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Propensão para a lógica e a clareza de expressão

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

Propensão para a lógica e a clareza de expressão

Tenho uma propensão para a lógica e uma facilidade para raciocinar, para dispor as coisas logicamente. Na disposição temperamental que descrevi nos itens anteriores, a lógica aparece com força de convicção, com garra e com uma evidência de manifestação da verdade. Nessa posição temperamental, as premissas se põem tão claras, tão imparciais, tão limpas, tão objetivas, que as conclusões são como alicerçadas sobre rochas. E daí a facilidade de formar muitas certezas sem esforços sobre-humanos. De onde uma lógica muito grande, procedente dessa placidez de temperamento, mas chegando à dedução de ferro de que simplesmente ceder a essa placidez seria uma indecência. Há ocasiões em que, o que estou eufemisticamente chamando de placidez, é na verdade preguiça, indolência, negação do valor das coisas e no fundo uma displicência budística. Daí a necessidade de reagir, de deitar força, arrancando essa força de si mesmo custe o que custar, até às últimas consequências, para cumprir o dever. É a consequência dessa lógica. Temos então a lógica empenhada em arrancar e impor ao meu temperamento aquilo que é o mais difícil para o preguiçoso: um estado de mobilidade contínua, em que a qualquer momento ele esteja disposto a qualquer esforço, por maior que seja, por mais contrário ao seu temperamento que seja, desde que a lógica mande que aquilo deva ser feito. O que não for isto – repito – é uma indecência. Daí nascer uma força que é plácida, como plácido é o temperamento, mas que é ao mesmo tempo implacável, porque a lógica de si é implacável. Fazemos o raciocínio, estamos certos de suas premissas, está certa sua conclusão, aquilo tem que ser obedecido sob pena de ser uma indecência. Qualquer que seja o sacrifício, é preciso fazer, e tem de fazer, e não tem remédio. Isto é outro aspecto da truculência, que é também, de um lado, chegar às últimas consequências contra a preguiça, a indolência, a displicência. E de outro lado, chegar às últimas consequências no cumprimento do dever, pegando a preguiça pelo gasnate e obrigando-a a se transformar numa mobilidade disponível a todo momento, e pronta para qualquer coisa. Se os senhores tiverem o mau gosto de prestar atenção no meu modo de ser, encontrarão traços do que estou dizendo em muitas atitudes, deliberações, ditos, palavras e resoluções que tomo. Não me explico bem como é que, de tanta moleza, nasceu essa energia implacável. Sou levado a atribuir a uma ação da graça.

No meu caso concreto, uma coisa dessas não se explica sem uma interferência gratuita de Nossa Senhora, que não procedeu de mim e não tinha em mim nenhuma razão de ser, mas que estava na bondade d’Ela conceder-me. Ela deu porque quis dar, e deu-me forças para receber. E que, por esta forma, passou a ser a constituição do meu temperamento atual. Agora, isto é um lado da questão. Outro lado é a inocência. A minha inocência era muito cândida, muito juvenil, muito alegre, tinha força, e me levou a ser um homem lógico e gostando das últimas consequências. *

Nisto tudo se denotava uma integridade de alma, que em mim era uma disposição – não sei se natural ou em algo sobrenatural – vinda do meu tempo de menino, da minha primeira infância, e que era uma espécie de paixão pela lógica: “Seja claro, pense claro, e chegue a um raciocínio que é um raciocínio que convença a você e aos outros. Raciocine, vamos ver” 84 . Eu era muito amigo de tudo quanto é harmonia, de tudo quanto é coerente, lógico, como uma forma de ideal e de bem-estar do espírito. Tudo quanto era ilógico me deixava mal à vontade, tudo quanto era lógico me trazia uma alegria santa85 . Aprender a lógica não me custou nada. Via os mais velhos conversarem – porque os da minha geração preferiam jogar futebol –, pegava os trechos mais interessantes da conversa e ia ver como era a lógica86. Quando via alguém fazer em minha presença um raciocínio bem feito, ainda que eu não concordasse com a conclusão, ficava encantado: “Olha que coisa formidável armar um raciocínio! Quando for mais velho, armarei muitos raciocínios, porque é uma beleza! Olha aquele pobre coitado: está encostado na parede porque esse de cá armou um raciocínio e ele ficou sem ter o que dizer. Que coisa esplêndida!”87

Lembro-me de que – isto que vou dizer é propositalmente exagerado – nos meus primeiros vagidos, de vez em quando aparecia um raciocínio lógico, montado logicamente e com toda a força da lógica.

84 Chá SRM 18/9/94 85 Chá RM 8/5/89 86 Chá SRM 28/10/91 87 Chá SRM 6/1/94

Percebia que aquilo constituía uma qualidade de pensamento com outra força, outra capacidade de demonstração, proporcionando na ponta da lógica uma evidência, e a posse desta evidência era um tesouro extraordinário. Então, de vez em quando, no meio de cogitações de menino, essa lógica aparecia mais ou menos como um líquido grosso que está se solidificando, mas que já começava por solidificar-se em pequenas partes da massa líquida. Lembro-me, por exemplo88, da história de Herr Kinker, um alemão dono de uma pensão em São Vicente onde passávamos uma temporada. Mamãe foi tratar de qualquer coisa e em certo momento desapareci. Ela não sabia onde eu tinha ido parar. E começou então a me procurar. Fora chovia torrencialmente. Ela chegou maquinalmente no terraço, olhou para o jardim e viu-me sentado bem no meio do canteiro dizendo: “Isto é uma injustiça89 , eu não fiz mal a ninguém”. Era uma referência a Herr Kinker, o qual, meio tomado pela bebida, havia-me posto de castigo ali. O meu raciocínio era este: só se faz mal a quem fez mal, porque quem não fez mal não merece castigo. Isto era um princípio geral. Ora, eu não fiz mal a ninguém. Conclusão: eu não deveria estar ali, esse homem estava sendo injusto comigo. No fundo, eu estava estranhando um princípio violado. Nem sequer pedia para falar com mamãe. Seria a coisa tão natural se eu gritasse: “Mamãe, mamãe!” Seria até a reação frequente em meninos nessas circunstâncias90 . Ela foi correndo me pegar, secou-me bem e depois perguntou-me o que havia acontecido. Então contei para ela que Herr Kinker tinha, não sei por que, se zangado comigo, levou-me para fora e disse-me que eu tinha obrigação de ficar sentado naquele canteiro até que ele viesse chamar-me. Como ele era mais velho, achei que ele, dando a ordem, eu deveria obedecer, mas ao mesmo tempo protestando que não tinha feito nada. Neste episódio vemos o respeito ao princípio de autoridade, não indo embora; mas de outro lado, também não aceitando como legítimo o que ele fez, e daí ficar falando alto e protestando alto e afirmando meus direitos. Fui injustiçado, reclamo; mas, de outro lado, não me revolto: sento-me debaixo do castigo, deixo o castigo chover em cima de mim, mas dizendo: “Não está direito91, eu não fiz mal para ninguém”.

88 MNF 11/11/94 89 Chá SRM 16/3/92 90 Chá SB 22/5/91 91 Chá SRM 16/3/92

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