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Tempos de esperançar: 100 anos do nascimento de Paulo Freire

Nos momentos em que os caminhos parecem intransponíveis, sonhar com um futuro melhor abre as portas para o esperançar. Assim, as conquistas de cada passo dado criam novos sonhos e, como consequência, novos esperançares. Partir do saber feito, daquilo que é senso comum, do momento da história de cada ser humano e buscar o que o educador chamou de inéditos viáveis, que são os passos para chegar aos nossos sonhos.

Sérgio Haddad1

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O ano de 2021 é de muitas celebrações pelo centenário de nascimento de Paulo Freire. Nascido em 19 de setembro de 1921, em Recife, o educador é um dos mais importantes intelectuais brasileiros, com enorme repercussão internacional.

Paulo preparava um programa nacional de alfabetização a ser implantado pelo governo de João Goulart quando foi preso e exilado pelos protagonistas do golpe civil-militar de abril de 1964. O programa nasceria como decorrência da experiência com cerca de 300 jovens e adultos, realizada no ano anterior pelo governo do Rio Grande do Norte, na cidade de Angicos, sob a coordenação e inspiração do educador, e que acabou por ganhar notoriedade nacional e internacional, não só porque o método utilizado realizaria em 40 horas o processo de alfabetização mas também porque contribuiria para formar cidadãos mais conscientes dos seus direitos e dispostos a defendê-los. Os golpistas intuíram que o programa poderia desestabilizar

1 Sérgio Haddad é pesquisador da Ação Educativa.

os poderes constituídos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método, como também seu autor.

Cristão, Paulo vivenciou a pobreza com sua família nos anos 1930, principalmente depois da morte do seu pai, em 1934. Graças ao esforço da sua mãe, frequentou uma boa escola como bolsista, o que lhe deu base para se formar em direito (profissão que abandonou) e dedicar-se à profissão de professor. Depois de formado, trabalhou no Sesi de Pernambuco, nos movimentos de cultura popular, nas pastorais e como professor universitário, quando, através do Serviço de Extensão Cultural da então Universidade de Recife, passou a assessorar programas de alfabetização como o de Angicos. Casou-se com Elza em 1944, também educadora, e com ela teve 5 filhos.

Exilado com sua família por 15 anos, passou pela Bolívia, Chile, EUA e Suíça, regressando em definitivo ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores no mundo por suas ideias e experiências realizadas. Entre outras ações, no Chile, apoiou a campanha de alfabetização do governo Frei, além de trabalhar com camponeses. Ali escreveu seu livro mais famoso, Pedagogia do oprimido. Nos EUA, como professor convidado pela Universidade de Harvard, acompanhou diversos movimentos e visitou os serviços de extensão de várias universidades; quando esteve na Suíça, apoiou os governos dos países recém-saídos do regime colonial português, a partir de 1975. Paulo percorreu diversos continentes convidado por universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Durante os últimos dez anos do seu exílio, tempo que se dedicou ao trabalho no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, Paulo realizou mais de 150 viagens internacionais para mais de 30 países.

No seu retorno ao Brasil, tornou-se professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988, foi convidado pela então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, naquela época do Partido dos Trabalhadores, para ser Secretário Municipal da Educação. O educador faleceu em 2 de maio de 1997.

Paulo Freire foi agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo

no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais. Muitas outras homenagens, títulos e prêmios foram concedidos ao longo da sua vida e depois da sua morte. Mais de 350 escolas espalhadas pelo Brasil e exterior receberam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, auditórios, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos. Paulo inspirou estátuas e pinturas em sua homenagem, além de letras de músicas e enredos de escolas de samba. Diversos prêmios e condecorações foram criados em sua homenagem. Em 1995, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz.

Seus livros se espalharam pelo mundo. Pedagogia do oprimido foi traduzido para mais de 20 idiomas. Quase todos podem ser encontrados na língua inglesa ou espanhola, alguns em italiano, francês e alemão. Há traduções para valenciano, coreano, japonês, hindi, ídiche, hebraico, sueco, holandês, indonésio, dinamarquês, ucraniano, finlandês, paquistanês e basco. Pedagogia da autonomia, sua última obra, foi um dos livros mais vendidos de seu tempo no Brasil, atingindo, em 2005, depois de oito anos do seu lançamento, a marca de 650 mil exemplares vendidos. Seu legado tem se multiplicado em novos textos, estudos sobre sua obra, vídeos, filmes e gravações. Vários centros de documentação e de promoção do seu pensamento podem ser encontrados pelo mundo.

Em junho de 2016, o professor Elliott Green, da London School of Economics, publicou um estudo mostrando que Pedagogia do oprimido era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas, segundo um levantamento feito por ele no Google Scholar, à frente de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. Pedagogia do oprimido é também o único título brasileiro a aparecer na lista dos 100 livros mais requisitados nas listas de leituras exigidas pelas universidades de língua inglesa. Em 13 de abril de 2012, Paulo foi declarado Patrono da Educação Brasileira por iniciativa da então deputada federal Luiza Erundina. Em dezembro de 2018, a reconhecida revista Revue Internationale d’Éducation de Sèvres fez um balanço dos principais educadores da humanidade. Lá estava Paulo Freire, acompanhado, entre outros, por Rousseau, Condorcet, Vigostski, Dewey, Montessori e Grundtvig.

Paulo é reconhecido como uma das principais vozes da Pedagogia Crítica, aquela que não separa a educação da política. Acreditava na práxis como motor da transformação social. Não em uma práxis vazia, um ativismo inócuo, mas sim naquela alimentada pela teoria, pelo conhecimento, que se refazia na luta cotidiana. Acreditava no diálogo como método de apreensão e troca de conhecimento e aumento da consciência cidadã. Para ele, não havia saber mais ou saber menos, havia saberes diferentes. O diálogo efetivo, crítico, respeitoso, estava no centro do seu pensamento pedagógico, portanto, coerentemente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores, favoráveis ou não às suas ideias, com igual respeito. Fazia isto como um processo de aprendizagem pessoal, modificando o seu pensamento de acordo com o que apreendia nos diálogos, debates, polêmicas em que se envolvia.

Para o educador, não há neutralidade na educação: sendo um produto da sociedade, ela é reflexo de projetos políticos em disputa. Ao longo da sua vida, ao elaborar seu pensamento, bebeu de diversas teorias para orientar suas práticas com base em valores éticos, estéticos e políticos. Seu pensamento se fundamentava em uma profunda crença na capacidade do ser humano em se educar e ensinar, e com isso participar da construção de um mundo melhor, mais justo e respeitador da natureza.

O ano de 2021 desafiou a população mundial com a continuidade da pandemia. No caso brasileiro, o desafio foi ainda maior por ser acompanhado por um governo autoritário, negacionista, que além de encampar uma política catastrófica de combate ao vírus, ameaçou permanentemente os precários pilares da democracia brasileira. Em uma conjuntura como esta, não foram poucos os ataques ao educador Paulo Freire, desde a campanha eleitoral que levou Jair Bolsonaro ao poder. Seu pensamento incomodava os conservadores e a elite brasileira de 1964, como incomodou agora.

Ao focar sua pedagogia nos sem direitos, nos setores marginalizados, nos “esfarrapados do mundo e aos que com eles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”, Paulo Freire mostraria, por meio dos seus escritos, que ele tinha lado, e isso amedrontava as elites. Certa vez, respondendo a duas jornalistas que perguntaram sobre a eficácia do seu método, afirmou:

Você sabe que, teoricamente, o analfabetismo poderia ter sido erradicado no Brasil com ou sem Paulo Freire. O que faltou fundamentalmente foi vontade política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Não é fácil para a classe dominante reconhecer os direitos fundamentais das classes populares.

Em uma sociedade como a brasileira, marcada pelo racismo, pela homofobia, pelo machismo e pela exclusão social, ouvir os oprimidos, os marginalizados, os discriminados, como propôs o educador, é em si um ato político, da mesma forma que valorizar a diversidade cultural dos povos que habitam o nosso território. A luta pelo reconhecimento dos saberes da população oprimida é acompanhada pela presença dessas diversidades no âmbito da sociedade como luta que se soma à luta de classes, à luta econômica.

Para Freire, o ser humano tem em suas mãos a vocação de construir o seu caminho, de fazer a sua história e, ao fazê-la, fazer a história da sociedade. Mas no caminho de construir a sua própria história é também influenciado pela história dos outros e da sociedade em que vive. Esse processo de mão dupla o leva a tomar consciência das razões do seu caminhar, ao mesmo tempo que sonha com o futuro. “Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo de mulheres e homens”, afirma Freire.

Sonhar é parte da natureza humana e motor da história. Por isso não interessa às elites que os oprimidos sonhem. E não há sonho sem esperançar. Daí a necessária denúncia de um presente desumano e o anúncio de um futuro a ser criado. Porque a história é possibilidade.

Freire nos convoca a criar nossos sonhos, aqueles que tratam de superar as desigualdades e as discriminações de toda ordem, e anunciar um outro mundo possível. Por isso utiliza o termo esperançar, trocando o substantivo esperança pelo verbo. Esperançar é não ficar parado aguardando que este futuro sonhado chegue, mas sim agir para conquistá-lo.

Nos momentos em que os caminhos parecem intransponíveis, sonhar com um futuro melhor abre as portas para o esperançar. Assim, as conquistas de cada passo dado criam novos sonhos e, como consequência, novos esperançares. Partir do saber feito, daquilo que é senso comum, do momento da história de cada ser humano, e buscar o que o educador chamou por inéditos viáveis, que são os passos para chegar aos nossos sonhos.

E quais seriam esses passos de momento? Essas luzes que se acendem na escuridão? São as pequenas e as grandes lutas do nosso cotidiano. São as lutas das mulheres negras contra o racismo estrutural que mata seus filhos; são as expressões culturais em cujas formas e conteúdos denunciam um presente de feiura e anunciam um futuro de amorosidade; são as lutas dos movimentos sociais por direitos; os gestos de solidariedade que nos fazem acreditar nos seres humanos; são as juventudes que se engajam em ações para encontrar espaço no futuro de novas formas de relacionamentos; são as lutas dos povos tradicionais que defendem suas terras e tradições e apontam novos paradigmas de organização da vida, respeitando os direitos do ser humano e de outros seres vivos não humanos.

São muitos os sinais e as possibilidades de nos envolvermos na construção de um mundo melhor, denunciando um presente de sofrimento e violação de direitos. O futuro não é inexorável, diz Freire, juntos podemos esperançar.

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