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Felicidade de situação
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
Olhando para dentro de mim mesmo, eu me sentia tão bom quanto me pareciam bons os outros, tão benfazejos quanto me sentia ser benfazejo para com os outros. Era, portanto, uma espécie de harmonia global, da qual eu seria um fragmento; não um fragmento quebrado, mas um fragmento vivo, como por exemplo um galho de uma planta é um fragmento e um prolongamento natural da planta. Assim, eu me sentia como que um galho de toda essa ordem universal. Tudo isto, tomado em seu conjunto, não posso afirmar que girasse em torno de mamãe, mas se nutria largamente do exemplo da pessoa dela. Ela era toda dourada em tudo dela, o que explica aquele amor que eu tinha a ela e que conservo até nossos dias334 . *
Também o pulchrum aparecia para mim como a própria pele do rosto do bem. Quer dizer, se era pulchrum, esse pulchrum era a expressão do bem. Por causa disso eu cometia, na apreciação psicológica das pessoas, dos outros meninos e de tudo o mais, erros colossais, porque às vezes uma pessoa pode ter fisionomia de pura e de boa por mera aparência, sem ter no fundo nada disso. Daí decepções colossais e sistemáticas. Então, o amor à coisa bonita era misturado com o amor ao bem. A coisa bonita era, para mim, quase que a consubstanciação de uma coisa boa335 .
Felicidade de situação
Comecei, portanto, a aprender a degustar os prazeres castos, as alegrias sóbrias, as satisfações moderadas, mas suculentas, a tranquilidade de consciência, e fazer de minha vida uma vida alegre dentro da ordem posta por Deus336 . O fato de ser bom, o fato de ter nexo com o que chamamos de transesfera337, comporta uma felicidade imensa. E quando o indivíduo rompe o nexo com a transesfera, ele rompe sem ter bem ideia de que aquilo é felicidade.
de vossa graça, eu começara a amar tanto e tanto. Lembrai-Vos, Senhora, deste Davi e de toda a doçura que nele púnheis. Assim seja”. 334 CSN 12/8/95 335 MNF 7/10/94 336 Chá PS 6/12/84 337 Sobre o conceito de “transesfera”, v. nota 288 da página 137.
É um estado tão natural e tão nativo nele, que ele nem tem ideia da possibilidade de outro estado, como para nós não constitui uma condição de felicidade não sermos asmáticos e respirarmos à vontade. Eu era muito consciente dessa felicidade e a amava deliciosamente. Amava-a em si, e por aquilo para o qual ela me conduzia, que no fundo era Deus. Mas também pelo “bene esse” que me proporcionava e cujo valor eu sentia perfeitamente. Eu tinha muita paz na alma. Essa paz ajudou-me a desenvolver minhas posteriores “truculências”338. Eu notava que tinha essa paz, amava essa paz, gostava muito dela339 .
Também por esta razão eu sentia a alegria própria da criança inocente. E a alegria da criança inocente é superior, é capaz de experimentar um bem-estar que não vem do que ela come ou do que ela bebe, mas vem daquilo que ela é. A primeira demarcação entra a nocência e a inocência vem de que essa alegria, quando a criança mantém a sua inocência desde os primeiros passos, é superior à outra. Ela gosta de comer, ela gosta das coisas que as crianças gostam. Mas se ela vê, por exemplo, o pai agradar a mãe e a mãe agradar o pai, ou seus irmãozinhos se quererem bem, ela tem alegria de que, num certo plano, as coisas estejam bem ordenadas. Esta capacidade de se alegrar vai se desenvolvendo e vai constituindo para ela uma felicidade que podemos chamar de felicidade de situação. Esta felicidade de situação, na criança, explica, por exemplo, certos adormeceres suaves e certos sonos profundos que tendem a prolongar-se indefinidamente, mas que são a respiração da boa ordem, do bem-estar, e que fazem com que a criança não acorde de repente. Ela sai do sono e encosta na realidade como um barquinho que vem do mar e encosta na praia. Não bate na pedra. A criança errada já bate na pedra. Quando a pessoa tem este senso e o vê desenvolver-se, ela encontra um certo gênero de harmonia até entre esses bem-estares e os gostos mais triviais. Ela percebe uma harmonia entre o comer e isto, percebe uma harmonia entre o dormir e isto340 .
338 Sobre o sentido que Dr. Plinio dava à palavra “truculência”, v. nota 47 da página 37. 339 MNF 11/5/84 340 MNF 12/10/94
Por isso, a propósito de todas essas coisas, eu me sentia literalmente inundado de felicidade. Os prazeres me eram agradáveis. Os estudos, que representam para todo o mundo uma mancha de infortúnio dentro dessa história, não tinham ainda aparecido. Essas alegrias eram realçadas por aspectos de felicidade terrena. O que normalmente dá uma certa alegria a determinadas pessoas, a mim dava uma alegria imensa. Essas coisas me traziam alegria, davam-me felicidade, porque desde aquela primeira idade eu sempre tive gosto pelo conforto, pelos objetos bonitos, pelas coisas dignas. Eu me sentia realçado com isso. Os prazeres da alimentação, eu fui sempre sensibilíssimo a eles. Lembro-me – já o disse – que, quando irrompeu na São Paulinho o creme chantilly, uma Fraülein austríaca, Fraülein von Sigler, me iniciou no gosto da chamada Schlagsahne. Eu achava aquilo delicioso. Lembro-me de mim mesmo comendo dois doces, e, na culinária, pendor teutônico patente: Streuselkuchen e Krapfen. O gosto que eu tinha por Streuselkuchen e Krapfen era uma coisa enfática, turbulenta, fenomenal341 . *
Lembro-me de coisas que me davam uma alegria inocente e sem “torcida”. Exemplo dessa alegria inocente e sem “torcida”: em certas semanas em que as minhas notas no Colégio São Luís subiam a ponto de contentar inteiramente Dona Lucilia, a Fraülein, que conhecia os meus gostos e jeitos a mais não poder, preparava uma coisa que me regalava: um jantar, quando o dia ainda estava claro, no terraço de casa. E mandava vir coisas de que eu gostava do Herr Max, o padeiro suíço, como uns copinhos que representavam taças de chopp recheadas de geleia. Em cima desses copinhos havia uma espécie de açúcar que imitava a espuma do chopp, e o copinho então transbordava. A criança comia o açúcar de cima, depois comia o copinho, e acabava comendo até a asa do copinho, que era toda feita do mesmo material. Vinha depois o Resinenkuchen, bolo feito com fermento de cerveja, canela, açúcar e cravo. E manteiga às torrentes, junto com a comida comum. Então eu degustava o ambiente ainda um pouco pastoril do bairro dos Campos Elíseos, com arvoredos enormes, jardins colossais, pássaros em quantidade, o que criava um ambiente quase bucólico.
341 Chá ENSDP 18/11/83
É preciso dizer que o meu lado gastronômico era desapegado. Pode parecer que não era, mas era342. Dava um gênero de fruição que não tinha um auge sensível. Era uma fruição, portanto uma sensibilidade, mas que não exigia de mim aquele deleite intemperante: ahhhhh! Era uma felicidade de situação. Era uma coisa francamente agradável, mas mais agradável pela situação, do que pelo pão e por mil outras coisas que poderia haver na mesa. Não era o ficar tenso, mas o contrário: era desfrutar daquele prazer na distensão, na distância, sentindo-me eu mesmo e sentindo o meu domínio sobre as coisas, e não o domínio das coisas sobre mim, o que constituía uma verdadeira felicidade. Há aqui, portanto, um estilo de vida baseado numa ideia de serenidade, de tranquilidade, mas sobretudo de recusa da ideia do super gozo, do super gáudio. Era a aceitação de uma felicidade indiscutivelmente sensível, mas uma felicidade que está muito mais na situação e na análise intelectiva da situação do que propriamente no gostoso343 . Acabei percebendo que, na vida, havia uma série de prazeres tranquilos e uma série de outros prazeres intranquilos. O sabor do prazer intranquilo tem todas as atrações e as falácias da droga. E o indivíduo nervoso assim é um pré, pré, pré-drogado. Quer dizer, se ele vivesse duzentos anos, acabaria tomando droga, por esta ser uma coisa muito mais saborosa, muito mais deliciosa do que esse prazer tranquilo que parece enfadonho a quem se habitua aos prazeres da “torcida”. Na “torcida” são momentos de prazer inebriante, e o resto todo fica sem graça. Então, uma vida com ilhotas paradisíacas, no meio de mares sujos, revoltos e desagradáveis de atravessar. Eu então me punha a pergunta: o que proporciona melhor felicidade para o homem nesta terra? E a resposta era: prefiro um prazer tranquilo, despreocupado, de consciência tranquila, com deleites que não trazem consigo nenhuma forma de sofrimento. Resultam do esforço, mas não trazem nenhuma dor. E compreendi que há duas escolas de felicidade, duas escolas de prazer, duas escolas R-CR de organizar o prazer e o deleite na vida terrena. E, portanto, dois sistemas de educar. Procurei fazer de minha vida, não algo que evita a cruz e a batalha, mas, pelo contrário, as enfrenta de cheio, mantendo no entanto essa tranquilidade até dentro da cruz e dentro da batalha; chegando até o fundo do mar se for preciso, mas atravessando o que for, mas com essa tranquilidade e sem
342 CSN 2/2/85 343 EANS 13/4/76
nada de “torcida”. Uma vida assim é muito melhor do que a vida habitual de “torcida”, que deixa a pessoa em pandarecos e nunca proporciona uma felicidade real344 .
Percebia muito o que esses prazeres da vida tinham de reto e de santo. E pela ordenação com que a graça punha isto na minha alma, a fonte principal de minha felicidade não era tal ou tal coisa, mas era notar que essas coisas no fundo eram santas. Debaixo de certo ponto de vista, isto me preparava para o tipo especial de vocação que temos, mas poderia escandalizar uma pessoa que tivesse um feitio de alma comum e julgasse que um menino muito chamado deveria ter o desejo de fazer sacrifícios, de flagelar-se etc. Não era o que se dava comigo. Por exemplo, na minha casa, no sábado se trocava a roupa de cama. E, quando chegava a hora de dormir, o deitar-me ali e sentir aquele frescor, a boa categoria da roupa de cama, o conforto, o bom, o reto e ordenado dessas coisas, a inocência que tudo isso tinha, dava-me gáudio. Deitar-me naquela roupa de cama e sentir um prazer físico era o corolário do prazer espiritual da pureza daquilo tudo. A pureza tinha, no fundo, como eixo, mamãe. Ela não era uma mãe qualquer, mas era a mãe arquetípica, no meu juízo, perfeita. Então, eu tinha um gosto físico, mas gosto físico mesmo. Eu me deitava, passava a mão debaixo do travesseiro, sentia aquela roupa de cama fresca, limpa, ligeiramente com um pouquinho de goma; depois, na fronha também, aquilo me dava um bem-estar físico dentro do qual eu sentia o gosto da virtude. O que me dava mais satisfação era exatamente ver que tudo aquilo tinha uma relação com a santidade. Assim era com cem outros gáudios. Eu vivia com muito gáudio, era uma criança muito alegre e de um gênio muito igual. Isso me dava algo que constituiu um horizonte de felicidade terrena, e que tinha como centro a felicidade de ser puro, de ter fé, de ser um bom menino; sentia a graça palpitar – eu não sabia que era graça, só hoje é que sei – e sentia o contato com ela, no fundo o contato com Deus, no regime da mística ordinária345. Sentia essa graça e me regozijava.
344 CSN 2/2/85 345 Por temor ao erro do “quietismo” – segundo o qual a alma deveria permanecer inativa e renunciar aos esforços da sua vontade para que Deus pudesse agir nela – os autores espirituais dos séculos XVIII e XIX insistiram no caráter ascético e purgativo das primeiras
Essa ordenação rumo a Deus era a fonte da minha alegria. A Ladainha lauretana chama Nossa Senhora de “Causa nostrae laetitiae” – “Causa de nossa alegria”. Era bem a causa da minha alegria346 . *
Passando de meu estado de criança para a adolescência, eu notei que havia na vida prazeres calmos que não traziam consigo nenhuma inquietude, nenhuma aflição, e que por outro lado eram intensos. Esses prazeres calmos e intensos eram em geral os prazeres de alguém que não está em estado de pecado e que está se entretendo com algo que não é pecado. Daí os prazeres serem intensos. Ao longo de tudo isso, várias vezes me vinha ao espírito: “Cumpri bem todos os meus deveres, estou inteiramente em dia com a Lei de Deus, com o que quer minha mãe, com os imperativos da Fraülein, e sinto a limpeza de minha própria consciência. Sinto também uma especial leveza que parece tomar meu próprio corpo, e sinto a alegria de meu ser. Eu estou com mais bem-estar por causa disso do que se tivesse algum prazer que desse remorso contra mim”. Esse gênero de bem-estar joga algo na alma que é muito parecido com o papel de um sol numa paisagem. Bate o sol e o que acontece? Nenhum objeto muda de lugar, não se acrescenta nada ao que está na paisagem, não se tira nada do que estava nessa paisagem. Houve apenas este fato: baixou a luz.
etapas da vida espiritual, dando a entender que a via iluminativa e a via mística seriam separadas e posteriores à via purgativa e uma via reservada a almas muito avançadas na santidade e beneficiárias de graças extraordinárias. Esse desequilíbrio foi retificado por grandes autores espirituais do começo do século XX e notadamente o sulpiciano Adolfo
Tanquerey, no seu famoso “Compêndio de Teologia Ascética e Mística”, e pelo dominicano Reginaldo Garrigou-Lagrange, na sua obra “As três idades da vida interior”, o quais insistiram no fato de que “a contemplação infusa, se considerada independentemente dos fenômenos místicos extraordinários que por vezes a acompanham, não é algo milagroso, anormal, mas resulta de duas causas: o cultivo do nosso organismo sobrenatural, sobre tudo os dons do Espírito Santo, e de uma graça operante que, também ela, não tem nada de milagroso” (Tanquerey, op. cit. n°1564). De onde resulta que “a via mística não é algo propriamente extraordinário, como as visões e as revelações, mas algo eminente na via normal da santidade” (Garrigou-Lagrange, op. cit. p. 27; o sublinhado é nosso). No vocabulário de Dr. Plinio, o termo “mística ordinária” significa essas graças iluminativas (“flashes”) com as quais o Espírito Santo favorece a maioria das almas, em todas as etapas da vida espiritual. 346 CSN 13/1/90
O quadro de minha vida me parecia luminoso. E eu carregava a impressão, aliás fundada, de que esta era uma alegria que Deus punha em minha alma, para me premiar por estar andando bem. Era a alegria da virtude, feita de um misto de elementos terrenos e elementos celestes. Quais eram os elementos terrenos? A noção de que está tudo em ordem, não vai haver amolação, e o que acontecer comigo é moderadamente agradável, sem excitação, sem bagunça; não tem apreensões, não tem desordem, não tem “torcida”. Estou na minha calma. Mas havia o elemento celeste, que era essa graça que me fazia sentir uma alegria por cima desta, a qual não era senão um símbolo. Então, o símbolo e mais algo que sobrenaturalmente me falava do simbolizado, isto me dava a alegria da virtude347 .
347 Chá PS 17/5/84
178 MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL