5 minute read
Propensão para viver numa clave transcendente, aristocrática e grandiosa
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
onde ele embarcaria, porque naquele tempo toda a família acompanhava até o porto quem ia para a Europa. Conhecemos então o naviozinho alemão de classe turística no qual ele ia embarcar. Não era um grande navio, mas era um mimo: todo ele com boiseries, possuindo um bar magnífico com sanduichérrimos, pães pretos de perder a cabeça, butter em quantidade, licores, bebidas. De bebida nunca fiz muita questão, mas os rótulos me encantavam. E as estantes estavam cheias de bebidas. E comi nesse navio. Depois desci do navio e voltei para Santos, com a ideia de que provavelmente nunca poderia ir à Europa por falta de dinheiro. E à noite, ainda em Santos, eu jantava, não jururu, mas contente, no restaurante Marreiro. Entrava muito em tudo isto um gosto enorme pelo sossego, pela aprazibilidade das coisas, e a ideia de que qualquer coisa que se goste com agitação está mal gostado, que o sossego é o grande deleite da vida – logo eu, que tive uma vida tão desassossegada! – e que viver sem sossego não vale nada. Sustento que, do ponto de vista do tirar partido da vida, a primeira coisa é: procurem o sossego. Optei pelo sossego em todos os campos da vida71 .
Sei que, pelo favor de Nossa Senhora, tenho tomado atitudes muito corajosas ao longo de minha vida, atitudes quase temerárias, em que tenho jogado tudo. Mas no fundo do meu espírito existe muito do espírito securitário português, o qual me leva a pesar o pró e o contra até o último ponto. E em geral me resolvo só depois de tudo muito pensado, e levando em conta muito mais o temor do contra, do que o desejo da vantagem do pró. Quer dizer, muito mais em atitude de defesa do que em atitude de ataque72 .
Propensão para viver numa clave transcendente, aristocrática e grandiosa
Aqui no Brasil os senhores sabem que é muito comum encontrar pelos caminhos pedras que não têm nada de precioso, mas com um colorido
71 CSN 2/2/85 72 CSN 15/6/91
muito bonito. E, desde muito cedo, em passeios pelo campo, habituei-me a olhar essas pedrinhas e a catá-las. Minha ideia era: “Como seria gostoso morar dentro da pedra, e haver um ambiente que fosse todo ele da cor e da consistência daquela pedra, e onde pudesse respirar, onde pudesse ficar sossegado sem ter que falar com ninguém, nem ninguém falar comigo, e pondo meu temperamento nas condições da pedra, assimilando tudo quanto ela tem, por assim dizer esmeraldando-me, rubificando-me, safirizando-me, de maneira que algo daquilo, não sei, como que entranhasse em mim e me enriquecesse”. Aquilo era para mim uma história de fadas sem fadas, em que a fada era o puro ambiente, era a pura cor dentro da qual eu moraria, e dentro da qual, durante algum tempo, encontraria meu contentamento. Daí o meu gosto por esse tipo de pedras e meu êxtase quando descobri que os vitrais de algum modo proporcionavam isso. E depois, quando descobri que certos olhares indicavam que certas almas vivem numa como que pedra interior, ou numa água interior, ou num ar interior, e que metaforicamente elas habitam em algo ou algo habita nelas, numa ambientação interior que é como um líquido no qual elas existem e que traz fecundidade, força, serenidade, inspirações, voos que constituem uma espécie de redoma dentro da qual a pessoa vive. Esta ideia de viver em algo que não é o real, mas que poderia ser o real algum dia e no qual minha alma quereria viver, isto passou a constituir uma espécie de tendência frequente no meu espírito. Lembro-me de que certa vez fui jantar num restaurante ao longo do rio Arno, em Florença. Os italianos, com muito bom gosto, fizeram um restaurante quase como uma cidade lacustre, porque a maior parte dele não era em terra, mas em um tablado cravado sobre o Arno e tão perto da água que se ouvia o barulho dela correr. Neste restaurante, sentei-me em um lugar onde a prancha do chão estava meio rachada, e via o Arno passar por debaixo. A mim a água do Arno pareceu-me uma pedra líquida. Não era transparente como uma pedra preciosa, mas uma pedra opaca, de um verde que seria da cor de um azinhavre pouco escuro. Era como um rio de azinhavre correndo por baixo e que me dava uma impressão ultra deleitável. Então, era o rio Arno com sua história, correndo com aquela substância líquida, e eu jantando em cima. Ideia imediata: morar dentro do Arno. A essa ideia de um locus onde morar e no qual minha alma encontrasse toda uma realidade transcendente, correspondia à ideia do que eu chamaria de claves.
Porque não tardei a perceber que as coisas tinham claves. E que o mesmo objeto posto num lugar ou posto noutro, a mesma palavra dita por um homem ou dita por outro, a mesma fórmula de polidez dita por uma pessoa ou dita por outra eram como se fossem outra realidade. E que, portanto, em todas as coisas havia claves, e havia presenças deliciosas que punham clave em todo um ambiente: modos de tratar deliciosos que punham clave em todo um ambiente, e que todas as coisas podem ser vistas numa clave ou noutra, revelando de si mesmas aspectos que são estes ou aqueles conforme as pessoas as vejam73 . *
O que vem a ser “ter espírito”? Tomem, por exemplo, um tipo miserável, a lama da França, o tal de Jean Jaurès74 . Ele foi, entretanto, o autor da seguinte frase: “Para conversar bem é preciso ter espírito; para entender bem o que se conversa, basta ter inteligência”. É muito bem pensado o que ele disse. Fica designada certa realidade que é difícil exprimir em outras palavras, mas que neste dito aparece como inteiramente evidente. Depois de dizer que esse homem era a lama da França – é impossível ser mais truculento –, classifico sua frase como muito inteligente e de um feitio de inteligência muito agradável. Por que achei isso? Em que ponto de minha mentalidade se radica isso? Isto se radica no gosto pelas coisas aristocráticas. Porque é evidente que esse é um dito aristocrático. E ele, Jaurès, é a lama, mas o dito dele é de uma lama que foi pisada por muitos nobres. É uma lama aristocrática, evidentemente. Depois, é uma frase que tem o que há de intrinsecamente aristocrático no espírito francês. Não se pode negar. Ela tem um quê de bem percebido e de bem-dito como a lâmina de uma espada: aquilo entra no tema, resolve o tema e não tem mais nada a tratar sobre o caso. Está dito, portanto, o que é espírito75 .
73 SD 12/1/80 74 Jean Jaurès (1859-1914) foi um político, escritor e jornalista socialista francês, fundador do jornal “L’Humanité”, o qual se tornou mais tarde órgão oficial do Partido Comunista
Francês. 75 Chá SRM 2/7/91