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A aurora do entusiasmo pela boa ordenação da ordem temporal e pela Cristandade
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
A aurora do entusiasmo pela boa ordenação da ordem temporal e pela Cristandade
A inocência primeva continuou em mim durante muito tempo. E a amei intensamente – esta é a questão – enquanto encontrando o seu modelo na Igreja. Mas também a amei enquanto existente na sociedade temporal. No ambiente da minha casa, no modelo de minha casa, havia qualquer coisa disso. Uma ponta de sobrenatural que acompanha certos objetos antigos se fazia sentir a mim muito vivamente nela382 . Posso dizer que uma das características de minha formação de espírito foi Nossa Senhora me ajudar desde muito cedo a perceber, com a facilidade própria a um menino, o reflexo de Deus nas coisas temporais, e não apenas nas coisas espirituais. Via as coisas espirituais e deleitava-me. Mas não tinha a tendência de passar a vida inteira dentro de uma igreja. Teria ficado muito contente, me teria honrado se isso me acontecesse. Mas não foi o que se passou. Eu não era de ir muito à igreja. Mas quando ia, deitava muito as “antenas” para o eclesiástico e o sobrenatural que ali havia, e com enorme complacência de minha alma, com enorme atração de minha alma, não tem dúvida. Mas, ao mesmo tempo, nas coisas temporais, na sociedade material, também gostava enormemente de ver quando elas eram corretas, bem ordenadas. E parecia-me ver ali uma superioridade e um atrativo, que depois, mais tarde, com o estudo e a reflexão, compreendi que era uma semelhança de Deus383 .
A forma de uma cadeira, a forma de um lustre pode me lembrar alguma coisa que, em última análise, lembra outra, outra, outra, e acaba tocando em Deus. Por exemplo, meninote ainda, eu estava numa casa onde serviram o lanche com um faqueiro delicado para cortar um bolo. A lâmina do faqueiro era banhada a ouro ou uma liga de ouro, e o cabo era feito com uma madrepérola lindíssima, delicadíssima, como poucas vezes vi. O copeiro veio trazendo tudo aquilo junto, numa bandeja, e foi servindo para as várias pessoas.
382 MNF 15/9/89 383 SD 9/6/79
Quando vi o faqueiro, tive a impressão de um raffinement, de um domínio do homem sobre a natureza, de uma maneira de arrancar da natureza o que ela tinha de mais próprio, de mais elevado; e depois pegar em praias rebarbativas e inóspitas não sei que conchas, das quais um homem industrioso soube extrair aquela madrepérola e fazer aquele cabo; e por fim tirar de não sei que mina aquele ouro, e um artista desenhar aquela faca sem pretensão, mas muito distinta, muito alinhada, direita, tive uma consolação e veio-me à alma uma como que exclamação: “Que finura isto aqui! A civilização cristã inspirou isto. A finura infinita de Jesus Cristo está nisto”384 . *
Eu morava no bairro Campos Elíseos. Passava muitas vezes a pé pelo jardim do palácio dos Campos Elíseos. E me lembro de que me regalava em passar perto do palácio, porque é uma construção digna de abrigar a mais alta autoridade do Estado. É uma construção respeitável, decorosa, e que levava consigo a ideia do poder e da ordem bem instalados. Eu, monarquista desde o primeiro piscar de olhos, pensava assim a respeito da ordem. E quando passava perto do palácio e era hora em que os soldados tocavam umas trombetas, não sei para que finalidade, esses toques coincidiam mais ou menos com a hora em que o sino da igreja do Coração de Jesus carrilhonava o Angelus. Aquilo me parecia uma convergência lindíssima. Por quê? Porque, sobrepairando sobre a ordem material, estava a ordem espiritual, imponderável, nobilíssima, muito mais nobre do que a ordem material a perder de vista, e que me falava já então do Céu e das coisas do Céu. Lá era o palácio eterno da ordem perfeita, onde Deus supremo, infinitamente sábio, infinitamente santo, infinitamente poderoso, mantinha em ordem todas as coisas. Esse quadro me enchia de comprazimento, de amor, de entusiasmo385 . *
Eu nasci em 1908, quando São Pio X ainda era Papa. Ele morreu em 1914 e os reflexos do pontificado dele duraram até muito depois de sua morte. O progressismo e coisas congêneres demoraram muito para chegar ao Brasil.
384 Chá PS 1/12/81 385 Chá SB 22/5/91
Portanto, formei o meu espírito numa atmosfera “piodecimal”, em que as coisas ordenadas entre si eram ainda bem numerosas e me encantavam. Percebia que tinham ligações. Por exemplo, a questão da monarquia e da Igreja: não me pus o problema a respeito de se a Igreja e a monarquia deveriam estar unidas ou separadas; ambas instituições nasceram no meu espírito como coisas unidas. A afirmação da união entre elas era conatural comigo. Para mim, na ordem “B” das coisas, a nação princeps muito cedo se pôs como sendo a Áustria. Princeps na ordem política e na ordem político-religiosa. Na ordem “A” – não na ordem “B” – a nação princeps era a França – le doux pays amado e deliciado inefavelmente com encantos, e com uma irradiação na linha “A” a que sempre dei por alguns aspectos muito mais importância do que à linha “B”386 . *
A fachada do Teatro Municipal em São Paulo era objeto de admirações enormes de minha parte. Sobretudo alguns de seus vitrais. Gostava de passar em frente para ver. Eram então certas admirações que esvoaçavam para todos os lados onde havia harmonias. E uma tendência para uma espécie de harmonia central da qual tudo partiria com sua nota dominante. Quando atinei que a harmonia que havia na alma de mamãe vinha da devoção que ela tinha ao Sagrado Coração de Jesus, aí compreendi tudo. Entendi que a Religião era o centro de tudo, que Jesus Cristo Nosso Senhor era o ponto de partida de tudo. Nesta linha, fiz longos estágios diante daquela imagenzinha do Sagrado Coração de Jesus que há no quarto de mamãe, e que me parecia muito bonita. A partir dela, eu formava a ideia de um Jesus do qual aquele era uma representação muito feliz, mas não era Ele. E me perguntava: “Como será Ele? E como será o Coração d’Ele? Que símbolo é este Coração? Por quê?” E aí, em torno desse núcleo central que era constituído pela Igreja Católica com todas as suas harmonias; que era constituído antes de tudo pela figura de Nosso Senhor e depois de Nossa Senhora; e também pelo órgão e pela liturgia, foi-se formando a ideia de uma harmonia religiosa eclesiástica e inspiradora e coordenadora de todas as outras harmonias, a alma da sociedade humana387 .
386 Almoço EANS 17/7/92 387 CSN 4/6/94
Havia uma porção de coisas que me enlevavam enormemente e que preparavam minha alma para a compreensão da Providência embebendo a vida temporal e elevando-a. Eu gostava enormemente de cada coisa da ordem temporal impregnada de tradição. Apreciava os objetos, as coisas, e via os mais altos aspectos disso e para onde é que conduziam. Tudo isso eu percebia perfeitamente bem. A Fraülein Mathilde, por exemplo, com o hábito que têm os alemães pela cultura clássica – eles não descendem nem dos gregos nem dos latinos, mas ninguém é mais enragé pela cultura clássica do que eles, e é ali! – nos leu todo um resumo quilométrico de coisas da guerra de Tróia, de “Aquilóis” (Aquiles), de “Tzóis” (Zeus). Na narração dela, aqueles nomes todos eram meio gregos, meio troianos, meio alemães. Ela “alemoava” aquele negócio todo, eu não percebia. Depois, gostando muito de tudo quanto é alemão, eu ia na onda, aquilo era assim mesmo. Lembro-me de ela falar do “Hector” (Heitor), como o “Hector” combatia. O inimigo do “Hector” era “Aquilóis” (Aquiles). E saía briga do “Hector” com o “Aquilóis”. O irmão de “Hector”, Páris (mitologia grega), parece que tinha paixão por uma Helena, que era uma rainha grega que estava lá. Bem, eram coisas desse gênero, não me lembro bem. Mas lembro-me de que eu fazia reflexões assim: “Como é lindo o heroísmo! Como é lindo esse ambiente da guerra de Tróia! Como pode haver gente que não compreenda o espírito militar e não ame esse espírito! Mas, de outro lado, como essa história não vale nada por não ter Nosso Senhor Jesus Cristo dentro!” Esses dois pontos eu não dizia para a Fraülein, porque ela não me quereria ver partir de lança em riste contra os meninos pacifistas daquele tempo. E sobretudo ela não entenderia que eu achasse aquilo vazio porque não tinha Nosso Senhor. Mas eu pensava: “O píncaro é Ele, e toda essa gente que está por aqui correndo de um lado para outro, pulando como cavalo, se matando e pulando do muro e depois caindo do muro, e com decepções e com esperanças, não é nada em comparação com o Sagrado Coração de Jesus”. Pusessem a Ele no centro das coisas e tudo se explicaria. Só gosto dessas coisas do “Hector”, “Aquilóis” e “Tzóis” na medida em que possa conceber em função d’Ele, porque assim é só Ele. E só gosto d’Ele e o resto não me interessa. Eu entendia perfeitamente que a ordem temporal recebia isto da Igreja Católica. E que se quisesse conhecer bem a ordem temporal, eu deveria conhecer a Igreja Católica a fundo e saboreá-la, porque Ela é o néctar do que tem a ordem temporal. A ordem temporal tem uma irradiação do que tem a Igreja Católica. Então: igrejas, sinos, torres, clero, todo o ambiente.
Se eu tinha amor a tudo isto, era porque no fundo estava Ele. E Ele assim, como descrevi. Sentia a presença d’Ele em tudo388 . *
Olhava para os meninos com quem convivia e notava que Jesus fazia algumas coisas dessas nas almas deles também. Notava ainda que fazia muito menos, e que os outros prestavam muito menos atenção. E ficava com certa ideia de que isto era por culpa dos outros, uma indecência. Era o começo de luta que ia aparecendo no horizonte. E esse começo de luta não me empolgava como empolgou-me mais tarde. Como ainda não via o mal neles, via apenas um minus-bem, com isto não pensava no futuro choque, mas sentia um certo vácuo. Gostaria muito que isto fosse diferente. E isto ainda não me levava diretamente para a luta. Daí vinha outra ideia, que em termos de hoje eu exporia assim: “quam bonum et quam iucundum habitare fratres in unum”389 – “Como é bom e alegre que os irmãos morem juntos”. Eu formava com eles um todo tão alegre, tão bom, tão agradável, que eu pensava: “Como isto é bom”. Mas esse lado bom provinha sobretudo do fato de haver neles um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eles não tinham ainda rompido com Nosso Senhor Jesus Cristo, não eram inimigos d’Ele, não tinham estabelecido um corte de relações, não eram filhos do demônio. Aliás, eu sabia da existência do demônio, mas não punha o demônio nessa cogitação. Eu me sentia posto na minha situação própria e natural, contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica, que começava então a aparecer ao meu espírito; contemplando em mim, em mamãe muitíssimo e em todos os que me circundavam. Os mais velhos, por reverência, eu imaginava transidos de disposições de espírito análogas. De maneira que era um mundo todo católico, mundo minúsculo de um menino, dentro do qual sentia a complementação normal da felicidade que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Detendo-me por um instante nesse panorama, ia nascendo em mim a noção de que a condição normal do homem era a de adorar Nosso Senhor Jesus Cristo, receber a sua influência e ser como Ele. E me dava conta de que, para isto, precisaria contar com a harmonia e a ação supletiva dos outros, tomando em consideração que a parte de bem que Nosso Senhor Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele me fazia por meio dos outros. E
388 CSN 20/12/86 389 Sl. 132, 1.