4 minute read

Propensão para a reflexão, a seriedade e a gravidade

Next Article
ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

Menciono agora outra graça de Nossa Senhora. Não me refiro àquilo que todos nós recebemos, que é a Fé Católica e as demais graças que Nossa Senhora dá a todo católico, a todos aqueles que são chamados para a Igreja. É outra coisa: o amor à grandeza, quer dizer, amor aos grandes horizontes, às grandes almas, aos grandes feitos, aos grandes ambientes, às atmosferas grandes e em geral a tudo quanto é grandioso. Isto se explicitou em mim com o tempo, por exemplo, quando tomei conhecimento da Revolução Francesa. Não nasceu apenas o ódio à Revolução, mas o amor à grandeza. E quando abri mais ainda os olhos para a Idade Média, esse amor à grandeza chegou ao seu requinte76 .

Propensão para a reflexão, a seriedade e a gravidade

Sou espontaneamente refletido. O fato de pensar em tudo quanto faço me é natural desde pequeno. Mas não sou uma pessoa afetada, que estudou tal gesto. Essas coisas me são naturais77. E todas elas têm um fundo de doutrina78 .

Também em fotografias minhas em pequeno, noto que já estava observando ou fazendo raciocínios, sendo que, antes de raciocinar, eu observava muito. As observações não eram explícitas, eram implícitas. E vinham às vezes acompanhadas de perguntas que deixavam mal à vontade a pessoa em foco. Dona Lucilia intervinha pressurosamente para remediar a minha indiscrição. Essas perguntas indicavam a mesma precocidade: a ocorrência, na extrema infância, de um começo de uso da razão79 . *

76 CSN 13/10/91 77 Chá SRM 9/2/95 78 Chá SB 18/8/88 79 MNF 11/11/94

Quando vi a vida, no primeiro olhar percebi que ela era séria. E amei a seriedade logo que a vi. Gostei das coisas sérias. E nunca fui menino de saber dizer coisa engraçada. Fui um menino de gostar de pensar, de estar muito tempo sozinho, pensando nas coisas como são, ordenando. E isso me dava alegria80 . Gosto muito da seriedade. Faço questão de ser sério, porque acho que integra a minha personalidade de católico. E tenho a noção de estar mais consonante com o Sagrado Coração de Jesus assim. Fabrico em torno de mim uma atmosfera de gravidade em que possa respirar. Mas brincadeira, por exemplo, os senhores não me veem fazer. Posso fazer um pequeno gracejo na intimidade, uma vez ou outra. Brincadeira não. É muito pouco, uma coisa muito pálida, e é por condescendência. Brincadeira não tenho vontade de fazer81 .

A Providência é tão boa para conosco que Ela nos favorece pelo que Ela dá e pelo que não dá. Cada um de nós que nasça com uma lacuna, deve amar essa lacuna, desde que, evidentemente, não seja uma lacuna moral. Isto porque, dando aquela lacuna, a Providência de Deus teve o intuito de nos dar em troca algo mais. Desde pequeno, sempre notei que meu espírito era um tanto lento para replicar. Quer dizer, se uma pessoa me fazia uma brincadeira, eu levava algum tempo para compor a réplica oposta. Como não tinha nada do espírito cômico, nem sabia responder com algo cômico uma outra coisa cômica. De maneira que, vivendo em um ambiente de falta de seriedade, sentia-me desarmado, o que me facilitou perceber todo o mal da falta de seriedade. Agradeço a Nossa Senhora de ter-me dado essa lacuna, porque me defendeu contra um mal muito maior, que seria o mal de me entregar à falta de seriedade. É possível que, com uma tal ou qual facilidade que tenho de compreender as coisas, se aprendesse a brincar, eu faria brincadeiras bem-feitas. E arranjaria para mim um lugar de honra no mundo dos brincalhões, ou seja, no mundo da desonra. Essa cátedra eu não quereria ter para mim de nenhum modo. Mas podia ter embarcado nisso.

80 Chá SRM 18/10/87 81 CSN 19/3/88

Agora, mil vezes senti o papel que faria raciocinando seriamente no mundo dos brincalhões. Seria visto como pesadão, sem graça, desmancha-prazeres, porque o que se queria era outra coisa. E mil vezes fiz a crítica interna, como um menino pode fazer, do que isso tinha de injusto e de estúpido. De maneira que isto me formou muito para a seriedade. Dona Lucilia também tinha a mesma lacuna. Vendo nela como era belo ser sério, isto ajudou-me muito82 . *

Durante o meu tempo de menino, no meu tempo de mocinho e até o meu tempo de moço, sentia em mim, de vez em quando, uma espécie de mudança de clima interior, e nessa mudança de clima interior, uma vontade tremenda de me apalhaçar, uma vontade enorme de me pôr na posição de um moleque, e de gozar da coisa chula e banal. E enquanto chula e banal, sentia uma como que mudança de todos os humores dentro de mim. Tinha então a impressão de que toda a minha concepção da vida e das coisas instantaneamente variasse, e quase todo o meu dinamismo, minha vitalidade mudasse, e sentisse um ar livre e uma verdadeira delícia em ser o contrário do que era. Eu resistia a isso pelo favor de Nossa Senhora. Depois sentia que isto passava e voltava ao meu equilíbrio. Percebia isso em crianças que estavam brincando, fazendo por exemplo um jogo ordenadamente, e de repente entrava nelas uma vontade de escachar com o jogo, de arrebentar com tudo, de pôr a língua para os outros, de fazer uma molecagem, de pôr tudo de pernas para o ar e fazer um desengonço de tudo. Naquela hora eu observava que aquela criança passava pelo estado de espírito que de vez em quando me atraía e tinha a impressão de que isto percorria como eletricidade várias crianças que estavam ali em volta. E que, se essas crianças atendessem a esta eletricidade, alguma coisa delas lhes conferiria um domínio e uma possibilidade de maltratar quem não era assim, que era uma coisa meio irresistível. Depois aquilo cessava aos poucos e desaparecia83 .

82 Chá PS 29/4/85 83 RN 20/1/71

This article is from: