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Aspiração pelo mundo angélico e pelos horizontes da Fé
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
meu ser inteiro tendia para isto, e que as harmonias internas do meu ser eram também assim. Com isto, eu me sentia voltado para toda espécie de virtude e para toda espécie de ordenação. Era o próprio caminho das coisas, mais ou menos como uma pessoa que sai de um quarto confinado e chega ao terraço e respira um ar bom. Assim era eu perante essas coisas. E esta era a mola-mestra dessa operação de espírito, porque era um conhecer amoroso e um amor cognoscente. Por algo que hoje sou levado a achar que era uma ação da graça, eu via todas as coisas numa linha de perfeição quiçá superior à própria natureza delas, e que não era senão um reflexo de uma perfeição eterna, absoluta. Aqui está o élan fundamental da arquetipização. Fundamentalmente sou isto283 .
Aspiração pelo mundo angélico e pelos horizontes da Fé
Eu não saberia determinar exatamente quando comecei a pensar sobre o tema anjos. Lembro-me, isto sim, de que a certa altura, depois de ter ouvido falar de anjos, pensei o seguinte: “Certas impressões, certas sensações de harmonias que me vêm ao espírito, são tão, tão bonitas, que mais podem ser comparadas ao que estão me contando a respeito dos anjos, do que ao que vejo em torno de mim. E delineando-se assim, diante de mim, uma ordem do ser particularmente nobre, particularmente bela, como eu gostaria de me privar com os anjos, viver no meio deles! Certos aspectos de minha alma, não todos, se sentiriam bem entre eles”. Logo depois vinha-me uma dúvida: “Cuidado! Você não vê nenhum padre, nenhuma autoridade eclesiástica pensar assim a respeito dos anjos. E você deve em tudo seguir o ensinamento dos que representam a Igreja, mais do que seguir a sua própria cabeça. Tranque o assunto e não pense nele, senão você vai divagar. E ponha o assunto ‘anjos’ num meio silêncio, porque é assim que ele é tratado pelas pessoas seguras, dignas de respeito e que, sobretudo – qualidade das qualidades – representam a Santa Igreja Católica Apostólica Romana”. O fato é que este assunto ficava soando no meu espírito como uma espécie de melodia. E quando eu pensava nele, essa melodia tocava mais alto. Isto foi assim até que, homem já feito – não sei bem com que idade e nem a que altura dos acontecimentos –, dei-me conta de que havia muitos ensinamentos a respeito dos anjos em livros ultra-aprovados pelos mestres
283 CSN 8/4/87
daqueles a quem eu venerava, daqueles cuja dignidade venerava, mas que não divulgavam essas coisas porque não queriam284 . *
Na minha primeira infância eu percebia com facilidade que as coisas bonitas, louváveis, virtuosas que eu via em torno de mim, correspondiam, em algum lugar do universo, a algo de outra natureza e de uma beleza muito maior, muito mais magnífica, e que era o píncaro do que eu entrevia naquele gênero. E então, olhando para aquilo, eu sentia uma como que sinfonia quase auditiva, composta de mil tons, de mil harmonias de cor – o universo das cores sempre representou muito para mim –, de mil harmonias de encantamentos que representavam, no fundo, estados de alma. Recordo-me, por exemplo, de um determinado azul pastel que havia em um papel de parede no meu quarto de dormir. Enquanto desenho, ele até representava pouco, mas eu fixava, eu prestava atenção nesse azul. E ficava com a ideia de que, alhures, havia alguma coisa de que esse azul pastel era uma mera analogia, e que essa coisa era inundada de harmonias sonoras e musicais, inundada de alegria, de felicidade, de uma santa inocência, de uma pureza, de uma retidão e de uma bondade completas. Julgava que, se não se conversava sobre isto, era porque não havia linguagem humana que tivesse palavras para expressar esta realidade, e que todo o mundo via assim e sabia que era assim. Percebia, portanto, uma coisa que, com o auxílio da doutrina católica, cinquenta anos depois eu iria explicitar que se tratava do mundo angélico, reflexo muito mais próximo de Deus do que somos nós mesmos. O mundo angélico reflete coisas dessas de Deus, e tem correlação com a terra. De maneira que, olhando-se certa coisa, pode-se ter um certo conhecimento do anjo “y” que representa aquilo, mas já em estado espiritual, e do qual a sensação cromática material dava uma imagem. De onde também a ideia de uma ordem nesta terra que espelhasse do modo mais exato possível essa síntese de maravilhas285 . *
Em pequeno, eu ia muito a uma estação de águas termais, chamada Águas da Prata, perto de Poços de Caldas.
284 Chá SB 4/12/80 285 CSN 30/6/90
Quase colada ao hotel onde eu me hospedava, havia uma montanha muito abrupta e que a mim, menino, parecia muito alta. E eu me sentia meio afrontado e meio esmagado por essa montanha, porque era por demais próxima. Em parte, por me sentir meio esmagado por ela e em parte porque eu a admirava muito, eu tinha vontade de me pôr em ordem com ela, galgando-a. Então, o galgar a montanha seria um modo de eu realizar a seguinte operação de espírito: “A montanha é sublime na sua altura; e conhecerei essa sublimidade e a incorporarei ao meu espírito quando eu chegar ao pico e, por assim dizer, for familiar com os ares e os horizontes que o pico vê”. Sabia que o pico não vê nada e não pensa, mas há uma coisa qualquer que funciona como se um anjo, um espírito, uma presença espiritual qualquer estivesse ali, de maneira que, subindo ali, eu me poria em conexão com essa presença espiritual, e poria dentro de minha alma uma coisa que só quem galgou esses píncaros pode pôr. O alto panorama produz um efeito psicológico sugestivo. Ele sugere altas presenças espirituais que vivem da sua felicidade interna, que não precisam nem construir nem viajar; elas têm o permanente gáudio próprio ao alto da montanha. Ficava-me então a ideia de que havia, assim, mil presenças espirituais muito maiores e muito mais inteligentes do que o homem, com as quais se podia entrar em contato. E que se dava uma comunicação, um convívio, um aumento da alma cada vez que ela se punha em altos panoramas ou em panoramas especiais: as curvas de um rio, uma queda d’água, o rumor e o prateado de uma cascata e outras coisas assim. Tudo isto me puxava para fora da vida normal e eram os horizontes da inocência. Em outras palavras, havia nisto sugestões para os temas da inocência, os quais levavam desde logo para algo que, explicado pela Teologia, conduzia ao celeste, conduzia ao angélico e suporia almas que nós sabemos que são os anjos. Sustento que, nessas coisas tão simples como as impressões de um menino inocente que passeia, se chega à consideração de um mundo arquetípico que reluz por detrás deste mundo, e que é o ponto último até onde nossa alma deve chegar. Quando, depois, eu via fotografias de castelos medievais com suas torres, eu experimentava a mesma sensação que a da montanha de Águas da Prata, entretanto com algo de mais vivo: é que almas humanas, que também tinham frequentado alturas, e que tinham gostado tanto das alturas onde coisas dessas se veem, que elas haviam até construído alturas parecidas com
essas. E, vendo as fotografias, eu me sentia convidado para uma sociedade humana toda voltada para o mundo angélico. Ficava então encantado com as torres, imaginando, no mais alto dessas torres, um quarto onde eu pudesse morar, e num castelo cheio de gente. Morar na proeza de uma montanha – porque a montanha é uma proeza para o homem – e nos ventos cheios de proeza de uma montanha, e com aqueles homens e aquelas gentes, já era colocar o meu feeling de menino inocente num termo intermediário, que era o castelo e uma sociedade humana, ou seja, a Idade Média, o Reino de Maria, em que os homens teriam a alma voltada para tudo isto, e em que eu me sentiria completado com os meus coirmãos assim. Mas vinha-me uma questão: “Vejo bem que, das pessoas que me cercam, ninguém gostaria de morar numa torre dessas de que eu gostaria. O fato é que houve um tempo em que os homens fizeram torres e nelas moraram, e construíram casas no alto das montanhas. Houve tempo em que as almas eram assim e depois deixaram de ser assim. Eu então andarei pela terra à cata de almas assim. Porque viver para mim é só encontrar essas almas. E se a vida não me der o encontro dessas almas, ela não me deu nada, e eu a deixo como quem deixa um pesadelo, e vou para o Céu onde as almas são assim”. Depois veio-me a ideia de encontrar almas que tivessem cacos do que foi assim, para ajudá-las e fazer, desses cacos, sementes, para restaurar aquele mundo. Note-se a transição que houve em tudo isto. E como a hipotética ascensão de uma montanha de Águas da Prata poderia conduzir-me inteiramente à Contra-Revolução. E mil outras coisas da infância exprimiram isto. Creio que o próprio Casimiro de Abreu, quando dizia: “Oh! que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais!”286 , tinha nostalgia disso. Quando se estabeleceu na Igreja o hábito de representar os anjos como crianças, julgo que foi pela ideia de que os homens adultos já não tinham mais isto. E o recurso para exprimir algo dessa realidade foi utilizar a criança287 . Essas “presenças invisíveis” que eu julgava encontrar no alto da montanha são no fundo impressões não gratuitas, criadas pelo senso do ser – a retidão originária do senso do ser conduz a isso –, e dão uma pri-
286 Estes são versos do poema “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu, poeta brasileiro do século XIX (1839-1860). 287 MNF 6/7/78
meira degustação da transesfera288, bem como daquilo que vai mais além da transesfera289 .
Quando pequeno, ainda existia o costume, depois arbitrariamente eliminado pela moda, de decorar a parede da sala de jantar com pratos que não eram pratos de comer, mas verdadeiras obras de arte pintadas sobre porcelana. Aqueles pratos faziam parte dos elementos de decoração da sala. E isto distraía a vista, enquanto se comia e se conversava. Lembro-me especialmente de três pratos. Num deles, toda a borda era de um azul muito escuro e pintada com umas coisinhas douradas. E depois, no que corresponde propriamente à parte horizontal do prato, havia uma cena mitológica clássica: um campo idílico, com seres mitológicos, homens e mulheres, andando e se dando as mãos uns aos outros na orla de um bosque. No meio, guirlandas de flores, e com um crepúsculo ou uma aurora, não me lembro bem, que se formava no céu. Olhava para aquelas figuras mitológicas e imaginava como seria um campo se fosse daquele jeito. E não tinha muita certeza de que, de vez em quando, a realidade não era assim mesmo. Parecia-me que na Europa deveria ser assim, sobretudo na Alemanha e na França, que eram, na minha concepção, os dois polos do mundo e onde, portanto, as maravilhas deveriam existir. Olhava aquilo, olhava, olhava. Depois via as pessoas da família sentadas à mesa e pensava: “Como são diferentes daquela gente pintada lá! Aquele pessoal do prato independe das contingências, não precisa estar sentado ao redor de uma mesa, não precisa de cama: eles são inteiramente superiores. Eles andam jardas in-
288 Sobre o conceito de “transesfera”, assim o explica o próprio Dr. Plinio: “A idéia de transesfera pode ser objeto de uma análise do ponto de vista filosófico e teológico. O que é essa esfera? Não é uma esfera nova da realidade. Mas algo que o espírito humano concebe como um produto do espírito. É uma imagem que o espírito humano cria para si, de uma ordem irreal, hipotética, não existente, formando-se às vezes de modo muito efêmero, por certos aspectos da natureza, por atitudes de indivíduos, etc., que não constitui, portanto, uma ordem real. São aspectos fugazes, são lampejos que as coisas tomam e com os quais o homem constitui um modo habitual de ver todos os seres como se estivessem numa transesfera. Ele sabe que essa transesfera, como ele a vê, de fato não existe. Mas sabe que, quando os homens todos caminham muito rumo a Deus, todas as coisas da realidade tomam estavelmente aspectos suscetíveis de ser sublimados, de modo a constituir uma visão transcendente da realidade, uma trans-esfera” (MNF 2/6/77). 289 MNF 7/7/78