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V111.1 - Ações Emergenciais
permitindo àqueles envolvidos diretamente com a campanha planejar livremente estas atividades e exercitar a sua criatividade para alcançar os objetivos nelas contidos. Cabe esclarecer, no entanto, que a liberdade vivida pelos comitês não significou uma ausência de controles sobre os recursos arrecadados e as instituições beneficiadas por suas atividades. No caso dos comitês de funcionários das estatais, é permanente a prestação de conta de seus membros aos demais empregados através de boletins, de folhetos, de correspondência personalizada, etc., de forma a evitar qualquer dúvida sobre o destino dos recursos, mesmo quando os mesmos não são imediatamente aplicados na compra de produtos ou destinados às instituições, ficando aplicados em contas correntes abertas com esta finalidade em bancos da rede pública.
Por outro lado, as instituições beneficiadas, ao receberem tais recursos - normalmente não se entrega o dinheiro em espécie a elas, mas se compram os bens ou se paga a realização de serviços necessários -, assinam documentos comprovando aquilo que foi doado, discriminando as quantidades e o valor cios bens. A prática da prestação de contas indica também, na nossa opinião, que os membros dos comitês de funcionários apontam para uma gestão dos recursos públicos - pois disso se trata, tal como no caso dos recursos administrados pelo Estado -, diferente daquela que tem sido recentemente objeto da crítica da opinião • pública, levando à cassação de mandatos e à abertura de processos em distintas áreas da vida brasileira. A transparência no uso destes recursos é mencionada espontaneamente por seus membros, e é con- siderada um elemento importante da sua participação na campanha, marcada pela preocupação com o comportamento ético no trato da coisa pública; a informalidade nesse caso não se confunde, portanto, com "liberalidade" nem com ausência de idoneidade na gestão dos recursos solidariamente doados pelos funcionários das empresas públicas. Uma prova disto, é que as instituições que foram denunciadas no escândalo da LBA, deixaram de ser beneficiadas, por exemplo, pelo comitê da EMBRATEL, devido ao problema do desvio de recursos.
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1.3 - O caráter a-político dos comitês de funcionários na Campanha Contra a Fome.
Como já foi mencionado ao longo do texto, o Estado é, por assim dizer, a "encarnação" do "politico" nas sociedades contemporâneas; entretanto, nem tudo que acontece no âmbito do aparelho de Estado, ou nos setores vinculados a ele, assume, necessariamente, este caráter. Uma prova particularmente significativa desta afirmação, é o sentido dado pelos funcionários das empresas e instituições estatais à sua participação na campanha, e o fato de que, em praticamente todas as empresas pesquisadas, o papel dos sindicatos ou associações de empregados foi basicamente o de um coadjuvante das tarefas e das propostas dos comitês, os quais surgiram à margem e independentemente deste tipo de organização.
Em relação à questão do sentido da participação na campanha, o argumento sempre utilizado passa pela "simples" demonstração de solidariedade frente à situação de miséria e fome que caracteriza a vida de milhões de pessoas em todas as regiões do país, e não teve, no geral, um caráter contestatório da política econômica do governo, embora fosse registrado que uma das fontes desta miséria é a má distribuição de renda vigente na sociedade brasileira. Tampouco foi observado, no material a que tivemos acesso, qualquer tentativa de politização e/ou partidarização do problema da fome e, muito menos, da campanha que se buscou
travar contra ela. O eixo fundamental da argumentação em favor da participação neste movimento esteve sempre marcado pela necessidade de se mostrar solidário com aqueles que vivem o drama da fome no país, e pela importância de se desenvolver a consciência de uma nova cidadania como base para uma sociedade mais justa.
Embora isso possa ter consequências políticas importantes para o conjunto da sociedade em um futuro mais ou menos próximo, começando por enfatizar uma nova perspectiva no que se refere ao uso dos recursos públicos, não foi mencionado uma vez sequer em todas as entrevistas realizadas - nem está presente no material impresso recolhido para a pesquisa -,que a campanha contra a fome poderia servir como um instrumento de luta contra a ordem política vigente no Brasil. Ao contrário, o que se depreeende do discurso dos membros dos diversos comitês analisados, ainda que isso mais se subentenda do que se manifeste claramente, é que seu envolvimento visa contribuir para o aperfeiçoamento da ordem de- mocrática, aliviando os efeitos perversos da fome e da miséria e estimulando o desenvolvimento de uma nova consciência, na qual a definição de cidadania vá além dos direitos políticos tradicionais reconhecidos na Constituição Brasileira. Por outro lado, foi possível observar um nítido conteúdo religioso, embora sem uma identidade precisa (isto é, • sem uma marca cristã, evangélica, kardecista, etc.), que se manifesta na justificativa da necessi- dade de se solidarizar com o "irmão" carente, nos textos de incentivo à participação/doação dos funcionários, alguns dos quais com uma clara orientação mística.
No que se refere à participação relativamente secundária dos sindicatos, ou de outras formas de organização dos trabalhadores destas instituições, é preciso não esquecer que a Campanha Contra a Fome transcendeu em muito os limites da simples crítica política, evitando beneficiar ou atacar a este ou aquele partido ou agentes sociais, para centrar-se na construção de uma nova maneira de se conceber a participação da sociedade na resolução dos problemas sociais enfrentados pela população. Isto implicou, desde o princípio, em uma não politização da campanha que logo se abriu para o envolvimento dos mais variados segmentos sociais, independentemente de crenças religiosas, posições político-ideológicas, níveis sócioeconômicos, localização geográfica, etc., conferindo à campanha o caráter do que chamamos de "ecumenismo social", isto é, de um movimento no qual o importante é a vontade de contribuir para minorar o sofrimento alheio, de participar na construção de uma nova cidadania, de ser solidário com outros membros da sociedade, para além de qualquer qualificação capaz de segregar o trabalho voluntário de seus integrantes.
Devido ao caráter político presente na atividade sindical, os sindicatos e as associações de representação dos interesses dos funcionários, não só não foram o canal prioritário de organização dos comitês nas empresas estatais, como também se mantiveram afastados da organização e da realização das tarefas propostas pelos comitês para o combate à fome, dando, no geral, apoio lõgístico às atividades mas sem intervir na sua definição nem no destino dado aos recursos arrecadados. Dessa maneira, a integração aos comitês e o compromisso com as atividades realizadas teve uma motivação muito mais espontânea, ligada à sensibilização frente ao chamado do Betinho, do que uma motivação de caráter político por parte dos funcionários das empresas estatais, até onde nos foi possível perceber, num aparente questionarnento da via política como a mais adequada para a superação dos problemas sociais do país.
1.4 - Acerca da Arrecadação e da Doação de bens.
Como se pode observar na relação apresentada, um montante significativo de recursos foi arrecadado e doado a um conjunto diverso de instituições de assistência social, a associações de moradores e a beneficiários diretos, como o pessoal encarregado da limpeza nas empresas públicas, os quais são, em geral, "terceirizados". Predomina, entre os bens arrecadados, os ticicets-refeição, transformados em cestas básicas, vindo em seguida a doação direta de alimentos não-perecíveis, peças de vestuário, brinquedos, remédios e outros bens (latas, vidros; etc.); a arrecadação direta de dinheiro é relativamente rara, a não ser naqueles casos em que os funcionários aceitaram assinar um contrato que permitia o desconto na folha de pagamento de uma percentagem variável do salário de cada empregado (entre 0,5 e 1%), por um período inicial em torno de 6 meses, renovável a critério do doádor. Mesmo neste caso, o grosso déstes recursos foi, ou será, destinado à compra de alimentos, e, excepcionalmente, a reparos nas instituições ou à compra de bens e materiais para atividades de apoio à formação de mão-de-obra.
Neste sentido, é interessante observar que, apesar das diferenças existentes entre os comitês de funcionários no tocante à sua constituição, às instituições com que trabalham, e às condições em que desenvolvem suas atividades, houve uma confluência significativa nos métodos utilizados para sensibilizar os empregados e nos resultados alcançados a partir deste trabalho. Destacam-se, dessa forma, as campanhas internas de mobilização em relação à necessidade de participar no movimento contra a fome, através de cartazes, vídeos, conferências com a presença do Betinho, folhetos, etc., os quais foram bastante semelhantes em todas as empresas contactadas; por outro lado, a doação de tickets-refeição como principal mecanismo de participação do conjunto dos funcionários, é também um ponto que chama a atenção pela regularidade. Como se sabe este foi um dos principais instrumentos utilizados pelos idealizadores da Campanha para dar início ao movimento em todo o país, junto com a coleta direta de alimentos; uma das razões para isso é a facilidade de se conseguir a doação de forma quase imediata, já que o ticket se tornou um elemento presente no cotidiano de boa parte dos trabalhadores do país, tanto no setor privado quanto no setor público, o que sem dúvida facilitou o predomínio da sua doação como a principal forma de participação dos funcionários públicos na campanha.
Seja como for, os funcionários das empresas estatais deram mostras de uma importante solidariedade para com os grupos mais carentes da sociedade brasileira, expressa não só na doação de bens como também no envolvimento com as instituições que prestam assistência sodal a estes grupos. Os relatos dos membros dos comitês de funcionários dão conta de que este sempre foi um ponto importante da sua participação na campanha, interessados em conhecer de perto a realidade destes setores sociais e em acompanhar a destinação dada aos recursos doados, estando, assim, em condições de informar aos demais funcionários os problemas encontrados e as soluções apresentadas na condução da Campanha Contra a Fome. Por outro lado, uma faceta importante desta solidariedade se manifesta também no descobrimento de que várias ações de caráter filantrópico já vinham sendo desenvolvidas, e continuam sendo realizadas, pelos funcionários destas empresas independentemente desta campanha, em caráter pessoal, privado, dando base para uma série de contatos entre os comitês e as entidades com as quais estes empregados se relacionavam, tendo algumas delas sido "adotadas" por estes comitês a partir destes contatos.
Um dos maiores méritos da Campanha Contra a Fome, no nosso entender, foi o de ter mostrado que, apesar das tendências particularmente individualistas que ainda predominam na sociedade brasileira - sintetizadas na famosa, e ao mesmo tempo de triste memória, "Lei de Gérson" -, é possível se criar um movimento envolvendo setores sociais os mais variados em tomo de um objetivo que transcende esta perspectiva limitada da interação social. A luta contra .a fome e a miséria liderada pelo Betinho, recoloca em outros termos as bases da sociabilidade em um momento delicado da vida social do país, apelando para valores diversos daqueles afirmados e, por vezes, impostos ao conjunto da sociedade pela prática de um utilitarismo acentuadamente predatório. Nesta nova perspectiva, predominam os valores relacionados à valorização do trabalho, à prática da solidariedade, ao resgate da dignidade humana, à reformulação do conceito de cidadania e à sua extensão às camadas desfavorecidas pelo processo de desenvolvimento económico, social e político prevalecente no Brasil nas últimas décadas.
A análise dos dados disponíveis acerca da participação das empresas estatais e de seus funcionários na Campanha Contra a Fome, nos permite afirmar que a sua presença foi de fundamental importância para que esta nova perspectiva se difundisse ou encontrasse eco nos diversos segmentos sociais que com ela se envolveram. É preciso ter claro que, em uma cultura política como a brasileira, ainda hoje marcada por uma visão patrimonialista e, ao mesmo tempo, corporativista da defesa dos interesses dos diferentes grupos sociais, o peso material e simbólico do Estado e seus diversos órgãos é importante o suficiente para tomar-se algo como um "espelho" para o qual se voltam os demais agentes sociais, e que tende a ter uma influência significativa sobre seu comportamento. Assim sendo, identificar no Estado o apoio à Campanha Contra a Fome, e nas empresas e instituições públicas, além de em seus funcionários, o interesse e a disposição para levar adiante seus propósitos básicos, pode ser considerado de particular relevância para a afirmação de uma nova forma de se conceber a base da sociabilidade na sociedade brasileira.
O papel do setor público neste sentido é tão mais importante quanto que o Estado é visto, em geral, como a única instância em que os interesses coletivos podem ser defendidos, ou redefinidos, tendo, portanto, um significativo "efeito de demonstração", sobre a sociedade em geral. Embora nos pareça válido argumentar que o Estado, normalmente e por si próprio, não traça caminhos novos ou desenvolve atitudes e ações que não correspondam aos interesses ou não encontrem eco nos setores sociais mais relevantes, pode-se também argumentar que, uma vez que o setor público se envolve em um determinado processo, com uma perspectiva definida, torna-se mais fácil conseguir a adesão dos diversos atores sociais aos objetivos desta ação. Esta proposição parece aplicar-se ao caso da Campanha Contra a Fome. Resultado de um movimento iniciado por entidades da sociedade civil na luta pela restauração da ética na vida pública do país, esta campanha teve sua difusão e aceitação pela sociedade amplamente facilitadas pelo envolvimento do Governo hamar Franco na mesma, o qual abriu caminho para que as empresas estatais, de forma institucional, aderissem ao movimento estimulando a participação de seus funcionários no mesmo, apesar de, em alguns casos, a adesão das empresas ter sido precedida pela pronta incorporação de seus empregados à campanha.
Assim, as grandes linhas dessa nova perspectiva, que incluem, entre outras, mudanças na consciência coletiva acerca do papel e do significado social da solidariedade; uma nova
• forma de se conceber a relação entre as esferas pública e privada - sem se restringir aos 1 110 limites tradicionais e/ou legais vigentes e aceitos hoje no Brasil -; a aceitação da responsabilidade coletiva com a solução de problemas sociais - não mais se acomodando pas- sivamente à atitude de que isto é um problema do Estado, das empresas, dos sindicatos, ou de qualquer outra entidade coletiva -; e a necessidade de se conferir um uso mais social aos recursos públicos,. orientando-os para a luta contra os efeitos da desigualdade social no país, podem ter parte da sua rápida aceitação social creditada ao envolvimento das empresas públicas e de seus funcionários na Campanha Contra a Fome.
Entretanto, é importante ter claro que, embora os traços mais relevantes desta nova concepção estejam presentes, ou já se anunciem com vigor como resultado desta campanha, isto não significa que o seu predomínio sobre a apatia, o desinteresse, o comportamento utilitário/predatório e outras formas de não comprometimento coletivo, esteja desde já garantido na sociedade brasileira. O tom positivo adotado aqui não pretende desconhecer que os obstáculos a serem transpostos por uma tal perspectiva são de considerável magnitude, exigindo tempo, esforço e continuidade de propósitos para se afirmar definitivamente; apesar disso, a possibilidade do seu êxito é real, e para ela contribui de forma significativa o esforço desenvolvido pelos integrantes do "Comitê das Empresas Públicas", tanto no plano das ações estruturais como no das ações emergenciais.
• Por outro lado, é preciso enfatizar que, apesar das dificuldades mencionadas acima, um avanço significativo foi realizado por estas empresas no sentido de conferir, por assim li dizer, um sentido social às suas atividades. Isto por uma dupla razão. Por um lado, é inédita a associação de várias empresas em tomo de um órgão como o "Comitê das Estatais", aglutinando as diferentes ações propostas por cada uma delas para combater a fome e a miséria, apesar das suas espedficidades. Por outro lado, é também incomum a mobilização institucional destas empresas no sentido de participar, com todas as limitações apontadas, de um movimento com as características da Campanha Contra a Fome, embora os resultados advindos desta participação não possam ser mensurados com os critérios da maximização do mercado, tendo um caráter mais simbólico e/ou político, do que econômico. Dessa forma, a análise crítica esboçada acima não pretende desconhecer a importância do esforço efetuado por estas empresas na campanha, considerando-se que os obstáculos por elas enfrentados são suficientemente relevantes como para explicar, e em certos casos justificar, a relativa paralisia decisória e instrumental apresentada no tocante à posta em prática dos objetivos presentes nos projetos relacionados que acompanham o "Termo de Adesão".
Neste sentido, portanto, é amplamente positiva a reação destas empresas ao apelo de parcelas expressivas da sociedade civil no tocante à necessidade de se combater a fome e a miséria com o apoio de todos os setores, em particular do setor público. Parece-nos fora de dúvida, ademais, que a participação das empresas e instituições estatais na campanha sei-4i u, além de importante instrumento para alcançar alguns de seus objetivos fundamentais, como um fator de legitimidade para a campanha na medida em que foi capaz de sensibilizar e mobilizar entidades do porte de empresas como a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Embratel, a Cia. Vale do Rio Doce, a UFRJ, entre outras, para os ideais de solidariedade, fraternidade, altruismo, generosidade, e até mesmo democracia, que fundamentaram a campanha ao longo deste seu primeiro ano de existência, e que podem ser considerados os seus lemas básicos. Nesta perspectiva, problemas como a informalidade, a falta de recursos, a formalização "inacabada" dos projetos, as limitações de caráter político-institucional e outros mencionados