brasil, Noel se aproxima mais da proposta oswaldiana, que apresenta o boêmio (“sou do sereno”) como o contrário do burguês e não o proletário clássico, expropriado da mais-valia marxista. Daí o automóvel, outro ícone da modernidade individualizadora, símbolo da velocidade amorosa dos modernistas/futuristas, usado contra os apitos das chaminés que ferem os ouvidos do homem sensível às transformações antilúdicas amorosas. Diz-se que Noel tinha ciúme de um guarda-noturno que namorava Josefina, a musa inspiradora de “Três apitos”. Noel dividia a tecelã com o guarda-noturno, mas tinha outros amores também numa confusão de paixões e desilusões que, sem dúvida, o inspiraram na composição de várias canções: Mas você sabe que enquanto você faz pano Faço junto ao piano Esses versos pra você.
Relações afetivas pessoais cruzando com a crítica social. Em 1931, Noel entrou em contato com Erastótenes Frazão, importante homem de teatro do Rio de Janeiro e frequentador da Praça Tiradentes, onde estavam localizados o
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Teatro Recreio, vários bares e cafés, ponto de encontro de compositores, jornalistas, artistas, malandros e trabalhadores do teatro. Frazão foi apresentado a Noel por Nássara,2 chargista e conhecido compositor-boêmio cario-
mente melancólico do leiloeiro que apregoa o “artigo” (tento relativizar o Noel politicamente incorreto com as aspas) sugere ao ouvinte que ele não quer se “desfazer” do “produto”. A mulata metamorfoseada em Brasil insere-
ca, campeão de concursos de músicas carnavalescas. Frazão convidou Noel para trabalhar em Café com música, peça inspirada nos bares que serviam café e incluíam, no cardápio, apresentações de sambas de novos compositores. Para a peça de Frazão, Noel compôs “Quem dá mais” (ou Leilão do Brasil):
se na economia de mercado numa antecipação às privatizações feitas, sintomaticamente, em leilões multinacionais: as qualidades são anunciadas e os lances são repetidos monotonamente. Diplomada em matéria de samba e de batucada. A sensualidade da mulher brasileira é, mesmo num samba mais “político”, tema recorrente: feiticeira, vaidosa... Foram essas qualidades das brasileiras que fizeram Waldo Frank, o intelectual socialista americano da Política da Boa Vizinhança (Frank, 1943), repensar, 11 anos depois, as relações de gênero que trazia de seu país. Claro que às qualidades referidas somava-se a mentira que, para Noel, era positivo (A mulher que não mente não tem valor, do samba “Mentir”[Mentira necessária], de 1932, gravado por Mário Reis). Quem levou a mulata foi o português do Vasco. Segundo Omar Jubran (2000), no irrepreensível trabalho de recuperação da obra do Poeta da Vila, Russinho, “jogador de futebol mais popular do Brasil”, havia sido premiado com uma barata da Chrysler, como eram chamados os automóveis esportivos na época. Mas Noel troca semanticamente a barata por uma mulata, e passa, na segunda estrofe, a oferecer
A mulata metamorfoseada em Brasil insere-se na economia de mercado...
Quem dá mais? Por uma mulata que é diplomada Em matéria de samba e de batucada Com as qualidades de moça formosa Fiteira e vaidosa, e muito mentirosa Cinco mil réis, duzentos mil réis, um conto de réis! Ninguém dá mais de um conto de réis? O Vasco paga o lote na batata em vez de barata Oferece ao Russinho uma mulata (...).
O primeiro “artigo” brasileiro a ser oferecido é a mulata, logo na primeira estrofe. Noel dá um tratamento à temática que faria arrepiar os estudiosos de gênero e, principalmente, os de etnias, num momento em que o chamado multiculturalismo está em voga. Será fácil fazer uma crítica ao compositor de Vila Isabel sem levar em conta sua época. Mas o tom absoluta-
12 Cultura Crítica 12 outro produto, marca da brasilidade: (...) Quem dá mais... Por um violão que toca em falsete, Que só não tem braço, fundo e cavalete Pertenceu a dom Pedro, morou no palácio Foi posto no prego por José Bonifácio Vinte mil réis, vinte e um e quinhentos, cinquenta mil réis! Quem arremata o lote é um judeu quem garante sou eu Pra vendê-lo pelo dobro no museu (...).
Noel sugere nossa desestruturação cultural: o violão tocando em falsete, um violão que só existe na metáfora. O artigo foi posto no prego pelo Patriarca da Independência, como forma de levantar fundos para tapar os buracos da nossa dívida externa feita
Estimo que este mal traçado samba Em estilo rude na intimidade (...) A vida lá em casa está horrível Ando empenhado nas mãos de um judeu.
E o leilão do Brasil continua: Quem dá mais... quem dá mais? Quem dá mais de um conto de réis? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três Quanto é que vai ganhar o leiloeiro Que também é brasileiro Que em três lotes vendeu o Brasil inteiro Quem dá mais?????
À venda estava o Brasil lúdico, do samba que exprime dois terços do Rio de Janeiro, expressão da singularidade cultural brasileira. Assim, Noel aponta, seguindo uma tradição de pensadores do porte de Dunshee de Abra-
À venda estava o Brasil lúdico, do samba que exprime dois terços do Rio de Janeiro... por D. Pedro. O lote, talvez de violões que pertenceram ao imperador, foi arrematado por um judeu. Só mesmo ignorando a História e a historicidade de Noel para acusá-lo de antissemita, como fez “Jorge Mautner, romancista de Kaos e músico de uma indefinida vanguarda pop [que] preferiu esquecer o Noel compositor e letrista” (Máximo e Didier, 1990:491). Isso porque, em “Cordiais saudações”, Noel já havia se empenhado nas mãos de um judeu:
ches, Manoel Bomfim, Silva Jardim e Lima Barreto, a submissão de uma classe dominante em relação ao capital estrangeiro. A dívida externa, a nossa dependência e o sentido do progresso foram objetos de várias outras composições do autor em voo solo ou em parceria. Em 1933, Noel compôs, com Orestes Barbosa “Positivismo”, que, como pode ser depreendido pelo título, não tinha como fonte de inspira-
ção nenhum objeto mais prosaico: A verdade meu amor mora num poço É Pilatos lá na bíblia quem nos diz e também faleceu por ter pescoço O inventor da guilhotina em Paris Vai orgulhosa querida Mas aceita esta lição: No câmbio incerto da vida A libra sempre é o coração O amor vem por princípio A ordem por base O progresso é que dever vir por fim Desprezaste esta lei de Augusto Comte E foste viver feliz longe de mim Vai coração que não vibra Com teu juro exorbitante Transformar mais esta libra Em dívida flutuante.
O progresso enaltecido pelo positivismo liga-se à guilhotina jacobina. O nosso jacobinismo, o da República da Espada, não conseguiu livrar-nos da dívida externa em libra acumulada pelos vários empréstimos. Os juros eram exorbitantes. A Revolução de 1930 retomou a política de valorização do café, produto em queda no mercado consumidor internacional arrasado pela profunda crise do capitalismo. A política de valorização do café, pela queima ou destruição da safra, alterou, ainda que não profundamente, o quadro. A dívida foi postergada: o governo Vargas tomou algumas medidas que contrariavam os interesses dos credores internacionais. A destruição do café e a crise geral brasileira foram mote para outra canção de Noel. Em “Samba da Boa Vontade”, composto em parceria com João de Barro, em 1931, são apontadas, por meio de uma fina ironia, as mazelas de país dependente em épo-
Cultura Crítica 12 ca de crise internacional. A música composta por Braguinha e Noel era contemporânea dos acontecimentos decorrentes da Revolução de 1930:
Para além da crítica social, a obra de Noel está cheia de signos pessimistas. Mesmos nas canções compostas com certo humor, percebe-se
Para além da crítica social , a obra de Noel está cheia de signos pessimistas. (...) Viver alegre hoje é preciso conserva sempre o teu sorriso Mesmo que a vida esteja feia e que vives na pinimba Passando a pirão de areia (...) Comparo meu Brasil A uma criança perdulária que anda sem vintém Mas tem a mãe que é milionária E que jurou, batendo o pé Que iremos à Europa Num aterro de café.
Clara referência à malversação de nossas riquezas. Riqueza e pobreza eram temas presentes em praticamente toda obra de Noel. “Filosofia”, samba de 1933, é um dos muitos exemplos: Mas a filosofia Hoje me auxilia A viver indiferente assim Nesta prontidão sem fim vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim.
Porém, a riqueza e a pobreza, em “Samba da boa vontade”, referiamse ao país e não ao indivíduo. A riqueza jogada no mar, ou seja, o café, faria um aterro que daria para chegar na Europa (Jubran, 2000:24). Riqueza de país monocultor-colonial em meio à pobreza generalizada.
o crescente uso de temas como tristeza, pobreza, felicidade, infelicidade, saúde, paixão, etc. Já em“Cordiais saudações”, samba de 1931, cantado por Noel acompanhado pelo Bando de Tangarás, o tratamento melancólico da melodia é acentuado pela interpretação do autor: Estimo que este mal traçado samba Em estilo rude, na intimidade Vá te encontrar gozando saúde Na mais completa felicidade.
O defeito físico de Noel – o queixo afundado – ficava mais notável com a fase adulta e, por isso, evitava grandes reuniões sociais. Entretanto, ele se tornava cada vez mais conhecido pelas suas músicas. Aos 22 anos já era uma figura pública. Como flaneur, buscava nos bares, botequins e cabarés, cada vez mais, seu refúgio. Nesses lugares há uma certa identidade de objetivos dos frequentadores: a busca da felicidade, mesmo que efêmera, como pode ser visto em “Quem ri melhor”, samba de 1936: Pobre de quem já sofreu nesse mundo a dor de um amor profundo Eu vivo bem sem amar a ninguém
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Ser feliz é sofrer por alguém Zombo de quem sofre assim Quem me fez chorar hoje chora por mim Quem ri melhor é quem ri no fim.
Numa festa, a anfitriã não conseguiu esconder o espanto diante do defeito físico do compositor. Noel sentiu, e compôs a canção, já mencionada, “Mentir” (“Mentira necessária”): Mentir, mentir somente para esconder A mágoa que ninguém deve saber Mentir, mentir, em vez de demonstrar a nossa dor num gesto ou num olhar Saber mentir é prova de nobreza Para não ferir alguém com a franqueza Mentira não é crime É bem sublime o que se diz Mentindo pra fazer alguém feliz.
A máscara e a face. Uma saída afetiva para serem contornadas as mazelas de uma alma ferida. Em “Fita amarela”, o conflito entre os opostos inseparáveis, isto é, a vida e a morte: Quando eu morrer não quero choro nem vela (...) Se existisse alma se há outra encarnação eu queria que uma mulata Sapateasse no meu caixão.
Morte anunciada atenuada pela sensualidade. A mulata dançando sobre o caixão representa a vida erotizada. A música de “Fita amarela” não chega a sugerir algo melancólico, imprimindo vida à letra que fala da morte. Depois que Noel encontrou Oswaldo Gogliano, o Vadico, as composições ficaram ainda mais melancólicas e pessimistas. É o que acontece
14 Cultura Crítica 12 com “Feitio de oração”, a primeira canção que fizeram juntos, música de Vadico e letra de Noel: Quem acha vive se perdendo Por isso agora eu vou me defendendo Da dor tão cruel desta saudade / Que por infelicidade O meu peito invade.
Nunca mais essa mulher me vê trabalhando Quem vive sambando Leva a vida para o lado que quer De fome não se morre Nesse Rio de Janeiro Ser malandro é capricho de rapaz solteiro A mulher é um achado Que nos perde e nos atrasa Não há malandro casado Pois malandro não se casa.
O médico de Noel, Dr. Graça Melo, sabia que a única saída era a mudança radical de estilo de vida. Isso era impossível para o poeta-modernoesgrimista que se entregava à boêmia, em especial onde trabalhava Ceci, sua amada do cabaré. Eram atitudes suicidas afinadas com a posição do “herói moderno”. Mesmo assim, fez a tentativa: seguiu o conselho do médico e mudou de ares. Foi para Belo Horizonte e, da capital mineira, escreveu ao Dr. Graça Melo: Já apresento melhoras, Pois levanto muito cedo E... deitar as nove horas Para mim é brinquedo A injeção me tortura E muito medo me mete Mas minha temperatura Não passa de trinta e sete! (...) Creio que fiz muito mal Em desprezar o cigarro Pois não há material Para o exame de escarro! (...).
Você vai se quiser Pois a mulher Não se deve obrigar a trabalhar mas não vá dizer depois que você não tem vestido E o jantar não dá pra dois (...).
Ceci, um dos amores de Noel Rosa, que inspirou o samba Dama do Cabaré. Foto: Encarte de LP MPB - Noel Rosa
A cada dia Noel consumia mais álcool. Cervejas e biritas, na expressão de Aracy de Almeida, eram lenitivos e anestésicos para a alma perturbada do poeta. Boêmio, ia dormir muito tarde. Chegava em casa com o sol nascendo. Alimentava-se mal. Começava a trabalhar por volta das 5 horas da tarde. Ia para um bar encontrar outros compositores, ou a uma estação de rádio ou gravadora. A vida amorosa do boêmio Noel era coerente com a busca angustiante de si mesmo: de namoricos no portão às paixões arrebatadoras pelas damas de cabarés. Uma tocou fundo seu coração. Tratava-se de Ceci. Porém, o namoro “sério” foi com Lindaura, mulher de 17 anos, cuja mãe acusou Noel de sedução de menor de idade: ou casa ou vai para a cadeia. Noel preferiu cadeia (Máximo e Didier, 1990:280). O artista parecia responder, aos que exigiam dele uma satisfação, com sambas como “Capricho de rapaz solteiro”:
A pressão familiar, de ambos os lados, não deixou outra saída senão o casamento. Aos 23 anos, sem festas, Noel parecia entrar em contradição, pois malandro não se casa. Mesmo assim, encarava o casamento como simples acidente. Na luta interna que se travava no interior de sua alma, Tânatos parecia levar a melhor sobre Eros. Noel tinha seus pulmões tomados pela tuberculose, doença que atingia parcela considerável dos boêmios. Na mesma proporção que a doença avançava, a situação na casa parecia cada dia mais insuportável. Dinheiro cada vez mais escasso e Lindaura, a esposa, queria trabalhar. Noel respondeu:
Em Belo Horizonte começou a trabalhar na Rádio Mineira e entrou em contato com compositores, voltando novamente para a noite boêmia. Belo Horizonte tornou-se pequena para o herói suicida. Voltou para o Rio de Janeiro dizendo-se curado. Tuberculose curava-se com tratamento prolongado e o de Noel fora rapidíssimo, ou seja, não estava curado. Voltou a frequentar os bares e a trabalhar na composição de novas canções. No Bar do Ponto, o Dr. Graça Mello encontrou o compositor e o alertou, mas Noel continuou sua saga. Encontrava-se com mais frequência com Ceci, a dama do cabaré. Ela tentava evitá-lo, pois tuberculose era facilmente transmissível. Noel, sentindo-se rejeitado, compôs:
Cultura Crítica 12 Provei do amor todo o amargor Que ele tem Então jurei Nunca mais amar ninguém (...)
O pai, que estava internado num sanatório, havia se enforcado. Aliás, o suicídio fazia parte da história da família. Durante a juventude do compositor, a avó havia se enforcado em uma árvore no quintal do “chalé modesto”. Profundamente deprimido, Noel bebia, fumava e emagrecia rapidamente. Tentou, ainda por duas vezes, mudar de ares, mas a proximidade da morte de um poeta angustiado deixava claro que era inútil. No Rio de Janeiro, no chalé com a família, sentado na cadeira, pouco se movimentava. Almirante (1977) registrou em “No tempo de Noel Rosa” – livro clássico para os estudiosos da música brasileira – os últimos momentos do poeta da Vila: No dia 4 de maio [1937] na rua Teodoro da Silva nº 385 festejava-se o aniversário de Dona Emília, esposa do violonista Vicente Galeano (...) Pela noite adentro ouvia-se o conjunto de Heitor que, entre diversos números populares, não deixava de executar as músicas de Noel (...) Por volta das 21:30 h, enquanto D. Marta [mãe de Noel] e Lindaura no portão se despediam de amigos da família, seu irmão Hélio, vigilante à cabeceira, notou que o doente abria os olhos esgazeadamente (...) Ao fazer um movimento, a mão de Noel se estendeu para a mesinha da cabeceira, em cujo tampo (...) ficou batendo pancadas surdas, ritmadas, esmorecendo (...) Por fim a mão de Noel se quedou imóvel (Almirante, 1977:213).
Aracy de Almeida e Benedito Lacerda tinham acabado de gravar, naquela mesma noite, “Eu sei sofrer”, uma das últimas composições de Noel:
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Quem é que já sofreu mais do que eu quem é que já me viu chorar? Sofrer foi um prazer que Deus me deu Eu sei sofrer sem reclamar Quem sofreu mais do que eu não nasceu Com certeza Deus já me esqueceu Mesmo assim não cansei de viver E na dor eu encontro prazer Saber sofrer é uma arte E pondo a modéstia de parte, Eu posso dizer que sei sofrer (...)
Mesmo nas canções mais hilariantes e humoradas, nota-se um certo pessimismo. Conflito entre a vida e a morte. Os limites entre Eros e Tânatos. A poesia conflituosa do poeta urbanista. Noel fraquejava diante das forças superiores da modernidade que pesavam sobre seus ombros. Forças desproporcionais. Baudelaire, Balzac, Nietzsche sentiram o mesmo. Suicídio e modernidade. Suicídio não como fuga covarde. Benjamin suicidou-se... Não fazer concessões ao ambiente que é hostil ao artista. Tal suicídio não é desistência, mas heroica paixão (Benjamin, 1985; Berman, 1989). cc
Conflito, crítica e pessimismo estiveram sempre presentes em grande parte da obra de Noel Rosa.
Antonio Pedro Tota é professor de História Contemporânea do Departamento de História da PUC-SP. E-mail: totapedro@uol.com.br
Notas 1. Artigo publicado em São Paulo Perspectiva. vol. 15, n. 3. São Paulo, July/ Sept.2001. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-88392001000300007. Acesso em: 2 out. 2011. 2. Em entrevista concedida ao autor, em maio de 1978, Nássara confirmou a versão entremeada de vários episódios pitorescos.
Referências ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. 2.ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1977. BENJAMIN, W. A modernidade. In: Kothe, F.R. (org.). Paris do Segundo Império em Baudelaire. São Paulo: Ática, 1985 (Coleção Grandes Cientistas Sociais). BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. CATANI A. M. e SOUZA, J. I. de M. A chanchada no cinema brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1983. FAUSTO, B. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1976. FRANK, W. South American Journey. New York: Duell, Sloan and Pearce, 1943. JUBRAN, O. A. J. Noel pela primeira vez. Brasília: Funarte. Ministério da Cultura, 2000 (livreto). MÁXIMO, J. e DIDIER, C. Noel Rosa, uma biografia. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1990.
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RM
Pastiche Crônicas de Adoniran II
Mal traçadas linhas de um sambista no território da metrópole mais moderna do país Francisco Rocha
A
doniran Barbosa passou por muitas profissões até ingressar no meio radiofônico, no começo dos anos 1930. Nasceu em 1910, no interior de São Paulo, em Valinhos. Batizado com o nome de João Rubinato, foi o sétimo filho de um casal de imigrantes italianos. Em 1918, mudou-se com a família para a cidade de Jundiaí (SP). Ainda criança, trabalhou com o pai no carregamento de vagões da São Paulo Railways. Nessa cidade também frequentou o grupo escolar, como ele próprio relata: “...naquele tempo não tinha jardim de infância, eu freqüentava era as ruas da infância. Bunito! Dá samba, não? Durou pouco a brincadeira, pois daí a uns par de meis mudamos pra Jundiaí e lá me enfiaram num grupo escolar. Fiquei lá dentro a muque, só até o terceiro ano. As aulas eram de manhã, e de tarde ia ajudar meu pai a carregar vagão na Estrada de Ferro São Paulo Railways”.1 Depois foi entregador de marmita e, posteriormente, tornou-se varredor em uma fábrica de tecidos.
Cultura Crítica 12 Com quatorze anos, em 1924, juntamente com a família, mudou-se para Santo André (SP). Então, exerceria a profissão de tecelão, encanador, pintor e garçom. Nessa época ingressou no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, onde aprendeu a profissão de metalúrgico-ajustador. Mas o trabalho com esmerilhamento de ferro fundido acabou prejudicando seus pulmões e novamente ele se viu desempregado. Outros empregos vieram: loja de ferragens, uma agência da Ford, vendedor ambulante de meias e entregador de uma loja de tecidos da Rua 25 de Março, no centro da cidade de São Paulo, para onde se mudou no início dos anos 1930. Quando saía para as entregas, passava pela Rádio Cruzeiro do Sul, e ali tomou contato com o meio radiofônico e passou a participar de programas de calouros. Por fim, cantando o samba “Filosofia”, de Noel Rosa, conseguiu não ser gongado e foi contratado como cantor da emissora. No início dos anos 1940, ingressa na Rádio Record e passa a trabalhar como radioator, inicialmente no programa “Serões Domingueiros”. Posteriormente, ainda nessa emissora, conhece o produtor e escritor Osvaldo Moles. A parceria com Moles traduziu-se nos personagens mais populares do radioteatro paulista. Inúmeros tipos foram protagonizados pelo compositor, em peças humorísticas, tais como Zé Cunversa, um tipo malandro; Jean Rubinet, galã do cinema francês; Moisés Rabinovic, judeu das prestações; Richard Morris, professor de inglês; Dom Segundo Sombra, cantor de tango-paródia; Perna Fina,
chofer italiano, entre outros, mas o ápice de sua carreira de radioator deu-se no programa “História das Malocas”, onde interpretou um malandro, avesso ao trabalho, sambista e morador da favela do Morro do Piolho, o Charutinho. Líder de audiência em São Paulo, o programa foi ao ar entre 1955 e 1967, ano em que morreu Osvaldo Moles. A radiopeça era inspirada em seu samba “Saudosa Maloca” (1951) que, em 1955, interpretado pelo grupo musical Demônios da Garoa, tve grande êxito junto ao público e projetou o nome do artista como compositor. A parceria com Moles também haveria de render composições como “Tiro ao Álvaro” (1960) e “Conselho de Mulher” (1953). Foi nessa mesma década de 1950 que Adoniran passou a compor os sambas que demarcariam seu estilo e o consagrariam como o mais autêntico representante do samba paulista, a exemplo de “Samba do Arnesto” (com Aloncin, 1953), “Iracema” (1956) e da própria “Saudosa Maloca”, entre outros. A partir de então, tal estilo apresenta-se em toda sua obra e deságua no seu maior sucesso, “Trem das Onze” (1965). Empregos e lugares por onde Adoniran passou, antes de ingressar no rádio, foram úteis ao desenvolvimento de sua profissão de radioator e compositor. Ele, “caipira”, quase analfabeto e sem nenhum conhecimento no meio artístico e radiofônico, veio se aventurar em São Paulo, no início da década de 1930. Gostava de samba: Sinhô, Noel Rosa, Luís Barbosa, entre outros. Este último se destacou pelas suas interpretações de samba de breque e foi também o introdutor do chapéu de palha como
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acompanhamento rítmico, nos programas de rádio e em gravações. O Barbosa do pseudônimo de Adoniran foi inspirado nesse sambista e Adoniran, veio do nome de um amigo que trabalhava nos correios. João Rubinato, dizia ele, para cantor de samba, não ia pegar. Ouvia rádio, sintonizava as estações do Rio e sonhou ser artista. Seja como intérprete dos textos de Osvaldo Moles ou como compositor de sambas, é no âmbito de sua relação com rádio – e com determinada linguagem que aí se desenvolvia na época – que se revelam os elementos fundamentais de sua obra. É essa espécie de fusão entre as duas faces (radioator e compositor) que assinala o estilo de Adoniran, um artista que exercitou sua poética como uma espécie de ponte entre a rua e o rádio, em um contexto configurado pelo radical processo de urbanização da metrópole paulista que, na primeira metade do século 20, tornou-se o maior polo industrial do país, atraindo o grande fluxo migratório brasileiro do período. O compositor, vivendo em São Paulo até 1982, ano de sua morte, teve sua biografia inscrita neste mapa em constante transmutação. Diante do cenário urbano que dia a dia se transformava, impondo novas relações aos seus habitantes, sua poética investiu em certa narrativa do cotidiano da grande cidade. Um sambista no território da modernidade Para cantar São Paulo, eu resolvi aproveitar tudo que a cidade oferecia. Então entram na letra gíria,
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Nos anos 1940 e 1950, a cidade de São Paulo projetou-se como o centro mais dinâmico do Brasil. Tal processo resultou de sua explosão demográfica, a população salta da casa de um milhão e trezentos mil habitantes, na década de 1940, para quase três milhões no final dos anos 1950; da dinâmica de sua indústria, nessa década São Paulo era responsável pela metade de toda produção nacional e da reconfiguração radical de sua fisionomia, em função da expansão da mancha urbana e da verticalização, sobretudo em sua região central. Progresso e trabalho forjaram o discurso laudatório, respaldado no crescimento vertiginoso da capital paulista, quando esta se transformou no maior centro socioeconômico brasileiro. De fato, a expansão em curso na cidade era intensa e dava ares de uma civilização avançada nos trópicos. Para o ufanismo dos setores dominantes, São Paulo ascendia ao patamar das grandes metrópoles modernas do capitalismo. As vozes dos personagens que habitam tanto os seus sambas quanto os programas de rádio em que o artista atuou revelam as contradições desse processo de transformação, em curso na metrópole paulista. Em seus sambas deparamos com a possibilidade de redescobrir os traços de uma cidade, ou melhor, de um estilo de narrativa do enredo urbano no contexto da modernidade. Uma poética afinada com as vozes daqueles que neste contexto habitavam o “espaço da exclusão”. Em suma, a arte
Foto: Divulgação
ruas, bairros, muita coisa do cotidiano da cidade. Adoniran Barbosa
Adoniran e seu principal parceiro, Osvaldo Moles.
de Adoniran é, sobretudo, a crônica da cidade que ele vivenciou. Sua escrita subverte a ordem imposta pelo esforço de modernização na medida em que narra através do olhar do excluído. Nesse sentido, legitima a experiência dos grupos que sofrem as contradições decorrentes dessa ordem. Tal narrativa nos parece fundamental para dar um sentido à história desses grupos e para construir formas que legitimem sua memória
que, neste caso, se traduzem pela própria obra do compositor. Como dissemos, Moles teve importância fundamental na carreira de Adoniran, sobretudo pela criação de inúmeros personagens que, na interpretação deste, atingiriam um sucesso extraordinário. O mais importante sem dúvida foi Charutinho, da “História das Malocas”. Diferentemente do que ocorria na produção cômica do rádio carioca, “A cidade que vem crescendo num ritmo vertiginoso, apresenta atualmente um bonito panorama urbano, moderno e aprazível. Grandes avenidas, logradouros, teatros edifícios públicos, estádios esportivos, grandes hotéis, cines e boites, tudo ali se encontra, de acordo com os padrões mais mo dernos e elegantes. [...] à altura das maiores cidades do mundo.” (Revista Sombra, out. 1950.)
Ao lado, foto aérea da região central de São Paulo.
Cultura Crítica 12 voltada para a sátira política, Osvaldo Moles explorou com maestria o campo da sátira social. Suas histórias transitaram pelo território da metrópole de São Paulo, na época proclamada como ícone do desenvolvimento nacional, o modelo inconteste do projeto de modernização da nação. A sátira de Osvaldo Moles traduz um flagrante das contradições intrínsecas a essa geografia em gestação. Aí o progresso vira progressio e a maloca é um ponto de contraste no mapa da modernidade da urbe. Esta é a minha maloca, manja. Mais esburacada que tamborim de escola de samba na quarta-feira de cinza. Onde a gente enfia a mão no armário embutido e encontra o céu. E o chuveiro é um buraco de goteira no teiado de zinco (...) Maloca onde a riqueza é... um jacá de vaziesa..., uma cesta de fome... e um pacote de gemido. Maloca onde as crioulas usa gilete no cabelo, pa fazê barba na barriga dos entrometido. Maloca onde eu cresci de teimoso que eu sou. Aqui tão tuas histórias, tua gente e tua paisagem humana.2
Nesse cenário Osvaldo Moles aclimata o sambista. Em um diálogo de “História das Malocas”, entre dois personagens da radiopeça, Charutinho e Dona Terezoca, temos indícios das prerrogativas de sua arte. - Me diga uma coisa, Charutinho? O qual que é a receita para fazer uma letra de samba? - Bom, pá escrevê uma boa letra de samba, a gente tem que ter uma condição principal. - É saber fazer as rimas, é ? - Não. Pá escrevê uma boa letra de samba, sentida... humana... A gente tem de sê, em primeiro lugal... narfabeto. Só se for narfabeto, escreve bem.
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Uma homenagem da indústria Dober & Irmão à obreira gente paulista, nos quatrocentos anos da “cidade que mais cresce no mundo”. Trabalho e progresso subscrevem o discurso laudatório do IV Centenário da cidade de São Paulo, em janeiro de 1954.
Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 25 jan 1954.
Se por um lado a condição de analfabeto traduzida em premissa para a boa escrita da letra de samba engendra o humor, por outro lado tal receita pode nos dar um indício do campo da arte do compositor de samba. De fato, o letramento não é imprescindível à arte do sambista. Sua poética resolve-se na oralidade, ou seja, a canção não pode prescindir da fala, a matéria prima com a qual trabalha o cancionista, cuja arte é redesenhar sua sonoridade, a entoação coloquial, no corpo da melodia.3 Tal pressuposto possibilita ao sambista mobilizar uma escuta sensível a determinadas vozes e dicções que se esgueiram no território controlado e ordenado pelo sistema escriturístico, este que resulta da conquista da economia que, como analisa Michel de Certeau, a partir
da modernidade se titularizou sob o nome de escritura.4 Na contramão daquilo que comumente identificamos ser o lugar da “cultura popular”, onde a oralidade apresenta-se viva, ou seja, fora das fronteiras que delineiam o mapa de nossas cidades modernas, Certeau argumenta que: “essas vozes não se fazem mais ouvir, a não ser dentro dos sistemas escriturísticos onde reaparecem. Elas circulam, bailando e passando, no campo do outro”. 5 Mas se assim é, e a ideologia do progresso pressupõe a dicotomia entre a escrita e oralidade, exatamente como forma de colonizar e vigiar o campo dessas vozes, o gesto daqueles que se afinam com a oralidade instaura uma estratégia de resistência. Pois, ainda dentro dessa linha de análise, se a linguagem do poder assume a cidade como tema,
20 Cultura Crítica 12 apropriando-se dela como objeto de sua intervenção; ele o faz por tomála como construção de um sistema organizado pela escrita, enfim como espelhamento do triunfo da conquista da economia moderna que, em última instância, traduz a hegemonia da escritura sobre a oralidade em nossa sociedade urbano-industrial. Não por acaso, as letras dos sambas de Adoniran Barbosa e os textos produzidos por Osvaldo Moles foram alvo daqueles que atribuíam a essa poética uma forma de deseducar a audiência; ou mesmo julgavam aqueles tipos uma propaganda negativa do linguajar do povo paulista, no momento em que o discurso dominante empenhava-se em forjar a identidade de São Paulo referenciada numa cidade civilizada e moderna. Mais tarde, nos anos 1970, tal discurso ainda reverbera e a censura empreendida pelo governo militar encarregou-se de cercear as composições de Adoniran. Nesse sentido, não é mera coincidência a gravação de “Saudosa Maloca” por Elis Regina, na época. Além do conteúdo de crítica social presente na letra do samba, espécie de hino dos despejados pelo processo de remodelação do tecido urbano, a composição é permeada pela dicção da fala popular. Diferentemente da interpretação dos Demônios da Garoa, que enfatizam o humor desse traço da oralidade, Elis o sublinha para ressaltar seu aspecto crítico. Vale dizer que as mudanças patrocinadas pelo golpe militar refletem-se no cenário da Grande São Paulo de forma singular. A capital paulista se tornou sede do “milagre brasileiro” e a gestão do espaço urbano é marca-
da por uma política de intervenção enquadrada nos pressupostos do modelo econômico orquestrado pelo regime militar. Tal projeto, ao viabilizar a maximização do lucro, a partir de ações nitidamente elitistas e excludentes, promove na metrópole um padrão de modernização que intensificou a tradicional segregação socioeconômica já existente em períodos anteriores. Adoniran Barbosa: poeta da oralidade Uma cidade, diz Certeau6, respira quando nela existem lugares da palavra, pouco importando sua função oficial – o bar da esquina, a praça
ato). Tal observação vai ao encontro do que afirmou Antonio Candido, referindo-se ao compositor como um poeta da cidade de São Paulo, ao inventar um jeito de ser paulistano. Tal invenção está no ato de dizer a cidade, possível no samba quando ele é a expressão de um jeito de ser que dela se apropria e nela habita. Adoniran é, sobretudo, poeta da oralidade. Como ator afinou sua escuta para apreender determinadas vozes e moldar os tipos que foram protagonizados por ele em programas radiofônicos. Como compositor de sambas apurou seu ouvido para recolher na entoação coloquial a matéria-prima de sua arte. Neste sentido, reiteramos, o artista define-se
...sua percepção ateve-se a polifonia de vozes no cenário de intensa urbanização que transmutou a cidade de São Paulo em uma metrópole . do mercado, o ponto de ônibus, etc. Os sambas de Adoniran Barbosa insinuam a memória de determinados lugares da palavra. A cidade aí “respira” através de uma narrativa. Ela está no samba através daquilo que é dito (um conteúdo), mas também se inscreve pela maneira de dizê-la (um
por uma prática inscrita no campo da fala. Em Adoniran, o ator e o sambista fundem-se em sua voz, assumem a mesma máscara. Diz respeito a uma poética construída por sua sensibilidade que escavou na paisagem sonora da metrópole paulistana o sentido de sua arte.
Cultura Crítica 12 Em outras palavras, sua percepção ateve-se a polifonia de vozes no cenário de intensa urbanização que transmutou a cidade de São Paulo em uma metrópole. Aí, ele pratica sua arte, surpreendendo na fala do homem comum o sentido de um cotidiano, a impressão de um lugar e de seus sujeitos. Nessas vozes ele capta o dito, mas, sobretudo, liga-se à maneira de dizer. Tal prática compõe o cerne de sua profissão de radioator, bem como de compositor de sambas. Nessa estratégia poética, o compositor flagra o popular na modernidade; pois considerar a cultura como ela é praticada, não naquilo que é valorizado pela representação oficial ou pela ordem econômica, implica atentarmos para a oralidade que, juntamente, como a criatividade prática e os atos da vida cotidiana a sustentam e a organizam. Tais aspectos evocariam determinadas práticas que, em nossa sociedade urbana e industrial, são tidas como ilegítimas ou negligenciáveis pelo discurso da modernidade. Ou seja, o que está em jogo aqui é a criatividade das pessoas comuns. Uma criatividade que se exerce nas práticas diárias, em que se combinam a astúcia, a sutileza, a flexibilidade do espírito, a atenção vigilante, o senso de oportunidade, enfim habilidades diversas que se depreendem de uma experiência longamente adquirida. Eis como no campo de uma ideologia irredutível da escrita, da produção e das técnicas especializadas, movimenta-se uma cultura fundamentada na oralidade e na criatividade prática da vida cotidiana do homem comum.7 Em muitas falas Adoniran se pronuncia no intuito de demarcar
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Adoniran no samba em uma birosca na periferia se São Paulo, 1956.
o seu estilo, recorrendo a determinada ideia de “povo” para identificar a sua poética e mesmo legitimá-la. Aqui, dois aspectos se destacam: a forma como ele constrói as letras e os temas abordados por esses textos. O compositor reiteradamente diz inspirar-se no “linguajar do povo”, recriando a partir dessas falas as letras de seus sambas. Assim, ele justifica em sua música expressões como: nóis fumus e não encontremos ninguém, nóis peguemus, din din donde, etc. Aliás, ele observa que o encanto da “arte popular” estaria relacionado à maneira como o artista se reporta à fala característica do “povo”. Sobre os temas de seus sambas, eles estariam, segundo o compositor, articulados às histórias e acontecimentos com os quais o “povo” se identifica. Nesse sentido, Adoniran diz buscar uma temática muito próxima da vida da gente comum.
Meus sambas não nascem com horas marcadas, não são consequências de inspirações. Eles nascem por si, por mim, pelas coisas. Contam de uma São Paulo grande, falam das gentes simples, humanas, das malocas, dos malandros, de gente boa. Não pretendo agredir ninguém com meus sambas... Eles não falam de grandes paixões, mas mostram os problemas e o cotidiano das pessoas da cidade grande, das muitas lutas e poucas vitórias. Sei que sou uma pessoa diferente – até os títulos das minhas músicas são diferentes – e sei também que ninguém me conhece. É que não tive nenhuma instrução. O que sei hoje aprendi na vida. Meu jardim de infância foi a rua.8
É esse o mapa que o compositor oferece a nossa escuta, de tal forma a conduzi-la na paisagem sonora, onde ele diz transitar a sua poética. Para o compositor, seus sambas voltam-se para uma audiência: o “povo”. Em muitas de suas entrevistas ele insiste: “faço samba
22 Cultura Crítica 12 para o povo. Por isso, faço letras com erros de português, porque é assim que o povo fala”. No entanto, essas frases pouco nos revelam dos caminhos que se insinuam no plano de suas composições. Aliás, abrem demasiadamente o foco, perdendo de vista as trilhas que poderiam nos aproximar de sua arte. Mas há outra frase que, entendemos, representa a síntese de seu estilo: “Pra falar errado, é preciso saber falar errado”. Ou seja, para nós, Adoniran não se resume a um transcritor da fala cotidiana, da gente comum. Para além desse gesto, está implícito um conhecimento que se depreende de certa maneira de fazer, articulada à inventividade desse compositor. Nesse sentido, menos do que produzir um “arquivo da fala do povo”, ele interage nestes lugares da palavra, onde circulam conversas, histórias portadoras de experiências, que aí são intercambiadas pelo homem comum. Tais ideias fundamentam a nossa reflexão sobre a obra desse sambista. Nelas percebemos a expressão de seu gesto poético. São movimentos reveladores de uma inteligência e inventividade capazes de criar, a partir de uma bricolage de vozes, determinadas narrativas. Histórias que guardam uma relação de cumplicidade com o “lugar”, onde sua arte buscou seus ouvintes. Cabe ainda observar que, através da análise da obra de Adoniran, observam-se certas práticas inscritas no universo da cultura popular. Tais práticas representam determinadas formas da construção do sentido do cotidiano experimentado pelas classes subalter-
nas, neste contexto da metrópole paulista. A poética desse compositor traduz a construção de certa memória que nos remete à narrativa das práticas do homem comum, cujo sentido se reveste de estratégias de resistência, isto é, a criação de outras representações da cidade e da experiência do moderno fren-
te ao discurso oficial que representava São Paulo como a cidade do progresso e do trabalho. cc Francisco Rocha é Doutor em História Social – FFLCH – USP. Autor do livro “Adoniran Barbosa Poeta da Cidade: a trajetória e obra do radioator e cancionista – Os anos 1950”. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
Notas 1. Extraído de Nova História da Música Popular Brasileira – Adoniran Barbosa & Paulo Vanzolini. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 2. 2. Vinheta de abertura da radiopeça História das Malocas, interpretada por Charutinho. Extraído do LP Saudade de Adoniran: Na Interpretação de Demônios da Garoa, Wilson Miranda e Adoniran Barbosa. São Paulo: Alvorada, s/d. 3. Luís Tatit analisa a produção da canção popular no campo da oralidade. Nesse sentido, a arte do cancionista é representada como “uma gestualidade oral, ao mesmo tempo contínua, articulada, tensa e natural, que exige um permanente equilíbrio entre os elementos melódicos, linguísticos, os parâmetros musicais e a entoação coloquial” (TATIT, Luís. O cancionista: Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp,1996. p. 9.) 4. Cf. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 Artes de fazer. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. 5. Idem, p. 222. 6. Idem, op. cit. 7. Cf. CERTEAU, Michel de. Op.cit. 8. Fala de A. Barbosa em BENICCHIO, Marlene.Samba do Metro. Última Hora, São Paulo, 20 jun. 1975. p. 5.
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RM Pastiche Crônicas de Noel Rosa II
Noel Rosa em seu tempo ou o samba em forma de arte Dmitri Cerboncini Fernandes
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mpossível interessar-se pela música popular do Brasil e não se admirar com a proficuidade ímpar de Noel Rosa (1910-1937). Autor de uma fornada de cerca de trezentas composições em curtíssimo espaço de tempo, o caso de Noel é dos raros em que grande quantidade não significa perda de qualidade, conforme atestam a demanda do público e a opinião de críticos e especialistas: seus êxitos são incessantemente regravados, fato que o torna um dos maiores fenômenos que nosso cancioneiro jamais concebeu. Longe de se restringir à esfera musical, a perpétua adoração à figura de Noel Rosa suscita empreitadas variadas: avolumam-se biografias, reportagens, documentários, estudos, filmes, revistas, coletâneas, songbooks, programas especiais no rádio e na televisão voltados ao simples encômio ou, raríssimas vezes, à detração polemista da figura e seu legado, indícios da incrível posição ocupada na cena
24 Cultura Crítica 12 cultural por alguém desaparecido há mais de setenta anos. Tal fartura de materiais, opiniões e escrutínios sobre vida e obra do sambista de Vila Isabel facilita o acesso ao conhecimento do legado de um personagem incontornável, algo meritório em um país que tradicionalmente não confere grande importância à salvaguarda de sua própria história. Por outro lado, a abundância e o tom amiúde incensador de tudo o que diga respeito a Noel chegam ao ponto de frustrar a realização seja de uma análise minimamente objetiva, seja de um tributo à altura do laureado, quer dizer, que fuja ao lugar-comum das convencionais constatações de genialidade. Nesse sentido, penso que mais proveitoso do que repisar a simples exaltação à figura tornada romanesca ou a exegese de versos e melodias seria desvendar sentidos dotados de valor historiográfico ocultados em meio a episódios bem conhecidos de sua trajetória. É o que tentarei empreender nos limites das próximas breves linhas. Sujeito e produto de uma era, a era em que o samba galgou espaços anteriormente inimagináveis, Noel Rosa contribuiu de inúmeras formas – e muitas vezes de maneira não-intencional – em setores diversos do da composição. A própria noção de genialidade, quando restrita ao domínio das manifestações populares urbanas, por exemplo, não existiria sem o concurso pretérito de Noel e seus companheiros de música, fato ironicamente ignorado pelos maiores entusiastas e usuários da expressão. Assim também sucede com a elevação do samba ao estatuto de
arte, intricado processo tributário de diversos agentes, entre os quais, claro, ele: Noel. Mas que seja frisado: não só ele. Levando em consideração a perspectiva das relações sociais que permitiram sua existência
indústrias fonográficas da Capital Federal. O ícone dessa nova geração, Noel Rosa, expressa por meio de sua trajetória, com exatidão, as transformações em pauta. A meio-caminho da boêmia e da vida burguesa, de-
Os anos 1930 presenciaram a entrada em cena de brancos de classe média no universo das manifestações musicais populares urbanas. artística encaramos o artista mais de perto, como homem de seu tempo: nem títere enleado em estruturas totalizadoras, nem indivíduo sobre-humano livre de constrições. E talvez esse modo de ver seja o que maior subsídio enseje para compreendermos como esse filiado a uma atividade então subalterna pode chegar ao que é hoje: clássico celebrado da cultura de um país. *** Os anos 1930 presenciaram a entrada em cena de brancos de classe média no universo das manifestações musicais populares urbanas. Diferentemente dos personagens do pretérito, cultores de uma forma musical supostamente funcional, quer dizer, voltada à comunidade de origem, os recém-chegados iniciavam-se de cara nas ascendentes estações de rádio e
cidido a tornar-se artista popular, Noel abandona o curso de medicina no primeiro ano. Emblemática declaração, no entanto, sugere que ele não teria rompido de vez com o universo social legítimo, visto que pretendia ser o “[...] Miguel Couto do samba”.1 Neste ponto, o pretendente dava à mostra aquela que se tornará a característica central das investidas dos colegas de sua geração: a alta aspiração transposta a um domínio até aquele instante reservado às camadas inferiores. O remediado morador de Vila Isabel, filho de um comerciário e de uma mestra-escola realizou os estudos no prestigioso Mosteiro de São Bento, tendo sido exposto a precoce contato informal com o ensino musical. A esperança era a de que o primogênito se formasse em Medicina; assim, a família sairia da precária situação econômica em que se encon-
Cultura Crítica 12 trava após a demência precoce que acometeu seu chefe. Noel, no entanto, não logrou conciliar a faculdade com a vida noturna que levava. A renúncia ao título de doutor demarcou o primeiro ato de desinteresse em prol de uma carreira incerta e altamente arriscada. Seu desprendimento, contudo, fez com que angariasse legitimidade no circuito da música popular urbana, haja vista o sacrifício econômico e de status em favor daquela manifestação e de seu estilo de vida correlato. Noel distinguia-se positivamente, ademais, por outras razões: embora tivesse se integrado com mestria naquele ambiente, fazendo da própria vida uma obra de arte, sua formação cultural pregressa destoava dos compositores contemporâneos; as sutilezas linguísticas e preocupações formais presentes nos versos de suas composições entregavam sua origem social. O conhecido problema no maxilar lhe trouxe diversos estigmas, como o de jamais comer em público; em contrapartida, serviu para que a mãe, compungida pela má sorte do filho, o deixasse solto pelo submundo do samba. Presente desde 1929 nas gravações em disco e estações de rádio, passou a tirar dos serviços prestados a essas instituições seu ganha-pão. Casado aos vinte e quatro anos, por pressão da família da noiva, Noel, além de sustentar a esposa, ainda separava um montante para manter a vida desregrada que comportava a dissipação de dinheiro por meio do sustento de amásias e bebidas aos montes. Tais fatores forçaram-no a manter um ritmo de produção de canções jamais visto em termos de música popular, muitas
delas compostas em conjunto com seus companheiros de cafés, bares e casas noturnas. Sua fama em fornecer acabamento estético a letras e canções carecedoras de graça e criatividade, no mais, atraía muitos compositores medianos atrás de parceria. O “Filósofo do Samba” ou “Poeta da Vila”, alcunhas recebidas pela imprensa da época devido à pretensa profundidade contida nos versos de suas produções, jogou-se nesse universo de corpo e alma, encarando-o como um trabalho ipsis litteris. Almejava, em razão disso, arregimentar determinada legitimidade à nova “profissão”, no intento de apagar aspectos socialmente negativos que ele pudesse carrear.
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sambista mais afamado do Brasil. E como sua declaração dá a perceber, tencionou considerar-se um artista na plena acepção do termo, artista de uma arte recém-inventada por figuras como ele próprio, que faziam ver e crer por meio de suas descrições, obras e ações em que deveria consistir o emergente gênero musical. Cabia ainda dentro do espírito dessas afirmações bombásticas a denegação do interesse no sucesso junto a um público alargado: no auge de sua curta carreira ele declarou ao Jornal do Rádio, em 1935, sobre a venda de quinze mil cópias de discos do antigo sucesso “Com que Roupa?” (1931): “(...) Não gosto do ‘Com que Roupa?’. Foi feito para o
...sutilezas linguísticas e preocupações formais presentes nos versos de suas composições entregavam sua origem social . Em entrevista concedida a um jornal em 1936, Noel dissertava sobre a relação que poetas como Orestes Barbosa e Catulo da Paixão Cearense teriam mantido com as criações populares, relação esta que, em sua opinião, configurava-se em via de mão dupla. Ele deixava claro que “(...) Da recíproca ação dessas duas tendências resultou a elevação do samba como uma forma de arte”.2 Noel, nesse período, era o
povo, e os sambas que eu mais gosto são feitos para mim”.3 O individualismo caro àqueles que podem se dar o luxo de satisfazer apenas a si próprios, aos pares ou a um círculo restrito demarca com precisão o instante em que certa autonomia simbólica passava a envolver e a ditar a produção do samba enquanto gênero musical organizado, dotado de parâmetros próprios de avaliação e classificações hierárquicas. As possi-
26 Cultura Crítica 12 bilidades de criação, de filiação e as “escolhas” que tanto recém-chegados quanto antigos realizariam nessa arena foram constrangidas após a década de 1930 por tais divisões.4 *** Os enunciados pertencentes à geração de Noel, como Braguinha (Carlos Alberto Braga, 1907-2006) – filho de um diretor de indústria –, Almirante (1908-1980) – filho de um endinheirado comerciário –, Mário Reis (1907-1981) – filho de um industrial –, Ary Barroso (19031964) – filho de um deputado estadual e promotor público –, Lamartine Babo (1904-1963) – filho de um comerciário –, alteravam as relações então estabelecidas entre compositores/cantores e as instituições comerciais. Em meio aos mencionados, apenas Braguinha não perdeu o pai de modo precoce antes de se aventurar no mercado da música popular. Leve-se em consideração que o pai de Noel Rosa tornara-se demente na adolescência do compositor, vindo a se suicidar poucos anos à frente.5 Braguinha, por outro lado, ocultou durante muito tempo a atividade exercida no meio artístico, disfarçando-se sob o pseudônimo de João de Barro. Partilhando a carência da autoridade paterna, quiçá de figura impeditiva aos sobrevoos demasiado temerários à reprodução de suas posições sociais, esses trânsfugas de classe puderam se arriscar de forma pioneira no métier indesejado pelos membros de “famílias respeitáveis”. A ausência de interditos à empreitada artística consistiu, portanto, na coincidência histórica que
reuniu aqueles que maior êxito conheceram no rádio, nas vendas de discos e nas profissões correlatas oferecidas na primeira metade do século 20 no Brasil. Nascidos em um espaço de tempo muito aproximado – não mais que sete anos –, esses pioneiros brancos de classe média e média-alta, desistentes de carreiras promissoras, forçavam, por outro lado, as indústrias fonográficas e as estações de rádio a não mais agirem de forma amadora, prática comum até fins da década de 1920. Os capitalistas do rádio e do disco passavam a lidar com cidadãos distintos do lumpesinato carente de informações sobre seus direitos, dispostos a vender sua força de trabalho a qualquer preço. Paralelamente, as referidas instituições comerciais já haviam iniciado um processo de racionalização organizacional e estética. Planos de expansão de lucros fizeram que determinados segmentos do processo de produção da mercadoria musical, outrora ignorados, passassem a atrair a atenção dos diretores dessas empresas. A escolha do repertório e do catálogo de artistas, por exemplo, demandava alguém especializado, capaz de também cuidar do arranjo dos discos e da mediação com os músicos, compositores, cantores. Um dos primeiros managers da indústria fonográfica foi Braguinha, figura que carreava os requisitos ao desempenho da função. Braguinha conquistou, quando de seu início nas gravadoras, lá pelos idos de 1929, amizades e contatos os mais diversos. A fama de bom compositor e de homem de fino trato abriu-lhe as portas para cargos de responsabilidade em variados âmbitos artísticos.
Logo em 1934, o compositor e exestudante de arquitetura participou como roteirista e assistente de direção dos filmes que começaram a ser rodados no Brasil, dividindo esse ofício com o musical até o ano de 1937, quando um dos diretores da Columbia Pictures, empresa para a qual Braguinha prestava serviços, o convidou a integrar o setor de discos. A partir de então o ex-líder do Bando de Tangarás, conjunto musical no qual Noel Rosa iniciou-se nesse meio, permaneceu durante toda a vida vinculado ao gerenciamento e à produção. Percebe-se que a presença de agentes como ele, Almirante, Ary Barroso e Lamartine Babo, ocupantes das estruturas do rádio na década de 1930 em funções de direção, produção e apresentação, modificava de vez a feição desse universo em um sentido determinado. Grande parte dos cantores e cantoras de sucesso passava ainda a ser composta por artistas da estirpe de Mário Reis e Marília Batista (1918-1990), ou seja, “cartazes” bem apessoados, brancos e bem-nascidos. *** Conforme visto, a nova geração que ascendia junto às gravadoras de discos e estações de rádio impunha, ainda que imperceptivelmente a si própria e aos outros, sua visão de mundo e seus anseios quanto ao que deveria consistir a profissão de artista popular. Muitas vezes o que essas pessoas almejavam, no entanto, conflitava com valores fomentados por antigos e novos convertidos a sambistas, revelando a fissura existente entre mundos sociais distintos
Cultura Crítica 12
Foto: Encarte de LP Música Popular Brasileira - Noel Rosa
Marília Batista canta um samba de Noel.
no mesmo domínio artístico. Wilson Batista (1913-1968), negro, filho de um pintor de paredes de origem muito pobre, nascido em Campos, no norte fluminense, migrou sozinho para a cidade do Rio de Janeiro aos quinze anos, a fim de galgar algo mais em sua vida. Após ter passado por ocupações subalternas na capital, lançou-se à composição de sambas de forma muito promissora. O forasteiro fluminense criou em 1933, com vinte anos de idade, uma canção sem maiores novidades formais nem temáticas, “Lenço no Pescoço”, cuja letra continha espécie de ode aos traços identificadores do
“malandro” sambista carioca, tema habitual desde a década de 1920.6 A canção foi gravada no mesmo ano pelo ascendente Sílvio Caldas (19081998). Dizia a referida letra: Meu chapéu do lado / Tamanco arrastando / Lenço no pescoço / Navalha no bolso / Eu passo gingando / Provoco e desafio / Eu tenho orgulho / Em ser tão vadio / Sei que eles falam / Deste meu proceder / Eu vejo quem trabalha / Andar no miserê / Eu sou vadio / Porque tive inclinação / Eu me lembro, era criança / Tirava samba-canção / Comigo não / Eu quero ver quem tem razão / E eles tocam / E você canta / E eu não dou.7
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Wilson punha em expresso, na composição, hábitos e maneiras do submundo frequentado também pelo já célebre Noel Rosa, positivando e assumindo uma condição marginal fortemente condenável pelos próceres da moralidade e bons costumes. O malandro tomava carne, traduzia-se em vestes e certa maneira de ser “natural” àqueles que, como Wilson, apresentaram inclinação, pois segundo assinalava “era criança” e “tirava samba-canção”. Forma de justificativa aos não aptos à modorrenta vida do trabalho “dignificante”, a reflexão sobre a malandragem imiscuída em meio aos versos de sambas, isto é, sobre o estilo de vida à brasileira contraposto ao burguês, alcançava o apogeu com Batista. A necessidade tornava-se virtude, tendo em vista que a negros como Wilson o acesso às posições econômicas dominantes era estruturalmente vedado; restava-lhes como consolo efetuar a inversão dos valores sociais “normais” por meio da exaltação de um estilo de vida marginal. O “Filósofo do Samba”, neste caso, revelou uma faceta distante da propalada pelos posteriores cultores, e mesmo contrária ao que preconizava em outras ocasiões.8 Embora aos olhos das “boas famílias” Noel levasse uma vida desregrada, com repetidas incursões em cabarés, bares e morros, inusitadamente ele respondeu de maneira um tanto ríspida e contraposta à ode à malandragem de Wilson Batista. Apesar de os dois não cultivarem amizade próxima, nenhum problema maior de relacionamento existia entre eles, razão pela qual qualquer espécie de vendeta pessoal deve ser afastada
28 Cultura Crítica 12 como estopim. Assim, naquele mesmo ano de 1933, o sambista-mor lançou prontamente, por intermédio da cantora Aracy de Almeida, sua preferida, a canção “Rapaz Folgado”, ratificando a tradição de intertextualidade presente em versos de diferentes composições de samba desde 1918, quando Pixinguinha, Donga e China batiam-se contra Sinhô em humoradas letras. Eis a canção-resposta de Noel Rosa: Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora esta navalha que te atrapalha / Com chapéu do lado deste rata / Da polícia quero que escapes / Fazendo um samba-canção / Já te dei papel e lápis / Arranja um amor e um violão / Malandro é palavra derrotista / Que só serve pra tirar / Todo o valor do sambista / Proponho ao povo civilizado / Não te chamar de malandro / E sim de rapaz folgado.9
Os símbolos de malandragem eleitos por Wilson, quais sejam, o andar malemolente de um tamanco arrastado, o lenço posto no pescoço, a navalha, o chapéu de lado, etc. deveriam ser substituídos na criação de Noel pelos que traziam a marca da civilização burguesa: o sapato, a gravata e a namorada. Apesar disso, Noel não tocou no ponto em que Wilson Batista criticava o trabalho de fato, pelo contrário; aconselhou a este último apenas que arranjasse um violão – sinal de que urgia a ele prosseguir a vida no meio musical, sob a condição de adotar procedimento distinto dos que propugnava. Ao mesmo tempo, Noel afastava a atuação do tocador de violão da es-
fera da malandragem anunciada por Wilson, enquadrando o instrumento musical de sua predileção em novo patamar. A questão central, contudo, é a de que Noel expressava certa rejeição à identificação imediata entre a figura do “malandro”, a carga de marginalidade que a palavra carregava, e o sambista, que neste ponto veria seu “valor” atado aos da própria sociedade “civilizada”. Wilson Batista, logo em seguida, respondeu na mesma moeda. Em “Mocinho da Vila”, de 1934, ele procura reafirmar a malandragem taxando Noel de “mocinho”, isto é, de um “otário”, antítese do malandro, pois não pertencia ao ambiente “pesado” do qual ele, Wilson, provinha e do qual o samba diria respeito. Se Noel era mais bem inserido nas instituições comerciais da música popular e possuía maior celebridade junto ao público, Wilson, em contrapartida, demarcava de modo um tanto ressentido que o fato de Noel ter acesso ao “microfone”, isto é, às gravadoras e às rádios, nada queria dizer a quem pertencia ao universo do samba por direito, pois “malandro não se faz”, se nasce. E, além dessa malandragem endêmica, Wilson apregoava ainda que “tinha seu cartaz”, isto é, que comia pelas beiradas do sucesso. Dupla malandragem, de vez que além de amealhar lucros simbólicos na esfera em que Noel reinava, ele teria o samba correndo na veia, diferentemente do “mocinho”. A canção dizia o seguinte: Você que é mocinho da Vila / Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais / Se não quiser perder / Cuide do seu microfone e deixe / Quem é malandro em paz / Injusto
é seu comentário / Falar de malandro quem é otário / Mas malandro não se faz / Eu de lenço no pescoço desacato e também tenho o meu cartaz.10
A contenda entre Noel e Wilson trouxe à luz a possibilidade da existência simbolicamente legítima de um samba “civilizado”, quer dizer, que se realizasse intrinsecamente pela mediação das instituições comerciais e que, não obstante, não abrisse mão de certa aura de pureza. Sem entrar na espinhosa questão da maior ou menor ascendência que o ambiente criado pelo governo trabalhista e “civilizador” de Getúlio Vargas possa ter exercido sobre transformações na arte popular daquele tempo, fica claro que, embora artistas como Noel partilhassem dos ambientes boêmios e de um estilo de vida não muito distante do propugnado por Wilson Batista, eles passavam a desejar ao samba e aos sambistas o estatuto de “arte” e “artista”, o que acarretava o apagamento de certos sinais prejudiciais a tal intento. Ao declarar que preferia as canções que compunha para si, e não as que criava para agradar aos outros, isto é, ao grande público que se arvorava em torno do samba, Noel nada mais fez do que anunciar discursivamente a existência de outra inflexão que principiava a ditar o rumo das produções de samba. Noel Rosa ou qualquer outro dos nomeados acima que detivesse atributos sociais semelhantes, incomodar-se-ia em “compor para os outros” porque à arte “verdadeira” não cabe a ânsia em deleitar um público anônimo. O caráter “universal” do samba encontrava-se aqui instituído, dado que sua lógica de repro-
Cultura Crítica 12 dução ladeava a das artes legítimas. Noel Rosa e seu grupo inauguraram, ademais, um caminho alternativo ao proposto por Mario de Andrade, grande teórico das artes populares de então; a pretensa pureza musical popular urbana, qualidade referida tão-somente aos territórios dos morros, segundo Mario, infiltravase na intimidade do sambista-artista na década de 1930. Após a morte de Noel a chama manteve-se acesa; Almirante, Ary Barroso, Braguinhae outros, do alto de seus microfones e de suas cadeiras de diretores de instituições musicais, terminaram aclamados juízes e verdadeiros intérpretes das manifestações populares urbanas. Cristalizava-se por meio de seus discursos e avaliações, enfim, a divisão que permitiu a existência simbólica do desinteresse dentro dos mais interessados âmbitos, os das estações de rádio, das indústrias fonográfica e cinematográfica, dos teatros de revista, etc. Aqui, talvez, os versos de célebre canção de Noel, “Feitio de Oração”, “(...) O samba, na realidade / Não vem do morro nem vem da cidade / E quem, suportar uma paixão / Sentirá que o samba então / Nasce do coração”, ganhem outro significado, uma vez que, de forma poética, seria a partir do “coração”, ou seja,, do que há de mais interno em termos de sentimentos, que o samba proviria e se realizaria. Nada mais artístico. cc Dmitri Cerboncini Fernandes é Bacharel em Ciências Sociais (FFLCH-USP), Doutor em Sociologia (FFLCH-USP) e Bolsista Fapesp de Pós-Doutorado em História Social (FFLCH-USP).
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Notas 1. Apud João Máximo & Carlos Didier, Noel Rosa: Uma Biografia, p. 158. A maioria das informações trazidas à baila neste texto provém desse livro. 2. Apud Brian McCann, Hello, Hello Brazil: Popular Music in the Making of Modern Brazil, p. 56. 3. Idem. 4. Para maiores informações sobre esse processo, consultar Dmitri Cerboncini Fernandes, A Inteligência da Música Popular: a “autenticidade” do samba e do choro, . 5. Almirante tinha dezesseis anos quando seu pai faleceu; Mário Reis, dezessete; Ary Barroso, sete; Lamartine Babo, doze anos. 6. Sinhô compôs algumas canções que continham certa reflexão sobre a malandragem já em 1927, como “Ora, vejam só”, que trazia os seguintes versos: “Ora vejam só / A mulher que eu arranjei / Ela me faz carinhos até demais / Chorando, ele me pede / Meu benzinho / Deixa a malandragem se és capaz / A malandragem eu não posso deixar / Juro por Deus e Nossa Senhora / É mais certo ela me abandonar / Meu Deus do céu / Que maldita hora / A malandragem é um curso primário / Que a qualquer um é bem necessário / É o arranco da prática da vida / Que só a morte / Decide o contrário”. Para maiores informações sobre os antecedentes de sambas “malandros”, ver Claudia Matos, Acertei no Milhar: Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio.. 7. “Lenço no Pescoço” (1933), de Wilson Batista. 8. Interessante ressaltar neste ponto que não procuro aquilo que poderia ser considerada uma “coerência interna” que abrangesse e nivelasse as obras de determinado artista. Incoerências e modificações de posição sobre o que quer que seja habitam costumeiramente os discursos transfigurados em versos de canções. Tratando-se de criações artísticas, não de glosas imediatas sobre “a realidade”, seja esta encarada da maneira que for, a realidade a que se prendem estes discursos é de um segundo nível. Trata-se, portanto, de obras que muitas vezes estão mais interessadas em dialogar entre elas próprias, em formar uma rima, etc., do que em dissertar de forma lógica sobre o mundo que as enseja. Essa precaução analítica poderia por vezes ter evitado o que costumeiramente é denominado de redução de uma obra a um contexto determinado. 9. “Rapaz Folgado” (1933), de Noel Rosa. 10. “Mocinho da Vila” (1934), de Wilson Batista. Referências FERNANDES, Dmitri Cerboncini, A inteligência da música popular: a “autenticidade” do samba e do choro, tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2010. MÁXIMO, João & DIDIER, Carlos. Noel Rosa: Uma biografia. Brasília: UnB/ Linha Gráfica Editora, 1990. MCCANN, Brian. Hello, Hello Brazil: Popular Music in the Making of Modern Brazil. EUA: Duke University Press, 2004. MATOS, Claudia. Acertei no Milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
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Pastiche Crônicas de Adoniran III
Um sambista italiano em São Paulo: Adoniran Barbosa Maria Izilda Santos de Matos
“
Adoniran Barbosa é um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos... Já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura que é o sal de nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do
samba e das canções, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das escolas, se aliaram com naturalidade às deformações normais do português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumi e não encontremo ninguém, exatamente como por todo esse país. Em São Paulo, hoje, o italiano está na filigrana. São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer para onde irá. Mas a cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; e que desde então vem cedendo lugar a uma outra, transformada em vasta aglomeração de gente vinda de toda parte. A nossa cidade, que substituiu a São Paulo estudantil e provinciana, foi a dos mestres-de-obra italianos e portugueses, dos arquitetos de inspiração neoclássica, floral, neocolonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos palacetes franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás, das casas meio francesas de Higienópolis, da salada da avenida Paulista. São Paulo da 25 de Março dos sírios, da Caetano Pinto dos espanhóis, da Rapaziada do Brás, na qual se apurou um novo modo cantante de falar português, como língua geral na convergência dos dialetos peninsulares e do baixo-contínuo vernáculo. Esta cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes, o trem da Cantareira, o Triângulo, as cantinas do Bixiga, Adoniran não a deixará acabar, porque graças a ele ela ficará, vivamente misturada com a nova mas, com o quarto do poeta, também intacta boiando no ar. A sua poesia e a sua música são ao mesmo tempo brasileiras em geral e paulistanas em particular. Sobretudo quando entram (quase sempre discretamente) as indicações de lugar para nos porem no Alto da Mooca, na Casa Verde, na Avenida
Cultura Crítica 12 São João, na 23 de Maio, no Brás genérico, no recente metrô, no antes remoto Jaçanã (...) Sem falar que o único poema em italiano deste disco nos põe no seu âmago, sem necessidade de localização. (...) Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua anti-voz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da cidade.”1
Como relata Antonio Candido, nas canções2 de Adoniran Barbosa emergem as memórias afetivas da cidade de outros tempos, falando do povo, destacando a presença dos italianos e permitindo capturar diferentes territórios, personagens, experiências e sonoridades urbanas. Este artigo focaliza a trajetória artística e a produção musical de Adoniran Barbosa, privilegiando as experiências urbanas por ele cantadas nas décadas de 1940, 50 e 60, e destacando suas formas de expressão e os rastros de italianidade. São Paulo: uma cidade italiana A expansão urbana de São Paulo esteve vinculada ao desen-
volvimento da produção cafeeira, num quadro no qual interagiram a desintegração da Abolição (1888), a proclamação da República (1889), a grande imigração e o êxodo rural. Pode-se considerar como marco de uma nova etapa da cidade a inauguração da estrada de ferro Santos-Jundiaí (1863), que concretizou a conexão de São Paulo com o porto exportador − Santos − e a com a zona produtora de café no interior do Estado. Os trilhos transportavam rápida e eficientemente o café, como também traziam de várias partes do mundo, particularmente da Europa, toda uma gama de produtos e influências, gerando e dinamizando um “vetor modernizador”. No final do século 19, a expansão da economia cafeeira (1850-1920) gerou uma enorme demanda de mão de obra. Gradativamente, implantouse uma política imigrantista em massa, contínua e subvencionada pelo governo, com a opção pela introdução de europeus e em unidades familiares. Esse processo de imigração para São Paulo foi carac-
terizado pela presença marcante dos italianos; entre 1885 e 1909, os agenciadores e propagandistas concentraram suas atividades na Itália. A política desencadeada pela cafeicultura paulista, estimulando e promovendo intensamente a imigração, em proporções bem superiores às possibilidades de emprego no campo, favoreceu o crescimento da população urbana, a capital tornou-a um polo de atração para os imigrantes. Alguns vieram diretamente para a cidade e outros, após uma rápida passagem pela lavoura, migraram à procura de melhores perspectivas, novas oportunidades e na busca da realização de seus sonhos. A presença acentuada desses recém-chegados gerou uma verdadeira metamorfose . Novos territórios se constituíram e passaram a receber as marcas dos grupos que ali se instalaram: os italianos nos bairros Bixiga, Brás, Mooca, Belém; os japoneses na Liberdade; os judeus no Bom Retiro, os sírio-libaneses na Rua 25 de Março; os portugueses em Santana e no Sumaré, e, mais ocultos, os redutos dos negros na Barra Funda e na Casa Verde.
Estrangeiros em São Paulo Anos
1885-1909 1910-1934 1935-1959 1960-1961 Total
Total
Italianos
31
Portugueses
Espanhóis
1.059.199 744.244 134.594 180.361 654.637 187.558 263.063 204.016 311.987 90.130 156.536 65.321 31.665 4.144 14.982 12.539 2.057.488 1.026.076 569.175 462.237 Fonte: Departamento de Imigração e Colonização. São Paulo, 1962, p. 44.
32 Cultura Crítica 12 De acordo com o censo de 1872, quando a cidade já sentia as consequências do surto cafeeiro, a população de São Paulo era de 31.385 pessoas. No censo seguinte, o de 1890, elevou-se para 64.934 habitantes; no início do século 20, em 1900, eram já 239.820 habitantes e, em 1920, a população mais do que dobrou, atingindo a cifra de 579.033 pessoas. Entre 1920 e 1940, saltava para 1.326.261 moradores, constituindo-se num mosaico diversificado de grupos étnicos e seus descendentes, que, juntamente com os migrantes do interior do estado e de outras regiões do país, conviviam numa multiplicidade de culturas, tradições e sotaques. Nas décadas de 1940, 50 e 60, São Paulo se caracterizou pela urbanização acelerada, transformando-se
ário; estimulava-se o crescimento da cidade, sua verticalização e a expansão do rodoviarismo. Nesse processo coexistiam permanências, demolições e construções, cresciam as obras públicas, novas áreas comerciais e financeiras, além da reterritorialização da zona do meretrício e da boêmia. O ritmo da modernidade contaminava a cidade: muitos automóveis, ônibus, caminhões, buzinas, sotaques, sons e odores, o ritmo acelerado dos transeuntes, o café no balcão, a pressa, os novos magazines, os modernos e cada vez mais altos arranha-céus. Os anos 1950, em especial, foram caracterizados pela aceleração da industrialização, com a penetração do capital estrangeiro, a modernização da produção e a ampliação de bens de
O crescimento urbano acelerado e novas formas de controle geravam sentimentos de nostalgia de uma cidade que não se podia mais recuperar... rapidamente em uma metrópole moderna. Os planos de intervenção urbana, orquestrados nas gestões de Fábio Prado (1935-1938) e Prestes Maia (1938-1945), procuraram remodelar a cidade, implementando um novo desenho urbano − o Plano Avenidas. Ampliou-se o centro comercial, com claro o incentivo ao mercado imobili-
consumo, em particular os automóveis, tornando a sociedade mais veloz. A cidade passou a ser mais conectada pelo rádio e particularmente mais visual, com a penetração lenta da TV, e marcada por um número crescente de cinemas e teatros. As construções cresciam, tornando a cidade um canteiro de obras.
Novos imigrantes e migrantes chegavam ajudavam a erguer a urbe, contribuindo para a mistura que se caracterizava pelos contrastes, ambiguidades, incorporações desiguais e combinações inquietantes, criando novas sonoridades na cidade, impregnando-a de múltiplos sotaques e várias tradições. O crescimento urbano acelerado e novas formas de controle geravam sentimentos de nostalgia3 de uma cidade que não se podia mais recuperar, cujas memórias se alimentavam de lembranças vagas e telescópicas: a quebra de valores tradicionais, destruição de vínculos afetivos, amizades, vizinhança, cadeiras na calçada, serestas na garoa, destruição de espaços e territórios4, final de feiras e festas. Enfim, a cidade de São Paulo se transformava incessantemente, impactando seus moradores e visitantes. Vários narradores e cronistas da cidade deixaram suas referências sobre essas modificações e tensões, mas de maneira especial, e com sensibilidade particular, destaca-se Adoniran Barbosa. Ele foi um observador atento e afetivo, que captou as mudanças e permanências, retratando flashes do cotidiano e os fragmentos da cidade.5 O sucesso de suas canções e a força como se mantém na memória de diferentes gerações são o reconhecimento da sua representatividade no processo de invenção da paulistaneidade.6 Para esse cronista, observar a cidade implicava o exercício de caminhar a pé (de dia e à noite), aproximar-se, conversar, ouvir, atentar para as entonações, sintaxes, sonoridades, e também se distanciar, buscando a inspiração-reprodução con-
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As composições e suas temáticas surgiam nos percursos urbanos, como flaneur, destacando-se as tensões que envolviam os habitantes, como as questões ligadas à moradia, falta de infraestrutura urbana, dificuldades com os transportes, acidentes (de trânsito, incêndios, enchentes), transformações e destruições. Também as novidades e os signos do progresso, os tempos e ritmos das construções, do trabalho, focalizando, ainda, as relações afetivas e amorosas. Na sonoridade da era de ouro do rádio
Capa de LP dos Demônios da Garoa.
cretizada nas composições. Produzir essa matéria modelar para as canções subentendia integrar-se com as experiências através do seu falar, não só presente no sotaque ítalo-paulistano, mas também nas paisagens sonoras,7 nas melodias, sonoridades e no modo de cantar específicos da cultura urbana paulista. Ele andava muito pelas ruas... foi por meio desse olhar vivo que ele viu e contou o que contou. Contou para São Paulo como São Paulo era... a primeira façanha de Adoniran Barbosa é ter descoberto o sotaque da música paulistana, com os devidos méritos ao sempre admirado ...Osvaldo Moles e ao conjunto vocal Demônios da Garoa, também originais da Record. A fusão do que
cada um percebeu que existia na cidade, do que havia de som pelas ruas, é que deu na obra admiravelmente fotográfica de Adoniran Barbosa. Uma obra descritiva, mas reflexiva... à beira da tragédia ou da comédia... as dezenas de vozes de Adoniran, ouvidas nos velhos rádios elétricos da época, eram carregadas dos sons das conversas nos corredores da rádio, nos botequins da Quintino, nos campos de futebol de várzea, nos jogos de bocha, nas cantinas, nos bairros populares, nos erros de concordância dos italianos e dos caipiras. Aos poucos, o rádio-ator foi-se abastecendo para compor uma obra musical, para transformar sons esparsos aparentemente sem função, em sambas, no samba da cidade, Adoniran foi deixando de interpretar e tornar-se criador.8
Os anos 1940 e 1950 ficaram conhecidos como a “era de ouro do rádio” no Brasil. Nesse período, as rádios expandiram-se por todo o país e passaram a ocupar um tempo maior na vida das pessoas, informando-as, divertindo-as e emocionando-as, somando-se à circulação nacional do disco, às publicações especializadas, ao cinema americano e nacional.9 O rádio divulgava uma música que se diversificava rítmica e poeticamente,10 a cadência mais tradicional do samba começou a ser substituída, segundo os novos gostos, pelo samba-canção, mais dolente e abolerado.11 Assim, um mercado musical (fonográfico e radiofônico) estabelecia-se e generalizava-se; nele, o popular, em transformação, convivia com a música internacional na dinâmica da oralidade no cotidiano citadino em ebulição.12 Em São Paulo, a rádio surgiu, fundada por Assis Chateaubriand (Rádio Tupi), que a uniu aos jornais. Em 1940, havia 12 emissoras, nos
34 Cultura Crítica 12 anos 1950 já eram 17, com destaque, como líder de audiência, para a Record, que teve participação ativa na Revolução Constitucionalista de 1932. No seu apogeu, a programação incluía além das radionovelas e dos radiojornais, programas de auditório, tanto musicais como humorísticos, todos com boa audiência. O trabalho nas rádios contava com artistas de circo, teatro, também anônimos, cantores e aventureiros. As emissoras de São Paulo mantinham conexões com as do Rio de Janeiro (então Capital Federal), particularmente com a Rádio Nacional. Os sucessos circulavam nacionalmente, mas também se veiculava toda uma produção de caráter regional, atingindo mais diretamente a informação, o humor e o gosto musical local. No caso dos programas de humor, o residual era recuperado, o estranhamento frente ao emergente e/ ou moderno era colocado, o antigo
ta, compositor e sambista. A voz das ruas ...as melodias de Adoniran Barbosa fluíam como as próprias ruas da cidade: para cima e para baixo, mudando de direção, largas e estreitas “ (Zuza Homem de Mello)
Adoniran Barbosa13 nasceu João Rubinato, em 6 de agosto de 1910, em Valinhos, São Paulo, e cresceu rodeado pela cultura italiana. Era filho de imigrantes italianos e, ainda menino, já residente em Jundiaí, começou a trabalhar com o pai no serviço de cargas da São Paulo Railway. Não terminou o curso primário, exerceu várias atividades, como entregador de marmitas, varredor de fábrica, tecelão, pintor, encanador, serralheiro e garçom. Aprendeu o ofício de metalúrgico-ajustador no Liceu de Artes e Ofícios, mas, por
Na década de 1940, Adoniran teve sua trajetória marcada pelas atividades como ator. torna-se arcaico, a inversão possibilita observar o não-dito, ou o repetido que circula no cotidiano, fazendo surgir anti-heróis, trocadilhos, paródias, personagens tragicômicos e outros elementos. Levando os criadores a construírem conexões com os ouvintes. Nesse contexto, Adoniran atuou com maestria, como humoris-
problemas pulmonares, passou a ter outras ocupações. Em 1932, já em São Paulo, juntamente com as funções de entregador de uma loja de tecidos da Rua 25 de março, tornou-se cantor ambulante, batucando na caixinha de fósforo, e marcando a sonoridade urbana. Frequentava as lojas de música
do Centro, ponto de encontro de artistas, pois começava a fazer músicas. Aventurou-se pelo teatro sem muito sucesso. Decidido a fazer carreira artística, arriscou-se em programas de calouros. Em 1933, como fruto de muita insistência, consegue seu primeiro contrato como cantor e depois como locutor. Dessa época datam seus primeiros sambas: Minha vida se consome e Teu orgulho acabou. Em 1934, destacou-se quando obteve o 1º lugar no concurso carnavalesco da Prefeitura de São Paulo com a marchinha carnavalesca Dona Boa. Começava aí sua trajetória pelas rádios. Por volta de 1935 foi contratado pela Rádio São Paulo, depois pela Difusora e pela Cruzeiro do Sul, aí permanecendo até 1941, quando passou a trabalhar na Record, atuando em radioteatro e musicais. Foi discotecário, locutor e radioator. Na década de 1940, Adoniran teve sua trajetória marcada pelas atividades como ator. Seus tipos eram inspirados em pessoas comuns, falas e entonações aperfeiçoadas nos diferentes territórios da cidade. Essas interpretações foram elementos fundamentais para as suas composições musicais. A atuação de Adoniran era cotidiana, e entre seus sucessos destacaram-se Barbosinha Mal-educado da Silva, aluno da Escolinha Risonha e Franca; Dr. Sinésio Trombone, o gostosão da Vila Matilde; Moisés Rabinovicht; o Zé Cunversa, do programa Casa da Sogra. Buscava compor os personagens com vários sotaques e misturas, como o motorista de táxi italiano do Largo do Paissandu, Giuseppe Pernafina, com forte marca de sotaque:
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Cartaz de Divulgação
Em 2010, a Cia Cínica apresentou o espetáculo Histórias da Maloca inspirado na obra de Adoniran Barbosa.
Estou aqui no ponto desde cinco de la matina, e ainda num virei a chave – e tenho uma dor no amolar esquerdo, que não sei se abstraio ele ou se faço uma anistia geral...por isso te digo que vai mar...”14
Seu maior sucesso foi com o programa Histórias das Malocas (1955), com destaque para Charutinho, o malandro malsucedido e
desocupado do Morro do Piolho, tangenciando para a crítica social.15 Trazia um caráter nostálgico de denúncia da cidade com seu ritmo assustador de construção-destruição, com um presente degradado − era algo que muitos sentiam, mas não sabiam transmitir. Como artista de rádio, seu sucesso mostrou a afinação com a sensibilidade do público − as camadas populares, o que lhe possibilitava audiência garantida. Os textos do programa Histórias das Malocas eram de Oswaldo Moles, mas os elementos de oralidade (entonações, sotaques e timbres) eram criação-recriação de Adoniran. A parceria com Oswaldo Moles nos textos humorísticos e musicais deu um caráter da crítica social, o humor do programa centrava-se numa construção caricatural do cotidiano dos habitantes da favela do Morro do Piolho, onde não só se viabilizava a comicidade como se tornava possível apontar as tensões-contradições sociais. As atuações de Adoniran como humorista, seus personagens e suas falas representavam os burburinhos de uma cidade em mudança.Ele mesmo se definia como “osservatore dos tipos de rua”. Ele criava um personagem diferente para cada um dos 16 programas da rádio nos quais atuava, sendo considerado “o milionário criador de tipo radiofônico.”16
As composições musicais se ampliam a partir de 1935: Agora podes chorar, A CanoaVirou, Chega, Mamão, Pra Esquecer, Um amor que já passou, com estilos variados, diferenciando-
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se do que posteriormente seriam seus maiores sucessos. A fusão do humor e da música atingiu a maturidade nos anos 1950, com os sucessos nas vozes dos Demônios da Garoa, com Malvina, que em 1951 ganhou o 1º lugar num concurso carnavalesco. Em 1953, era a vez de Joga a Chave, seguida de Saudosa Maloca (1951), Samba do Arnesto e as Mariposas (1955). Dessa experiência surgiram outras composições: Segura o Apito e Aqui Gerarda, mas foi em 1964 que ocorreu o sucesso nacional de Trem das Onze, seguido de outros. Este foi o momento de maior sucesso do compositor, que coincidiu com a efervescência do desenvolvimento urbano-industrial da cidade. Nos programas e nas composições, Adoniran mostrava uma sintonia com o cotidiano e sonoridades urbanos, seus personagens, suas composições se caracterizam pela síntese de sotaques, entonações peculiares das múltiplas migrações que povoaram e repovoaram a urbe. Em 1968, na 1ª Bienal do Samba, teve a composição Patrão, mulher e cachaça, em parceria com Oswaldo Moles, desclassificada. Nesse mesmo ano, o programa Histórias das Malocas perdia audiência e, com o suicídio de Moles, foi tirado do ar. Adoniran não era mais requisitado; de vez em quando fazia uma ponta na TV, em programas de humor e novelas. Morreu, em 23 de novembro de 1982, deixando a inesquecível imagem caracterizada pelo olhar inquieto, a gravata-borboleta, o paletó e o chapéu. Territórios sonoros de Adoniran Barbosa17
36 Cultura Crítica 12 alembrá veio os home co’as ferramenta o dono mandô derrubá... Peguemo todas nossas coisas E fumos pro meio da rua Aprecia a demolição Que tristeza que nóis sentia Cada táuba que caía Duia no coração Mato Grosso quis gritá Mas em cima eu falei: Os homis tá cá razão Nós arranja outro lugar Só se conformemo quando o Joca falou: “Deus dá o frio conforme o cobertor” E hoje nóis pega a páia nas grama do jardim E prá esquecê nóis cantemos
Foto: Adoniran Barbosa- anotações com arte 2009.
Adoniran retratava o cotidiano urbano, as transformações irreversíveis, criando uma visão idílica de um tempo-espaço pedido frente ao progresso, gerando um tipo de inconformismo que se aproximava da resistência e apontava para a denúncia, apregoando a paciência; explicitava a dor e as tensões da violência urbana. A cidade do compositor encontrava-se atravessada pelos pressupostos da disciplina e da cidadania, reconhecida como espaço de tensões. Nas canções têm-se as resistências ao dito processo civilizatório, aos desejos latentes e generalizados de “ser moderno”, que agiam de forma seletiva construindo a questão social, com a identificação do outro, e tornando a
Adoniran retratava o cotidiano urbano, as transformações irreversíveis... questão da moradia uma tensão. Saudosa Maloca Se o sinhô não tá lembrado dá licença de contá que aqui onde agora está esse edifiço arto, era uma casa veia um palacete assobradado. Foi aqui seu moço, que eu, Mato Grosso e Joca construímos nossa maloca, mas um dia nós nem pode se
assim: Saudosa maloca, maloca querida donde nós passemos os dias feliz de nossas vida (Adoniran Barbosa, 1955) Expressando inconformismo, acomodação e resistência, a canção é marcada pelo discurso da denúncia, até certo ponto ingênuo, mas pleno de sensibilidade. O narrador chama a atenção, traz a memória, para que se observe o edifício “arto”, e é em torno desse foco
que relembra o acontecimento: a expulsão do cantor, juntamente com os companheiros Mato Grosso e Joca. A expulsão e a demolição permitiam a emergência do novo, empreendida pelos “home co’as ferramenta”. Mato Grosso “quis gritá”, mas foi acomodado - “nóis arranja otro lugá”, mas o inconformismo ainda se mantém e “só se conformemo/ quando o Joca falou/Deus dá o frio conforme o cobertô”. O que poderia parecer
Cultura Crítica 12 conformismo encontrava-se pleno de denúncia que emerge no ato de rememorar os dias felizes passados na maloca, destacando-se que o engraçado não se reduz ao alegre.18
eram territórios para um samba ou outras experiências; ocorriam menções ao viaduto Santa Ifigênia, ao trem do Jaçanã, à Vila Esperança... Mostrava uma cidade
Desvendava silêncios e ocultamentos, emoções complexas e profundas, invisíveis, carregadas de significados... Em Histórias das Malocas, programa que se origina do sucesso da canção Saudosa Maloca, destacava-se o caráter de comunidade do viver em maloca, um lugar provisório, improvisado, vulnerável às adversidades e à escassez. Utilizando os comportamentos dominantes e criticando de forma contundente a sociedade e seus valores. Identificando-se um intenso e rico processo de circularidade de valores permitindo questionar a tese do popular que se incorpora à modernidade, mas destacando as tensões das apropriações, reapropriações, desvios e recriações da cultura popular urbana.19 Nas canções de Adoniran as referências à cidade foram constantes, apareciam não só em Saudosa Maloca, mas o cortiço poderia ser localizado na Rua Aurora, Guaianazes e imediações; o Arnesto (personagem de outra canção) morava no Brás; o Morro do Piolho, a Casa Verde ou o Bixiga
em crescimento e transformação, que demolia e construía; enfim, uma urbe que avançava antropofagicamente. Desvendava silêncios e ocultamentos, emoções complexas e profundas, invisíveis, carregadas de significados, apontando tensões e dificuldades da população pobre, a vida nas periferias ou a dos moradores das malocas; carências, miséria, falta de saneamento, questões de saúde e educação. As estratégias mais frequentes do autor se faziam através do humor; assim sua experiência como humorista impregnava a vivência como compositor. Adoniran se aprimorou em contar casos de despejos, abandono, demolição, desamor, desemprego, através de uma paródia bem elaborada entre estrutura verbomusical na tristeza das letras contrastando com a dimensão alegre e contagiante da melodia. O sucesso de Trem das Onze definitivamente consagrou-o como compositor:
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Trem das Onze Não posso ficar Nem mais um minuto com você Sinto muito amor Mas não pode ser Moro em Jaçanã Se eu perder esse trem Que sai agora às onze horas Só amanhã de manhã além disso, mulher, Tem outra coisa minha mãe não dorme enquanto eu não chegar Sou filho único tenho minha casa pra olhar Não posso ficar (Adoniran Barbosa, 1964)20 Em São Paulo, a dita “cidade que mais cresce no mundo”, as noções de tempo se transformavam ancoradas nas de progresso e produtivismo industrial, difundindo a importância de não se perder tempo, não perder a hora, levando a imposição da pontualidade. No Samba Italiano além de usar expressões italianadas e dialetos peninsulares que circulavam, descreve um momento de lazer fora de São Paulo, no litoral. Samba Italiano Piove, piove Fá tempo que piove qua, Gigi, E io sempre io, Sotto la tua finestra E voi senza me sentire. Ridere, ridere, ridere Di questo infelice qua. Ti ricordi Gioconda Di quella sera in Guarujá
38 Cultura Crítica 12 Quando il mare Ti portava via E me chiamaste: “Aiuto, Marcelo, La tua Gioconda ha paura di quest’onda”. (Adoniran Barbosa) A fala errada era intencional, a linguagem italianada explicitava as experiências adquiridas na circularidade pela cidade, marcada pela forte presença dos italianos e seus descendentes. Por fim, cabe enfatizar que as canções não são portadoras de apenas uma significação − a que o artista quis imprimir −, mas de múltiplas, acumuladas nos usos, leituras e interpretações. Neste momento (2010), quando se comemoram os 100 anos do nascimento de Adoniran Barbosa, estas reflexões buscaram destacar alguns aspectos de sua rica produção, enfatizando o potencial para outras pesquisas, em particular sobre as sonoridades e a presença marcante dos italianos e seus descendentes na cidade de São Paulo. cc Maria Izilda Santos de Matos é Professora Titular do Departamento de história da PUC/SP. Entre suas obras destacam-se: Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues (2.ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999); Dolores Duran: experiências boêmias em Copacabana (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997); Meu lar é o botequim (2.ed., São Paulo: Nacional, 2002); Cotidiano e Cultura (São Paulo: Edusc, 2002); A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa (São Paulo: Edusc, 2008).
Notas 1. Antonio Candido, na capa do disco de Adoniran Barbosa, 1975. 2. A produção musical se apresenta para o pesquisador como um corpo documental particularmente instigante, já que por muito tempo constituiu um dos poucos documentos sobre certos setores relegados ao silêncio, permitindo recuperar a expressão de sentimentos abordando temáticas tão raras em outros documentos. Ao mesmo tempo que é uma manifestação artística, também apresenta aspectos da vivência cotidiana, urbana e particularmente das experiências afetivas de seus produtores e ouvintes. Investigações nessa área enfrentam o desafio de recuperar como as percepções, articulações, processos que chegam pela oralidade, pela mídia e pela música, influenciam os comportamentos, sensibilidades, percepções e memórias. Todavia, não se consideram os elementos da oralidade, em destaque para a música, uma produção isolada e individual, mas um elemento de aprendizagem cultural, logo comportam-se práticas criadas e recriadas, manifestações autônomas, vigorosas e criativas, que se mantêm menos pelo racional e mais pelo emocional, intuitivo, sentimental e afetivo, e que contribuem de forma significativa no processo de constituição de subjetividades em múltiplos territórios. 3. “Nossas reminiscências podem ser temerárias e dolorosas se não corresponderem às histórias ou mitos normalmente aceitos, e talvez por isso tentemos compôlas de modo a ajustarem ao que é normalmente aceito.” (THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história e as memórias. Projeto história (15), 1997, p.51-83.) 4. O espaço urbano, no seu processo de transformação, é simultaneamente registro e agente histórico. Nesse sentido, deve-se destacar a noção de territorialidade, identificando o espaço como experiência individual e coletiva, em que a rua, a praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos de lembranças, experiências e memórias. Espaços que, além de sua existência material, são também codificados num sistema de representação que deve ser focalizado pelo pesquisador, num trabalho de investigação sobre os múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização. (ROLNIK, Raquel. “História Urbana: História na Cidade”. In: FERNANDES, Ana e GOMES, Marco Aurélio. Cidade e História: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Salvador: Fac. de Arquitetura, 1992.) 5. LENHARO, Alcyr. “Luzes da cidade”. In Óculum, ano II, n.1, Campinas, 1985, p.5055. 6. MATOS, Maria Izilda S. A cidade, a noite e o cronista. Bauru: Edusc, 2008. 7. SCHAFER, M. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, 1991. 8. MELLO, Zuza Homem de. Sotaques e tipos de um homem popular, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1982. p. 43. 9. O rádio cresceu devido à sua agilidade e ao barateamento progressivo do aparelho. As rádios funcionaram como um veículo integrado ao contexto histórico, utilizando e difundindo padrões de comportamento. O rádio-jornal, a novela, os programas de auditório envolviam cotidianamente a todos. Devido a essa importância, as questões em torno do rádio, dos radioouvintes e da oralidade precisam ser refletidas com mais atenção pelos pesquisadores. 10. A partir da década de 1940, os circuitos internacionais da música interligavam cada vez mais intensamente as diferentes partes do mundo. Todo um mercado se abre à penetração da música internacional, em particular a norte-americana e, com ela, o jazz. 11. O samba, antes exclusividade do Carnaval, passou a ser produzido e difundido com sucesso no meio do ano, com tendências claras: samba apologético naciona-
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lista (como os de Lamartine Babo e Ari Barroso), samba da malandragem (Wilson Batista e Geraldo Pereira), samba-canção de conteúdo afetivo-apaixonado, lírico-amoroso ou de dor-de-cotovelo. (MATOS, Cláudia Neiva de. Acertei no milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.) 12. WISNIK, José M. “Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo)”. In: Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, 2.ed. 13. João Rubinato assumia o pseudônimo Adoniran (nome de um amigo boêmio) e Barbosa (sob a inspiração do sambista carioca Luís Barbosa). 14. MOURA, Flávio e Nigri, André. Adoniran, se o senhor não tá lembrado. São Paulo: Paulinas, 2002. 15. Este personagem malandro era negro, mas adotava uma fala, meio caipira, meio italiana, engolindo sílabas, cheia de neologismos inseridos em meio a toda uma exposição de dramas sociais. 16. KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1985. 17. “Junto ao fato de as linguagens pertencerem aos lugares, tem-se a ideia de que a cidade tem expressão própria, os lugares falam, realizando-se aí inexoravelmente a dimensão poética do urbano. Existiria uma linguagem do bulevar, do bistrô, do café e das ruas. Aos citadinos caberia captar e expressar essa linguagem dos lugares, de acordo com a sua vivência e experiência social. Essa ‘poética da cidade’ supõe, portanto, uma espécie de acordo entre cidade – enquanto fonte inspiradora – e os homens que a manifestam... Entende-se que a cidade estimula a atividade criadora e o imaginário urbano.” (VELLOSO, Mônica. A cultura nas ruas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2004, p. 45.) 18. Na gravação do grupo Demônios da Garoa ocorreu a introdução do lúdico, humorístico, com o sotaque italianado, e do stacatto “din-din-donde”, levou a um distanciamento em relação à cena dramática e puxou pela ironia, e a tragédia ganhou toques cômicos. 19. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998. 20. Traduzida e gravada em mais de 11 idiomas, na Itália foi veiculada como “Figlio unico”. Referências BENTO, Maria Aparecida. Um cantar paulistano: Adoniran Barbosa. SP, mestrado USP, 1990. CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ, Vozes, 1998. GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica- Cartografia do Desejo. Petrópolis, Vozes, 1986. KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa. São Paulo, Brasiliense, 1985. LENHARO, Alcyr. “Luzes da cidade”. In Óculum, ano II, n.1, Campinas,1985, pp.50-55. -MATOS, Cláudia Neiva de. Acertei no milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. MATOS, Maria Izilda S. de. Dolores Duran: experiências boêmias em Copacabana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. MATOS, Maria Izilda S. de. A cidade, a noite e o cronista. Bauru: Edusc, 2008. MELLO, Zuza H de. Sotaques e tipos de um homem popular. In: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1982. MORSE, R. M. Formação histórica de São Paulo. São Paulo: Difel, 1970. MOURA, F. e Nigri, A. Adoniran, se o senhor não tá lembrado. São Paulo: Paulinas, 2002. PECHMAN, Robert Moses (org.). Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro: UERJ, 1994. ROLNIK, Raquel. História Urbana: História na Cidade. In: FERNANDES, Ana e GOMES, Marco Aurélio. Cidade e História: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Salvador: Fac. de Arquitetura, 1992. SALVADORI, Maria Angela Borges. Malandras canções brasileiras, in Cultura & Linguagem, RBH, ANPUH/Marco Zero, v.7, n.17, 1986-1987. SQUEFF, Enio e WISNIK, José M. Música: O nacional e o popular na Cultura Brasileira. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1983. SCHAFER, M. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, 1991. SAROLDI, Luiz Carlos e MOREIRA, Sonia Virgínia. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. 2. ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes/Funarte, 1988, SEVERIANO, J. e MELLO, Zuza H. de. A canção no tempo. São Paulo: Ed.34, 1997. THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história e as memórias. Projeto história (15), 1997, p. 51-83. VELLOSO, Mônica V. A cultura nas ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janiro: Casa de Rui Barbosa, 2004. WISNIK, José M. Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo). In: Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. 2.ed. São Paulo:, Brasiliense, 1983.
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RM Pastiche Crônicas de Noel Rosa III
O samba reverente de Noel Rosa: o feitiço, a oração e o problema 1
Mayra Pinto
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a década de 30 do século passado, período em que se consolidaram as bases da canção popular urbana, sobretudo as formais, a obra de Noel Rosa foi um paradigma que apontou para diferentes possibilidades discursivas. A filiação ao humorismo – que alia o discurso coloquial a um tipo de humor mais crítico e sofisticado – é, sem dúvida, uma das mais marcantes. Além disso, sua obra tornou-se paradigma de uma visão que imprime um olhar crítico no alegre e descomprometido universo da canção popular − o sambista pobre de Noel fala sobre seu lugar tenso na sociedade; não é só o cantor afável e alegre da festa, ou o clown inofensivo; é também o crítico mordaz que denuncia que o mundo o “condena” exclusivamente porque ele é pobre. A marca de rejeição é exclusivamente por sua condição social precária. O jovem compositor contribuiu, assim, para fundar um modo de dizer na
Cultura Crítica 12 canção brasileira: o do sambista desprovido de qualquer tipo de poder ou força cujo único trunfo é o amor incondicional à sua arte. Se pelo viés do humor o artista fala disfarçadamente de seu lugar social precário, não há necessidade de disfarce para se declarar em perfeita conjunção com seu lugar artístico: o da produção de sambas. Por isso, essa voz assume um lirismo singular na obra de Noel – nas canções de amor, em sua absoluta maioria, mesmo sendo líricas, quase não há conjunção alguma entre locutor/interlocutor e ou objeto. Nas canções em que o tema é a louvação ao samba, há rigorosamente um tom que indica o orgulho, o prazer e uma espécie de reverência pelo fato de pertencer ao universo do samba, seja como compositor, como diretor de escola de samba ou como simples habitante de um bairro conhecido por ser reduto de sambistas, como é o caso de “Feitio de oração”, “O X do Problema” e “Feitiço da Vila”, respectivamente, para falar apenas de três dos mais belos sambas em que Noel rende homenagem ao gênero. Algumas outras canções não tratam especificamente do louvor ao samba; falam mais particularmente da conduta apaixonada do sambista. Aí é o humor que dá a tônica. É o caso de “Rumba da MeiaNoite”, de 1931, em parceria com Henrique Vogeler, em que a declaração de amor ao samba é feita não no ritmo de samba, mas numa impecável inversão cômica, num gênero musical indefinido, sobretudo porque não tem acompanhamento percussivo:
Ele: Bateu meia-noite agora E não queres ir embora Jamais parou de sambar Sem ver o sol despontar. Ela: E o que queres tu que eu faça Se o samba é minha cachaça E a tristeza passa? (...) Ele: Ó morena feiticeira, Coração de tamborim Quando canta a noite inteira Sem talvez lembrar de mim. Ela: Se tu és bom brasileiro E dançares bem assim Seja alegre e prazenteiro Venha pra perto de mim.2 (...)
Embora não caracterize exatamente uma oposição, não deixa de haver certo tom de queixa, uma das marcas mais características de Noel, nesse samba-rumba em que o locutor masculino comenta a alegria incansável da companheira de samba com um quê de lamúria ciumenta. Outra canção com viés humorístico em que Noel faz a “defesa” do samba e aproveita para mandar um recado aos sambistas “antigos” é “Você é um colosso”, de 1934: Você é um colosso, Comeu sandwich Falando bem grosso Que samba é maxixe. Eu disse: ‘Caramba! Não sou vassalo’ Falou mal do samba, Pisou no meu calo!
Noel alude provocativamente à diferença entre o que Carlos Sandroni chamou de “estilo antigo”, o samba feito por Sinhô, Donga e outros na década de 1920, e o “estilo novo”, aquele criado pelos sambistas do Estácio, para quem o “estilo antigo” era mais um maxixe do que samba propriamente.3
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Nas canções de louvação ao samba, Noel vai comentar liricamente, deixando de lado qualquer traço de humor ou ironia, diferentes faces do universo do samba. Em “Feitio de Oração”, de 1933, em parceria com Vadico, cria uma definição poética para o gênero: Quem acha vive se perdendo Por isso agora eu vou me defendendo Da dor tão cruel desta saudade Que por infelicidade Meu pobre peito invade. Por isso agora Lá na Penha vou mandar Minha morena pra cantar Com satisfação... E com harmonia Esta triste melodia Que é meu samba Em feitio de oração. Batuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio Sambar é chorar de alegria É sorrir de nostalgia Dentro da melodia. O samba na realidade Não vem do morro nem lá da cidade E quem suportar uma paixão Sentirá que o samba então Nasce do coração.
O ato de sambar – que pode abarcar todas as suas possibilidades tanto de produção como de fruição − é definido como produto da emoção somada à técnica musical: “Sambar é chorar de alegria / É sorrir de nostalgia / Dentro da melodia”. E, ao mesmo tempo em que define a beleza artística do samba, Noel passa vários recados nesta letra. Primeiro, sintetizado na rima precisa “privilégio/colégio”, há se-
42 Cultura Crítica 12 manticamente um jogo de opostos bem construído nos versos “Batuque é um privilégio / Ninguém aprende samba no colégio”. Os valores estão invertidos, dado que no consenso geral a condição social que possibilita frequentar um colégio é que é privilegiada; no entanto, nessa inversão do mundo do samba, o privilégio é de outra ordem, não passa pela educação formal e, sobretudo, não deixa de significar o domínio de uma técnica, o que é comumente o objetivo da escola. Há um valor diferente aí, de formação, de criação cultural, que se consubstancia fora do mundo da cultura oficial. Na última estrofe, outro recado dialoga diretamente com a temática, muito comum à época, de associar a produção de samba aos bairros ou morros mais frequentados por sambistas – o próprio Noel fez várias canções de louvação a um bairro: “O samba na realidade / Não vem do morro nem lá da cidade”. No fim das contas, a origem do samba não é um lugar geográfico, mas o lugar bem mais universal da emoção do apaixonado sambista: “E quem suportar uma paixão / Sentirá que o samba então / Nasce do coração”. No entanto, em “Feitiço da Vila”, de 1934, também em parceria com Vadico, Noel volta a fazer a relação apologética entre o samba e um bairro carioca. E aquela voz frágil − às vezes crítica, às vezes cínica, tão característica das canções em que o humor ou a ironia estão presentes − do sambista em confronto com um mundo que lhe é só hostil dá lugar a outra voz, surpreendentemente segura e afirmativa:
Quem nasce lá naVila Nem sequer vacila Ao abraçar o samba Que faz dançar os galhos Do arvoredo E faz a lua, Nascer mais cedo! Lá emVila Isabel Quem é bacharel Não tem medo de bamba. São Paulo dá café, Minas dá leite, E aVila Isabel dá samba! AVila tem Um feitiço sem farofa Sem vela e sem vintém Que nos faz bem... Tendo nome de Princesa Transformou o samba Num feitiço decente Que prende a gente... O sol daVila é triste Samba não assiste Porque a gente implora: Sol, pelo amor de Deus, Não venha agora Que as morenas Vão logo embora! Eu sei por onde passo Sei tudo o que faço Paixão não me aniquila... Mas, tenho que dizer: Modéstia à parte, Meus senhores, Eu sou daVila!
Diferentemente de “Eu vou pra Vila”, de 1930, cujo tom provocativo cantava um sambista que se achava melhor do que outros porque pertencia à Vila Isabel − “Pois quem é bom não se mistura” −, em “Feitiço da Vila” não há nenhum tipo de comparação e/ou provocação. Ali, o tom afirmativo está totalmente a serviço de louvar, muito mais do que o bairro, o poder transformador do samba. Essa energia poderosa se estende desde a bela imagem que personifi-
ca o samba com um poder mágicopoético “Que faz dançar os galhos, / Do arvoredo / E faz a lua, / Nascer mais cedo!”; passa por ser uma grandeza equivalente àquelas riquezas econômicas brasileiras consagradas à época: “São Paulo dá café, / Minas dá leite, / E a Vila Isabel dá samba!”; e essa energia termina por transfigurar o próprio princípio da magia que deixa de lado os motivos escusos que porventura a movem e passa a ser uma espécie de “prisão positiva”: “A Vila tem / Um feitiço sem farofa / Sem vela e sem vintém / Que nos faz bem... / Tendo nome de Princesa / Transformou o samba / Num feitiço decente / Que prende a gente...”. E, para sublinhar que o que importa liricamente é a louvação ao samba, o locutor só chama a atenção para si mesmo na última estrofe, para dizer orgulhosamente que pertence a esse universo: “Modéstia à parte, / Meus senhores, / Eu sou da Vila!”. Se em “Filosofia” Noel fez uma síntese irônica sobre a relação tensa entre o sambista e o mundo, em “O X do problema”, de 1936,4 ele fará uma síntese lírica e mais uma vez surpreendente, entre tantos motivos, porque é o locutor feminino quem está em total conjunção com o samba, o que é raro na obra de Noel: Nasci no Estácio Eu fui educada na roda de bamba E fui diplomada na escola de samba Sou independente, conforme se vê. Nasci no Estácio O samba é a corda, eu sou a caçamba E não acredito que haja muamba Que possa fazer eu gostar de você. Eu sou diretora da escola do Está-
Cultura Crítica 12 cio de Sá E felicidade maior neste mundo não há. Já fui convidada Para ser estrela de nosso cinema Ser estrela é bem fácil Sair do Estácio é que é O X do problema. Você tem vontade Que eu abandone o Largo do Estácio Pra ser a rainha de um grande palácio E dar um banquete uma vez por semana. Nasci no Estácio Não posso mudar minha massa de sangue Você pode crer que palmeira do Mangue Não vive na areia de Copacabana.
Mais uma vez a origem do locutor é um bairro, o antológico Estácio, conhecido reduto de sambistas. Nesse belo samba, gravado pela primeira vez por Aracy de Almeida em setembro de 1936, Noel define, com a costumeira síntese poética milimétrica, o que significa pertencer ao universo do samba; nada menos do que a felicidade: “Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá / E felicidade maior neste mundo não há”. Novamente aqui também, como em “Feitio de oração”, a formação nada convencional é mencionada com um orgulho sinônimo de independência em relação às convenções sociais: “Eu fui educada na roda de bamba / E fui diplomada na escola de samba / Sou independente conforme se vê”. As oposições contribuem para enfatizar o alinhamento axiológico do sambista; neste caso, a figura feminina abre mão de ser “estrela de nosso cinema” ou “rainha de um
grande palácio”, dado que tanto um destino quanto o outro lhe impõem abandonar sua condição; configurase então o verdadeiro “X do problema” porque, para o sambista, é claro que isso é impossível: “Não posso mudar minha massa de sangue / Você pode crer que palmeira do Mangue / Não vive na areia de Copacabana”. Noel faz referência, nesses belíssimos versos finais, ao canal do Mangue, próximo do bairro do Estácio. Mais uma vez, reitera que os valores dominantes não fazem parte do mundo do samba, onde o prazer, o orgulho e a felicidade do sambista estão amalgamados; não há sentido fora desse universo. No caso feminino, para uma habitante do subúrbio carioca, as poucas possibilidades de ascender socialmente se restringiam
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mundo burguês. No viés das canções líricas de louvação ao samba, Noel sublinha essa dicotomia pelo elogio incondicional às diferentes faces de tudo que faça parte desse universo. Assim, não é por conta somente de um modismo lançado com “Na Pavuna”, como afirma Almirante, que os bairros do Rio de Janeiro passaram a ser cantados desde a gravação desse samba inaugural.5 Pelo menos na obra de Noel, há uma enunciação marcada pela necessidade de valorizar esse universo desde os bairros onde o samba era comumente produzido – Estácio, Penha, Vila Isabel, Salgueiro, Mangueira, Aldeia, Osvaldo Cruz, Matriz, para citar alguns dos tantos lugares mencionados em sua obra – até o significado transformador que o samba pode ter na
...reitera que os valores dominantes não fazem parte do mundo do samba... à carreira artística ou a um casamento com um homem rico; no entanto, a sambista, que exerce a importante função de comando como “diretora da escola do Estácio de Sá”, justamente por isso não precisa de mais nada que a valorize: pertencer ao mundo do samba, e ser reconhecida nele, é o valor máximo, ou seja, não há conciliação possível, tampouco desejável, com os valores dominantes. A voz que se apresenta como integrante do mundo do samba necessariamente não pode pertencer ao
vida de quem é ligado a ele de alguma forma. Noel sabe que o “poder do samba” está na possibilidade, para o compositor pelo menos, de sair de um lugar social totalmente desvalorizado, e até mesmo perseguido por ser sinônimo de marginalidade, e entrar em outro em que o reconhecimento passa pela construção de uma identidade positiva. Nessas canções de louvação ao samba, a contribuição para a construção dessa identidade passa por várias dimensões, portanto. Uma delas é a
44 Cultura Crítica 12 dos bairros que contribuem para consubstanciar o sentimento de pertença a algum lugar com uma tradição, com uma história de produção coletiva do samba que se dá geralmente no espaço público: carnaval de rua, cantorias e serestas pelas ruas, bares, associações, clubes, etc. O elogio a um deles, a qualquer um desses bairros, é nada mais do que o reconhecimento positivo de um lugar social onde a população dos subúrbios e dos morros cariocas produz uma cultura que merece ser conhecida; e o sambista Noel afirma categoricamente que essa cultura está no mesmo patamar de importância dos valores socialmente consagrados: “São Paulo dá café, / Minas dá leite, / E a Vila Isabel dá samba”. Outra dimensão dos sambas líricos de Noel é aquela que contribui para reforçar a imagem de um sambista apaixonado incondicionalmente por sua arte; tanto é capaz de qualquer renúncia para permanecer ligado ao universo do samba porque só aí existe o que verdadeiramente importa, isto é, a “felicidade” – o X do problema −, como pode projetar o sagrado num samba em feitio de oração, ou mesmo cantar o samba com um poder transformador tão visceral que pode mudar até os fundamentos de um feitiço. Apenas o samba terá o privilégio de ser tratado como uma positividade inquestionável em sua obra. É por intermédio de seu ritmo alegre e dançante que o locutor fala de suas vicissitudes em inúmeras canções; por mais que o prazer da vida seja restrito por dificuldades financeiras e sociais, o sambista não deixa de fazer o que lhe dá mais prazer: samba. Certamente, a opção por ter o samba como o centro emanante de
positividade tem relação com sua trajetória pessoal: em 1931, aos 20 anos, Noel abandonou a faculdade de Medicina no primeiro ano para se dedicar integralmente à carreira artística. Foi o compositor branco da classe média que mais frequentemente fez parcerias com os compositores negros oriundos dos morros e dos subúrbios. Além disso, teve uma morte em tudo
semelhante a muitos desses parceiros: morreu jovem, aos 26 anos, de tuberculose. Numa vida tão curta, marcada por constantes dissabores pessoais6 a experiência artística foi, talvez, um contraponto de realizações positivas, concretizado numa produção intensa de canções em pouco tempo. cc Mayra Pinto é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo.
Notas 1. Este artigo é parte da tese Noel Rosa: o humor na canção defendida na Faculdade de Educação/USP em maio de 2010, sob orientação do Prof. Dr. Celso Fernando Favaretto, com apoio financeiro da Fapesp. 2. No acervo digital do Instituto Moreira Salles (http://acervos.ims.uol.com.br) encontram-se disponíveis para audição todas as canções mencionadas neste artigo, em suas gravações originais. 3. Carlos Sandroni, Feitiço decente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001, p. 132. 4. Segundo seus biógrafos, Noel fez essa música literalmente de um dia para o outro, por encomenda da atriz Emma D’Ávila, que iria cantá-la na revista “Rio Follies”, feita para homenagear diversos bairros cariocas. (In: João Máximo e Carlos Didier, Noel Rosa: Uma biografia, p. 370.) 5. O samba de 1930, parceria de Homero Dornelas com Almirante, louva a relação entre o bairro e a produção de samba: “Na Pavuna tem escola para o samba / Quem não passa pela escola não é bamba / Na Pavuna tem / Cangerê também / Tem macumba, tem mandinga e candomblé / Gente da Pavuna / Só nasce turuna / É por isso que lá não nasce ‘mulhé’”. (In: ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa, p. 71. Ao que tudo indica, o maior mérito desse samba foi o fato de ter pela primeira vez, na gravação, acompanhamento percussivo típico dos blocos de carnaval: pandeiros, cuícas, tamborins, surdo e ganzá tocados por instrumentistas de escolas de samba (cf., Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, em A canção no tempo, p. 100.). 6. Tinha um problema físico – o fórceps, usado no parto em seu nascimento, fraturou-lhe um osso no queixo, o que o deixou com o rosto um pouco deformado.;Além disso, a avó paterna e o pai se suicidaram; foi forçado a se casar com uma moça menor de idade chamada Lindaura, e teve um caso bastante conturbado com uma prostituta chamada Ceci, a quem dedicou sua última canção “Último desejo”. Referências ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. MÁXIMO, João & DIDIER, Carlos. Noel Rosa: Uma biografia. Brasília: UnB/ Linha Gráfica Editora, 1990. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Rio de Janeiro:, Jorge Zahar/UFRJ, 2001. SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza H. de. A canção no tempo. v. 1: 1901-1957. 5.ed. São Paulo: Editora 34, 2002.
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Pastiche Crônicas de Noel Rosa e Adoniran Barbosa I
Rosa e Rubinato: histórias e discursos João Hilton Sayeg-Siqueira
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uando do descobrimento do Brasil, no século 16, a música dos índios era executada em solos e coros, acompanhados pela dança, pelo bater das palmas, dos pés, de tambores e de varetas, harmonizados por flautas, apitos, cornetas e chocalhos. A essa manifestação tribal, os jesuítas tentaram, nos cursos de evangelização, introduzir noções elementares de música europeia. A influência indígena na formação da música brasileira foi muito pequena, pois, maltratados e escravizados, os índios passaram a evitar uma convivência muito próxima com o branco e dificultaram a aculturação. Teve-se, de fato, quase que a dizimação da cultura indígena, o que levou a praticamente desaparecerem do cenário nacional suas peculiaridades musicais, a não ser o cateretê, que sobreviveu timidamente em festas populares que eram organizadas pelos jesuítas sob a forma de rituais religiosos. Desses rituais surgem as primeiras manifestações folclóricas populares dos habitantes locais, como o reisado e o bumba-meu-boi. O acompanhamen-
46 Cultura Crítica 12 to musical mantinha características de música sacra, que eram somadas às melancólicas baladas e modas portuguesas, configurando os primeiros traços miscigenados da constituição da música brasileira. A chegada da cultura musical africana com os escravos trouxe para o cenário do Brasil colonial danças religiosas como a da macumba e a do candomblé que, por se distanciarem dos cultos religiosos dos brancos, foram desprezadas e consideradas de categoria inferior. Os escravos passaram, então, a ser educados musicalmente dentro dos padrões portugueses, o que possibilitou o surgimento de novas formas musicais afro-brasileiras como o afoxé, o jongo, o lundu, o maracatu, o maxixe e o samba, desenvolvidas principalmente nos quilombos, como forma de preservação da integridade cultural. As reuniões de músicos nos quilombos fomentaram a formação das irmandades constituídas somente por afrodescententes que passaram a monopolizar a escrita e a execução de música em boa parte do Brasil, utilizando não só o ritmo mas também vocábulos da língua de origem. Os portugueses, no processo de colonização africana, entram em contato com uma dança sensual e humorística, o lundu, à qual acrescentam algum polimento musical pela incorporação do bandolim, o que lhe dá um caráter urbano e a torna popular como dança de salão. Assim o lundu chegou ao Brasil colônia antes mesmo dos escravos. Mas, com estes, principalmente com os bantos vindos do Congo e de Ango-
la, revelou sua faceta de dança lasciva com umbigada. Aí estava o gene do samba. Enquanto no Brasil prevalece a música sacra, na Europa surge, no século 17, a ópera, peça melodramática musicada, o que provoca a proliferação de escolas de formação mu-
gos, dobrados, quadrilhas, lundus e polcas. A vinda da família real, no início do século 19, muda as feições do Brasil, que passa a se urbanizar. O processo de urbanização, por um lado, intensifica a produção musical religosa e, por outro, favorece a in-
Os portugueses, no processo de colonização africana, entram em contato com uma dança sensual e humorística, o lundu... sical. O reflexo disso, no Brasil, só ocorrerá no século 18. A estrutura institucional e educacional favoreceu o surgimento de pequenas orquestras que se somaram às irmandades que ainda sobreviviam intensamente ao lado de uma rica variedade de músicas sacras e do surgimento de tímidas bandas de corporações militares. As bandas militares e as de coreto ganharam reforço a partir do aparecimento dos divertidos grupos musicais dos barbeiros, compostos de escravos do Rio de Janeiro e da Bahia com tempo para se dedicarem ao aprendizado de velhos e desgastados instrumentos musicais doados. Eram pequenas orquestras ambulantes, de entretenimento público, chamadas de charangas, constituídas por flauta, cavaquinho, viola, rabeca, trompa, pistão, pandeiro, tamborim, machete, que interpretavam fandan-
trodução de outros gêneros como a modinha, qua ganha grande popularidade. Era uma música com feição sentimental, marcada pela melancolia e pelo romantismo, podendo ser executada em ocasiões as mais diversas, pela simplicidade de sua estrutura, que possibilitava apenas o acompanhamento de uma viola. Já mais elaborada, com acompanhamento de flauta, tornou-se presença frequente nos saraus dos aristocratas. A modinha era tão apreciada que até os músicos da corte criaram algumas peças no gênero, musicando alguns textos de poetas expressivos da época. Mesmo assim, a corte tentava manter o requinte musical da metrópole. D. João VI trouxe músicos de Lisboa e da Itália e construiu o suntuoso Real Teatro de São João, que divulgava o trabalho de importantes autores europeus. Além da distinção entre a música popular e a
Cultura Crítica 12 sacra, agora entrava no páreo a música erudita. Havia três instâncias de produção musical, uma sacra e duas profanas, a erudita e a popular, com prestígios sociais diferenciados: Durante o Primeiro Império, as festas se multiplicaram no Paço Imperial e novas tendências musicais entraram em cena: valsas, polcas, schotschs e tangos. A modinha permaneceu e, somada a esses novos gêneros, deu origem ao choro, que recebeu esse nome por seu tom plangente, de mágoa e nostalgia, marcado pelo uso de flauta, cavaquinho e violão. Dada a diversidade de gêneros que entraram na formação do choro, sua forma composicional favorecia bastante a presença subjetiva do improviso. O choro tinha sua expressão mais genuína em meio a pequenos grupos instrumentais formados por modestos funcionários dos Correios e Telégrafos, da Alfândega, e da Estrada de Ferro Central do Brasil, que se reuniam nos subúrbios cariocas. As festas das quais os chorões participavam já eram chamadas de pagodes, reuniões informais já referidas a festas organizadas nas senzalas pelos escravos. A fácil mobilidade encontrada no uso de instrumentos como a flauta, o cavaquinho e o violão propiciou o surgimento de uma nova maneira de manifestação popular por meio da música, que foram as serenatas de fim de noite. Os seresteiros solidificaram a presença da modinha e do choro na cultura musical do Brasil. Outro ritmo que ganhou grande popularidade foi a dança de salão de origem centroeuropeia, o schotsch, palavra alemã que significa
escocesa em referência à polca escocesa, que em Portugal ficou conhecido como chotiça e, no Brasil, foi cognominado xote ou xotis. Os escravos aprenderam alguns passos da dança e acrescentaram sua maneira peculiar de bailado com variações ritmicas. A diversidade musical ampliava. A polca, dança rústica da Boêmia, atual província da República Tcheca, tornou-se popular como dança de salão e foi largamente divulgada por grupos de choro e por grupos carnavalescos. Tornou-se, também, gênero básico de apoio para outras fusões musicais como o lundu, o fadinho e os motivos militares. No Segundo Império, em decorrência da grande popularização
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Ao lado da ostentosa pompa da corte, intensificou-se cada vez mais a popularidade do samba, derivado do ritmo africano, umbigada, agora somado às nuances bastante aceitas da modinha, do maxixe e do lundu, o que lhe deu variações como o miudinho, a tirana espanhola, o fado batido e a chula. O samba ainda era um tipo de música identificado com as pessoas de estratos mais humildes. Cabe destacar que o maxixe nasceu nos lendários cabarés da Lapa do Rio de Janeiro, como uma dança de par, extremamente sensual, misturando o lundu com o tango argentino, com a abaneira cubana e com a polca. Quando tinha letra, era recheada de gíria carioca.
...intensificou-se cada vez mais a popularidade do samba, derivado do ritmo africano, umbigada, agora somado às nuances bastante aceitas da modinha, do maxixe e do lundu... dos bailes pela diversidade de ritmos, foi realizado o primeiro baile de máscaras em 22 de janeiro de 1840, uma tentativa da alta sociedade da época de importar o estilo do carnaval de salão de Veneza.
As manifestações populares ganharam uma dimensão mais espontânea com o surgimento do entrudo, de herança portuguesa, que era um bloco de foliões de rua, formado pela população migratória ru-
48 Cultura Crítica 12 A partir de 1900, novas influências culturais desembarcam no Brasil com a chegada de imigrantes europeus e asiáticos, como italianos, alemães, japoneses, libaneses, que aumentaram a miscigenação e a influência de compasso, de harmonia, de ritmo em nossa música. O grande marco musical do início do século 20 foi o nascimento de dois sambistas de grande expressão nacional. Em 1910, no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, nasceu Noel Rosa. De família de classe média, teve uma infância farta, estudou no tradicional Colégio São Bento, entrou para a faculdade de Medicina e casou-se com uma moça da alta sociedade. Em 1912, na cidade de Valinhos, SP, nasceu João Rubinato. De família imigrante da Itália, sem grandes posses, estudou pouco e começou a trabalhar cedo, na imprópria idade de dez anos, por isso a alteração da data de seu nascimento para 1910. Foi entregador de marmitas, varredor, tecelão,
pintor, encanador, serralheiro, mascate, garçom e ajustador mecânico. Casou-se duas vezes com moças de pouca posse. Na época, no interior do estado de São Paulo, passou-se a registrar uma modalidade tipicamente paulista de batuque, chamada samba-de-pirapora, samba-de-campineiro ou samba-de-bumbo. A cidade de Pirapora foi o mais importante centro de encontro e de fusão do samba paulista nas festas do Bom Jesus, no mês de agosto, com a reunião de numerosos músicos, predominantemente afrodescendentes, de Campinas, Barueri, Tietê e cidades vizinhas. Na cidade de São Paulo, no mesmo mês de agosto, acontece, na Bela Vista (bairro do Bixiga) a festa de Nossa Senhora da Achiropita. Por coincidência ou por tradição romeira, o samba-de-batuque, começa a ganhar popularidade urbana. Os encontros de sambistas se popularizaram e começaram a se organizar em agremiações. Em 1914, foi fundado o grupo carnavalesco Chiquinha Gonzaga, aos 85 anos. Foto: Particular
ral nordestina que antecedeu e prenunciou o surgimento dos blocos de carnaval, inicialmente conhecidos como cordões. No bairro carioca da Saúde, organiza-se o primeiro rancho carnavalesco, de nome Dous de Ouro, formado por nordestinos, antigos escravos e filhos de escravos baianos. Em decorrência, os sergipanos e alagoanos, rivais dos baianos, fundam o Rancho da Sereia. Os ranchos carnavalescos surgiram inspirados nas procissões folclóricas, religiosas, dos reis nordestinos. Esboçaram-se, com a apresentação dos ranchos, os primeiros traços do samba de desfile por meio de um batuque mais compassado. Já na República, surgiu o frevo em Recife, PE. Nasceu da polcamarcha como dança de multidão, com ritmo frenético e contagiante, de coreografia individual improvisada e inspirada na capoeira, apoiada no uso de sombrinhas e guardachuvas. No Rio de Janeiro, por solicitação dos integrantes do cordão Rosas de Ouro, em 1899, Chiquinha Gonzaga compôs a primeira marcha carnavalesca da história da música brasileira, chamada “Ô, Abre Alas”, um enorme sucesso que veio contribuir para a consolidação das bases iniciais da música popular do Brasil. Cada vez mais frequentes nos rituais religiosos dos ex-escravos, os ritmos de candomblé e de umbanda passaram a ser oficialmente aceitos como parte integrante da cultura brasileira. Deles, preservaram-se as músicas, as escalas musicais, os instrumentos como agogô, cuíca, atabaque e suas ricas bases polirrítmicas.
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Foto: Particular
Barra Funda, precursor da escola de samba Camisa Verde e Branco que, também, ia regularmente, aos encontros e festejos de Pirapora. O pioneiro grupo paulistano tinha apenas doze integrantes; vestidos de camisas verdes, calças brancas e chapéus de palha, tocavam um pandeiro e chocalhos de madeira com tampinhas de garrafa de cerveja. Embora tenham surgido das rodas de samba, diferentemente do que ocorreu no Rio de Janeiro, os cordões e ranchos paulistas não usavam o samba para os desfiles de carnaval, mas sim as marchas-ranchos e o choro. Os paulistas, somente no fim da década de 1920, aderiram ao samba no carnaval. Das incursões pelo interior popularizaram-se, entre as classes média e alta, as canções sertanejas, ritmos rurais que abrangiam modas, toadas, cateretês, chulas, batuques e emboladas. O desenvolvimento da região Sudeste e o crescimento das cidades começaram a provocar um êxodo rural não só do interior dos estados mas também de outras regiões, como o Norte e o Nordeste. Dessas regiões vieram o xaxado e o baião. Era o florescimento das músicas caipira e regional. 1917 foi estipulado como o ano do nascimento oficial do típico samba carioca, que misturava maxixe com frases rítmicas do folclore baiano. A manifestação musical própria das rodas de improvisações e criações conjuntas dos morros cariocas foi alçada à condição de representante da música popular brasileira. Surgiram as primeiras escolas de samba cariocas, miscigenan-
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Grupo carnavalesco Barra Funda, fundado em 1914.
do características dos entrudos, dos ranchos carnavalescos e dos cordões fantasiados. A primeira escola de samba, Deixa Falar, surgiu no Largo do Estácio. Essa também foi a época de ocupação dos morros do Rio de Janeiro, pela classe humilde de habitantes que cultuava o samba. Era
o nascimento do Samba de Morro. O samba se espalha por todas as localidades, do centro das grandes capitais para a periferia e para o interior do país. Nos salões de baile e nas insurgentes gafieiras, o samba disputa lugar com o maxixe, a marcha, o jazz, a valsa e o bolero. Da
50 Cultura Crítica 12 mistura deste com o samba, surgiu o samba-canção, um tipo mais lento, melancólico e romântico. O samba ganhou, também, o teatro, ao ser aplicado ao modelo das operetas, e ao ser utilizado para retratar os costumes vigentes. A influência veio das revistas europeias, uma mistura de teatro, música e dança, abordando os principais fatos da época de forma crítica, humorística, despojada e irreverente. Os números apresentados eram, em geral, canções populares ou paródias de obras célebres. No Brasil, o Teatro de Revista ou Rebolado ganhou grande popularidade, tanto que, a partir dos anos 1930, as encenações tornaram-se luxuosas e apresentavam as vedetes como estrelas, em trajes sumários. Com suas grandes e bem aceitas produções, foi um veículo importante de difusão da música popular brasileira. As peculiaridades culturais do Brasil não se restringiram ao Teatro de Revista, presentificaram-se, também, nas obras eruditas. Após Carlos Gomes, passou-se a prestar mais atenção ao que poderia constituir uma música autenticamente brasileira. O rico folclore nacional foi a peça-chave para compositores utilizarem seus temas em canções. Eram resgatados ritmos e melodias do folclore em uma síntese inovadora e efetiva com as estruturas formais de matriz europeia. Na Semana de Arte Moderna, em 1922, reformulou-se o conceito sobre a arte nacional. Heitor Villa-Lobos, a figura maior do nacionalismo musical brasileiro, resgatou a riqueza da cultura indí-
gena, reabilitando a configuração melódica de cerimônias como o Kuarup, o Ouricuri e o Umbu, em que a música e a dança desempenham um papel de grande relevo. A fusão da música popular com a erudita, desencadeada pela valorização do folclore, impulsiona o aparecimento de uma nova concepção de escola de formação musical que respeita a individualidade do aluno e estimula a livre criação antes mesmo do conhecimento aprofundado das regras tradicionais de composição. A partir de 1927, começou a se efetivar a força do rádio como veículo de informação e de entretenimento. Mas foi no final dos anos 1930 que o rádio assumiu importante papel de divulgador de música, por meio de populares programas de auditório, com música ao vivo. A conhecida Era do Rádio tornou-se um fenômeno de massa e marcou o declínio do choro, gênero que, por ser marcado pela improvisação, não se prestava a gravações elétricas. Em 1930 teve, efetivamente, início a carreira artística de Noel Rosa, com a música “Com que Roupa?” Já se revelava seu talento proverbial, com verve crítica e humorística sobre a vida carioca, marca registrada de toda a sua obra. Em 1932, Noel conhece o compositor Vadico, um dos seus mais importantes parceiros, com quem faria alguns de seus maiores sambas. Noel revelou-se um talentoso cronista do cotidiano. Boêmio ao extremo, frequentava com assiduidade os bares e cabarés da Lapa,
pois era apaixonado por uma prostituta, sua amante, que ali vivia; e, assim, tornou-se observador arguto dos acontecimentos diuturnos. Uma peculiaridade interessante na vida artística de Noel foi a batalha musical que travou com Wilson Batista, jovem sambista, a partir da provocação que este lhe fez na música “Lenço no Pescoço”. Em resposta, compôs “Rapaz Folgado”, música em que, estranhamente, critica o malandro carioca, uma vez que era apologista da malandragem. Lutando desde muito moço contra a tuberculose, em 1937, aos 26 anos de idade, Noel faleceu na Vila Isabel, deixando um acervo de 193 músicas. Em 1939, ocorreu o primeiro importante sucesso da música brasileira no exterior, com “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, expoente do gênero samba-exaltação. O estado novo ditatorial e nacionalista de Getúlio Vargas, que muito apreciou esse novo tipo de samba, por motivos óbvios e pelo alcance internacional, passa a recomendar aos compositores populares que abandonem o tema da malandragem carioca em suas músicas. Embora o samba fosse a representação emblemática da música brasileira, outros gêneros não paravam de surgir. Na década de 1940, eclodiu a música de raízes rurais e folclóricas nordestinas, como o baião de Luiz Gonzaga; e, nas boates de Copacabana, a bossa nova, mistura de jazz e samba, que encontrou seu apogeu nos anos 1950. Foi em maio de 1955, com
Cultura Crítica 12 a gravação de “Saudosa Maloca” pelo grupo Demônios da Garoa, que a carreira de compositor João Rubinato, cognominado, Adoniran Barbosa, se firmou. Com um estilo peculiar no uso da linguagem, procurou retratar o registro dos diferentes grupos de imigrantes, predominantemente o italiano. Não só as letras, como também a melodia são marcadas pelo ritmo da fala paulistana. Na contramão dos sambistas cariocas que procuravam sublimar o discriminado samba, por meio do tom elevado das letras, e dignificar a origem miserável de excluídos em busca da inserção social, Adoniran retratava a linguagem despojada das camadas mais simples da população, como os despejados das favelas, os engraxates, a mulher submissa que se revolta e abandona a casa, o homem social e existencialmente solitário. O drama das pessoas solitárias e desvalidas é tratado com um tom tragicômico, um tratamento bem humorado da tragédia de um país que subtrai dos cidadãos a dignidade e da vida em uma metrópole que tem um canto rangido de sacrifício e de desigualdade. Nas composições de Adoniran encontra-se o retrato da vida do típico paulistano, personagem de suas músicas. Com enfisema pulmonar, decorrente da vida boêmia, Adoniran morreu em 1982, aos 72 anos de idade, pobre como nasceu. Mas deixou um rico legado de composições que o tornaram reconhecido como o mais fiel cronista das camadas populares paulistanas. Foi e
é tido como o maior compositor popular da cidade de São Paulo e os seus sambas são reverenciados pelos cariocas. Tanto Noel Rosa como Adoniran Barbosa, cada um à sua época e em sua cidade, foram considerados cronistas de sua época e de suas cidades. Embora tenham nascido na mesma época, a atividade de compositor de cada um começou em tempos diferentes: Noel em 1930 e Adoniran em 1955. Pela família e pela formação recebida, Noel revelou uma veia poética mais elaborada, mais lírica, diferentemente de Adoniran, que incursionou pelas veredas da narrativa, gênero mais próximo da tradição popular de manifestação artística, desde a antiguidade. Para exemplificar esse contraponto, seguem algumas letras dos dois compositores. NOEL ROSA Mentiras de Mulher São mentiras e mulher, Pode crer quem quiser. Que eu tenho horror ao batente, E não sou decente, Poder crer quem quiser, Que eu sou fingido e malvado, E até que sou casado, São mentiras de mulher. (bis) Quando no reino da intriga,Surge uma briga, Por um motivo qualquer, Se alguém vai pro cemitério, É porque levou a sério, As palavras da mulher. (bis) Esta mulher jamais se cansa, De fazer trança, Na mentira é um colosso, Sua visita tão cacete, Que escrevi no gabinete:
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“Está fechado para almoço”. (bis) Esta mulher, de armar trancinha, Ficou magrinha, Amarela e transparente, Quando vai ao ponto marcado, De um encontro combinado, Dizem que ela está ausente... ADONIRAN BARBOSA Apaga o Fogo, Mané Inez saiu dizendo que ia comprar um pavio pro lampião Pode me esperar Mané Que eu já volto já Acendi o fogão, botei a água pra esquentar E fui pro portão Só pra ver Inez chegar Anoiteceu e ela não voltou Fui pra rua feito louco Pra saber o que aconteceu Procurei na Central Procurei no Hospital e no xadrez Andei a cidade inteira E não encontrei Inez Voltei pra casa triste demais O que Inez me fez não se faz E no chão bem perto do fogão Encontrei um papel Escrito assim: − Pode apagar o fogo, Mané, que eu não volto mais
Noel dá um tratamento generalizado sobre o procedimento da mulher; é toda e qualquer, tanto que não usa um determinante definido antes do substantivo. Esse caráter é próprio da configuração lírica, ou poética, da crônica, com uma abordagem mais universal que retrata episódios da vida com um tom mais sentimental ou nostálgico. Adoniran, por sua vez, traz um fato cotidiano mais particular, com a presença marcante da primeira pessoa, o que caracteriza
52 Cultura Crítica 12 uma crônica narrativa comprometida com fatos banais, comuns que lhe permitem as pinceladas de humor. NOEL ROSA Envio Essas Mal Traçadas Linhas Cordiais saudações! Envio estas mal traçadas linhas Que escrevi a lápis Por não ter caneta Andas perseguido Para que escapes Corta o teu cabelo E põe barba preta Em vão te procurei Notícias tuas não encontrei Mas ontem te escutei E este bilhete ao Fígaro entreguei Sem mais para acabar Recebe o beijo Que eu vou mandar Eu amo, com amor não brinco Niterói, trinta de outubro de trinta e cinco
ADONIRAN BARBOSA Vide Verso Meu Endereço Falado: “Seu Gervásio, Se Dr. José Aparecido aparecer por aqui Cê dá esse bilhete a ele Pode lê, num tem segredo nenhum Pode lê seu Gervásio” Venho por meio destas mal traçadas linhas Comunicar-lhe que eu fiz um samba pra você No qual eu quero expressar toda a minha gratidão E agradecer de coração Por tudo que você me fez E o dinheiro que um dia você
me deu Comprei uma cadeira lá na praça da bandeira Alí vou me defendendo Pegando firme dá pra tirar mais 1.000 por mês Casei, comprei uma casinha lá no Ermelindo, Tenho três filhos lindos Dois são meu, um é de criação, Eu tinha mais coisas pra lhe contar Mas vou deixar, pra uma outra ocasião, Não repare a letra A letra é de minha mulher Vide verso meu endereço Apareça quando quiser
Na letra de Noel fica bem clara a tentativa de sublimação do samba, para retirá-lo da condição de desprestígio social, e isso pelo uso da segunda pessoa do singular, com a conjugação adequada. Esse é um traço que diferenciou bastante o samba carioca do samba paulista. Em Adoniran, a descontração linguageira é peculiar, pois mesmo a formalidade traz marcas do registro cotidiano nas formas de tratamento. Ressalta-se que o samba paulista teve suas raízes no interior do estado e nas festas religiosas da comunidade italiana. A maneira de falar, de designar as referências do discurso, de articular a sintaxe do texto ganhou peculiaridades inusitadas. Nesse contexto se deu a formação de Adoniran, nascido no interior do estado de São Paulo e criado na convivência de imigrantes italianos. Além do mais, as diferenças entre os dois compositores pode ser evidenciada pela formação escolar que tiveram. Noel nasceu em família bem, com mãe professora e chegou a frequentar curso superior. Adoni-
ran mal terminou o estudo primário, nascido em família pobre com pais operários. NOEL ROSA Meu Barracão Faz hoje quase um ano Que eu não vou visitar Meu barracão lá da Penha Que me faz sofrer E até mesmo chorar Por lembrar a alegria Com que eu sentia Um forte laço de amor Que nos unia Não há quem tenha Mais saudades lá da Penha Do que eu, juro que não Não há quem possa Me fazer perder a bossa Só saudade do barracão Mas veio lá da Penha Hoje uma pessoa Que trouxe uma notícia Do meu barracão Que não foi nada boa Já cansado de esperar Saiu do lugar Eu desconfio que ele Foi me procurar Não há quem tenha Mais saudades lá da Penha Do que eu, juro que não Não há quem possa Me fazer perder a bossa Só saudade do barracão ADONIRAN BARBOSA Saudosa Maloca Si o senhor não está lembrado Dá licença de conta Que aqui onde agora está Esse edifício arto Era uma casa veia Um palacete assobradado Foi aqui seu moço Que eu, Mato Grosso e o Joca Construímos nossa maloca Mais um dia Nem nóis nem pode se alembrá Veio os homi coas ferramentas
Cultura Crítica 12 O dono mandô derrubá Peguemo todas nossas coisas E fumos pro meio da rua Aprecia a demolição Que tristeza que nóis sentia Cada tauba que caía Duía no coração Mato Grosso quis gritá Mas em cima eu falei: Os homis tá coa razão Nós arranja outro lugar Só se conformemo quando o Joca falou: “Deus dá o frio conforme o cobertor” E hoje nóis pega a paia nas grama do jardim E prá esquecê nóis cantemos assim: Saudosa maloca, maloca querida, Dim dim donde nóis passemos os dias feliz de nossas vidas Saudosa maloca, maloca querida, Dim dim donde nóis passemo os dias feliz de nossas vidas.
É a poesia em forma de crônica. A presença de figuras de linguagem retrata bem a poeticidade de Noel. A figura mais marcante é a prosopopeia que eufemiza a derrubada do barracão. O barracão não foi derrubado, mas “Já cansado de esperar / Saiu do lugar / Eu desconfio que ele / Foi me procurar...” Uma curiosidade é registro da gíria carioca bossa, em 1933. É essa gíria que começa a ser usada a partir da década de 1940 para designar um estilo meio jazístico do samba que se consagrou definitivamente nos anos de 1950, é a bossa nova. Já, em “Saudosa Maloca”, primeiro grande sucesso de Adoniran Barbosa, em 1955, é apresentado um fato cotidiano de excluídos sociais que veem sua rotina alterada por interesses que alteram suas vidas. Mesmo assim, o drama se eufemiza em máximas e provérbios do repertório
popular e ganha comicidade pelo tratamento linguístico dado. É antológica a expressão “Dim dim donde nóis passemo...”. NOEL ROSA Maria Fumaça Maria Fumaça Fumava cachimbo, bebia cachaça... Maria Fumaça Fazia arruaça, quebrava vidraça E só de pirraça Mata as galinhas de suas vizinhas Maria Fumaça Só achava graça na própria desgraça Dez vezes por dia a delegacia Mandava um soldado prender a Maria Mas quando se via na frente da praça Maria sumia tal qual a fumaça Maria Fumaça Não diz mais chalaça, não faz mais trapaça... Somente ameaça que acaba com a raça Bebendo potassa Perdeu o rompante Foi presa em flagrante roubando um baralho Não faz mais conflito Está no distrito lavando o assoalho ADONIRAN BARBOSA Trem das Onze Não posso ficar nem mais um minuto com você Sinto muito amor, mas não pode ser Moro em Jaçanã, Se eu perder esse trem Que sai agora às onze horas Só amanhã de manhã. Além disso, mulher Tem outra coisa, Minha mãe não dorme Enquanto eu não chegar, Sou filho único
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Tenho minha casa para olhar E eu não posso ficar.
Nessa letra de Noel fica patente sua veia poética. Seu poema em muito se assemelha a outros que também apresentam um trabalho poético com a linguagem para retratar o compasso rítmico de um trem. Manuel Bandeira fez uma composição com essas características em “Trem de Ferro”: “Café com pão / Café com pão / Café com pão / Virge Maria que foi isto maquinista?...”. De Adoniran, tem-se o samba mais popular do Brasil. Não há quem não o cante inteiro ou, pelo menos, partes. De outros compositores, como também de Noel, algumas frases são lembradas, mas não com a abrangência de “Trem das Onze”, grande campeã de execução e laureada no carnaval do Quarto Centenário da Cidade do Rio de Janeiro. Bastava este samba para Adoniran se eternizar. cc João Hilton Sayeg-Siqueira é Professor Doutor Titular e Coordenador do Programa de Estudos PósGraduados em Língua Portuguesa da PUC-SP. Nota Colaborou na elaboração deste artigo o Prof. Dr. Emanuel CardosoSilva. Referências CÂNDIDO, Antônio. A vida ao résdo-chão. In Para gostar de ler 5 – Crônicas. São Paulo: Ática, 1998. Copyright © − 2000 − Brazilian Music UpToDate. MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 6.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
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Noel Rosa: a maturação do samba José Adriano Fenerick
A
história dos primórdios do samba poderia muito bem ser contada por meio das polêmicas travadas entre os sambistas. Desde as disputas pela autoria do famoso “Pelo Telefone” (gravado em 1917), tido como o “primeiro samba”, até o entrevero entre Sinhô, o aclamado Rei do Samba, e a “turma” do Pixinguinha (Donga, China, etc.) na década de 1920, o samba, de certo modo, foi se criando e se formando em meio a polêmicas e discussões. Noel Rosa, como não poderia ser diferente, também deu sua contribuição à maturação do samba, que por essa época transformar-se-ia em música popular, no sentido de uma música de mercado, por meio de uma longa polêmica com Wilson Batista, travada exclusivamente nas regras da arte. Dessa polêmica entre Noel e Wilson, ou a ela relacionada, é preciso que se diga imediatamente, saíram verda-
Cultura Crítica 12 deiros clássicos do repertório noelesco, tais como: “Palpite Infeliz” e “Feitiço da Vila”. Apenas por isso já valeria a pena relembrar esse debate entre Wilson e Noel. Entretanto, quero chamar a atenção para uma questão que se colocava como pano de fundo em tal polêmica: a mercantilização do samba e a profissionalização do sambista. A polêmica entre Noel e Wilson teve início em 1933, por ocasião do lançamento do samba “Lenço no Pescoço”. Gravado por Silvio Caldas, esse samba de Wilson Batista dizia, em seus versos iniciais: Meu chapéu do lado tamanco arrastando lenço no pescoço navalha no bolso eu passo gingando provoco e desafio eu tenho orgulho em ser tão vadio...
Essa descrição do malandro e essa apologia da vadiagem não passariam despercebidas em 1933. Como de fato não passaram. Muitos compositores da época recriminaram publicamente esse samba, sendo que o compositor e jornalista Orestes Barbosa chegou a publicar em sua coluna: num momento em que se faz a higiene poética do samba, a nova produção de Silvio Caldas, pregando o crime por música, não tem perdão.1
Tendo em mente o momento em que o samba se profissionalizava nas rádios comerciais − que associavam prestígio e aceitação
social de uma música com a possibilidade de atrair mais patrocinadores − não é difícil entender as palavras de Orestes Barbosa.2 Todavia, a resposta mais contundente
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rádio, estava na pauta das discussões do início da década de 1930. Quando Noel responde ao samba de Wilson Batista, ele o faz visando preservar a imagem do sambista,
Noel , assim, propõe ao compositor que ao menos leve em conta as novas relações do samba com a sociedade ... a “Lenço no Pescoço”, e a qual o próprio Wilson levaria em conta, veio de Noel Rosa. O Poeta da Vila, ainda em 1933, responderia a Wilson com “Rapaz Folgado”. Este samba de Noel responde verso a verso ao samba de Wilson: Deixa de arrastar o teu tamanco Pois tamanco nunca foi sandália E tira do pescoço o lenço branco Compra sapato e gravata Joga fora essa navalha Que te atrapalha...
Além disso, nos versos finais de seu samba, Noel ainda diz: Malandro é palavra derrotista Que só serve pra tirar Todo o valor do sambista Proponho ao povo civilizado Não te chamar de malandro E sim de rapaz folgado.
A questão da profissionalização do sambista, no disco e no
do compositor, num meio onde as possibilidades de se viver do samba já podiam ser vislumbradas. O “Poeta da Vila”, que sempre optou por uma estratégia diferente para abordar o malandro, “desmonta” a personagem de Wilson Batista, tanto no seu aspecto físico (da indumentária) como no seu modo de se relacionar com o samba, e a recoloca, por meio de “propostas”, num plano regido por novas possibilidades de atuação. Noel tem o cuidado de não atacar diretamente o malandro; prefere dizer que é a palavra malandro o fator que estaria tirando “todo o valor do sambista”.3 Não sendo o malandro propriamente dito o alvo de Noel, nos resta verificar o criador de sambas (o compositor). Nesse quesito, o Filósofo do Samba, propõe ao compositor popular o “papel e lápis”, isto é, propõe ao sambista que, se não totalmente ao menos em parte, substitua a “experiência vivida” pelo conhecimento como instrumento
56 Cultura Crítica 12 para a criação. Noel, assim, propõe ao compositor que ao menos leve em conta as novas relações do samba com a sociedade, para não dizer com o mercado da música, e termina aconselhando o malandro (compositor) a “arranjar um amor e um violão” (os dois temas – amor e violão − aceitos pela música popular do período e passíveis de serem veiculados pelas rádios e ouvidos pelo “povo civilizado”: os nossos queridos ouvintes). Interessava ao Poeta da Vila, tal como a outros sambistas da época, que o samba tivesse um reconhecimento social e comercial, e o rádio se apresenta-
va como o grande meio difusor de música do período. A polêmica entre Noel e Wilson, iniciada em 1933, se arrastaria ainda por mais alguns sambas. Seja como for, e no decorrer dos anos da polêmica, Noel compõe em 1934 (sem o intuito de prolongar a discussão, até porque por essa época ele já nem se lembrava mais dela) “Feitiço da Vila”, uma música na qual o Filósofo do Samba, mais uma vez, procurava homenagear seu bairro, Vila Isabel. Esse samba, ainda que não fosse o intuito de Noel, deu continuidade à polêmica. É preciso deixar claro que a polêmica entre os dois sambistas nunca se
Capa de livro sobre Wilson Batista: Nova História da Música Popular Brasileira.
deu de forma pessoal e possivelmente também nunca se alastrou para além das fronteiras do restrito universo de compositores e sambistas do período. Noel e Wilson discutiam apenas em forma de sambas, ainda que por vezes os sambas compostos atacassem a um ou a outro de forma pessoal, como em “Frankstein da Vila”, em que Wilson Batista, já no fim da polêmica, perde a compostura e ataca diretamente o complexo que Noel tinha de seu problema físico no queixo, fruto de um afundamento maxilar causado pelo fórceps que o trouxe à vida. Mas esse samba de Wilson foi uma exceção entre as canções compostas pelos dois sambistas durante a polêmica. No geral, mantiveram-se nas “regras da arte”. Seja como for, é “Feitiço da Vila” que aqui nos interessa. Acompanhemos alguns versos do famoso samba de Noel: A Vila tem um feitiço sem farofa sem vela e sem vintém que nos faz bem tendo o nome de Princesa transformou o samba num feitiço decente que prende a gente.
O trecho citado do samba de Noel apresenta uma imagem que se distanciava da “roda de samba”, do samba anterior, ligado ao universo lúdico-religioso da cultura afro-brasileira. Ou ainda, nas palavras de Jorge Caldeira, “aos sambistas da roda, não era possível conceber uma ideia de samba como essa de Noel. Mas ela nascia, ciosa de si”.4 Wilson Batista contraporia a “Feitiço da Vila” o seu “Conversa fiada”, prosseguindo com a polêmica entre os dois, o que ins-
Cultura Crítica 12 tigaria Noel a compor o antológico “Palpite infeliz” logo em seguida. Mas, polêmica à parte, a letra do samba de Noel trazia elementos novos para a compreensão das transformações pelas quais o samba passava naquele momento. Noel diz que em Vila Isabel o samba tem um certo feitiço (que inebria a quem o ouve), tal como o samba era entendido anteriormente, devido a sua relação inicial com a cultura afro-brasileira, particularmente com o Candomblé. Porém, é um feitiço diferente, é um feitiço decente, o que de antemão já denota uma preocupação com a aceitação social (e
primeira tenha transformado o samba, que por sua vez é posto em relação com o feitiço; este, aos olhos de parte da elite brasileira, era representante das práticas dos negros em seu aspecto ameaçador. O que fica implícito é que o que a Vila faz com o samba é de algum modo equivalente ao que a Princesa fez com os negros abolindo a escravidão.5
Só que a liberdade proposta por Noel para o samba inclui um afastamento do universo negro lúdico/religioso até então associado a ele. Ou melhor, o gesto de Noel, é certo, torna-se importante como um tipo de consciência adquirida em um
...não mais como festa (religiosa ou não), o samba , no mundo capitalista , é também uma coisa , uma mercadoria ... comercial) do samba. Tal como em “Rapaz Folgado”, em que Noel deixa o malandro nu, decompondo o seu aspecto exterior (a navalha, o lenço no pescoço, o tamanco), em “Feitiço da Vila” o samba também passa a ser desprovido de suas significações exteriores. Continuando a ser feitiço, o samba, entretanto, não carrega mais a sua significação religiosa oriunda do candomblé: “a vela, a farofa e o vintém”. Conforme observou Carlos Sandroni, “Feitiço da Vila” postula pois uma relação, através do nome, entre a Vila e a Princesa Isabel. Tal relação justifica o fato de que a
momento em que o samba deixava de ser uma “música étnica, para integrar um modo de ser ancorado na modernidade e na centralidade urbana, sinônimo de um jeito carioca de ser”.6 Desprovido de seus sinais externos, e desligado de seus locais e práticas anteriores, o samba passa a ser apenas música popular, um gênero musical. Como gênero musical, e não mais como festa (religiosa ou não), o samba, no mundo capitalista, é também uma coisa, uma mercadoria como outra qualquer, passível de ser dado, roubado, comprado e vendido. O sambista, agora, não vai mais
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ao samba (um local de sociabilidade, uma festa lúdico-religiosa) se encontrar com sua amada; ele compõe um samba e o oferece (pois é uma coisa) ao seu amor, como sugere a letra de “Este samba foi feito pra você”, de Assis Valente e H. Porto, gravado por Mário Reis em 1935: Este samba foi feito pra você Pra você numa noite de luar Na noite em que fiquei sem teu amor Sozinho pelas ruas a vagar.
Mas, retornando ao Feitiço da Vila. Em outro trecho desse samba escreveu Noel: Lá em Vila Isabel Quem é bacharel Não tem medo de bamba São Paulo dá café, Minas dá leite E a Vila Isabel dá samba.
Noel, no trecho citado, propõe que o samba atue como um aglutinador da cultura brasileira, posto que o bacharel (símbolo da cultura letrada, da cultura europeia) convive “sem medo” do bamba (o malandro, o sambista, o símbolo da cultura negra marginalizada) na utópica Vila Isabel criada pelo compositor. Além disso, o samba aparece como um produto (uma música de mercado) genuinamente carioca (de Vila Isabel) equiparado aos principais produtos de Minas Gerais e São Paulo: o leite e o café respectivamente. O samba, assim, defende seu direito de participar do mercado, de entrar nas prateleiras do patrimônio nacional. Não é mais signo de exclusão, de separação, mas diferença que
58 Cultura Crítica 12 soma. Ao mesmo tempo, suaviza a alternativa demasiado radical entre o café, que é preto, e o leite, que é branco, propondo-se a si mesmo como um misto.7
Essa mesma força aglutinadora que Noel vê no samba está também colocada em uma outra canção de sua autoria: “Feitio de Oração”. Contribuindo ao debate que opôs a cidade ao morro, Noel propõe uma alternativa diferente para entendermos o samba: não é nem do morro e nem da cidade. Vejamos um trecho de “Feitio de Oração”, samba lançado e gravado por Francisco Alves e Castro Barbosa em 1933: O samba na realidade não vem do morro nem lá da cidade e quem suportar uma paixão sentirá que o samba então nasce no coração.
Noel não fala de nenhum lugar geograficamente definido, pois se o “samba não vem nem do morro e nem da cidade” é porque ele nasce em algum outro lugar, ou mesmo em ambos os lugares, ou ainda em algum lugar que não é nem um nem o outro; enfim, ele nasce “no coração”. Ao jogar com o lugar-comum, que faz da música uma expressão direta dos sentimentos, Noel, conforme comenta Carlos Sandroni, lembra que o resultado do trabalho do sambista (em cujo peito também bate um coração) é, em última análise, “música”: algo a que finalmente a cultura contemporânea dá um estatuto similar ao de uma sinfonia, estando ambos devidamente representados no dicionário New Grove.8
Noel proclama a existência do samba como música popular, como música popular moderna – ou seja, como um produto cultural a ser vendido no mercado −, e uma música atrelada particularmente ao Rio de Janeiro (a sua Vila Isabel utópica). E a atividade do sambista, do compositor cuja imagem ele tanto cuidou em seu debate com Wilson Batista, como um profissional da música popular. Noel, portanto, por meio de seus sambas e de seus embates, contribuiu de forma decisiva para a criação da moderna noção de músico popular brasileiro
(e, por consequência, para a definição do conceito de música popular brasileira); agindo num momento de grandes transformações pelas quais passava o samba, o Poeta da Vila rearranjou habilmente o próprio significado do samba e do sambista, opondo-se às vozes conflitantes e resistentes aos novos tempos, que se seguiam na esteira do incremento do mercado de música daquele período. cc José Adriano Fenerick é professor do. Departamento de História, Unesp-Franca.
Nota 1. Apud Sérgio Cabral,. A MPB na era do rádio. . p. 42. 2. Sobre a profissionalização do sambista e a criação do mercado de música popular, ver:, José Adriano Fenerick,Nem do Morro, nem da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural. 1920-1945. 3. Em Noel Rosa, o malandro é um boêmio, perspicaz, que sempre utiliza a sua inteligência e não sua valentia para iludir o otário. 4. Jorge Caldeira, Noel Rosa. De costas para o mar. p. 34. 5, Carlos Sandroni, Feitiço Decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), p. 171. 6. Marcos Napolitano, A síncope das ideias. A questão da tradição na música popular brasileira, p. 31. 7. Carlos Sandroni, op. cit., p. 172. 8. Idem, ib. p. 174-175 Referências CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996. CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa. De costas para o mar. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. FENERICK, José Adriano. Nem do morro, nem da cidade. As transformações do samba e a indústria cultural (1920-1945). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005. MÁXIMO, João & DIDIER, Carlos. Noel Rosa: Uma biografia. Brasília: Ed. UNB, 1990. NAPOLITANO, Marcos.A síncope das ideias. A questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. PIMENTEL, L. & VIEIRA, L. F. Wilson Batista. Na corda bamba do samba. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1989. SODRÉ, Muniz. Samba. O dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
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Gírias, provérbios e frases feitas na canção “Com que Roupa?”, de Noel Rosa1 CAIO DE ALMEIDA BASSITT
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gíria é um vocabulário especial utilizado por comunidades sociais restritas. Desta forma, podemos concebê-la, segundo Preti (1984:3), “como um signo de grupo”. Entretanto, muitas vezes, não nos preocupamos em saber como esse tipo de linguagem se constitui em determinada comunidade, assim como não nos preocupamos em verificar a importância e a finalidade que os provérbios e as frases feitas têm para a comunicação popular. Neste artigo, a nossa atenção está voltada para esses aspectos comunicativos da canção “Com que roupa?”, de Noel Rosa. Manifestações linguísticas populares Particularmente, ouço com muita atenção as músicas da década de 1930 e sempre gostei e me interessei pela linguagem empregada por artistas como Wilson Batista, Ary Barroso, Lamartine Babo e, principalmente, por Noel
60 Cultura Crítica 12 Rosa, pela força de expressão moderna e pela multiplicidade linguística que seus textos abrangem; apesar de nunca ter me predisposto a analisar com profundidade os provérbios, as frases feitas e esse tipo de vocabulário específico: a gíria. Talvez, este seja um dos motivos pelo qual me interessei pelo tema. Além disso, trabalho com expressões populares em algumas letras de música que componho e que, de certa forma, têm influência e dialogam com as produções do Poeta da Vila. No processo criativo, porém, essas linguagens populares costumam surgir de forma intuitiva, na ausência do raciocínio ou de técnicas linguísticas, servindo, muitas vezes, de expressão estilística, para cada autor, na construção de rimas e aliterações, por exemplo. As manifestações linguísticas populares são constantes no nosso dia a dia e estão presentes na maioria das comunidades. Comunicam ideias, informações e sentimentos de indivíduos da mesma classe ou da mesma sociedade. Como melhor explica Jespersen, em Preti (op.cit.:1): quanto mais vulgar for um pessoa, tanto mais sua linguagem leva o selo da comunidade; quanto mais forte e original a sua personalidade, tanto mais peculiar e próprio será o colorido de sua linguagem.
Tendo em vista isto, tentamos compreender em que medida e como a gíria, os provérbios e as frases feitas contribuem para que saibamos identificar as peculiaridades da linguagem do brasileiro − no caso, do malandro carioca e, especificamente, de Noel Rosa.
Noel Rosa: Uma breve biografia2 Durante a Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, de um parto tenso e árduo, a fórceps, no dia 11 de dezembro de 1910, no chalé 130 da rua Teodoro da Silva, no bairro de Vila Isabel, nasce um dos maiores compositores de samba de todos os tempos: Noel de Medeiros Rosa, mais conhecido como Noel Rosa. Esse parto deixou no rosto do compositor um defeito que o acompanhou pela vida inteira, tornando-o um rapaz muito tímido, pois tinha vergonha até de se alimentar na frente dos outros. Noel aprendeu a tocar bandolim com a mãe, Martha de Azevedo Rosa, e foi introduzido ao violão (seu principal instrumento) pelo pai, Manuel Medeiros Rosa. Com a mãe prendeu também a ler e a escrever e, segundo Almirante, cursou o primário no colégio Maisonette. Em 1927, voltava de uma noitada quando encontrou sua avó paterna enforcada no quintal de sua casa. Ela havia se matado, repetindo o gesto de um bisavô de Noel. Noel Rosa era muito mais ligado à música que aos estudos (chegou a cursar um ano de medicina por vontade do pai). Em 1929, junto com Almirante e João de Barro − o Braguinha −, colegas de Vila Isabel, formou um conjunto que foi muito importante para ele: o Bando dos Tangarás. O repertório do conjunto era composto de cantigas de inspiração nordestina de acordo com a moda do momento. Nesse mesmo ano de 1929, Noel começa a se tornar compositor, com a em-
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Foto: Encarte de LP Música Popular Brasileira - Noel Rosa
bolada “Minha Viola” e a toada “Festa no Céu”. Martha Rosa vivia preocupada com a saúde do filho, pedindolhe que não demorasse na rua e que voltasse cedo para casa. Sabendo, certa vez, que ele iria a uma festa, em um sábado, escondeu todas as suas roupas. Quando seus amigos chegaram para apanhá-lo, Noel gritou de seu quarto: “Com que Roupa?”. Em 1931, compôs o samba de título inspirado nessa sua indagação: “Com que Roupa?” (Agora vou mudar minha conduta...). O samba virou o maior sucesso daquele carnaval. Sobre ele, Máximo & Didier (1990:117) comentam: Uma composição irretocável, de melodia simples e direta, saborosa e exata, cada estrofe terminando com o mesmo estribilho, no qual, aliás, repousa grande parte da comunicabilidade do samba, sobretudo pelo emprego da expressão popular “com que roupa?”, muito usada no sentido de “como?”, “de que modo?”, “com que dinheiro?” (...) Há, ainda, o humor. Noel transpõe para a música popular a singularidade tão carioca de tratar com graça e irreverência os assuntos mais sérios, de escarnecer da própria desgraça.
Noel, aos sete anos, com a sua família.
O samba era a válvula de escape de sentimentos amorosos e a arma ferina de Noel, pelo qual versava sobre as angústias e euforias do amor e, ao mesmo tempo, denunciava os vícios e excessos da sociedade de forma sarcástica e irreverente. Em 1933, por exemplo, compõe o samba “Onde está a Honestidade?”, que faz uma crítica irônica à acumulação de capital e à ascensão social repentina dos aristocratas e políticos. No
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mesmo ano, faz, com Ary Barroso, “Estrela de Manhã”, samba de teor lírico-amoroso, que fala sobre a saudade. Essa pluralidade expressiva se revela em toda sua obra. Vale considerar também que no início de 1934 começava uma das maiores polêmicas da música brasileira. Noel Rosa compôs “Rapaz Folgado”, uma resposta a “Lenço no Pescoço”, do então jovem sambista mangueirense Wilson Batista. Este respondeu com “Mocinho da Vila”. Noel rebateu com “Palpite Infeliz”. Wilson Batista apelou com “Frankstein da Vila” − uma alusão ao defeito na face do outro compositor. Em seguida, Noel compôs o grande sucesso “Feitiço da Vila”. Para finalizar a polêmica, Wilson fez “Conversa Fiada” e “Terra de Cego”, não respondidas por Noel; porém desta última canção, o “Filósofo da Vila” aproveitou a melodia para fazer outra letra, consumando, assim, uma parceria entre os dois. Na primeira música, Noel criticava o malandro cantado por Wilson, pois não concordava com a forma com que ele expusera sua vadiagem. Por trás das canções, o que havia, porém, era um desentendimento entre eles por causa de mulher. Noel conheceu, na noite de São João de 1934, a dançarina Juraci Correia de Moraes, então com 16 anos, que serviu de inspiração para, pelo menos, oito sambas do Poeta da Vila. A relação durou apenas alguns meses. No dia 1º de dezembro daquele mesmo ano, ele se casou com Lindaura. Noel continuava boêmio, fraco e debilitado, frequentando os bares nas madrugadas da Lapa. Ali-
62 Cultura Crítica 12 mentando-se mal e vivendo com excessos de bebidas e cigarro, acabou contraindo tuberculose. Em 1935, viajou para Belo Horizonte, onde fez um tratamento especial; mas voltou em estado grave de saúde. No dia 4 de maio de 1937, faleceu em sua casa, em Vila Isabel. Sua trajetória na música popular é única, além de muito curiosa. Partindo do bairro de classe média em que residia, Noel conseguiu, por meio de sua arte, tipicamente brasileira, representar e conquistar a empatia e o respeito de diferentes classes sociais, desde os bares da cidade até os becos recônditos das favelas, onde fez parcerias memoráveis; levando-se em conta, ainda, a rivalidade e a divisão que existia entre as escolas de samba e a música do morro e da cidade naquela época. O samba e a época de Noel Rosa O início do século 20 foi repleto de profundas modificações e novidades no Brasil e no mundo. As principais transformações foram: A Primeira Guerra Mundial (1914-1918); a Revolução Russa (1917); a quebra da bolsa de Nova York (1929); o aparecimento e a popularização do automóvel e do cinema, além de outras consideráveis mudanças no painel sociocultural das sociedades. No Brasil, em 1916, foi gravado o primeiro samba, “Pelo telefone”, por Mauro de Almeida e Donga. Além disso, aconteceu a revolucionária Semana de Arte Moderna (1922). Houve, também, muitas mudanças no ce-
nário político com a Revolução de 1930 e o Estado Novo de Getúlio Vargas. (cf. Filho, 1988: 9). A história do negro e do samba começou a se desenvolver no Rio de Janeiro (Capital Federal à época) devido aos seguintes
começavam a se erguer nos morros) e nas reuniões nas casas das “tias” baianas. Os primeiros desfiles de escolas de samba e os encontros dos compositores e malandros mais conhecidos (como Donga, Sinhô, João da Baiana, entre outros)
Noel conseguiu, por meio de sua arte ... representar e conquistar a empatia e o respeito de diferentes classes sociais, desde os bares da cidade até os becos recônditos das favelas... fatores: a chegada dos habitantes de Canudos em busca de melhores condições de vida na cidade; a migração, para a cidade, dos negros perseguidos após o término da Guerra do Paraguai (1870); a maior seca da história, ocorrida no Nordeste (1877), que fez com que os negros fossem vendidos para as principais cidades (São Paulo e Rio de Janeiro), e a abolição da escravidão (1888) (cf. Lopes, 1992:3). Os repentistas nordestinos levaram à capital seu canto e, a partir daí, nasceu, primeiramente, o samba de partido-alto, cantado em versos de improviso pelos grupos marginalizados nas favelas (que já
aconteceram na casa da baiana Tia Ciata, na Praça Onze. Depois, o samba − tomando novas formas e roupagens com as influências que veio sofrendo de outros ritmos e estilos musicais −, começou a se espalhar pelos bairros da cidade por meio do carnaval e das rádios, como veremos adiante. Quanto ao malandro – palavra derivada do italiano malandrino, que significa “salteador”, “assaltante de viajantes” −, tipo social relevante da época, é o sujeito que “age entre a cidade e o campo (morro) (...); sente-se atraído pela cidade, mas como lá vige a legalidade, tem por bem manter-se um pouco dis-
Cultura Crítica 12 tante dela pelo tempo necessário à sua segurança” (Silva, 1999:50), assim, só retorna à cidade para gastar o dinheiro que conseguiu por meio do jogo ou até mesmo roubando. As ações do malandro carioca, porém, diferenciam-se das atitudes criminosas do malandrino salteador. Por um lado, o malandro procura sempre passar uma boa impressão aos cidadãos, vestindo-se bem ou agradando as pessoas para obter o que deseja; por outro lado, tinha aversão ao trabalho, visto que a maioria dos malandros foi escravo ou descendente de escravos e, por esse motivo, o descompromisso era uma forma de resistência ao “patrão” ou qualquer outro tipo de chefe. Para garantir seu sustento, ganhava dinheiro por meio do samba e do jogo. A linguagem criada pelo malandro também é um fator relevante, pois contribuiu muito para a formação do português brasileiro, com a criação de gírias e expressões populares. Como muito bem aponta Noel Rosa na letra do samba “Não tem tradução”, “as gírias que o nosso morro criou, bem cedo a cidade aceitou e usou (...), tudo aquilo que o malandro pronuncia, com voz macia, é brasileiro, já passou de português”. Com que Roupa? 1. Agora, vou mudar minha conduta 2. Eu vou pra luta 3. pois eu quero me aprumar 4. Vou tratar você com a força bruta 5. Pra poder me reabilitar 6. Pois esta vida não está sopa 7. E eu pergunto: com que roupa?
(Refrão) 8. Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou? 9. Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou? 10. Agora, eu não ando mais fagueiro. 11. Pois o dinheiro não 12. É fácil de ganhar 13. Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro 14. Não consigo ter nem pra gastar 15. Eu já corri de vento em popa, mas agora com que roupa? 16. Eu hoje estou pulando como sapo 17. Pra ver se escapo 18. Desta praga de urubu 19. Já estou coberto de farrapo 20. Eu vou acabar ficando nu 21. Meu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupa 22. Seu português agora foi-se embora 23. Já deu o fora 24. E levou seu capital 25. Esqueceu que tanto amava outrora 26. Foi no Adamastor pra Portugal 27. Pra se casar com uma cachopa.
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uma mudança de comportamento e estilo de vida, referindo-se, ironicamente, à sua postura de malandro descompromissado e vadio frente aos cidadãos trabalhadores que lutam e labutam com seriedade pela “evolução” e “reabilitação” do país. A canção trata da miséria do Brasil, sendo construída, basicamente, com frases feitas, provérbios e gírias, ou seja, expressões características da oralidade, para uma comunicação mais fácil e direta com seu público: o povo brasileiro. As ideias dos versos acima são proferidas constantemente em nosso cotidiano, porém de diferentes maneiras. Encontramos frases feitas nos versos 1, 2, 3, 4, 5; e, no verso 6, a gíria “(não) está sopa”, formada por verbo polissêmico3, que significa, segundo Houaiss (op. cit.:2609), “coisa fácil de ser feita, vencida ou resolvida <esse negócio foi uma sopa> (...) ser (uma) sopa. B infrm. Ser muito fácil, ser pinto, ser (uma) canja ”. Nesse caso, portanto, “esta vida não está
A novidade está também na arquitetura poética, isto é, no ritmo e...nas rimas... Esse samba foi inspirado nas dificuldades econômicas que o Brasil estava passando com a crise da bolsa de Nova Iorque, em 1929 (cf. Máximo & Didier, 1990). Na letra, percebemos a atitude do eu-poético em busca de
fácil” ou “esta vida está difícil”. A novidade está também na arquitetura poética, isto é, no ritmo e, principalmente, nas rimas, as quais dão coerência ao texto e reforçam a ideia de “se endireitar” do eu-poético: conduta/luta/força
64 Cultura Crítica 12 bruta, aprumar/reabilitar e, por fim, sopa/roupa que, além de criar uma imagem da situação pelos ditos populares, “está sopa” e “com que roupa?” encadeiam o refrão (versos 8 e 9). Este, por sua vez, revela a situação crítica do malandro que não tem dinheiro nem para ir ao samba a que foi convidado. Como
sendo um cabra trapaceiro”, em outras palavras, mesmo arranjando algum dinheiro por meio da malandragem − e não por meio do trabalho de cidadão honesto −, o eu-poético não consegue se sustentar. “Cabra trapaceiro” é uma gíria formada pelo processo metafórico relacionado com bicho:
“praga de urubu” representa a crise econômica nacional que , por sua vez, reflete a crise financeira do eu-poético... já explicitamos, o próprio título da canção, “Com que roupa?”, nos sugere um eufemismo das expressões populares “com que dinheiro?”, “de que modo?”. Veremos, na próxima estrofe (versos 10 a 15), que essas últimas rimas exercerão a mesma função. Para justificar sua “força bruta” (verso 4), o eu-lírico retoma a ideia de que não anda mais fagueiro, ou seja, não anda mais carinhoso, agradável (10) e, por meio de frases cristalizadas (10 e 11), explica o motivo de sua postura rude: “Pois o dinheiro não é fácil de ganhar”. Temos aí um diálogo com o verso 6 (pois esta vida não está sopa), relevando a dificuldade da vida de trabalhador em ganhar dinheiro. E continua: “Mesmo eu
cabra = Indivíduo determinado; sujeito, cara (cf. Houaiss, op. cit.: 546) e trapaceiro = que ou o que faz trapaças, ou seja, “contrato fraudulento feito com quem empresta dinheiro”; caloteiro, esperto, furtador. (cf. Houaiss, op. cit.: 2754). Essa gíria tem sentido depreciativo e é utilizada pelo compositor para figurar, sarcasticamente, o malandro do Rio de Janeiro daquela época, que sobrevivia do jogo ou de empréstimos. Com essa imagem, consequentemente, o compositor enriquece sua crítica à miséria do Brasil. O último verso (15) conclui a ideia da estrofe com o emprego do provérbio “de vento em popa”, que significa, segundo Prata (1996: 60), que “o negócio está indo mui-
to bem”, ou, de acordo com Serra & Gurgel (1998:192), “as coisas estão se desenvolvendo”. No contexto, porém, Noel Rosa nos mostra que “já correu de vento em popa”: a partícula já e o verbo no pretérito, corri, revelam um tempo passado, quando os negócios iam bem; além disso, a conjunção adversativa mas, seguida do advérbio agora, que exprime o tempo presente, nos mostra que os negócios não estão indo bem, ou seja, o eu-poético continua sem dinheiro. O provérbio também exerce uma função sonora para rimar popa e roupa para encadear o refrão. Na estrofe seguinte (versos 16 a 21), o eu-poético revela sua desventura social. Novamente, por meio de frases feitas e gírias, expressa sua situação de adversidade na sociedade. Os versos 16, 17 e 18 exprimem sua dificuldade para sair da crise em que se encontra, tendo em vista que o sapo se locomove aos pulos. Além disso, a imagem do sapo em nossa sociedade tem um valor depreciativo. No conto da Bela Adormecida, por exemplo, esse anfíbio representa o estado ‘negativo’ do príncipe, assim como no poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, o sapo simboliza os parnasianos “alienados” e passa a ser alvo de sarcasmo dos modernistas. Portanto, a figura do sapo, no verso 16, representa o eu-lírico tentando ‘escapar” de sua desdita. Por conseguinte, temos a gíria popular “Praga de urubu”, sendo praga, de acordo com Houaiss (op. cit.:2276), uma “desgraça coletiva de grandes proporções; calamidade” e urubu com a conotação
Cultura Crítica 12 de algo negativo ou, segundo Serra & Gurgel (op. cit.:450), “pessoa sem sorte”. Logo, “praga de urubu” representa a crise econômica nacional que, por sua vez, reflete a crise financeira do eu-poético, o qual está “coberto de farrapo”, ou seja, vestindo trapos e, por isso, pode acabar “ficando nu”, sem roupa alguma, sem dinheiro nenhum. O último verso da estrofe (21) revela, por fim, toda degradação do narrador, pois seu “paletó virou estopa”. Para dar maior abrangência a essa crise, o narrador apresenta um acontecimento paralelo que relata, talvez, o fim de um relacionamento como consequência dessa conjuntura econômica instável. Para isso, exclui a primeira pessoa do discurso e passa a dirigir a voz a uma mulher brasileira, utilizando o pronome “seu” em vez de “meu” ou “minha”. O português, no caso, é um imigrante colonizador e usurário que veio ao Brasil para enriquecer e desfrutar de seu poder financeiro. Muitas obras de Noel denunciam este tipo de explorador; em especial, uma das operetas radiofônicas do compositor, “O Barbeiro de Niterói”4, trata claramente dessa questão. Os primeiros versos da última estrofe (22 a 27) traduzem a atitude interesseira do português que, provavelmente, foi embora do país porque seus negócios não estavam mais indo bem devido à crise, levando todo seu dinheiro e deixando sua mulher sem nada. Para enfatizar o descompromisso do português, Noel utiliza a gíria “deu o fora” (23) que, além de re-
velar a desistência do compromisso profissional do galego, significa, por conseguinte, a desistência do namoro. Nos versos seguintes (25, 26 e 27), o compositor, de forma irônica, esclarece o interesse do português que “esqueceu que tanto amava outrora” (25); em outras palavras, nos mostra que, em um momento de dificuldade, ele não
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se lembra do amor e que, na realidade, nunca a amou. O verso 26 faz alusão ao navio Adamastor, citado por Camões, em Os Lusíadas, e apresenta o português regressando para sua terra natal. cc Caio de Almeida Bassitt é graduado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica.
Notas 1. O presente artigo é trecho do trabalho acadêmico As gírias, os provérbios e as frases feitas na letra de Noel Rosa, realizado em 2008, na PUC-SP, para a disciplina Estudos Individuais, ministrada pela Professora Doutora Ana Rosa Ferreira Dias. 2. Disponível em <http://www.samba-choro.com.br/artistas/noelrosa>. Acesso em: 08 set. /2008. 3. Conferir processo de formação de gíria por verbos polissêmicos (pág. 16). 4. Máximo & Didier, 1990, 379. Referências BECHARA, Evanildo. 2006. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna. FILHO, João Antônio Ferreira.. Literatura Comentada: Noel Rosa. São Paulo: Nova Cultura, 1988. HOUAISS, Antônio.. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. Objetiva, 2007. LOPES, Nei. O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical. Rio de Janeiro: Pallas, 1992. MÁXIMO, João & DIDIER, Carlos.. Noel Rosa: Uma biografia. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1990. MOISÉS, Massaud.. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974. OLIVEIRA, Clenir Bellezi de.. Arte Literária: Portugal-Brasil. São Paulo: Moderna, 1999. PRATA, Mario.. Mas será o Benedito? São Paulo: Globo, 1996. PRETI, Dino.. A gíria e outros temas. São Paulo: Queiroz, 1984. SALOMÃO, Maria do Carmo Rennó da Costa.. Os provérbios e as frases feitas no discurso jornalístico. Dissertação de Mestrado. São Paulo. PUC-SP, 2001. SERRA, J.B. & GURGEL.. Dicionário de gíria. Brasília: Mania de Livro, 1998. SILVA, Antônio de Oliveira.. A língua portuguesa literária do modernismo brasileiro e a constituição do malandro no discurso poético de Noel Rosa. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 1999. TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998. VENEROSO, Paula Cristina.. A divulgação da gíria na imprensa: A descaracterização de um signo. Dissertação de mestrado. São Paulo. PUC-SP, 1999. <http://www.samba-choro.com.br/artistas/noelrosa>. Acesso em: 5 set. 2011.
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História das histórias de Noel e Adoniran Valdir Mengardo
Filosofia Mas, a filosofia Hoje me auxilia A viver indiferente assim. Nesta prontidão sem fim, Vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim
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m 1933 Noel Rosa procurou André Filho (compositor que mais tarde se imortalizaria com “Cidade Maravilhosa”), com uma letra bem característica de Noel. “Filosofia” guardava os atributos de um Noel triste pela sua pobreza e pouca beleza, mas que, ao mes-
mo tempo, mostrava o orgulho de sambista que esquece os bens materiais e vive da boêmia. Noel procura Mario Reis tarde da noite e mostra o samba, pedindo para que o cantor o gravasse. “Nem preciso ouvir, Noel. Se é seu, eu gravo”, disse o cantor. O samba, à época, não foi nenhum sucesso, mas seus desdobramentos é que foram interessantes. Um ano depois, em 1934, um certo João Rubinato, cansado de levar gongadas em programas de calouros, escolhe “Filosofia” para sua apresentação no programa de Jorge Amaral,
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Capa do LP Sinal Fechado, no qual Chico Buarque regravou Filosofia, samba de Noel Rosa.
Bom Dia Tristeza Se chegue tristeza Se sente comigo Aqui nesta mesa de bar. Beba do meu copo, Me dê o seu ombro Que é pra eu chorar Chorar de tristeza, Tristeza de amar
ções, com Maysa, Maria Bethânia, Elis, e o próprio Adoniran. Na gravação de Roberto Ribeiro, Adoniran imprime sua característica ainda mais profundamente, ao declamar, na abertura, um texto bem ao seu estilo: “A tristeza é um bichinho que pra roer tá sozinho, e como rói a bandida, parece rato em queijo parmesão”. Iracema E hoje ela vive lá no céu E ela vive bem juntinho de Nosso Senhor De lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos Iracema, eu perdi o seu retrato
Vinícius de Moraes teve a sua letra Bom Dia Tristeza musicada por Adoniran. Divulgação
na Rádio Cruzeiro do Sul. João consegue a aprovação ( mais tarde ele dirá que o homem do gongo deveria estar dormindo), e muda de vida, trocando o nome de batismo por Adoniran Barbosa. Depois de várias regravações, em 1974 Chico Buarque regrava o samba, com uma nova ginga, diferente daquele andamento bem marcado que caracterizou a gravação de Mario Reis. Em um LP, Sinal Fechado, com a maioria das músicas de outros compositores, porque as músicas de Chico eram sistematicamente censuradas, ele emplaca com um delicioso arranjo de flauta que deixa a música de Noel ainda mais tristonha. Curiosamente é essa marcação que hoje persiste na noite paulistana quando um sambista interpreta “Filosofia”.
“Bom dia, Tristeza” apresentanos uma das mais improváveis parcerias da música brasileira: Vinicius de Moraes e Adoniran Barbosa. A história da parceria é mais insólita ainda. Vinícius, em 1957, fazia parte da delegação diplomática brasileira na Unesco, em Paris, e ao escrever a letra de “Bom Dia, Tristeza” teve a feliz ideia de enviá-la a Aracy de Almeida, com uma única recomendação: “Faça com ela o que você quiser”. Aracy colocou o poema na mão de seu amigo Adoniran, que fez uma das mais primorosas canções da música brasileira. Curiosamente Vinicius, alguns anos antes, andara falando mal de Adoniran, pelo seu jeito característico de fazer samba, usando um português falado na periferia de São Paulo, totalmente diferente do português castiço usado por Vinícius em suas poesias. Para muitos a melodia soou como um tapa com luva de pelica em Vinicius. Aracy foi a primeira a gravar, mas depois vieram inúmeras grava-
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Em 1956 Adoniran compõe um dos seus sambas mais tristes. Iracema, uma moça atropelada na Avenida São João, aparece na canção como um grande amor na vida do compositor, que morre inesperadamente. Porém Adoniran desfez, alguns anos depois, num programa de televisão essa primeira versão: “Iracema foi o que eu vi no jornal, e não foi na São João, foi na Consolação. E falei, aqui vai dar um sambinha. Foi o primeiro samba errado que eu fiz. Iracema”. Mas existe outra versão sobre Iracema. Segundo o biógrafo de Adoniran, Celso de Campos Jr., o compositor vivia tentando se aproximar de uma mulher muito bonita, que frequentava a noite paulistana, mas a dona só fazia ignorar Adoniran. Um dia, ele partiu de dedo em riste para cima da mulher e disse: “Eu vou te matar”. No dia seguinte, chegou com a letra e a melodia de
68 Cultura Crítica 12 Iracema, e disse à mulher: “Tá aqui, ó. Te matei”.
zariam as músicas de Adoniran. Ele costumava dizer que falar errado era uma ciência, era preciso saber o correto para inventar todas aquelas frases “erradas”. Mais tarde a dupla Moles e Adoniran comporia outros sucessos da música brasileira, como “Tiro ao Álvaro”, gravado magistralmente por Elis Regina. Na primeira Bienal do Samba a dupla inscreveu “Mulher, Patrão e Cachaça”, que não chegou às finais. Mas “Conselho de Mulher” é também a precursora de uma série de sambas que analisarão o desenvolvimento alucinante que marcará as décadas de 1950 e 1960 e que terão a sua maior expressão em “Saudosa Maloca” e “Abrigo de Vagabundos”: “Pogressio, pogressio/que eu sempre iscuitei falá/ Se o pogressio vem do trabaio /Intão amanhã cedo nóis vai trabaiá”.
Conselho de Mulher Quanto tempo nois perdeu na boemia Sambando noite e dia Cortando uma rama sem parar Agora escuitando os conseio da mulhê Amanhã vou trabaia Se Deus quiser (breque) Mas Deus não qué
“Conselho de Mulher” marca uma das primeiras parcerias entre Adoniran e Oswaldo Moles. Oswaldo foi o roteirista de um dos mais deliciosos programas de rádio da década de 1950: “História das Malocas”. Adoniran fazia o Charutinho que, juntamente com Maria Tereza, a Terezoca, incorporava tipos da periferia paulistana. Nos diálogos do Charutinho estavam as raízes do falar “errado” que tão bem caracteri-
As Pastorinhas
Adoniran era Charutinho, personagem do programa de rádio Histórias das Malocas. Foto: Adoniran Barbosa- anotações com arte 2009.
Linda pastora Morena da cor de Madalena Tu não tens pena De mim que vivo tonto com o teu olhar Linda criança Tu não me sais da lembrança Meu coração não se cansa De sempre e sempre te amar
Em 1934 João de Barro, o Braguinha, propôs a Noel uma parceria: “Noel, vamos fazer uma música que fale daquelas pastorinhas que saem nos ranchos da Vila Izabel no dia de Reis?”. Noel aprovou a ideia e não demorou muito tempo para vir à luz a marcha “Linda Morena”. A música foi gravada por João Petra de Barros, mas não chegou a alcançar nenhum sucesso. Em 1938, depois da morte de Noel, Braguinha inscreveu-se em um
concurso de marchinhas carnavalescas no Rio de Janeiro. Junto com Alberto Ribeiro emplacou “Touradas de Madri”, mas não levaram porque a comissão julgadora achou que “Touradas” era um passodoble e não uma marcha. Foi marcado um novo concurso, dali a duas semanas. Braguinha não se fez de rogado: inscreveu, com pequenas modificações, a música que havia composto com Noel, e que agora passava a se chamar “As Pastorinhas”. Não deu outra: a música ganhou o concurso e foi gravada por Silvio Caldas, transformando-se num enorme sucesso, que é lembrado até hoje nos carnavais. Mas “Touradas de Madri” teve a sua vingança: em 1950, quando o Brasil goleou a Fúria espanhola por 6 x 1, um público de mais de cem mil pessoas saiu pela avenida Maracanã cantando “Touradas de Madri”. Braguinha, que estava no meio da multidão, não se conteve e começou a chorar. Um gaiato, que não reconheceu o compositor, perguntou: “Uai! Por que você está chorando, por acaso você é espanhol?” Último Desejo E às pessoas que detesto Diga sempre que eu não presto Que o meu lar é o botequim E que eu arruinei a sua vida Que eu não mereço a comida Que você pagou pra mim
Dos amores que passaram pela vida de Noel certamente o mais marcante foi a bailarina de cabaré Ceci, Juraci Correa de Moraes. “Último Desejo” foi uma espécie de
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Divulgação
qualquer onde o acaso fez o boêmio parar. Mesmo assim, gravações consagradas da canção, como a primorosa de Nelson Gonçalves, vão consagrar o equivocado “um” perpetrado por Aracy. Trem das onze
Aracy de Almeida gravou o samba de Noel Rosa Último Desejo.
despedida de Noel, entregue a Ceci pouco antes de sua morte por um amigo em comum. O samba resumia bem o romance atribulado que os dois tiveram e que agora, às vésperas de sua morte, Noel via já de muito longe, pois Ceci enamorara-se de outra lenda da música brasileira: Mario Lago. Não como a letra original dizia. Tão logo o samba é composto, Aracy de Almeida se prontifica a gravá-lo, mesmo sem Noel saber. Quando ele ouve pela primeira vez a interpretação de Aracy, corrige dois erros que considera graves: um deles é que Aracy canta “que o meu lar é um botequim...” e não como a letra original propunha “que o meu lar é o botequim”. Noel falou então a um amigo que “pode parecer a mesma coisa, mas não é”. De fato, quando Noel explicita o botequim, está se referindo a uma instituição que é própria da vida boêmia de boa parte dos brasileiros, ao passo que dizer um botequim pode significar uma casa
Não posso ficar Nem mais um minuto com você Sinto muito amor Mas não pode ser Moro em Jaçanã Se eu perder este trem Que sai agora às onze horas Só amanhã de manhã.
Adoniran nunca morou em Jaçanã. Conhecia bem vários bairros de São Paulo, como o Brás, onde morava, ou o Bixiga, onde frequentava os bares da noite paulistana. Vila Esperança também era conhecida do compositor pelo seu carnaval. O Jaçanã era meio como uma passagem nas viagens que o ator/compositor fazia para apresentar-se em circos da periferia. É bem provável que Trem das onze, samba de Adoniran, virou um sucesso da gravação feita pelo conjunto Demônios da Garoa (capa de LP).
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em meio a uma dessas viagens, ele tenha composto “Trem das Onze”. Uma história simples, idealizada por Adoniran, sobre o moço que precisa voltar para casa para não desagradar a mãe mas, mais do que isso, alicerçada numa rima deliciosa “amanhã/ Jaçanã”. Interessante é que esse mote (o do rapaz que precisa voltar cedo para casa) já fora usado pela dupla Luiz Vieira e Arnaldo Passos em 1953. Nesta música, a rima em “ã” também é marcante: “É tarde, já vou indo / Preciso ir embora / Até amanhã. / Mamãe quando eu saí / disse: menino não demora em Braçanã”. O fato, porém, é que Adoniran e os Demônios da Garoa, lá pelos idos de 1964, andavam à procura de um novo sucesso. Quando Adoniran lhes mostrou a música, somente Arnaldo a achou interessante; os outros três demônios acharam a história um tanto piegas. Mesmo assim, o samba foi gravado e virou sucesso nacional. Primeiro em São Paulo, onde depois de ser lançado em compacto virou LP, pela Chantecler. Depois foi a vez do Rio se render ao samba paulistano: interpretada no programa do Chacrinha, a música foi inscrita no concurso de músicas do carnaval do Quarto Centenário do Rio de Janeiro, ganhando o primeiro lugar. Mas nem o sucesso de “Trem das Onze” evitaria a desativação da estação Jaçanã um ano depois, em 1965, assim como, mais tarde, foi desativada toda a linha do chamado Trem da Cantareira, uma das principais ligações da Zona Norte de São Paulo que hoje, em boa parte, é substituída pelo metrô.
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Feitio de Oração Quem acha vive se perdendo Por isso agora vou me defendendo Da dor tão cruel de uma saudade Que por infelicidade meu pobre peito invade
Talvez as melhores parcerias de Noel tenham sido aquelas em que aparece o nome de Oswaldo Gogliano, o Vadico. Nascido em São Paulo, Vadico passou boa parte de sua infância entre o Brás e o Belenzinho e, depois de algum sucesso com gravações de Francisco Alves, começou a tocar na gravadora Odeon, contratado pelo maestro Edmundo Souto. Em determinado momento, Vadico começa a dedilhar uma canção sua e Edmundo pergunta se ela já tinha letra. Após a negativa de Vadico, Edmundo vai até a sala ao lado, onde estava Noel Rosa, e apresenta-o a Vadico. O maestro pede a Vadico que toque a Emma D’Ávila, atriz gaúcha, inspirou Noel Rosa a criar o samba X do Problema.
O pianista Oswaldo Gogliano, Vadico.
música que ele havia composto. Na hora Noel pega um papel e começa a rabiscar uma letra. Despedem-se e, dois dias depois, Noel aparece na Odeon, onde Vadico tocava piano e mostra-lhe a letra de “Feitio de Oração”, que, segundo alguns historiadores, teria sido feita para uma sua namorada de nome Julinha, e que mais tarde se transformaria num dos maiores sucessos da música brasileira. X do Problema Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema. Ser estrela é bem fácil, Sair do Estácio é que é
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Em 1935 Noel encontra-se no Teatro João Caetano com a atriz Emma D’Ávila, jovem atriz gaúcha que mais tarde faria sucesso inclusive na televisão. Vendo a atriz triste, Noel quer saber o porquê, e ela explica que, às vésperas de estrear uma peça ali no Rio de Janeiro, ainda não tinha uma música para seu quadro. Emma contou que o seu quadro era sobre o Estácio e Noel prometeu que no dia seguinte lhe levaria uma canção. Cumprindo a palavra, ele aparece no dia seguinte com “X do Problema”. Pega o violão e a mostra para Emma, que leva a canção para a sua peça.
Dias depois, Noel encontra Aracy num bar do Rio de Janeiro e ela lhe pergunta se ele não tem um samba novo para mostrar. Noel pega um maço de cigarros Odalisca e prontamente escreve “X do Problema”, que Aracy levará para sempre como feito em sua homenagem. cc Valdir Mengardo é professor do departamento de Jornalismo da PUCSP e editor do jornal PUCviva. Referências Este artigo teve por base o livro Noel Rosa: Uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier (Editora da Universidade de Brasília, 1990), publicação que hoje sofre um impedimento em virtude de processo movido pelas sobrinhas de Noel Rosa. Roteiro de entrevistas publicado pelo SESC – São Paulo como encarte da obra A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes. CAMPOS JR., Celso de. Adoniran: Uma biografia Editora Globo. <http://www.recanta.org.br> <www.advivo.com.br/luisnassif> <pelasruasdomeurecife.blogspot. com>
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Saudades da saudosa maloca Américo Fazio Neto; Érica Molon; Janaina Bantim;Larissa Storti; Mona Hassanie; Raiane Imairô; Raul Baronetti orientação: Francisco das Chagas Camêlo
Até a década de 1960, São Paulo ainda existia; depois procurei mas não achei São Paulo. O Brás, cadê o Brás? E o Bexiga, cadê? Mandaram-me procurar a Sé. Não achei. Só vejo carros e cimento armado. (Adoniran Barbosa)
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oão Rubinato, o verdadeiro nome de Adoniran Barbosa, nasceu na cidade de Valinhos em 6 de agosto de 1910 e na infância mudou-se para Jundiaí. Nascido de uma família de imigrantes italianos, buscou prosperidade na vida e começou a preocupar-se em trabalhar. Em 1924 morou em Santo André, na Grande São Paulo, e começou a trabalhar para ajudar a família numerosa, em seu primeiro ofício, como entregador de marmitas. Teve diversos empregos − pedreiro, garagista, mascate, encanador, metalúrgico − e aprendeu que sua vida se move pela realidade. Aos 22 anos, instalou-se na capital, no bairro da Bela Vista, onde se empregou no comércio e participou de programas de calouros no rádio.
72 Cultura Crítica 12 Nessa época adotou o pseudônimo Adoniran Barbosa. Adoniran era o nome de seu melhor amigo, e Barbosa uma homenagem ao cantor de sambas Luís Barbosa, seu ídolo. Conquistou o primeiro lugar no concurso carnavalesco promovido pela prefeitura de São Paulo, em 1934, com a marcha “Dona Boa”, feita em parceria com J. Aimberê. Adoniran Barbosa foi popularizado pelo grupo musical os Demônios da Garoa. Em suas composições,
retratou o cotidiano da população urbana de São Paulo e as mudanças causadas na cidade pelo progresso. Teve o reconhecimento da mídia nos anos 1970. A música “Trem das onze” foi eleita pelos paulistanos como “a cara da cidade”, em uma campanha organizada pelo SPTV da TV Globo, e como a música do século. Em 2001 Adoniran ganhou uma cinebiografia. O sucesso o leva ao primeiro casamento com Olga, que durou menos de um ano, do qual teve sua
única filha, Maria Helena. Em 1949 casou-se pela segunda vez com Matilde de Lutiis, que seria sua companheira e parceira de composição em músicas por mais de 30 anos. Em 1941 foi convidado para atuar na Rádio Record, onde trabalhou como ator e locutor.
“Trem das onze” foi eleita pelos paulistanos como “a cara da cidade”...
Foto: Adoniran Barbosa- anotações com arte 2009.
Em 1955 estreou o personagem Charutinho, seu maior sucesso no rádio. Compôs seu primeiro sucesso, “Saudosa maloca”, gravado pelo grupo Demônios da Garoa. Em seguida lançou outras músicas, como “Samba do Arnesto” e o famoso “Trem das Onze”. Uma de suas últimas composições é “Tiro ao Álvaro”, que gravou com Elis Regina em 1980. Adoniran nasceu e morreu sem dinheiro. Gastou tudo com seus amigos em sua vida boêmia, em comemorações ou mesmo os ajudando. Tinha muitos amigos; nos botecos por que passava conquistava o pessoal com sua fala rouca e seu jeito simples de ver a vida. Adoniran foi um sambista de verdade, que vivia a realidade e a adorava.
Cultura Crítica 12 então, Adoniran Barbosa. A partir de então, participou de novo do Programa de Calouros, dessa vez interpretando “Filosofia”, de Noel Rosa, e foi o vencedor. Na Rádio Cruzeiro do Sul, João Rubinato conquistou um espaço de meia hora para apresentar sozinho o programa Classificador, transmitindo sucessos de diversas
personalidades. Simultaneamente, o futuro artista aprendia na rua. Vivia na boêmia, nas praças, e gastando dinheiro. Participou de um concurso de marchinhas carnavalescas com a canção “Dona Boa”, feita em 1934, e foi mais uma vez o vencedor. Adoniran viveu, então, seu primeiro momento de fama e choveram amigos na madrugada. Com a vitória, conFoto: Acervo Adoniran Barbosa/ Divulgação
A vida profissional de João Rubinato começou em 1918, quando sua família já morava em Jundiaí. Seu pai era ajudante de carga de trens da São Paulo Railway e tinha uma “pequena” mordomia durante o dia: o almoço chegava quentinho trazido pelo filho, que logo depois passou a ajudar o pai a carregar lenha, tijolo e manilhas para os trens. Foi na Fábrica de Tecidos Japi que João começou a sentir o gosto de ganhar seu próprio dinheiro. Ele ganhava 400 réis por hora e ficava das quatro da tarde às onze da noite varrendo a fiação. Daí, passou a entregador de marmitas do Hotel Central, das quais ele surrupiava a mistura. João Rubinato fez diversas atividades. Anos mais tarde, quando se mudou para São Paulo, foi aprendiz de garçom por pouco tempo e logo começou a fazer bicos. Nessa fase, foi pintor de paredes, encanador, mecânico, tecelão, mascate de meias, esmerilhador de ferro fundido e conferente de mercadorias numa transportadora. Foi indo e vindo nos bondes que cruzavam o Bom Retiro, vivendo a vida do Brás, do Bixiga, espreitando movimentos e contemplando viadutos e malocas, que uma ideia começou a martelar-lhe a cabeça: virar artista. A porta de entrada para o aprendiz era o Programa de Calouros, na Rádio Cruzeiro do Sul. Foi na tarde de 1933 que o locutor chamou pela primeira vez ao microfone o candidato João Rubinato para apresentar “Se você jurar”, de Ismael Silva e Nilton Bastos. Nesse momento foi reprovado, mas não desistiu e continuou mandando inscrições e visitando outras rádios. Começou a implicar com seu nome e adotou,
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74 Cultura Crítica 12 seguiu assinar seu primeiro contrato, na Rádio São Paulo. Em meados de 1936, gravou seu primeiro disco, com um samba fraquinho: “Agora podes chorar”. A carreira de Adoniran na Rádio São Paulo durou pouco e a demissão veio junto com o seu casamento com Maria Helena Rubinato. Para sobreviver, pulava de galho em galho, mas sempre no mesmo ramo. Continuou compondo diversos sambas com a esperança de que
Para surpresa do aprendiz de artista, Barreto aceitou e passou a ser visto como uma figura inesquecível na vida de Adoniran. Foi nessa época que ele começou a dar vida a alguns personagens para os programas da rádio. Existiam vários: um garoto impertinente que se chamava “Barbosinha-Mal-Educado”, o motorista “Pernafina”, o galã do cinema francês “Jean Rubinet”, etc. Adoniran tornava-se uma personalidade: sua voz era a sintonia fina da cidade,
Adoniran provou que música popular é isso, o retrato puro e simples do cotidiano... alguém os comprasse. Quanto às rádios, passou da Rádio São Paulo para a Difusora e, tempos mais tarde, da Difusora para a Cruzeiro do Sul novamente. No círculo vicioso a que se habituara, vendia anúncios, cantava, exercia funções de discotecário e às vezes de radialista. Foi na profissão de radialista que, em 1941, Adoniran entrou para a PRB-9, Rádio Record. O sonho de ser artista o levou a não se importar com nada, nem mesmo com o fato de não receber salário para trabalhar na rádio. Entretanto, dois meses depois, foi perguntar ao chefe se não era possível entrar para a folha de pagamento. Estranhamente, o chefe pediu que ele fosse conversar com Barreto Machado, que trabalhava somente duas vezes por semana e poderia dividir seu salário.
seu nome e seu rosto estavam sempre estampados na Revista do Rádio, e até no cinema ele passou a aparecer, estreiando nas telas em Pif-Paf, comédia musical carnavalesca de 1945. Para conseguir um salário extra, continuou apostando no cinema. Em 1951, participou de um documentário sobre cenas brasileiras intitulado Cântico da Terra. Em 1953, atuou em Esquina da Ilusão, de Ruggero Jacobbi; em 1954, em Candinho, de Abílio Pereira de Almeida, com Mazzaropi presente no elenco. Sua maior atuação, porém, aconteceu em O Cangaceiro, o primeiro filme brasileiro que mereceu a reverência nacional ao vencer na França o VI Festival de Cannes de 1953. No papel de um jagunço, Adoniran brilhou como coadjuvante e o filme foi visto por pelo menos 800 mil pessoas. Com esse
filme, as pessoas finalmente conheceram de vez o rosto do homem que as fazia rir pelo rádio. O sambista Adoniran Barbosa A partir de então não teria mais volta: João Rubinato saiu definitivamente de cartaz, para dar vida ao artista, palhaço, brincalhão e ao mesmo tempo reservado Adoniran Barbosa. E, com ele, nascia uma nova voz: a voz do trabalhador que luta, que sua, mas que não abre mão da boêmia paulistana, a voz das saudosas malocas. Em sua carreira nas rádios e em suas frequentes aparições nas rodas de samba, nosso personagem encontrou-se com uma de suas maiores paixões, que lhe confere créditos até os dias de hoje: o samba. Desta vez, não como intérprete, pois já o fora nos programas de calouros, mas como um verdadeiro sambista, um compositor de música popular brasileira. O samba de Adoniran que ganhou maior projeção foi “Trem das Onze”. A música “estourou” no Rio de Janeiro e chegou a São Paulo para ser uma espécie de hino da cidade, imortalizada em uma versão posterior da banda Demônios da Garoa. Antes disso, o grupo paulistano já havia gravado “Saudosa Maloca”, que ganhou notoriedade na época, tornando-se um clássico do samba paulistano e, claro, repertório obrigatório de todo sambista da cidade. As histórias da metrópole que o artista escolheu para viver − São Paulo − foram contadas e cantadas de muitas formas, com os bairros tradicionais, erros propositais na
Cultura Crítica 12 os vícios de linguagem e até mesmo eventuais erros da língua portuguesa, cometidos por aqueles que fizeram do trabalho duro na cidade sua única instrução. Sendo uma representação coloquial de suas experiências, os “causos cantados” de Adoniran acabavam por ser
engraçados, tanto que o próprio admitia: “esse samba é pra rir”, em entrevista à sua fã declarada, Elis Regina. A cantora gravou, com o sambista, “Tiro ao Álvaro”, que se tornou muito popular, tornando Adoniran uma unanimidade, entre músicos, público e crítica.
Foto: Acervo Adoniran Barbosa/ Divulgação
língua portuguesa e a homenagem àqueles que sempre foram o próprio samba:, o povo. Adoniran provou que música popular é isso, o retrato puro e simples do cotidiano, como o próprio trem do Jaçanã, inspirador de seu samba maior. As origens também não foram esquecidas pelo compositor Adoniran. Em “Samba Italiano”, de 1965, temos uma música toda cantada em italiano, língua materna de seus pais, que acabou por aproximar o compositor dos bairros de tradição italiana, como o Bixiga, por exemplo, reduto de Adoniran. Mas nem tudo eram flores naquele bairro. Volta e meia saía uma briga, especialmente se fosse na casa do Nicola, aí “era só pizza que avuava junto com as braxola”, mas não havia problema, pois quando a situação ficava “muito cínica”, os “mais pior” ia “pras clínica”, como afirma Adoniran em seu “Samba no Bixiga”. Outro bairro imortalizado por Adoniran Barbosa foi o Brás, com o “Samba do Arnesto”, que convidou a turma toda para um samba em sua casa e, quando todos chegaram lá, não havia ninguém. O “Arnesto” até tentou pedir desculpas, “mais nós não aceitemos”. Com seus sambas do dia a dia, Adoniran se tornou um grande contador de histórias., Afinal, para ele, tudo acabava em samba− de um simples encontro com os amigos, até suas desilusões amorosas. Os erros característicos das letras do cantor e compositor foram marcas registradas de sua obra; afinal o retrato fiel de uma cidade e de seu povo deve enquadrar também as expressões características,
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76 Cultura Crítica 12 Em 23 de novembro de 1982 nosso personagem principal sai de cena, devido a uma grave doença no pulmão, decorrente de seu vício pelo cigarro. Em seu enterro, ao invés de café, foi servida cachaça − afinal, um bom sambista é boêmio até o fim. Ouvir uma música de Adoniran é passear pelas ruas, alamedas e bairros paulistanos, motivo pelo qual sua obra é imortal e atemporal, sendo revisitada nas festividades do centenário de seu nascimento. O legado de Adoniran Barbosa Como já dito, Adoniran faleceu em 23 de novembro, às 17 horas, em virtude de um enfisema pulmonar. Quando sua morte completou um ano, todas as rádios da capital paulista tocaram “Trem das Onze” às 17 horas, em sua homenagem. É por isso que usamos o dito popular para descrevê-lo: “Morre o homem, fica a fama”. Definitivamente Adoniran Barbosa é um grande exemplo disso, pois é um dos principais responsáveis pela construção de uma cultura popular riquíssima e diversificada, trabalhada a partir de diferentes pressupostos a respeito da linguagem poética e do que seja a música popular. A lembrança de Adoniran Barbosa não reside apenas em suas composições: temos em São Paulo o Museu Adoniran Barbosa, localizado na Rua XV de Novembro, 347; há, no Ibirapuera, um albergue para desportistas que leva seu nome; em Itaquera existe a Escola Adoniran Barbosa; no bairro do Bixiga, Adoniran Barbosa é uma rua famosa e na praça Don Orione há um busto do compositor. Adoniran Barbosa é também um bar e uma praça, e no
bairro do Jaçanã existe uma rua chamada “Trem das Onze”. Adoniran deixou cerca de 90 letras inéditas que, graças a Juvenal Fernandes, um estudioso da MPB e amigo do poeta, foram gravadas por compositores do quilate de Zé Keti, Luiz Vieira, Tom Zé, Paulinho Nogueira, Mário Albanese e outros. Mais do que obras artísticas e homenagens ao seu trabalho, Adoniran Barbosa deixou milhares de fãs, que ainda declaram que São Paulo jamais foi a mesma após o surgimento e a morte de João Rubinato. Suas canções eram um recorte do cotidiano paulistano, e foram tão bem elaboradas que conseguem ambientar o ouvinte até nos dias de hoje, mesmo passado muito tempo. Essa capacidade de envolver e entreter o ouvinte, possibilitou a transmissão de suas canções por muitas gerações, sem perder seu valor e suas características. Esse modelo de fazer samba contagiou os novos sambistas que foram surgindo, e cada um, mesmo com suas subjetividades e características próprias, sempre apresenta uma essência calcada nas canções de Adoniran. Mais do que uma inspiração, ele se
tornou, de fato, um agente constituinte de não somente um ritmo musical, mas também de uma cultura popular. No ano de seu centenário, em 2010, Adoniran foi tema de vários projetos relacionados à sua vida e obra, um deles, o relançamento de sua biografia oficial, lançada em 2004 e que voltou às livrarias em versão ampliada. Além disso, uma ampla programação de eventos e homenagens foi criada para os adoradores do músico. Adoniran deixou um legado inestimável em imagem e valorização de São Paulo. Não há um bom paulista que não o respeite e o admire pela contribuição poética e real de sua música e trabalho. Sua obra é objeto de estudo de muitos, desde sua forma de falar, até a maneira como a profundidade de sua música transpassava a geografia paulista. Esta foi a trajetória de vida desse ator, músico e compositor; desse verdadeiro artista que ajudou São Paulo a descobrir seu ritmo, seu samba, seu lugar dentro da música popular brasileira. cc Os autores são alunos do curso de Publicidade e Propaganda da Pontifícia Universidade Católica.
Referências <http://www.vidaslusofonas.pt/adoniran_barbosa.htm>. Acesso em: 8 abr. 2011. <http://transamerica.tv.br/index.php/Noticias/Adoniran-Barbosa-deixou-umlegado-riquissimo-de-suas-obras.html>. Acesso em: 10 abr. 2011. <http://catracalivre.folha.uol.com.br/2010/01/adoniram-ganha-homenagemno-sesc-pompeia/>. Acesso em: 10 abr. 2011. <http://www.samba-choro.com.br/debates/1088517285>. Acesso em: 10 abr. 2011. MOURA, Flávio; NIGRI, André. Adoniran. São Paulo: Boitempo, 2002. <http://letras.terra.com.br/adoniran-barbosa/>. Acesso em: 10abr. 2011. Documento sonoro e musical “Saudoso Adoniran” – CD produzido pela Merit.