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O “senso do absoluto”
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
preensão que eu tinha daquela gente da Revolução Francesa sentir-se tão indignada com as classes superiores307 . *
Paralelamente, eu vi os ritmos da civilização industrial entrarem em São Paulo e banirem os ritmos antigos. E vi a civilização industrial tomar conta e encher o ambiente com um ritmo industrializado, mecânico e apressado, que me parecia um ritmo não homogêneo. Mas, na medida em que era o contrário dos ritmos antigos, constituía uma onda de ritmos diferentes que expulsavam os outros ritmos diversos. Ficava indignadíssimo! Porque eu era inteiramente solidário com as cabras e com outras coisas do gênero. E oposto completamente aos ritmos novos. Esses ritmos antigos, foi fácil destruí-los, porque eles, antes de estarem destruídos, estavam mofados. E mofados de um mofo, de uma velharia que nem sei o que dizer. Desta forma, toda a atmosfera interiorana, toda a atmosfera tradicional tinha ficado anquilosada, parada, caminhando para a podridão, para a incapacidade de produzir congruentemente consigo mesma. E ia aparecendo uma coisa nova que propiciava uma situação em que fossem construídas coisas incongruentes com ela. Assim, a alternativa que ficou foi: ou entrar com ela no cemitério, ou adotar a incongruência para fugir do mofo308 .
O “senso do absoluto”
No período em que essas primeiríssimas impressões iam se formando em mim, eu me lembro de ir registrando muitas coisas, aqui, lá, acolá, e as mais diversas, desde uma luz acesa na vitrine de uma casa comercial, até, pouco mais adiante, alguém que ouço cantando ou tocando uma música no piano; ou um tapete que eu vejo e cujo desenho me agrada; ou ainda um cachorrinho lulu muito vivo, branco, com aquela bonita mancha bege a certa altura do corpo, e com as orelhas também beges. Olhava para aquele cachorrinho e o achava bonitinho. Gostava muito da combinação branco com bege. E me perguntava: “Por que é que eu
307 CSN 2/7/94 308 CM 17/11/85
gosto? É bonito. Mas é bonito por quê? Mais bonito, mais bonito, pode haver mais, pode haver mais?”. O mesmo em relação a uma vitrine que havia na casa onde eu morava. Essa casa tinha uma boa sala de visitas, na qual havia móveis dourados no estilo Luís XV. Em certo momento comecei a prestar atenção na bonita vitrine, toda ela enfeitada com aplicações de bronze sobre madeiras preciosas, forrada com sedas. Tinha uma parte bombeada, onde havia, pintadas, figuras humanas movendo-se num fundo de natureza maravilhosa: auroras bucólicas, aquelas coisas. E descobri então os prestígios e encantos do marfim. Fiquei literalmente encantado com o marfim: “Como seria um mundo se todo ele fosse esculpido em madeira revestida de marfim? E como seria o mundo todo revestido de marfim? Que beleza!”309 Assim, vendo ou considerando qualquer coisa, eu era levado a me perguntar como seria essa coisa se ela fosse levada à sua perfeição absoluta310 . Essa admiração não era por uma mera fruição dos meus sentidos, mas era por querer algo que fosse mais perfeito. E dentro desse mundo eu pensava em uma coisa, depois em outra, e depois em outra. A tendência era de não me contentar com coisa alguma, e de ir do mais elevado ao mais elevado ainda, até chegar ao absoluto311 . Como sou muito “truculento”, entendido enquanto muito afirmativo, tenho necessidade de levar até o último ponto da truculência o que há em mim. E o meu desejo constante do absoluto é, por excelência, o que me caracteriza312 . Era, no fundo, uma tendência para o amor de Deus313 . *
Já disse que o meu mundo de infância era povoado por dois padrões de absolutos que se chocavam: os padrões hollywoodianos, vazios de absolutos, e os padrões europeus, cheios de absolutos.
309 Chá SB 29/5/81 310 Chá PS 2/9/94 311 Chá SB 29/5/81 312 Jantar EANS 29/4/92 313 Chá SB 29/5/81
No padrão europeu, o orador absoluto era apresentado como sendo Jean Jaurès314. Os estadistas absolutos: Gladstone315 e Disraeli316. O militar absoluto, Hindenburg317 . A rainha absoluta era a Rainha Vitória. No meu interior, eu protestava contra essa avaliação. Achava que Francisco José era o monarca absoluto. E não consentia que o militar absoluto fosse o Hindenburg. Eu tinha um certo xodó pelo Kaiser enquanto representante do absoluto militar. Depois percebi que não. Mas ele representava muito bem o papel do militar. O Papa absoluto: São Pio X. Eu nasci nisto, e esses eram os ecos de alma que eu tinha na minha infância. Este conceito de absoluto, como já disse, exercia sobre mim uma atração enorme, por causa da ideia que estava por detrás. Era uma condição, um estado, uma situação na qual a coisa é. Possui tudo, tem a plenitude de tudo, avassala tudo e é adorada porque merece ser adorada. Não tinha muito claro naquela época que isto era Deus. O que me ensinaram no Catecismo não me conduzia a isto. Eu simplesmente tinha a ideia metafísica do absoluto. Era tão simples em ligar, mas infelizmente não liguei que era Deus. Era, portanto, a perfeição das perfeições, a perfeição por detrás de todas as perfeições, e possuindo-a de maneira tal que, se Deus combatesse, o Hindenburg seria para Deus uma pulga. Se Deus cantasse, a voz de Caruso seria um miado de gato asmático. E daí para fora. Era a ideia, que me agradava muito, de algo eminente e existindo por si mesmo, e não devendo o seu ser a ninguém, e tendo de um modo substancialmente perfeito tudo aquilo que eu via refletido naqueles personagens que citei acima. Mais ainda do que tendo, sendo aquilo, pois Deus não é perfeito, Deus é a perfeição. E a perfeição é Ele mesmo318 .
314 Sobre Jean Jaurès, ver nota 74 da página 47. 315 William Ewart Gladstone (1809-1898) foi um estadista liberal inglês que desempenhou o cargo de primeiro-ministro por quatro vezes. 316 Benjamin Disraeli (1804-1881) foi um estadista inglês, conservador e rival político de Gladstone, que ocupou o cargo de primeiro-ministro por duas vezes. 317 Paul Ludwig von Hindenburg (1847-1934) foi um célebre militar alemão que comandou o Exército Imperial durante a Primeira Guerra Mundial, tornando-se depois presidente da República de Weimar. 318 CSN 22/3/86