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O pórtico de entrada da vida espiritual de Dr. Plinio: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus ensinada por Dona Lucilia
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
Os episódios do Evangelho pelos quais eu sinto mais atração não são aqueles em que Nosso Senhor aparece tratando com os homens, mas é quando Ele se isola para tratar com Deus351. Para mim, apesar de o Evangelho ser uma montanha de sublimidades, as partes mais sublimes são as orações que Ele, enquanto orante, dirige ao Padre Eterno. Quando Ele diz “Meu Pai”, Ele diz com um jeito, com uma força, que temos a impressão de que Ele estava – e estava mesmo – comunicando-se diretamente com o Padre Eterno, com toda a Santíssima Trindade, da qual Ele, enquanto Deus, é membro. E havia, portanto, nessas orações, uma sublimidade muito grande. Eram orações divinas as d’Ele352 . Falando com o Padre Eterno, Ele comunica uma elevação que não tem limites; nós não podemos senão formar uma vaga ideia do que é a elevação dessa correlação d’Ele com o Padre Eterno, e naturalmente também com o Divino Espírito Santo353 .
O pórtico de entrada da vida espiritual de Dr. Plinio: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus ensinada por Dona Lucilia
A primeira imagem do Coração de Jesus que eu conheci é a que está no oratório do quarto de dormir de Dona Lucilia. É uma imagem francesa de boa qualidade, muito composta, muito fina, muito nobre, muito delicada, que representa Nosso Senhor Jesus Cristo apontando para o próprio Coração354 . Observando-a, eu formava na minha cabeça de criança a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo era exatamente assim, sem tirar nem pôr. Portanto, se eu quisesse fazer uma ideia d’Ele, deveria certificar-me de que Ele era exatamente como estava representado naquela imagem, e que a mentalidade d’Ele era precisamente a mentalidade que aquela imagem quis representar355 . E dizia para mim mesmo:
351 Chá SRM 15/6/93 352 Chá PS 23/10/91 353 Chá PS 1/12/93 354 Chá SRM 6/1/94 355 Conversa 1/1/93
– Mas que coisa extraordinária! Como Jesus é fabuloso! Não se imagina um homem assim; não há imaginação que o imagine. Ele existiu e por isso o pintam, e a tradição guardou a fisionomia d’Ele tal como Ele era. Homem nenhum seria capaz de imaginar alguém como Ele. Ele é perfeito, basta olhar o jeito d’Ele, a santidade e a beleza que tem, a bondade e a disposição de ter pena de mim, de me ajudar na minha luta”356 . Nascia assim a noção de que aquela figura era o tipo humano perfeito, e que a perfeição da natureza humana se encontrava, ali, elevada a um grau superior a si mesma, por causa da presença da natureza divina, e que a perfeição de todas as coisas se realizava na medida em que elas eram afins com aquilo357 . Muito pequeno ainda, eu sabia que Ele era Deus. E sabia que Ele era homem. A noção teológica de Homem-Deus eu naturalmente não tinha, era brumosa para mim, eu vim a conhecer depois. Mas eu sabia que Ele era homem e era Deus, e não me inquietava. Isto me bastava inteiramente para as minhas cogitações de menino358 . *
Tendo eu a notícia, como a tinha toda criança, de que Nosso Senhor Jesus Cristo existia, e ouvindo as descrições de como Ele era, qual foi a minha primeira cognição e como foi o meu primeiro ato de adoração a Ele? O que minha alma sentia? As minhas primeiras considerações sobre Nosso Senhor Jesus Cristo nasceram da consideração da pessoa d’Ele através do que mamãe contava, e igualmente da contemplação das imagens d’Ele que havia em mais de um quarto de minha casa. Também contribuiu para isto um livrinho infantil de religião que eu possuía, e outras coisas assim. Todas essas considerações vinham de permeio com as verdades do Credo ensinadas por mamãe. Não que ela falasse diretamente do Credo, mas o que ela dizia tinha como pressuposto essas verdades do Credo e o ato de Fé, que era o ponto de partida dessa formação. Mamãe não levantava, nem de longe, problemas como: “Eu vou lhe provar que a Igreja Católica é verdadeira”. Porque ela tinha a ideia de que, contando-se simplesmente as coisas da religião, essas coisas já provavam que Igreja era a verdadeira. E para a criança é assim mesmo.
356 Chá SRM 6/1/94 357 Conversa 21/1/93 358 Despacho 25/1/93
Assim, eu possuía a noção evidente de que Nosso Senhor era o Homem-Deus. E a partir desta convicção, eu desenvolvia uma análise psicológica de Nosso Senhor, e discernia na Pessoa divina d’Ele uma elevação de cogitações e uma elevação de vias absolutamente excelsas. Aos meus olhos, Ele se situava desde logo numa altura inacessível ao homem, e sua natureza humana tocava nesse mais alto. De tal maneira que, olhando para Ele enquanto Homem, era-me possível compreender o que, na pessoa humana d’Ele, resplandecia de divino, e que essa era uma elevação própria a Deus. Eu considerava a humanidade d’Ele como em atitude permanente de contemplação e adoração da sua própria divindade, e das outras duas Pessoas da Santíssima Trindade. E que, a partir dessa elevação, Ele mantinha contato com todas as almas, pela noção de que somente quem se situa nessa altura consegue se pôr acima das limitações pela qual um Plinio, por exemplo, não teria a menor possibilidade de manter contato com as outras almas359 . Nosso Senhor Jesus Cristo conhece todas as almas, sabe o que acontece com elas e intervém dentro delas justamente por causa dessa elevação que há na natureza d’Ele, e que é, de jure e ex natura rerum – ou seja, por direito e pela própria natureza das coisas – tão superior, que Ele tem direito a esse contato. Ele está, portanto, dedilhando continuamente todas as almas que foram, que são e que virão. Naturalmente, em mim todas essas ideias eram muito implícitas. Não imaginem, portanto, um menino de 4 anos fazendo pedantemente essas digressões. Eu me perguntava de que maneira se dava esse contato d’Ele com as almas. Essa era uma resposta que eu só conseguiria obter observando, não como esse contato se dava com os outros, mas como se dava em mim. Percebia que, pelo simples fato de contemplar a grandeza do ser d’Ele e do seu cogitar, eu me sentia algum tanto elevado acima de mim mesmo, o que fazia nascer uma certa luz no cogitar e no ver que me extasiava, por sentir algo em mim feito para olhar mais além do que eu. Desta forma, eu como que saía da minha vida de menino, e observava em mim algo que possibilitava ver mais do que eu, e que de fato era mais do que eu. Ficava-me a impressão de que, assim, escapava e fugia do bom para o ótimo, o que me punha na ponta dos pés. E isto me alegrava.
359 Quando Dr. Plinio fala de “contato de alma”, se refere evidentemente ao sentido comum da relação de convívio das almas entre si, e da relação existente entre Criador e criatura, a qual se opera através da infusão das graças ordinárias, ou mesmo extraordinárias que
Deus concede às almas, e não no sentido de aparições ou de outros fenômenos da mística extraordinária.
Havia depois outro ponto: ao mesmo tempo em que contemplava essa vida que há n’Ele, que é um pensar, um querer e um sentir, Ele como que me fazia tocar com as mãos no pensar, no querer e no sentir d´Ele. E isto me comunicava, com a elevação própria dessa percepção, uma retidão e uma santidade do pensar, do querer e do sentir, que era como um remédio delicioso que eu bebesse, e que me agradava sobremaneira, e ao mesmo tempo me corrigia. Então eu compreendia que devia ser assim por uma dupla ação: primeiro, porque via como Ele era e O adorava; em segundo lugar, porque, adorando-O, via que coisas tortas em mim, que eu nem percebia que eram tortas, se endireitavam. E com isto Ele me curava de coisas que eu não sabia que eram doentes360 .
Na igreja do Sagrado Coração de Jesus havia um ambiente que correspondia inteiramente às aspirações que eu tinha, de contato e de convívio com almas que me dessem, em primeiro lugar, uma grandíssima elevação, uma elevação tão grande que o olhar humano quase não chegasse a medir até o fim. Elevação do quê? Elevação de alma, elevação de sentimento, elevação de maneiras, elevação de convívio, a posse de uma grandeza que eu encontro representada nesta jaculatória da ladainha do Sagrado Coração de Jesus: “Cor Jesu, majestatis infinitae, miserere nobis”. Quer dizer, eu imaginava o Coração d’Ele – tomando a palavra coração não só como o órgão físico, mas também como mentalidade – portanto como a santidade d’Ele –, infinitamente majestoso, de tal maneira alto que o espírito humano não conseguia atingir, e superando todas as majestades concebíveis. De outro lado, com o direito e o poder de dominar absolutamente tudo, com o domínio absoluto de tudo, e colocando tudo em ordem segundo essa elevação. Ao mesmo tempo, eu o via infinitamente seguro de si, infinitamente sereno, ordenando tudo segundo uma ordem que é o reflexo de si próprio, amando cada coisa na proporção e na medida que lhe é própria, e sendo amado por cada coisa também na medida e na proporção que lhe é própria, o que supõe uma infinita seriedade. Então, uma doçura infinita em fazer o seu amor repousar sobre tudo o que existe. E repousar com uma torrencialidade que até desconcerta, que abarca até o passarinho ou o fio de cabelo que cai da cabeça, e que ninguém nota, nem o homem que está junto da árvore de onde cai o passarinho, nem
360 MNF 12/4/89
o dono do fio de cabelo que cai, mas que Ele conhece por inteiro e ama aquilo de modo perfeito como deve ser amado. Mas ama de um amor que envolve completamente, que penetra inteiramente, que faz todo o bem cabível. E que teria horror a qualquer perturbação nessa ordem que Ele criou. Via n’Ele, portanto, um amor cheio de intransigência, mas também cheio de perdão. Daí Nosso Senhor esbofeteado, flagelado, tratado do jeito que nós sabemos e não perdendo a paciência nem uma vez sequer. Bondoso, patiens et multae misericordiae – paciente, quer dizer, capaz de sofrer – e de muita misericórdia. Mas, no fundo, tudo capitulado pela majestade divina, que a bem dizer é, debaixo de certo ponto de vista – a expressão não é própria –, a qualité maîtresse que ordena tudo isso. Cada criatura, em vista disto, procura nos seres com quem tem contato aquilo que pode ser ordenável para o Sagrado Coração de Jesus, ou no que constitui a cor-Iesucidade de cada coisa, e desejando ver cada coisa assim, e não sossegando a não ser na medida em que cada coisa é assim, e tendo nisto o repouso de sua alma e até de seus nervos361 . *
E assim fui tomando conhecimento mais exato daquilo que era um pórtico, uma entrada de uma infinitude de perfeições que adornam e enchem a alma de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mais ainda: enquanto Deus, Ele não tem apenas aquelas perfeições, mas Ele é aquelas perfeições. Então, naturalmente, de um modo gradual, sem que eu possa fixar uma data, sem que possa determinar nenhum momento especialmente marcante, fui gradualmente adorando cada vez mais o Sagrado Coração de Jesus, até o momento em que essa adoração se tornou um ponto fixo. Esse ponto fixo foi aquele que me determinou, no silêncio de minha alma, os sucessivos sacrifícios e sucessivas entregas minhas a Ele. Isto, de lá para cá, espero que venha continuando a se desenvolver. Nós devemos cada vez mais adorá-Lo, amá-Lo e ser d’Ele. Mas sempre com certa discrição, certa nota de luz de abajur e não de luz resplandecente como um sol, e que é o modo como eu me habituei desde pequeno a vê-lo e a considerar as suas perfeições362 .
361 MNF 15/9/89 362 Chá PS 28/6/95