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Retrocessos ambientais e ataques a direitos: um outro olhar sobre a Amazônia é possível
A destruição da Amazônia está intrinsecamente ligada à questão fundiária e à cadeia industrial global de commodities agrícolas e minerais. Durante décadas, fartos dados da CPT e do Cimi mostraram que, com o aumento do desmatamento, chega também o aumento da violência no campo. Quando territórios de povos indígenas, de comunidades tradicionais e de camponeses – que são preservados devido ao seu modo de vida – são ameaçados, também a floresta começa a ser. Das florestas, dos rios, do campo e das cidades amazônicas brota a resistência e estão em construção projetos de sociedade que vão além da mercantilização e financeirização da vida e da natureza.
Letícia Rangel Tura1
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Na Amazônia brasileira,2 a ofensiva de ataque à nossa frágil democracia se explicitou com a explosão do desmatamento e das queimadas, cujos significados estão ancorados no processo histórico de ocupação da região, que articula o crescimento do desmatamento aos conflitos fundiários, à violação de direitos socioterritoriais e à forma subordinada de sua inserção na divisão internacional do trabalho, como fornecedora de matérias-primas.
Os ciclos político-econômicos e agropecuários, historicamente, tiveram reflexos diretos sobre o desmatamento na região.3 Este se acentua a partir dos anos 1970, durante o período militar, com abertura de estradas, construção de projetos de infraestrutura, expansão da agropecuária e ocu-
1 Letícia Rangel Tura é da Fase. 2 Referimo-nos, aqui, à Amazônia Legal, que compreende os estados do Tocantins, Maranhão,
Pará, Amapá, Amazonas, Roraima, Acre, Rondônia e Mato Grosso. 3 Fearnside, P. M. 2005. Desmatamento na Amazônia brasileira: História, índices e consequências.
Megadiversidade v. 1, n. 4, p. 113-123.
pação da região com programas de migração dirigidos e ondas de migração espontânea, em detrimento da população indígena, povos e comunidades tradicionais que habitavam a região. Em meados dos anos 1990, vivenciou-se um novo pico na curva do desmatamento na Amazônia em função da disponibilidade de crédito no início do Plano Real. A maior parte da abertura de áreas na floresta se deu ao longo das rodovias para atividades agrícolas, fundamentalmente a pecuária e a especulação imobiliária. Esse processo conformou o chamado “Arco do desmatamento”, marcado no mapa a seguir, localizado nas margens leste e sudoeste da Amazônia Legal.4
Ao longo dos anos 2000, os principais vetores do desmatamento continuaram sendo a pecuária, a atividade madeireira e a grilagem de terra. Além disso, a destruição ocorre com a expansão do monocultivo de soja para o mercado global de commodities, com projetos de infraestrutura logística para o escoamento da soja, com a mineração e a produção de energia para indústria eletrointensiva. Em 2004, em resposta ao crescimento de 40% do desmatamento entre 2001/2002, que apontava para uma tendência de aceleração do desmatamento na região, se construiu o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM).5 Este plano buscou fortalecer a capacidade do Estado para o combate ao desmatamento. Foram criados novos órgãos ambientais, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e a reestruturação de antigos órgãos públicos de pesquisa, monitoramento, prevenção, fiscalização e combate aos ilícitos ambientais, como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). No caso do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) houve, ainda, o aperfeiçoamento dos sistemas de monitoramento e vigilância, como o Sistema de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal (Pro-
4 Em 2014, o relatório do projeto TerraClass (Inpe/Embrapa) apontava que o desmatamento acumulado na Amazônia brasileira era de 762 mil km2, 15,2% da sua área. Dados recentes do pesquisador Carlos Nobre dão conta que 20% da Floresta Amazônica já foi desmatada. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51317040. Acesso em: 8 maio 2021. 5 Ver Mello, Natália G. Rodrigues de; Artaxo, Paulo. Evolução do Plano de Ação para Prevenção e
Controle do Desmatamento na Amazônia Legal. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 66, abr. 2017.
des), e a criação de um novo sistema de alerta, o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter).
Ao longo da primeira década do século XXI, segundo o documento da 4ª fase do PPCDAM (2016/2020), se observou que o desmatamento, apesar de continuar concentrado no Arco, se expandia para além do entorno das rodovias. A abertura de novas estradas e o avanço tecnológico permitiu que ele alcançasse áreas mais remotas da Amazônia, ameaçando Unidades de Conservação e Terras Indígenas. Assim, apesar desses esforços e da significativa redução de 83% do desmatamento, entre 2004 e 2012, a partir de 2013 essas taxas voltaram a apresentar uma tendência de crescimento.
Novos caminhos do desmatamento na Amazônia Legal
Na contramão da necessidade de responder ao desafio do combate ao desmatamento e de cumprir acordos firmados internacionalmente pelo país, 6 vivenciamos, nos últimos anos, uma acelerada destruição da institucionalidade socioambiental brasileira, o que tem levado ao fortalecimento do crime organizado na Amazônia. É estarrecedora a velocidade e a dimensão dos retrocessos ambientais após a eleição de Jair Bolsonaro: o desmonte de marcos legais, dos aparatos institucionais, dos órgãos de fiscalização, preservação, comando, controle e da governança ambiental do Brasil.7 Desde 2019, observa-se uma explosão no desmatamento e queimadas na região para abertura de novos pastos e apropriação de terras públicas. A Floresta Amazônica tem pegado fogo acima da média histórica, conforme
6 O Brasil se comprometeu no âmbito a Convenção-Quadro das Nações Unida para as Mudanças
Climáticas, através de suas Contribuições Nacionalmente Determinadas/NDC, a reduzir 37% das suas emissões de gases de efeito estufa/GEE de 2005 até 2025, e 43% até 2030, alcançando desmatamento ilegal zero nesse período. 7 A profunda reforma ministerial, conduzida nos primeiros dias do governo Bolsonaro, esvaziou o
Ministério do Meio Ambiente/MMA, com cortes drásticos no seu orçamento, inclusive aquele previsto para a prevenção e controle de incêndios florestais, extinção ou enfraquecimento de secretarias que respondiam por políticas e programas de combate ao desmatamento e queimadas (inclusive o PPCDAm), povos indígenas e comunidades tradicionais. A redução e desmonte das equipes e estrutura dos escritórios regionais do ICMBio e do Ibama, com o desmantelamento de suas estruturas de fiscalização e controle, traduziu-se na redução de suas operações e, consequentemente, na diminuição no ritmo de multas aplicadas, além da revisão de contratos e redução de verbas para o Inpe.
dados do Inpe. O ataque do Executivo encontra reforço no âmbito Legislativo, com a tramitação no Congresso Nacional de projetos de lei que visam flexibilizar o licenciamento ambiental, reduzir ou recategorizar unidades de conservação e terras indígenas, a regularização fundiária via autodeclaração (PL 2633/20), liberar a mineração em terras indígenas e estabelecer um Marco Temporal para demarcação de Terras Indígenas (PL 490).
Todas essas medidas trazem graves consequências para o país e se traduzem numa autorização ao desmatamento. A destruição, a desestruturação da institucionalidade ambiental e a paralisação de políticas públicas foram acompanhadas pelo crescimento do desmatamento e de queimadas na Amazônia, tendo como marco o “Dia do Fogo”, em agosto de 2019, no município de Novo Progresso, localizado na BR-163, no estado do Pará. Conforme dados do Inpe, entre agosto de 2019 e julho de 2020, a área desmatada chegou ao nível anual mais alto desde 2008, num total de 11.088 km².
O governo federal investiu em fracassadas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), militarizando órgãos públicos, 8 implantando políticas de privatização da floresta, através dos Programas Adote um Parque, Programa Floresta + e o Programa de Concessão de Parques do BNDES, sem transparência, sem participação social e consulta a povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, com sobreposição a Terras Indígenas, Territórios Quilombolas, violando direitos territoriais previstos na Constituição Federal e na Convenção 169/OIT.
Como resultado, uma nova geografia do desmatamento se constitui,9 com a volta de velhos atores, o que tem levado a uma nova dinâmica de conversão de grandes áreas de floresta para uso agropecuário e, consequentemente, à expansão do Arco do Desmatamento. Quem está desmatando
8 Sobre o assunto, ver: Martins, Pedro e Ribeiro, Deise. Quais as ameaças por trás da militarização do combate ao desmatamento na Amazônia? Terra de Direitos, 26/06/2020. Disponível em: https:// terradedireitos.org.br/acervo/artigos/quais-as-ameacas-por-tras-da-militarizacao-do-combate-aodesmatamento-na-amazonia/23410 9 Sobre o assunto, ver ISA. Novo arco do desmatamento: fronteira de destruição avança em 2019 na Amazônia. ISA, 17/12/2019. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/novo-arco-do-desmatamento-fronteira-de-destruicao-avanca-em-2019-na-amazonia
tem poder aquisitivo capaz de abrir uma nova área de grandes dimensões. Os mais recentes relatórios anuais dos Conflitos no Campo no Brasil, da Comissão Pastoral da Terra/CPT, corroboram estas análises.
Como resultado desse quadro de destruição, a fome avança na região. Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil,10 em 2020, 63,1% dos domicílios da região Norte se encontravam em situação de insegurança alimentar e 18,1% em insegurança alimentar grave (fome), acima da média nacional, que foi de 55,2% e 9,0%, respectivamente.
“Mas o povo da floresta é um povo lutador, se pintou e foi para a
guerra, para vencer o invasor”11
Como vimos anteriormente, a destruição da Amazônia está intrinsecamente ligada à questão fundiária e à cadeia industrial global de commodities agrícolas e minerais. Durante décadas, fartos dados da CPT e do Cimi mostraram que, com o aumento do desmatamento, chega também o aumento da violência no campo. Quando territórios de povos indígenas, de comunidades tradicionais e de camponeses – que são preservados devido ao seu modo de vida – são ameaçados, também a floresta começa a ser. Essas populações são a primeira barreira de contenção à expansão da fronteira agrícola e do desmatamento. Não é à toa o ataque do governo Bolsonaro às áreas protegidas, aos direitos territoriais, à terra e aos modos de vida dessas populações.
Dados atuais da CPT mostram que, desde 2015, a extensão de terra em conflito no Brasil vem aumentando.12 Em 2020, o número de conflitos no campo foi o maior desde 1985, com um aumento de 57,6% no número de conflitos por terra em relação a 2018, sendo que os povos indígenas representaram 56% das famílias envolvidas nestes conflitos. Especifica-
10 Rede PENSSAN. Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil. 2021. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/ 11 Música de Cacá de Mattos, poeta paraense. 12 Ver relatório da CPT, “Conflitos no Campo Brasil” 2018, 2019, 2020”. Disponível em: https:// www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/41-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/ 14154-conflitos-no-campo-brasil-2018?Itemid=0.
mente com relação à invasão de terras, observou-se um aumento de 106%, entre 2019 e 2020, mesmo no contexto da pandemia. Nesse período, os povos indígenas representaram 72% das famílias que tiveram suas terras invadidas, principalmente, por grileiros, a maioria na Amazônia. É a situação vivenciada pelos munduruku com suas áreas invadidas pela mineração ilegal.
Das florestas, dos rios, do campo e das cidades amazônicas brota a resistência e estão em construção projetos de sociedade que vão além da mercantilização e financeirização da vida e da natureza. Espalham-se pela Amazônia estratégias de defesa dos territórios e iniciativas de solidariedade, que articulam campo e cidade. No Mato Grosso, a rota de comercialização Caminhos da Agroecologia13 traz alimentos saudáveis do vale do Guaporé para asilos, creches e moradores das cidades. No Maranhão, na Terra Indígena Arariboia, os guajajara formaram grupos de Guardiões da Floresta para conter a violência e invasões de madeireiros e resguardar suas aldeias e as do povo awá guajá (isolados), através do monitoramento e a fiscalização ambiental do território. Infelizmente, nos últimos anos, quatro guardiões foram assassinados. No Pará, na cidade de Belém, o coletivo Iacitatá recupera as tradições e culturas alimentares, e na região do Baixo Amazonas a Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra (Amabela) alia as demandas produtivas às pautas feministas, tendo como princípio a agroecologia, contando com o apoio do Fundo Dema.14
Pela Amazônia multiplicam-se ainda articulações de movimentos sociais, universidades e ONGs, como a Articulação de Agroecologia da Amazônia (ANA/Amazônia) e o Levante Popular da Amazônia. Nessa rede, vários grupos, associações e coletivos se articulam em iniciativas que buscam valorizar os múltiplos saberes e modos de vida.
Um outro olhar para a Amazônia é urgente! Esse é o grito de milhares de amazônidas. Essas e muitas outras iniciativas protagonizadas por povos e comunidades tradicionais, povos indígenas, camponeses e populações
13 FASE. MT: Comida de verdade para enfrentar a Covid-19. FASE, 12/06/2020. Disponível em: https://fase.org.br/pt/informe-se/noticias/mt-comida-de-verdade-para-enfrentar-a-covid-19/ 14 Os projetos dessa iniciativa podem ser consultados em: https://www.fundodema.org.br/
urbanas nos ensinam que o combate ao desmatamento se faz com a garantia da permanência, com qualidade de vida, das populações que vivem na floresta e da floresta, através de ações voltadas para a soberania e a segurança alimentar, a agroecologia, o manejo comunitário da biodiversidade, da floresta e a construção social de circuitos curtos de comercialização. Só assim teremos políticas estruturantes que possam fazer frente à grande crise que assola a Amazônia, seus povos e sua biodiversidade.
Em 2022, toda esta força pulsante deverá desaguar em Belém, durante o X Fórum Social Pan-Amazônico (Fospa), quando seremos convocados a anunciar que outra Amazônia é possível!