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O combate para preservar uma criteriologia inocente e cheia de Fé
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
Esse apetite de mediocridade se faz sentir no mundo inteiro. E é paradoxal que um homem de quem a Providência haveria de querer que tivesse que lutar várias vezes na sua infância contra a tentação de se mediocrizar, fosse o homem que abrisse a marcha para sair de dentro da mediocridade e ir para o píncaro dos píncaros oposto, que é o Reino de Maria. Quem me conhece sem esta confidência, imagina que eu, quando dei meu primeiro gemido, quando chorei pela primeira vez, logo depois exclamei: “Sou marquês!” É a impressão que posso dar. Nunca terá a impressão de que lutei como uma fera para não sair do meu meio e me mediocrizar. Entretanto, quando conto isto, percebe-se como isto teria fundamento no meu modo de ser: a minha estabilidade, o meu sossego, o meu gosto pelas coisas que se movem pouco. Gosto enormemente do imobilismo. E é do fundo dessa catarata que parte um apelo para que formas de altura: diretamente para o Reino de Maria. É um paradoxo411 .
O combate para preservar uma criteriologia inocente e cheia de Fé
Desde a infância, nas horas e horas de ida e vinda de bonde para meu colégio, notava que outras coisas rodavam pela minha cabeça. Aí percebi que pensava... E dizia de mim para comigo: “Como sou esquisito. Todo mundo pensa de um jeito diferente: pega uma premissa maior, uma premissa menor e tira um silogismo. Já fico com esses fragmentos de pensamento de cá e de lá. Seja como for, se sou esquisito, sou esquisito mesmo, mas o que está na minha natureza é fazer assim e para mim isto é reto. E vou continuar fazendo assim. Um dia encontrarei a razão disso”. Bem mais tarde, percebi que subconscientemente estava fazendo aos pedacinhos uma enorme síntese. E mais tarde percebi que estava fazendo exercício de entretenimento. Portanto, desde pequenino o meu entretenimento começou. Era a inocência, que é o patrimônio de todos nós quando Deus nos cria e a Igreja nos batiza412 .
411 CSN 6/8/83 412 RN 31/1/75
Então, era a ideia de que coisinhas mínimas se prendem a princípios enormes e têm consequências colossais. Tudo, tudo na vida se prende às mais altas razões, aos mais altos princípios413 . *
Coisas que eram consideradas grandes descobertas no meu tempo de estudar Física e Química, hoje se reputam coisas velhas e sabidas. Quando, por exemplo, o irmão leigo da Companhia de Jesus fazia alguma experiência de Física, aquilo para o nosso tempo era uma expressão do quanto a ciência desvendava os segredos da natureza, bem como uma expressão do mundo novo e perfeitíssimo que as invenções científicas haviam de proporcionar ao homem. Daí uma adoração pela ciência, que envolvia tacitamente uma subestima da Fé, isto porque a Fé não proporcionava certezas quadradas e palpáveis como as da ciência. E como, na concepção deles, em matéria de certeza só as quadradas e palpáveis é que são verdadeiramente certezas, a Fé ficava toda envolta em dúvidas. E, pelo contrário, esse mundo da ciência era o mundo da verdade indiscutível. Era, portanto, um mundo do maravilhoso, porque eram coisas que se iam descobrindo. E notava o espírito materialista que havia nisso. Consequência disso é que, para os brasileiros do fim do Império, ser poeta ou ser prosador era bonito, era uma grande coisa. Para os brasileiros do meu tempo, era uma coisa ridícula, porque a poesia não oferecia vantagem nenhuma para a vida prática. No fundo, era porque a poesia era um bem do espírito, e os bens do espírito não têm valor: os bens do corpo são os que têm valor. No fundo desse abismo de erros havia uma afirmação materialista. Odiava esta posição e recusava-me a participar desse banquete podre, que era o banquete do entusiasmo pelas ciências que vinham. Alguém dirá: “Mas o senhor poderia ter feito uma distinção, e poderia ter dito: o exagero disso é mau, mas a coisa em si mesma é boa”. Não é verdade. Quando se faz essas distinções com aquilo que o demônio está encumbrando414, de fato se engole o mal. Há certas distinções que são especulativamente válidas, mas que na ordem concreta das coisas são psicologicamente perigosas415 .
413 Chá SRM abril /91 414 Palavra de origem castelhana, que significa “colocar no cume”, “enaltecer”, “destacar”. 415 Chá SRM 29/11/90
Ainda menino, eu notava, especialmente em algumas coisas, o contrário da virtude da sabedoria. Por exemplo, na mania de estar sempre dando risada, e só se preocupar com as coisas que provocam riso. Uma conversa que não provocasse riso não tinha valor para ninguém da minha idade, naquele tempo. Também nas músicas e nas danças: todas elas, comparadas com as do passado, eram de lo último. Alcancei, por exemplo, a introdução do jazzband. Se um louco tocasse uma fanfarra, saía um jazz-band, quer como partitura, quer como instrumento. Igualmente notava a falta de sabedoria nas casas novas que se construíam. As casas anteriores ao meu nascimento eram algumas maiores, outras menores, é claro. Mas todas eram sérias, e tanto quanto possível tendendo para palácio, para uma coisa ordenada, direita. Já as casas novas eram construídas no estilo bangalô, uma espécie de chalé suíço, mas mais baixo, mais chato, com quartos pequenos, onde se tinha a sensação de estar penetrando numa casa de bonecas. No bangalô, tudo era feito para o conforto, nada era feito para a distinção nem para a nobreza, nem para a seriedade. Por exemplo, uma grande biblioteca ou uma sala de visitas solene ficariam completamente fora de seu lugar num bangalô. Nas modas, a falta de sabedoria fazia com que a infância entrasse para a adolescência o mais tarde possível, de maneira que as crianças eram mantidas na infância até o mais tarde possível. Os moços eram mantidos na adolescência até o mais tarde possível. Os velhos eram mantidos na mocidade até o mais tarde possível. E todo o mundo queria voltar para trás insensatamente, para fugir da morte, como se isto adiantasse qualquer coisa. Quer dizer, cada vez mais eu percebia que tudo se deteriorava, que tudo perdia sua beleza, que tudo perdia sua dignidade. Toda essa maluquice exprimia muito a falta de sabedoria. E isto, naturalmente, eu rejeitava com toda a alma. Por essas coisas todas fui formando convicções: “As coisas devem ser o contrário do que estão acontecendo. Elas devem ser como eram e não como são. As que eram, eram piores do que as que tinham vindo antes. E as que vierem vão dar lugar a outras piores”. Nessa ideia está subjacente a ideia das três Revoluções. E fui formando, então, a execração da falta de sabedoria. Eu notava isto no clero também. Tudo isso me fez execrar a falta de sabedoria e recusar a minha amizade aos não sábios. Porque não se execra uma coisa má e ao mesmo tempo é-se indiferente a que o outro tenha essa coisa má.
É preciso dizer que a não-sabedoria me pagava abundantemente na mesma moeda, e me execrava de um modo total416 . *
Eu tinha uma propensão enorme para, a respeito de muitas coisas que conhecia e que me maravilhavam, perceber confusamente – porque cabeça de criança é cabeça de criança – a relação e a harmonia daquilo com certa disposição do sentimento humano. Desde cedo percebi que meu ambiente não era em nada receptivo a essas elucubrações. E tenho a impressão de que foi desígnio de Nossa Senhora permitir, como um primeiro passo, que o meu espírito caminhasse através dessas elucubrações, para depois, num momento oportuno, ser tomado pela Fé. Sabia que assim ia me isolando e formando um mundo interior, e que o atrito com o mundo exterior mais tarde viria. E percebia que eu ia criando uma situação de crise dentro de mim, que vinha de uma situação de recusa do mundo exterior, e que preludiava minha luta com ele e dele comigo. E, portanto, uma situação de desventuras no futuro. Mas, como achava que mais valia a pena qualquer coisa a ser infiel àquilo que se ia modelando dentro de mim, eu perseverava naquilo. Tenho a impressão de que isto era um convite da graça, que se servia in concreto das condições internas de uma determinada casa, no caso a de minha avó, que era tudo o quanto há de mais comum. O caminho da Providência para toda alma é mais ou menos este: tomar o ambiente onde a pessoa está, pegar o que tem de bom nesse ambiente e valorizar; ver o que tem de ruim e ir formando o segundo sentimento pouco a pouco. Notem que sempre faço, em relação a meu percurso intelectual, uma crítica criteriológica: “Do que valeu aquilo que minha infância me disse? Se não estiver de acordo com a razão ou com a Fé, caput! Não serve!” Mas a análise criteriológica e lógica vem sempre. Tudo isto que estou dizendo foi anterior à colocação do problema da pureza. Foram coisas que andaram pela minha cabeça quando tinha cinco ou seis anos, e onde certo tipo de fruições ligadas à impureza não estavam presentes. De outro lado, hoje me dou conta de que via em tudo isso algo que era o contrário do egoísmo. Porque, amando essas coisas maravilhosas, todo o impulso, todo o jato, toda a força de impacto de minha pessoa caminhavam
416 Chá SRM 27/8/90
para uma realidade mais alta do que eu mesmo, em relação à qual eu tendia a me constituir numa posição de vassalagem, de admiração, e tendia a servir. A admiração era o próprio meio de me pôr nessa posição. Havia um gosto da vida ligado a isso, mas esse gosto da vida era intensamente idealista. Não diria altruísta, porque altruísta dá uma ideia de horizontal, mas era intensamente metafísico. No fundo era amor de Deus. Mas eu não punha esse assunto assim. Eu era um menino piedoso e percebia que a piedade rumava para essa linha. Mas a minha piedade não era tão saliente como de algum modo se tornou depois. Essa procura do maravilhoso era, entretanto, impregnada do amor desinteressado a esse maravilhoso, que seria um dia o amor de Deus417 . *
Isto se aplica às menores coisas, como por exemplo, no desaparecimento do uso do sapato e o aparecimento do tênis: é uma época que acaba e outra época que começa. Pela bondade de Nossa Senhora, desde pequeno meu espírito foi muito ágil em pegar essas coisas. Pegando-as, sabia classificá-las. Classificando-as, fazia um depósito enorme de correlações, tanto do lado revolucionário como do contra-revolucionário; e assim fazia da minha própria cabeça uma fortaleza na luta contra a Revolução. Isto supunha, naturalmente, que eu tivesse amado muito o bem desde o começo, e odiado muito o mal desde o começo também. Desse amor ao bem e desse ódio ao mal procedeu todo o resto418 . *
No livro “Meio século de epopeia anticomunista”419 escrevi uma frasezinha, com uma caligrafia péssima, e à maneira de poesia de pé quebrado420 . Aquela frase exprime o que se passou em mim para conservar a minha inocência. Mas aqui, inocência não era só a castidade. Era também e indispensavelmente a castidade, e a castidade inteira, mas ousaria quase dizer que não era principalmente a castidade.
417 CM 19/1/86 418 Chá SRM 22/3/94 419 “Meio século de epopeia anticomunista”, Ed. Vera Cruz, São Paulo, 1980. 420 O texto completo é o seguinte: “Quando ainda muito jovem, / Considerei enlevado as ruínas da Cristandade, / A elas entreguei meu coração. / Voltei as costas ao meu futuro, / E fiz daquele passado carregado de bênçãos / O meu Porvir...”