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Propensão para a calma, para o sossego e para degustar a normalidade da vida

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

Se uma pessoa está habituada a se ver no centro de todos os panoramas, e a se imaginar no centro dos panoramas e de todas as suas cogitações, esta pessoa não pode deixar de ter uma série de reações vis, algo como de galinha ameaçada, com medo da morte. Quando digo que não me engajo na “torcida”, isto não quer dizer que não tome o gosto pelas coisas. Tomo gosto, mas sem apegos e sem aflições. Por exemplo, quando eu como crêpe de framboesa, gosto de uma coisa dessas, e gosto com ênfase; mas não entra nenhuma vibração nervosa nisso. Quer dizer, se for preciso deixar de lado a crêpe para tratar de outra coisa, não vou perder um minuto com a crêpe. E há noventa e tantos por cento de possibilidade que eu esqueça da crêpe58 . *

Tudo isto considerado, sei bem que não se diz de mim – e não há fundamento para se dizer – que eu seja uma pessoa de um temperamento nem um pouco frio, nem indolente, nem inerte59 . Graças a Deus, não tenho nada desses indivíduos endurecidos e incapazes de uma emoção, secos como uma tábua de lavar roupa. Não! É evidente que não60 .

Propensão para a calma, para o sossego e para degustar a normalidade da vida

A placidez, acho que temperamentalmente herdei sobretudo de mamãe. Porque essas coisas têm algo de psicossomático que é herdável. Ela tinha isso61 .

Quando me lembro de mim em pequeno, recordo-me de uma debilidade que me obrigava a ser estático. Sempre tive uma memória muito ruim. E diante das muitas coisas que se sucediam, nascia em mim a necessidade de me lembrar delas para conseguir coordená-las. E então sentia a impossibilidade de conter todas.

58 MNF 17/3/95 59 Chá SB 19/11/92 60 Chá PS 27/11/85 61 CSN 2/2/85

Daí uma espécie de susto de fazer muita coisa, mover muita coisa, e depois aquilo escapar de mim. E era preciso ter as garras prontas diante do que vai sucedendo. Na coisa estática eu me sinto à vontade. Sou enormemente estático. Lembro-me de reflexões assim em pequeno, olhando para a imagem do Sagrado Coração de Jesus: “Como Ele é parado! Sempre mostrando o coração, sempre na mesma disposição de alma, não variando, movendo-se num círculo pequeno. Como é uma coisa apreciável! Como eu o entenderia mal se Ele fosse agitado, se Ele fosse um homem de corre-corre!”. Ia até lá o meu gosto da estabilidade62 .

O feitio de meu espírito é um tanto dado ao pesadão. Conhecendo uma coisa e formando uma certeza, para essa coisa tenho uma memória de ouro e aquilo fica conhecido, marcado e feito. Eram então certezas muito firmes, muito definidas. E, tendo um gosto enorme pela estabilidade, em que não me vejo muito acompanhado pelas pessoas das gerações posteriores à minha: “Felizmente esta coisa ótima é assim. Estudei-a até onde se pode estudar e vi que tem toda a estabilidade de que uma pessoa ou coisa é capaz; e, portanto, é um bem firme e estável que está posto na minha vida. Posso fazer meus planos de navegação e de guerra, pois no lugar onde deixei tem esta árvore com flores e frutos”. Nisto entra uma espécie de gosto da certeza, da estabilidade, da continuidade, que vai de ponta a ponta. E isto se reflete nos meus hábitos. Rezo as mesmas orações. E depois faço o mesmo giro de automóvel que costumo fazer às tardes63 . No meu escritório, sento-me sempre no mesmo lugar, e o ritmo é do mesmo jeito. E quando vou a Amparo, os senhores sempre me veem sentado no mesmo lugar. Tenho assim hábitos de toda ordem, os quais formam padrões muito fixos e constantes, muito uniformes ao longo da vida, com poucas sensações, poucas surpresas, muitas previsões, muitos planejamentos e dente atracado no adversário. Sou muito fixo64 .

62 CSN 26/8/89 63 CSN 14/8/82 64 CSN 13/10/91

Não pude ter na minha vida o sossego que quereria ter tido. Mas apreciei muito o sossego que não tive. Examinei muito a vida das pessoas sossegadas e analisei profundamente o sossego dos outros. E arranjei um jeito de introduzir esse sossego nas frestas pequenas, mas bem cultivadas, da minha vida, onde esse sossego cabia. Sei que tenho um sono sossegado, um repouso sossegado, sei que tenho sossego até nas ocasiões em que outro se desassossegaria. Até mesmo nas horas de grandes apreensões, ainda aí, tenho sossego. Quer dizer, a vida que não pude levar por inteiro, eu a introduzi mais ou menos em aspectos de minha vida. E a minha vida não é isenta de sossegos, não é falha de sossegos: ela tem os seus sossegos. É assim que compenso o mundo de preocupações, de aborrecimentos e de outras adversidades que fazem cavalgata em torno de mim. São cavalos que tenho de cavalgar, corcéis medonhos e furiosos que tenho de segurar de cá e de lá como for possível. Mas o sossego está ali pelo meio entre outros estados de espírito65 .

Graças a Nossa Senhora, eu sentia muita facilidade em conservar a calma diante de algo muito apetecível, sendo que normalmente as coisas muito apetecíveis levam o homem a não querer depois as coisas menos apetecíveis. No entanto, havia um lado no meu temperamento pelo qual o sumamente apetecível me cansava quando durava um pouco mais. E tinha então vontade de voltar ao normal, sentindo no normal a apetecibilidade maior do que nas outras coisas muito apetecíveis66 . *

Fiz um esforço para degustar, em minha vida, todas as pequenas coisas que a Providência permite que existam em torno dela. Mas uma por uma. E degustar de tal maneira que era mais ou menos como se pela primeira vez a estivesse degustando. Assim, procurei várias vezes em minha vida deleites agradáveis, e várias vezes Nossa Senhora permitiu que os tivesse, e os senhores sabem que sou de uma natureza truculenta. Por exemplo, gosto de panoramas enormes, de coisas colossais. Se é para ver uma coisa, ver uma coisa magnífica, estupenda. Se é para ter um

65 RR 5/2/83 66 MNF 25/9/86

grande jantar, é qualitativa e quantitativamente um super jantar. Sou muito enfático em toda a minha pessoa. Quando as circunstâncias se apresentaram, degustei o que pude. Mas sempre compreendendo que, ou essa degustação não estancava em mim a degustação da normalidade da vida, ou ela estava me viciando. E que era preciso conservar esse frescor de alma no qual a menor coisinha produz uma satisfação, uma degustação, uma alegria. Do contrário nós estamos nos viciando e nos intoxicando com a nossa própria felicidade67 . *

A posse habitual da calma comporta um gosto parecido com o gosto de navegar em um canal largo, bem construído, num bom barco. Isto pode ser melhor do que navegar num mar agitado. Pode-se até gostar de navegar num mar agitado, não pelo gosto da agitação, mas pelo gosto do heroísmo. Este será então um gosto desapegado68 . A legítima fruição da vida parte do momento em que se ensinou ao indivíduo o deleite da calma. Quando ele compreende que a calma é o maior prazer da vida, ele compreendeu o que é a vida, e que a vida é uma partida que vale a pena ser jogada69 . Há duas escolas de felicidade. Uma é a escola desapegada que supõe não ter volições nervosas e contorcidas. Supõe também saber saborear o gosto de uma vida levada com muita calma, mas não com indiferença diante das coisas. Pelo contrário, é um gosto até com ênfase, mas sem certas caraminholas e certos apegos enfermiços, doentios, doloridos que acompanham o gosto que as pessoas têm pelas coisas habitualmente70 . *

Quando por uma razão qualquer não era possível ter um prazer maior, eu me acomodava ao prazer mais simples com muito frescor de alma e de muito boa vontade, e fruía intensamente daquele prazer mais simples, embora tivesse sido privado de um prazer maior. Isto estava ligado à inocência. Não é dizer que não gostasse das coisas excelentes: gosto mesmo! Por exemplo, eu tinha um primo que se tinha formado em Direto e os pais deram a ele uma viagem à Europa. E o acompanhei até Santos,

67 RN 8/8/75 68 CSN 2/2/85 69 MNF 25/9/86 70 CSN 2/2/85

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