6 minute read
As canduras de uma alma inocente
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
O cálice de ágata é muito bonito e dá glória a Deus. Uma das glórias que ele dá é de ter produzido numa criatura humana superior a ele a impressão que ele produziu. E o homem que se deleita com a ágata dá mais glória a Deus do que a própria ágata da qual ele recebeu o efeito. Olhar para mim, e ver-me enquanto consonante com a ágata, e num movimento reto da minha alma consonando com aquela ágata. E dizer: “Deus, quando contemplou essa ágata depois de criá-la, teve também consonância. Dois seres consonantes com um terceiro são consonantes entre si. Deus foi consonante com esta ágata; eu sou consonante com essa ágata; nesse momento, eu sou um pouco consonante com Deus”. E aí se estabelece uma vinculação que me faz ter encanto com a ágata294 .
As canduras de uma alma inocente
Um dado a se fazer notar era o jogo das precocidades e dos retardamentos, jogo esse especial dentro de minha alma, e que não era precisamente o jogo que se notava nos meninos do meu tempo. Eu era, por certo ângulo, mais cândido e mais inocente do que eram eles, no sentido próprio da palavra, o que me levava a não perceber na vida concreta e no mundo concreto uma porção de coisas que eles percebiam. Não estou aludindo aqui a assunto sexual; estou me referindo à época em que eu era tão menino que o assunto nem se punha. Por exemplo, no caso do Guignol de Paris295, as minhas intervenções eram feitas sem eu ter a menor ideia de que aquilo estava repercutindo no público. E quando eu notava a repercussão, eu também não tinha a menor ideia de que essa repercussão fazia de mim um menino diferente dos outros. Eu me julgava uma criança qualquer, e assim como eu estava falando com aquele homem do Guignol, eu falaria com meninos que estivessem brincando comigo. Eu notava que eles riam, mas eu não notava que havia um subentendido naquilo. Outra coisa: não tinha ideia muito clara da separação entre o palco e o público. O público tomava parte no drama do palco e eram torcedores, mas quase marionetes eles mesmos dentro do palco. Não vinha ao meu espírito
294 SD 9/6/79 295 MNF 17/11/94 – Dr. Plinio se refere aqui às suas idas, na sua viagem à Europa quando criança, ao teatro de marionetes do Bois de Boulogne, chamado Guignol. Na inocência de seus 4 anos, ele atribuía certa realidade à cena que estava se passando no palco. E quando não estava de acordo com a evolução da peça, ele intervinha, sempre num sentido contra-revolucionário.
que, o que se passava no palco era uma coisa artificial para ser vista pelo público. Não é que eu não percebesse nada disso, percebia vagamente, mas achava que não era o caso de prestar atenção nisso. Julgava que havia qualquer coisa em mim que, por uma espécie de honestidade para comigo mesmo, me obrigava a dizer o que eu pensava, de maneira que eu não tinha direito de me calar. Ainda que quisesse me calar, não tinha o direito, e não tinha vontade de me calar. Fui desde pequeno muito expansivo, meu gosto era falar. Eu tinha certa ideia de que a boa educação mandava me calar, mas achava que eu estava liberto dessa regra por causa do jorro que havia em mim para falar, e não tinha nem um pouco a ideia de que assim eu violava uma regra de educação. Julgava que era uma regra de educação para o geral das pessoas, mas que para mim não era. Note-se aí um não ver a realidade a não ser muito superficialmente em alguns pontos, e vê-la muito profundamente em outros pontos. Por exemplo, ver que o padre estava sendo atacado, que devemos estar sempre do lado do padre, que é preciso dar argumentos, não para o público, mas para a outra marionete. A marionete na minha cabeça era um personagem meio vivo, e eu argumentava com a marionete. Tinha certa sensação de que havia um homem movendo a marionete e que era o responsável, mas que eu confundia mais ou menos com a própria marionete. Nisto tudo havia canduras de toda ordem e de todo tamanho. Ao lado dessas canduras, alguns conceitos gerando atitudes muitíssimo profundas.
Quando visitamos Versailles, a minha primeira reação foi de deslumbramento. O fato de querer agarrar na roda da carruagem e não querer sair era, no fundo, o querer agarrar aquele mundo. Aí já vemos também a candura porque, ao querer me agarrar à carruagem, eu devia perceber que não era possível permanecer ali, que era uma bobagem. Absolutamente não: aquilo estava lá e para qualquer efeito, ainda que seja desvincular-me da autoridade paterna – não da materna; se mamãe interviesse tudo mudava –, pouco me incomodava.
Um outro aspecto dessa candura era o raciocinar. No que é que entrava essa candura no raciocínio? Era na ideia de que, se o raciocínio apresenta a verdade inteiramente como ela é, dota-me a mim, que sou uma pessoa como as outras, do dom de meter um “gancho” no sujeito que esteja querendo andar errado comigo, e por este raciocínio obriga-o a concordar comigo e andar direito. De onde um grande gosto em começar a raciocinar e a munir-me de uma espécie de tanque de raciocínios, todos infantis, que devia desembocar na seguinte ideia: “Faço o meu caminho varrendo com esguichos de raciocínios as pessoas que se opuserem ao que penso. A verdade está comigo porque faço o raciocínio certo e sei que é certo. Tenho muita clareza na cabeça para isto. Já sei, nessa idade, raciocinar bem; imagine quando eu ficar homem. Vamos começar o esguicho”. A candura aí estava na ideia de que no homem não havia tanta maldade, e que o raciocínio era para ele irrecusável. É uma candura, porque o homem colocado diante do raciocínio certo, muitíssimas vezes não se comove. O fato é que em tudo isto entrava muita candura, muita lógica também; e eu apresentei a conexão entre a lógica e a candura dentro disso. Essa continuidade de lógica e candura, ou ao menos laivos delas, se prolongou até não sei onde.
Também em relação a objeções contra a Igreja que eu ouvia, eu tinha a candura da Fé, seguida da lógica: “No Evangelho está assim, na Escritura está assim, logo isto que dizem não deve ser assim. E como a Igreja é como deve ser, Ela deve ser assim; logo, Ela é assim. Não posso acreditar no fugidio das coisas que se me apresentam. A verdade é que Ela é assim e – aqui está a candura – todos os padres são bons”. Com essa candura e essa lógica evidentementequadrada, entrava uma preparação para o contrário. A minha lógica era quadrada no sentido de admitir premissas muito pobres. Um menino melhor talvez não precisasse dessa quadratura para salvar sua própria fé. Isso é para verem como várias dessas canduras foram paredões contra o mal. Santa Teresinha tinha muita coisa assim na “História de uma Alma”. Com a irmã dela, a Agnès de Jesus, vemos que ela, por alguns lados, a achava maravilhosa, mas que por outros lados ela compreendia defeitos