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Correlação entre o prazer do corpo e o prazer da alma, entre a sede física e a sede metafísica
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
Os senhores nunca me viram comer uma coisa fora de hora. Comer por mera gula, não. Mas se é hora de comer, escolhe-se com jeito o melhor lugar e se organiza a ida. E se tem que mandar um automóvel pegar, manda, porque é hora de comer. Este é um apetite definido e organizado. O apetite da criança e o apetite do doente não é o apetite do homem maduro, que tem apetite de fato, como é o meu caso210. E eu conservo o apetite de alguns dos mais truculentos dentre os senhores211 .
Correlação entre o prazer do corpo e o prazer da alma, entre a sede física e a sede metafísica
Analiso a comida inclusive pelo seu significado psicológico, e sei que, comendo uma boa comida – não se espantem com o jogo de palavras –, como virtude e saio da refeição melhor do que entrei. Uma coisa que entra nessa linha é o ar. O bom ar de si é uma delícia. E quando respiro o ar bom e saudável, vejo que há uma relação disso com o prazer de minha alma quando leio trechos da Suma Teológica212 . *
De tudo o que eu disse, vê-se que há uma relação entre a minha vida interior e o meu prazer culinário213 . Considerem o salmo “Sicut cervus desiderat ad fontes aquarum” – “Assim como o cervo vai à fonte das águas, assim a minha alma deseja a Vós, meu Deus”. Deus mata a sede que nós temos d’Ele. Logo, entre uma sede e outra sede há uma relação. E entre a sensação física que a água dá, de um lado; e de outro lado o élan da alma para com Deus; e entre a sede saciada e o saciar-se de Deus na visão beatífica, sendo que de Deus ninguém se sacia, há uma correlação estabelecida pela própria Revelação. É muito delicado estabelecer qual é esta relação. Só sei que esta relação existe, mas não consegui ainda a definir, apesar de eu ser não só um
210 RN 1/12/70 211 Chá SB 19/2/81 212 CM 16/3/86 213 Chá SRM 25/11/91
gastrônomo velho, mas um velho gastrônomo, e ser muito exigente em matéria de coisas aprontadas e bem apresentadas. Por exemplo, há uma bebida feita de amêndoa chamada orchata. Não gosto de amêndoa, mas gosto enormemente de orchata, como gosto muito de doces ou coisas assim feitos com aquele gosto de orchata, portanto, com certa amêndoa. Se puserem a amêndoa inteira no doce, eu detesto; mas se puserem aquele elemento degustativo da amêndoa num determinado gosto, eu aprecio. *
Quando fui com meus familiares à Alemanha, ficamos em um hotel chamado Fürstenhof. Isto se deu antes da I Guerra Mundial, e tudo, portanto, era muito mais solene do que se tornou depois com a influência hollywoodiana. Nós, a criançada da família que estava lá, jantávamos na sala de jantar das crianças, e eu observava com muita curiosidade como era a sala de jantar dos mais velhos. E, tanto quanto uma criança de quatro anos pode calcular, eu achava uma sala solene, bonita, gostava muito. Em certa hora vi, não mamãe, que estava hospitalizada, mas os outros membros de minha família, entrarem na sala de jantar em cortejo, de braço dado homem com senhora. Nunca o marido com a mulher, mas alternavam, o que não era bom, mas era como faziam naquela época, o uso era assim. Senti que tudo aquilo pairava enormemente acima do pobre mundo das crianças. E compreendi que o mundo deles era destinado a ser nosso, porque nós éramos o futuro. E que, portanto, quando nós ficássemos grandes, também nós desfilaríamos assim, faríamos cortejos assim e iríamos frequentar salas daquelas. Só que, com a proclamação das repúblicas, tudo isso desapareceu e se degradou. Às vezes serviam uma espécie de doce com uma forma muito bonita, meio parecida com a torre de um castelo e com gosto da orchata. Eu então relacionava essas coisas e compreendia que aquele gosto da amêndoa simbolizava muito bem um elemento daquela solenidade, sem eu saber dizer exatamente qual era. Depois voltei para o Brasil, perdi a pista da orchata, mas isto não se apagou da minha memória. Aqui me davam amêndoas para eu comer, mas amêndoa que descascam e deixa uma espécie de pastilha branca em um contato desagradável com a língua. Portanto uma coisa muito recusável, e eu recusava a amêndoa. Foi só depois de homem feito, indo na década de 1950 à Europa, que me ofereceram orchata na Itália, e eu disse: “Olhe aqui o gosto do Fürs-
tenhof!” Eu tinha então uns quarenta e cinco ou cinquenta anos. E a partir daí eu restabeleci o meu contato com o mundo das amêndoas. Agora, para daí subir até Deus há um outro passo. Subir até à alma humana, subir até as instituições é uma coisa; subir até Deus é um outro passo. Assim em algumas coisas: subir até Deus é muito difícil. A Contra-Revolução deve explicitar isto no Reino de Maria214. Mais ainda: a verdadeira gastronomia deve ir à procura de coisas dessas.
214 Ao longo da presente compilação, veremos diversas vezes Dr. Plinio empregar a expressão “Reino de Maria”. Esta expressão ele a colheu do grande santo francês São Luís
Maria Grignion de Montfort (1673-1716), em seu famosíssimo “Tratado da Verdadeira
Devoção à Santíssima Virgem” (Vozes, Petrópolis, 1998, 25ª ed.).
Cabe esclarecer que somente Deus, como Autor de todas as coisas, por sua própria essência tem a realeza universal sobre todas as criaturas, que Ele governa para conduzir ao seu fim. Mas Jesus Cristo e Maria Santíssima participam dessa realeza universal. Pela união hipostática ao Verbo divino, Jesus Cristo homem é Rei do universo. Pela condição de Mãe de Deus, Maria participa conaturalmente da Sua realeza universal.
A tese segundo a qual Nossa Senhora é Rainha no sentido próprio e formal do termo, embora não sendo ainda definida de fide, pode considerar-se teologicamente certa. Ao estender a toda a Igreja o culto ao Imaculado Coração de Maria, Pio XII reafirmou que os fundamentos da realeza de Maria são sua Maternidade divina e sua participação em toda a obra redentora de seu Filho (Encíclica Ad cœli Reginam, de 1944).
Ora, o Reino de Maria não é diferente do Reino de Cristo, no sentido de que Nossa Senhora tem os mesmos súditos e desígnios. Logo, seu reinado não pode ser exclusivamente espiritual, mas deve ter também uma dimensão temporal, por um motivo análogo ao invocado por Leão XIII e Pio XI para justificar a realeza social de Cristo: “Os homens não estão menos sujeitos à autoridade de Cristo em sua vida coletiva do que na vida individual” (Encíclica Quas Primas, de 1925). E é por isso que, após instituir a festa de Maria Rainha e ter ordenado renovar cada ano a consagração do gênero humano ao Imaculado Coração de Maria, Pio XII declarou colocar neste gesto “grande esperança de que possa surgir uma nova era, alegrada pela paz cristã e pelo triunfo da religião” e afirmou que “a invocação do Reino de Maria é (...) a voz da fé e da esperança cristã” (Discurso de 1° de novembro de 1954).
Esse futuro reinado de Maria, que a razão e a fé indicam, foi previsto por muitos santos e, em particular, como dissemos acima, por São Luís Maria Grignion de Montfort, que, no “Tratado da Verdadeira Devoção” fala de um “feliz tempo em que Maria Santíssima será constituída Senhora e Soberana dos corações” e, através dos corações e das mentes dos homens, reinará na sociedade.
O Reino de Maria não é, portanto, senão o triunfo da Igreja e o apogeu da civilização cristã. Este triunfo é necessário na História para permitir aos homens, que têm uma natureza sociável, dar a Deus, já no tempo, toda a glória que os anjos e bem-aventurados Lhe rendem na eternidade. É o que Jesus nos ensinou a pedir no Pai-Nosso: “venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu”.
O Reino de Maria será a época mais brilhante da História. Mas também esta, depois de uma fase de esplendor, conhecerá a decadência, o pecado e o castigo divino. Este castigo será o Reino do Anticristo e o fim do mundo, que culminará com a Parusia, ou seja, a segunda vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo para julgar os vivos e os mortos.
Comida popular, por exemplo. Há certo equilíbrio que eu procuro manter entre a plebeidade pela qual todo o homem é homem, e o aristocratismo pelo qual o homem se angeliza um tanto, de maneira a não perder nenhum dos dois elementos. Ter o pé no chão e saber compreender o valor e o sabor da coisa popular, tonifica certo elemento do nosso próprio equilíbrio. Se ficarmos só nas coisas aristocráticas, não vai. Por outro lado, ficar só na coisa popular também não vai. Então, é preciso saber voar assim: comer vatapá, cuscuz e essas comidas populares brasileiras, e depois subir para o éter. Ou seja, comer da comida popular, aliás de qualquer lugar do mundo, eu gosto muito, comer um prato ou dois. Mas de vez em quando emergir também. É o modo de ser de cada um215 .
O gosto que eu tenho por estas coisas se relaciona com a literatura infantil alemã, que é muito sugestiva. Essa literatura dava-me o gosto pelas coisas que não têm nada de sensualidade; têm o prazer inocente da vida e faz a pessoa ter a alegria do dever cumprido. Ela realçava sempre o indivíduo que cumpriu o dever, que depois teve, ato contínuo, o prazer da consciência limpa, e logo o prazer do estômago cheio. A Fraülein Mathilde216 dava literatura infantil assim, e eu a lia e me regalava. Resultado: chegava na hora de comer, o apetite era enorme; na hora de beber, a sede era colossal; na hora de dormir, o prazer de se deitar. O homem que degusta pães alemães degusta uma coisa pesada, que vai quase que o agredir, mas ele tem as reservas dele preparadas para a contra-agressão e então se trava uma guerra.
(Para uma explicação mais detalhada sobre este tema, ver Roberto de Mattei, “Plinio Corrêa de Oliveira, profeta do Reino de Maria”, Ed. Artpress, São Paulo, 2015, p. 405-445). 215 Chá SRM 26/11/91 216 Fraülein Mathilde Heldmann foi uma preceptora alemã nascida em Regensburg, a qual havia sido contratada para educar filhos de casas aristocráticas europeias, e que fora trazida por Dona Lucília quando a família voltou da viagem à Europa em 1912. Dela disse Dr. Plinio: “Tenho a alegria de mencionar com saudades, com respeito e com afeto o nome dessa grande educadora: era uma bávara de Regensburg, Fraülein Mathilde
Heldmann, que me ensinou o alemão, o francês e o inglês, porque ela era uma verdadeira poliglota. E me deu certo gosto de estudos; ela só fracassou no intuito de me ensinar as matemáticas, me dar o gosto das matemáticas. Às matemáticas e às ciências naturais, meu espírito nunca se voltou ao longo de minha vida” (Êremo Praesto Sum, 1/6/82).