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Correlação entre o apetite mental e o apetite físico, entre a vontade de saber e a vontade de comer

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

Correlação entre o apetite mental e o apetite físico, entre a vontade de saber e a vontade de comer

A heresia branca205 tentou constituir uma imagem da virtude segundo a qual o homem virtuoso teria de ser um dispéptico, sem fome, sem sede, sem gosto de nada daquilo que torna a vida humanamente agradável, e no fundo sem civilização. Ora, essa não é a verdadeira figura do católico206 . Por exemplo, a gastronomia. Acho que a gastronomia, como tudo que o homem faz, é susceptível de ser vista de uma grande altura, dependendo do homem que a manuseia. Há uma escola de gourmets, quer dizer, daqueles que gostam da qualidade da comida mais do que da quantidade, que sustenta que a verdadeira gastronomia não consiste principalmente no preparar sabores fortes e apreciá-los, mas no preparar sabores delicados e cheios de pequenos matizes e entendê-los. Eu já acho que a perfeição da gastronomia consiste em ter a capacidade de apreciar uma coisa e outra. Esses são os pontos em que devemos ser ecléticos, e que o ecletismo dá uma síntese verdadeiramente de valor207 . *

Também o apetite mental deve ser como o apetite físico. E o bom dele é que nutre. Um apetite vacilante, trêmulo, que se exprime numa consulta feita com voz bamboleante e tímida, isso é uma forma de inapetência do espírito, que é uma expressão da indefinição.

205 Dr. Plinio qualificava de heresia branca a deformação da espiritualidade católica que consiste em manter a ortodoxia em matéria teológica (por isso, não é heresia “negra”, mas “branca”), mas aceitando plenamente a Revolução nas tendências, tanto no seu veio igualitário quanto no seu veio liberal. Assim, uma pessoa afetada por essa deformação espiritual tem total desinteresse – quando não, verdadeira ojeriza – por tudo aquilo que na religião fala de grandioso, de maravilhoso e de sacral – é o seu aspecto igualitário.

Concomitantemente, põe em surdina o caráter militante da Igreja e da espiritualidade católica, rejeitando a luta, a vigilância, os anátemas etc. e julgando que todo o mundo é bom e que basta sorrir para atrair as almas para o bem – é o seu aspecto liberal. Daí resulta uma religiosidade fideísta, na qual a razão não desempenha nenhum papel, e uma piedade egocêntrica, introspectiva, adocicada e sentimental. Exemplo de heresia branca são as estátuas, quadros e imagens (“santinhos”) representando os santos no estilo da escola artística “sulpiciana”, da segunda metade do século XIX (assim chamada por causa das lojas de artigos religiosos na vizinhança da Praça de São Sulpício, em Paris). 206 Chá PS 12/11/90 207 RR 5/4/69

A falta de vontade de saber não é uma recusa de saber, mas é uma falta de vontade no sentido de que “não me importa saber; importa-me mais uma mente pouco organizada, de apetites pouco varonis, pouco decididos e que entram pouco dentro da matéria”. É como quem pega a comida com a mão mole e mastiga com boca mole, olha com olhos bambos e digere mal. Isto não é comer, isto não é aprender, isto não é estudar208 .

Gastrônomo de surpreender antes de adoecer de diabetes, vindo esta, sobre este gosto caiu um cutelo parecido com a lâmina da guilhotina. Quer dizer, pão e tudo quanto é feito com farinha, batata, arroz, coisas desse gênero, pro-i-bi-do! Massas, proibido. O que era permitido? Tudo aquilo de que eu não gosto, de que não faço questão. E é para mim um verdadeiro alívio poder ir a um restaurante e comer uma coisa boa lá, quando o permite a balança. Por efeito da diabetes, o diabético tem certa vontade daquilo que lhe faz mal. Ele tem tendência habitualmente a comer demais açúcar. Não tenho. Mas a farinha, o pão me faz uma falta enorme. E eu tenho a tendência a ir ao restaurante para comer alguma coisa de farinha, também para saciar a fome. Mas faço com tanto cuidado para não prejudicar minha saúde, que eu me peso todos os dias, para ver como é que está o peso, para não subir além de tanto. Mas é para mim um prazer intelectual, um prazer que tem algo de moral. Isto posto, há o perigo de algum dos senhores abusar do que estou dizendo e pensar o seguinte: “Minha vocação é de me empanturrar, é de levar uma vida de folgazão”. Julgo que dou exemplo de uma pessoa que trabalha e se sacrifica de todo jeito possível. Eu não teria o direito de dar o exemplo do bom garfo, assim mesmo sacrificado por uma dieta bárbara e vivendo numa fome de mendigo, sem que nunca os senhores tenham ouvido dizer que minha saúde sofreu prejuízo porque eu violei minha dieta209 . *

Mas, se eu não fosse obrigado a esse regime alimentar, passando por um lugar onde se serve uma boa refeição, sendo a hora de comer e valesse a pena comer, eu pararia e comeria.

208 RN 1/12/70 209 Chá PS 12/11/90

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