Passei um bombril na memória

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PASSEI UM BOMBRIL NA MEMÓRIA II

SEBASTIÃO SERPENTIN

C adernos do OLHAR#39 Verão 2023

A primeira e última vez que vi Sebastião Serpentin foi no verão de 1972 numa praia, nada deserta, do litoral do Rio Grande do Sul. Nascido em Paris, viveu em Porto Alegre, Rio e São Paulo — voltou a Paris, passou por Nova York, experimentou as paisagens exóticas de Bali — pode soar estranho mas Serpentin era surfista. — e desapareceu em Mairiporã, São Paulo, no final anos 1990. Seus escritos foram influenciados pelos poetas marginais do Rio de Janeiro dos anos 1970 e 80, notadamente por Chacal e Dunga, que conheceu no Pier de Ipanema em 1973.

Seus textos em prosa, datilografados em papel barato estiveram perdidos ou guardados em caixas de arquivo morto por décadas em Mairiporã e São Paulo. Os originais das obras em prosa — Instant nostalgia e Cada palavra tem um sabor — foram recusados por editoras de Porto Alegre, Rio e São Paulo, e estão desaparecidos.

Nascido Sebastian, aportuguesou seu nome depois de sua última viagem pela Europa, em 1992.

PASSEI UM BOMBRIL NA MEMÓRIA II

SEBASTIÃO SERPENTIN

Parte I

O bairro tinha pequenas fábricas: de camas Patente e de cadeiras Thonet; pequenas metalúrgicas que fabricavam penicos e bacias; de refrigerantes e de gelo em barra para geladeirinhas de madeira; uma fábrica de fogões. Por ali se concentravam lojas de peças para tratores, caminhões e automóveis, revendas e oficinas de automóveis importados como Ford, GM e Renault, e uma fábrica de vassouras de uma família italiana. As residências, grande parte de casas geminadas, eram habitadas por imigrantes alemães, poloneses, portugueses, espanhóis e, sobretudo, italianos.

— Esta semana vamos comer peixe. Quem quer ir até o mercado? Preciso de alguém para carregar as compras.

Ele e alguma irmã acompanhavam-na ao Mercado Público. Ela era prática, organizada e nem sempre consultava a lista preparada de véspera. Funcionava para tudo, era despachada e às vezes rápida, mas não quando baixava o espírito de porco canceriano: pedia as mercadorias, olhava, provava, pedia mais, e mais outra coisa, e no final ficava tudo espalhado no balcão e ela não levava nada. Mas sobre os peixes ela sabia muito bem que queria os de água doce: pintados (Pimelodus pintado), jundiás (Rhamdia quelen), grumatãs

(Prochilodus lineatus), piavas (Leporinus obtusidens), traíras (Hoplias malabaricus) e bagres marinhos.

Sebastião ficava com a cara colado nos vidros geladas do balcão, onde eram expostos os peixes e achava graça dos bigodes dos bagres: — parecem os do vizinho, que anda de polainas no domingo. Mas achava a sujeira meio nojenta.

— Agora vamos tomar um sorvete na Banca 40, avisava decidida.

Parte II

As lembranças fluem na memória: o futebol no pátio da igreja; o primeiro técnico de basquete, que treinava táticas de ataque e defesa que ele não entendia, mas repetia tantas vezes que acabava funcionando; o movimentado estacionamento da transportadora Mercúrio, que nos finais de semana virava um playground para a garotada sempre organizando alguma atividade onde descarregar a energia; os ambulantes que passavam na rua com seus sons e barulhos característicos, a flauta de Pã do amolador, a matraca que anunciava os beijus, o peixeiro e seu balaio de chapa de galvanizada e o balaio do cachorro--quente com seus compartimentos especializados: um para o carvão, – esquentava os pãezinhos –, outros para mostarda e molhos. O cesto era coberto com um pano pardo.

— Precisamos pegar o bonde Floresta no abrigo da praça XV, ela comandava.

Trabalhando desde jovem encarava a vida sem temores, trabalhar para ela era como respirar, simples e essencial. Mas cozinhar era o ponto fraco, seu calcanhar de Aquiles. Precisava sempre de alguém para tocar o assunto. Aos domingos era o pai que cuidava do churrasco e na semana, após planejar as refeições,

era a empregada quem dirigia as panelas e o fogão.

— Não esqueça do sal, não deixe o arroz queimar…

Elas foram muitas: velhas, jovens, amalucadas, provisórias, competentes, até encontrar a que seria sua alma gêmea e companheira até seus últimos dias na casa.

Parte III

A casa era simples e aconchegante, não sei se devido à arquitetura, aos moradores, aos vizinhos ou pelo fato de que éramos crianças. Dois pisos de madeira, com um pequeno porão. Tinha um páteo interno dividido em três: uma área cimentada; um terço ocupado com flores e ervas, ao lado da edícula; e separado por uma singela cerquinha de madeira, com um portão que abria para um bosque de frutíferas com quatro árvores: laranjeira, bergamoteira, macieira e um pé de nêspera, desde sempre chamado de ameixeira. Ali o piso era de terra, enquanto o caminho do jardim era pavimentado com pequenas pedras de seixo rolado, o que era meio estranho para Sebastião. Explicável: estes espaços tinham sido projetados e executados pelo antigo proprietário. Com o tempo, e não foi muito tempo, ela com seu espírito modernizador, aliados as necessidades de espaço para os filhos, alterou esse edílico recanto.

— Precisamos de uma churrasqueira e um varal para pendurar roupa, decretou.

E assim foram abaixo a cerca e duas frutíferas. As outras resistiram um tempo, e finalmente restou apenas a ameixeira. Uma parte do bosque foi coberta e equipada com mesa, bancos e churrasqueira. Tempos depois uma parreira, raquítica, de uva Isabel, surgiu junto ao muro

uma troca justa na opinião de Sebastião.

A casa tinha um fogão à lenha que esquentava todo o térreo nos dias frios do inverno, e no piso de cima, no banheiro, um aquecedor a lenha, com uma serpentina, providenciava quentíssimos banhos de banheira e aquecia os três quartos. Na cozinha, uma mesa de abrir e fechar, para oito lugares, era onde se comia no dia a dia.

— Sai daí, é o meu lugar. Ô mãe…

— Quem foi ao ar, perdeu o lugar.

O grande quarto da frente tinha duas janelas, o do meio uma grande janela de quatro folhas, e o dos fundos uma janela pequena, de duas folhas. Os pais dormiam no da frente; as duas meninas no quarto do meio; e os rapazes, em dois beliches, nos fundos. A bagunça era grande, ele lembra de fazer tiro ao alvo na janela dos fundos da casa oposta da rua detrás, com uma espingarda de chumbinho, que não sei como existia em nossas mãos.

Mas havia disciplina na hora das lições de casa.

Nao demorou para a modernização derrubar este

o primeiro fogão a gás, ela aposentou o de lenha, onde costumávamos fazer bifes na chapa, apreciando os chiados da carne sendo apertada sobre o metal. Ela também se livrou do aquecedor e da banheira, no andar de cima, trocandoo conjunto por um box de alumínio e plástico com chuveiro elétrico. E completou a reforma revestindo as paredes com modernos azulejos. Aquilo era típico, mas na época Sebastião não percebia nem se irritava com a frase preferida dela:

É mais prático.

A sala de estar tinha móveis de linhas simples, quase modernistas, com uma mesa estendível para os dias de almoços ou jantares festivos e uma sala formal com duas poltronas, um sofá e um piano de parede. A escada de madeira bem desenhada, em curva, tinha os degraus forrados com uma passadeira que abafava os ruídos de quem chegava tarde e não queria ser percebido e, além disso, o vão embaixo dela era um bom lugar para brincadeiras e esconderijos. Mas geralmente virava depósito de coisas sem lugar definido…

Parte IV

— Preciso de umas coisas do mercado, por que vocês não vão ao centro e aproveitam para pegar umas frutas? Ordenou a meu pai.

O pai quase sempre vestia terno completo, camisa social branca e gravata. Era o seu normal. Sebastião carregava a listinha das compras. Desceram do bonde e caminharam pela rua da Praia, passando pelo Bromberg para ver umas ferramentas e na Livraria do Globo para comprar papel carbono e blocos de almaço pautado e quadriculado para as aulas. Atravessando a galeria no sentido do abrigo dos bondes, olhava os muitos balcões de vidro com todo tipo de bugiganga e objetos para casa, e aproveitava para namorar uma bola de couro Nº 5 na loja Cauduro, enquanto esperava o pai escolher as frutas nos ambulantes da praça.

O pai conversou rapidamente com um amigo. Quem era? O nome dele não era Aimoré? Era o fotógrafo que tinha o estúdio ali no centro da cidade, e nos finais de ano colocava na vitrine da loja um Papai Noel articulado, que movimentava o rosto e a vara de marmelo. O que encantava a criançada. O pai sorria ao voltar com duas sacolas cheias. Dali foram assistir à missa das dez.

Antes passaram no mercado para comprar erva-mate. Voltaram de bonde, carregados de compras.

O primeiro domingo do mês era reservado para a missa na igreja das Dores e depois encontrar o nonno na Praça da Matriz.

— A benção nono.

— Benção.

Não lembra de ter formado uma frase sequer nesse diálogos dominicais, nem o nonno, que era muito econômico com as palavras, não fazia nenhum esforço para se comunicar com os netos. Após este pequeno e único diálogo de Sebastião com o avô, ele colocava a mão no bolso do paletó de linho branco, tirava algumas balas e dava a conversa por finda. Mais, só dali trinta dias.

Cadernos do OLHAR � Verão 2023

PÓS PERÍODO OBSCURANTISTA, NEGACIONISTA, FASCISTA

Editor Claudio Ferlauto

Tipografia Graviola, Henrique Beier, 2014

Bodoni, Morris Fuller Benton, 1989

Contatos

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