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O desenvolvimento do amor pela lógica

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ÍNDICE DE LUGARES

ÍNDICE DE LUGARES

que, com cada um, Ele tinha uma ação direta, e depois uma ação supletiva da ação direta d’Ele, exercida por meio dos outros. Aqui entrava, não a ideia, mas o pressuposto da sociedade temporal cristã, da Cristandade. O meu lar, a minha família, os meus parentes; também todas aquelas famílias que moravam no bairro dos Campos Elíseos, todo esse conjunto eu considerava como uma mesma coisa. Era o mito de uma Cristandade, sustentado por uma porção de aparências que tinha o mundo naquele tempo, e que ainda eram boas, e que supunha habitadas pela influência de Nosso Senhor Jesus Cristo. Via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja com quatro-cinco filhinhos que se seguravam pelas mãos, ela segurando os mais novinhos, e na outra ponta iam os mais velhinhos. Ela ia conversando e vigiando. Atrás vinha o pai com ar grave, segurando uma bengala pelo castão, com ar de quem os defende contra qualquer ameaça que pudesse surgir. Eu achava aquilo tão direito, tão normal; Jesus Cristo estava tão presente em tudo isso, que eu formava a ideia de que, para ser inteiramente cristiforme, o conveniente seria que tudo em torno de mim fosse cristiforme também390 .

O desenvolvimento do amor pela lógica

Eu amava imensamente a lógica, que teve em mim dois instrumentos para este amor. O primeiro deles foi a Igreja Católica, a Religião católica. Logo depois, o primeiro instrumento mais próximo deste amor foi a Fraülein Mathilde, com o seu espírito alemão. Aquela lógica eu admirava enormemente, a lógica que chega até o fim, que diz que tem que fazer e não tem remédio: ainda que desagradável, não recue, tem que ser isto. Eu às vezes – coisa de menino – me “rebifava”, porque era obrigado a fazer uma coisa desagradável. Por exemplo, obrigava-me a decorar aquelas declinações do latim: Rosa, rosae, rosarum; depois, qual era a primeira declinação, qual era a segunda, a terceira, a quarta, a quinta; os casos nominativo, genitivo, dativo, acusativo, ablativo, vocativo; plural, singular; substantivo masculino, feminino, neutro. Eu dizia para mim mesmo: “Ela, afinal de contas, é uma educadora fenomenal”. E era. Era uma educadora de mão-cheia. Pintei o caneco com ela, mas no total nos entendíamos, porque não me revoltei contra ela. Ela entendeu isto e tolerou.

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Terminada a história, eu percebia que tinha aprendido as declinações. Mais ainda: percebia que tinha tomado certo gosto pela lógica da composição da frase latina e pela lógica da ordem inversa. Como era bonita essa ordem inversa! Creio que a Fraülein não conhecia a beleza disso, porque ela nunca me disse, mas eu a senti. E saía dessas aulas dizendo: “Afinal, não deixa de ser verdade que essas declinações são, para o espírito, o que uma escada é para o corpo. A gente sobe, desce, entra por aqueles vãos, mas sai de dentro mais forte”. E acabava me regalando com aquela mecânica das palavras no latim, um pouco parecida com a mecânica celeste. Eu não dizia isto para ela, mas chegava à conclusão: “Tudo isso aprendi porque a Fraülein foi lógica! Oh! lógica.” Eu tinha então entre dez e doze anos. Foi mais ou menos nesse tempo – isto para ver como as coisas iam se encaixando –, que conheci os “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio. Eu tinha um professor chamado Padre João de Castro e Costa, um amazonense muito tagarela, mas de uma lógica de pensamento uma coisa extraordinária. Percebia que ele tinha essa lógica porque os jesuítas ensinavam para ele. E pensava: “Este mestre aqui sabe essas coisas todas porque aprendeu desses padres. Aprendeu de quem? De Santo Inácio. Foi ele quem fundou a Companhia de Jesus e ensinou a ser lógico assim”. Vieram os Exercícios: – Ahhhh! que lógica! Não tem coisa igual! Mas, então, a vida tem que ser lógica. E ela só tem beleza e é digna de ser vivida se for coerente. Por causa dessa lógica terei que sofrer, porque impõe um sofrimento medonho. Quero ou não quero esse sofrimento? Já que Nosso Senhor morreu por mim na cruz, eu quero! E neste caminho vou até onde for! Só sei que a Revolução deve ser derrotada, e espero assistir a vitória da Contra-Revolução. E, nessa vitória, Nossa Senhora me paga de uma vez tudo o que eu fizer por Ela! Essa postura de alma denotava um entusiasmo pela lógica, que vale mais do que qualquer entusiasmo sensível. E este é de fato o esteio da alma. Porque o entusiasmo pela sensação vem, vai, é uma maré que sobe e desce de acordo com a lua. Mas pela lógica, não. Está visto como é, e se formos inteiramente lógicos, inexoravelmente as coisas caminham assim. Esse entusiasmo vinha da persuasão de que tudo o que não vá na via da lógica acabava sendo mentira, fraude, frustração, catástrofe, derrota, sujeira. E isto dá vida ao meu modo de operar, porque se eu não for lógico no que estiver fazendo, vai sair uma coisa torta.

Pelo contrário, por maiores que sejam as adversidades que venham por cima de mim, se eu for lógico, acaba dando numa coisa magnífica. Preciso ser lógico. Percebi desde logo que o elemento primeiro da lógica é um espírito de verdade, pelo qual tomamos as evidências como evidências e cremos nelas com toda força, e respeitamos nelas o que elas têm de evidente. Aquilo que é evidente não vou dar como certo: dou como evidente, o que é um grau superlativo de certeza. E aquilo que é certo vou dar como certo, e não admito dar por evidente. Igualmente, se tal coisa comporta dúvida, devo medir o grau de dúvida que comporta, nem mais nem menos. E assim por diante. Percebia também que há uma espécie de limpeza de alma nessa posição, que é um aspecto da inocência primeva. A pessoa deve procurar conservá-la na primeira idade, com o mesmo cuidado que, na segunda idade, irá conservar a pureza. Isto produz na alma toda uma sinfonia de certezas, que até dentro da incerteza irá introduzir um elemento de certeza, fazendo o seguinte raciocínio: “De tal coisa eu duvido, mas estou certo de que aqui é o caso de duvidar”. Não é, portanto, uma dúvida de quem não sabe que atitude tomar perante aquilo, mas é uma dúvida certa, que tem fundamento, sabendo que aquele grau de dúvida não só é legítimo, mas obrigatório naquele caso. E que faz com que essas certezas primeiras bem construídas, vindo junto com o amor à lógica, dão um edifício de verdade magnífico391 .

O caráter sobrenatural desse robustecimento da inocência

Quando me recordo de coisas que se passaram comigo dos quatro ou cinco anos em diante, quando se produziram fatos de mística ordinária, os quais naquela época absolutamente eu não sabia que pudessem ser místicos – eu nem sequer conhecia o sentido da palavra místico – eu ficava de momento tão encantado, os fatos eram tão dicedores, diziam tanta coisa, que aquela degustação em mim durava muito tempo. Em primeiro lugar, atribuo isto a não ter dado adesão às coisas do mundo moderno. Na minha inocência, eu tinha dado adesão a mamãe, e a tal ou tal coisa boa que via. Dar adesão significa, aqui, permanecer na minha alma. Eu ia formando um depósito de impressões, de sensações desse gênero que se iam depositando em minha alma, e que durante o dia voltavam e combatiam aquilo que tentava destruir em mim esse bem-estar, essa felicidade, essa santidade interior. De onde nascia uma reação minha contra o que se opu-

391 CSN 13/1/90

nha a esse depósito de impressões: “Aquilo é ruim”. Daí essas sensações demorarem392 .

Quando em menino voltei da Europa, e mesmo um pouco antes disso, recebia graças que me levavam a deter-me longamente na análise de coisas, mais do que de pessoas. E percebia que essas coisas eram uma representação criada de algo infinitamente superior que, em outra região, existia e que se mostrava ali. De onde uma tendência contínua, não propriamente a atribuir às coisas qualidades que elas não têm, mas em compreender que as coisas têm qualidades visíveis e certas qualidades invisíveis, as quais se perdem nas nuvens, mas podem ser vislumbradas por uma pessoa dotada de certa perspicácia ajudada pela graça. Ela então acaba percebendo algo de enormemente superior nessas coisas. Isto é propriamente uma meditação na linha da mística ordinária, comum, que é dada a qualquer homem, e é uma contemplação de coisas sobrenaturais que um toque da graça faz-nos ver em nexo com alguma coisa natural que caiu debaixo dos nossos olhos. E acredito que, essas graças, Nossa Senhora me dispensava largamente393 . Não pensem que se trate de uma aparição, de uma revelação. Nunca na minha vida fui favorecido com uma aparição ou uma revelação. Nunca! É no terreno dessas graças comuns394 . Isto tive desde os cinco anos, mas sem o menor esforço, e continuamente, não no sentido de que tivesse isto a propósito de qualquer coisa que visse, mas no sentido de que muitas eram as coisas a propósito das quais eu via. E o que eu via, para mim não representava o esforço de uma ascensão, não representava o esforço desagradável para me destacar daquilo que estava considerando. Era como se aquilo se iluminasse por dentro com uma luz que fazia ver o mais alto. Nisto entrava o esplendor da alegria, e de uma cognição sensível de uma graça – que não era uma visão, repito – a qual vinha acompanhada de uma cognição muito grande do mal e, portanto, de tudo quanto tal coisa,

392 CSN 26/11/94 393 Chá SRM 21/9/89 394 Chá EPS 14/2/85

tal pessoa ou tal objeto tinham de mal em si, seguida de uma repulsa que se deve sentir em relação a isso395 .

Nas impressões suscitadas em mim por uma inocência natural, dois efeitos se produziam: o primeiro era o gáudio intenso que sentia pela posse daquele bem inocente, gáudio esse que tinha qualquer coisa de sobrenatural; o segundo, quando comecei a tirar os olhos da realidade imediata que me circundava e a prestar atenção na realidade remota da Europa, vislumbrando nela aspectos maravilhosos. Via aquela realidade de maneira completa. Havia nisso uma graça que já não era mais o prolongamento da inocência primeva, mas que, na linha da inocência primeva, abria horizontes para outras realidades existentes. Havia também, por fim, realidades sobrenaturais que eu discernia por uma graça sobrenatural. Eu punha em ordem ambas essas coisas, juntando-as com as impressões primeiras. E tudo aquilo ficava promiscuamente na minha cabeça. Entretanto, a divisão que havia não era o natural e o sobrenatural, mas era a Revolução e a Contra-Revolução, que é um fenômeno de tal natureza que a todo momento, se se quiser fazer a distinção, aparecem pontas de sobrenatural. Eu apenas não tinha a atenção voltada para esse ponto da necessidade da graça, porque, para meu espírito, isto era a concepção de todo o mundo396 . *

O fato de ter sido muito precoce e conservar a inocência em um período em que, para efeitos da arquetipização das coisas, a minha alma já estava bem mais desenvolvida do que a de um menino de minha idade, isto devo a uma proteção especial da Providência. Menino de menos de dez anos, eu já tinha considerações, tendências, movimentos de alma muito intensos, não como de um homem adulto, mas correspondentes aos de um mocinho. Digo até mais, embora isto possa parecer um exagero ridículo: quando criança de quatro ou cinco anos, já notava em mim movimentos de alma – que não era a minha alma toda – de uma precocidade de menino de doze anos ou mais.

395 Chá PS 23/10/91 396 MNF 12/10/94

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