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Amor à arquetipia
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
Mais do que tudo, para mim, eram os cisnes à beira do lago. O cisne saía de umas casinholas de porcelana e vinha majestoso, realizando um ideal para mim: mover-se sem fazer esforço. E então via o cisne leve, flutuando e gostando da água, mas sentindo-se superior a ela e olhando-a aristocraticamente de cima. De maneira tal que se tinha a impressão de que, naquela posição do pescoço – uma espécie de “S” sublime com aquela cabecinha na ponta – havia todas as delícias do aristocratismo. Um dos ápices das delícias do jardim da Luz eram aqueles cisnes. Quando eu voltava para casa, voltava com uma porção de impressões que diziam respeito à ordem universal vista sob certo ângulo. Era evidentemente a natureza, mas vista com os olhos do inocente e do batizado, e que me conduzia ao desejo de certa super-inocência, de certa super-pureza, de certa super-virtude que era o necessário para que tudo aquilo me atraísse em toda a medida. Claude Lorrain, famoso pintor francês que não pintava propriamente o sol, mas pintava a luz do sol batendo em cima de velhas paredes leprosas, tornando-as parecidas com pedras semipreciosas que pareciam dizer: “Ô Soleil! toi sans qui les choses ne seraient que ce qu’elles sont” – “Ó sol, sem o qual as coisas não seriam senão o que elas são”280 . A fortiori se poderia saudar do mesmo modo a inocência, “sans laquelle les choses ne seraient que ce qu’elles sont!”. Tudo isso seria diferente se o mesmo jardim da Luz fosse visitado por um menino sem inocência. Ele teria vontade de matar os passarinhos, de sair correndo para pegar o cisne, de quebrar a casinha de porcelana desse cisne, de fazer batalhas com os outros meninos, porque “ele veria as coisas apenas como elas são”281 .
Amor à arquetipia
Isso tudo, por um favor de Nossa Senhora que não mereci e que Ela me deu porque quis, as mais antigas recordações que tenho de mim desde a primeira infância já foi arquetipizando: certa coisa acho bonita, mas posso imaginar uma coisa mais bonita do que esta? Que expressão de alma teria? Que forma de virtude exprimiria e representaria? Que forma de santidade se veria manifestada ali? Essas cogitações abrangiam coisas as mais insignificantes, como por exemplo, nas minhas idas ao dentista, onde havia um muro em que estava
280 Edmond Rostand, Chantecler, 1910. 281 CSN 29/8/92
pintada uma vistazinha de Veneza, a mais comum que se possa imaginar. Enquanto ele mexia com aqueles ferrinhos, eu olhava para Veneza e pensava: – Até que ponto esse quadro pinta devidamente Veneza? Ela será menos bonita do que está aí, ou, pelo contrário, será muito mais bonita? Um dia conseguirei ir a Veneza? Chegada a hora do boticão, minha atenção deixava Veneza e passava para a batalha da extração do dente. Mas pouco depois já estava voltada de novo para Veneza. Assim, amando as coisas arquetípicas, sem eu perceber a Providência ia preparando minha alma para, por exemplo, detestar a Revolução Francesa. Lendo a história daquelas multidões de mulheres marchando rumo a Versailles para prender o Rei – umas megeras com lanças, mal vestidas, gritando, mais parecendo canibais vivos –; e vendo de um lado o contraste entre aquele lixo humano que avançava, ébrio de sangue e com a sanha de acabar com as belezas de Versailles, e de outro lado o Rei, a Rainha, distintos, finos; vinha-me a ideia da borra dos sentimentos humanos se levantando para criar o mundo no qual eu estava vivendo, que era o mundo sem elegância, sem afabilidade, sem distinção, sem beleza, reles em todos os sentidos da palavra. Toda aquela minha formação anterior, de amor às arquetipias, antes mesmo de qualquer cogitação de caráter político, eriçava a minha alma diante da perspectiva de uma Revolução Francesa282 . *
Deste modo, em tudo o que me rodeava – alguns aspectos da São Paulinho, o ambiente externo de minha casa e de outras casas muito bonitas por que eu passava, certos pores-do-sol e outras coisas dessas – eu sentia a irradiação de um fulgor pelo qual aquelas coisas, aos meus olhos, eram como seda, que tem qualquer coisa de luminoso e um brilho próprio. Ao passo que aos olhos de muitos outros eram como pano, e aos olhos dos pecadores eram como estopa. Lembro-me, por exemplo, do meu quarto. Quando ali fazia sesta, deixava o vidro aberto e as venezianas fechadas. Naturalmente, eu via a luz entrar, via os desenhos do papel de parede, via a minha roupa de cama, os objetos do quarto. Nada era de grande luxo, mas para meu olhar era tudo faustoso, magnífico, brilhante, sem que essa consideração me desse um pingo de vaidade. Isto nem entrava em questão. Mas eu achava tudo aquilo uma coisa que não tinha palavras, soberba, estupenda. E notava que
282 Chá SRM 14/6/92