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Economia Feminista e organização popular para sustentar a vida

As práticas de solidariedade misturam laços de família, amizade na vizinhança, organizações de bairro, políticas, culturais, entre outras. A solidariedade popular significa, muitas vezes, compartilhar tempo, trabalho, atenção ou recursos tão necessários para quem recebe quanto para quem doa.

Economia Feminista e organização popular para sustentar a vida1

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SOF Sempreviva Organização Feminista2

A luta por uma organização econômica que coloque a vida no centro é pauta permanente do feminismo popular e se mostra muito atual diante da gestão genocida da pandemia da covid-19. A pandemia tem sido uma lente de aumento, escancarando a produção cotidiana do viver e o trabalho constante e essencial feito pelas mulheres, que ensinam do que a economia realmente é feita e o que precisa ser priorizado para garantir a vida.

A economia feminista empreende a análise da totalidade das relações econômicas, considera a experiência das mulheres e tem como ponto de partida a satisfação das necessidades humanas. Portanto, amplia a noção de economia para além da esfera mercantil e monetária, incorporando toda

1 Artigo baseado nos vários textos que produzimos entre 2020 e 2021 para a Coluna Sempreviva, publicada quinzenalmente no Brasil de Fato. Disponível em: www.brasildefato.com.br/colunistas/ sof-sempreviva-organizacao-feminista. 2 SOF Sempreviva Organização Feminista foi fundada em 1963 e combina algumas formas de atuação: participação nos movimentos sociais, assessoria e formação para fortalecimento de grupos e dirigentes sociais, a partir da metodologia de educação popular, da elaboração feminista e da organização de publicações. A economia feminista orienta a atuação da SOF com mulheres rurais e urbanas, na construção da economia solidária e da agroecologia, na Marcha Mundial das Mulheres e em alianças com outras organizações, na Rede Economia e Feminismo e no GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia.

a reprodução e o trabalho doméstico e de cuidados. Isso avança para a necessidade de reconhecer a interdependência de todos os seres humanos em matéria de cuidados e da nossa dependência em relação à natureza. A vulnerabilidade faz parte da condição humana.

O capitalismo empurrou para as mulheres a atribuição de lidar com a vulnerabilidade dos seres humanos e suas necessidades de cuidado. Ao mesmo tempo, desvalorizou essa responsabilidade e a colocou em situação de controle patriarcal. Essa atividade cotidiana não é reconhecida como trabalho e isso oculta seu nexo econômico com a produção.

O trabalho das mulheres na pandemia

As desigualdades entre homens e mulheres e entre pessoas brancas e negras no mercado de trabalho foram agravadas em geral pela pandemia no contexto neoliberal brasileiro. O IBGE aponta um desemprego recorde das mulheres (cerca de 17%) e um retrocesso de cerca de 30 anos da participação das mulheres (45,8%) no mercado de trabalho. As mulheres estão principalmente nos serviços de alojamento, alimentação e pequenas empresas – os setores mais atingidos pela crise econômica acirrada pela política desastrosa do governo Bolsonaro.

Além das políticas de austeridade que aprofundaram a crise econômica desde o golpe contra a presidenta Dilma, as reformas estruturais (como a da previdência e a trabalhista) aumentam a precariedade da vida da classe trabalhadora, favorecendo a informalidade, o lucro da iniciativa privada e a quebra de direitos trabalhistas, legitimando também projetos do governo de suspensão de contratos e de redução da jornada com redução de salário.

O enorme desemprego atual significará, para muitas pessoas, a postergação da aposentadoria por não poder seguir contribuindo com a previdência, cujo acesso já foi dificultado pela reforma retrógrada de Bolsonaro. O sucateamento do INSS nos governos Bolsonaro e Temer somou-se ao fechamento do INSS para atendimento presencial por mais de 6 meses devido à pandemia. Essa equação dificultou o acesso de quem cumpria com os requisitos para se aposentar em 2020.

No final de abril de 2021, o Senado aprovou o projeto de lei n. 130/2011. Tramitando no legislativo há uma década, projeto prevê igualdade salarial

entre homens e mulheres quando exercendo mesma função e jornada. Em resposta, Bolsonaro disse (sem nenhum estudo ou dado) que, se o projeto fosse sancionado, as mulheres não arranjariam mais empregos porque as empresas não iriam contratá-las. Em sua campanha presidencial, Bolsonaro já fazia alusão ao posicionamento de que as mulheres deveriam ganhar menos que os homens ou de que empresários não devem contratar mulheres jovens porque elas podem engravidar e sair de licença maternidade.

É preciso destacar a categoria das trabalhadoras domésticas, uma das mais afetadas com a pandemia. No Brasil, a maioria das trabalhadoras domésticas é composta por mulheres negras. O Dieese circulou um informe3 sobre a situação das trabalhadoras domésticas a partir de dados da PNAD Contínua. O informe aponta que, do 4º trimestre de 2019 ao 4º trimestre de 2020, 1,5 milhões de trabalhadoras perderam o emprego. Segundo a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), mesmo esses números não dão conta de todo o contexto de desemprego, pois a dispensa de muitas mulheres diaristas, informais e/ou eventuais não aparece nos levantamentos.

Ao mesmo tempo, o contexto da pandemia também gerou um aumento da carga de trabalho, que já era bastante alta. Segundo o boletim do Dieese, em 2019 a carga horária das trabalhadoras domésticas era de 52 horas semanais. Com a pandemia, muitas mulheres tiveram que permanecer no trabalho para não voltar todo dia para casa e contaminar a família dos patrões. Isso significa aumento da carga de trabalho para essas mulheres, que têm hora para se levantar mas não têm hora para dormir e descansar. Devemos lembrar que a PEC das Domésticas estabeleceu em 2015 a carga horária de 8 horas diárias ou 44 horas semanais para a categoria. A pandemia recrudesce uma situação de desrespeito, desigualdade e descumprimento dos direitos dessas trabalhadoras.

Não basta falar de valorização do trabalho doméstico reduzindo-o a uma renda para as mulheres que o fazem sem remuneração em suas casas, enquanto uma parte da sociedade se desresponsabiliza todos os dias pe-

3 Gráfico especial Trabalho Doméstico no Brasil. Abril de 2021. Dieese. Disponível em: https:// www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/trabalhoDomestico.html.

las atividades fundamentais – de limpeza, cuidado, comida – que sustentam suas próprias vidas, e as externalizam para trabalhadoras precarizadas. Frente à gravidade do aumento da pobreza, do desemprego e da fome, é preciso formularmos propostas para garantia de renda articuladas com a desmercantilização da vida. Isso envolve a garantia dos direitos – água, moradia, saúde e educação pública – e também a reorganização do trabalho doméstico e de cuidado não apenas nas casas, mas no conjunto das dinâmicas da sociedade.

De acordo com a pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”,4 só no período da pandemia, mais da metade das mulheres entrevistadas passaram a cuidar de alguém em casa, com destaque para as mulheres negras. Além disso, para as mulheres que tiveram seu emprego mantido, a carga de trabalho aumentou. Esses e outros dados apontam que combater a atual divisão sexual do trabalho é a chave para reorganizar o trabalho doméstico e de cuidados.

Mais expostas ao trabalho informal e sobrecarregadas pelas inúmeras tarefas em jornadas de trabalho que parecem não ter fim, as mulheres encontram em outras mulheres (vizinhas, mães, cunhadas, irmãs) a extensão de seus braços no cuidado dos filhos, na busca por cuidar da saúde, por conseguir remédios e outros itens para atender familiares enfermos, dependentes e idosos.

As práticas de solidariedade misturam laços de família, amizade na vizinhança, organizações de bairro, políticas, culturais, entre outras. A solidariedade popular significa, muitas vezes, compartilhar tempo, trabalho, atenção ou recursos tão necessários para quem recebe quanto para quem doa. Não é pontual, mas um processo continuado, e não isento de conflitos, de construção de resistências, sobrevivências e comunidade.

Diante da fome, construir soberania alimentar é resistência

“Passar a boiada”, expressão pronunciada pelo ex-ministro do meio ambiente Ricardo Salles, foi a estratégia colocada para aprovar medidas

4 A pesquisa foi organizada pela SOF e por gênero e número em 2020. Disponível em: https://mulheresnapandemia.sof.org.br/.

legislativas no momento em que a população está voltada para as urgências da pandemia. Essa agenda intensificou as negociações entre grupos do ramo do agronegócio e da bancada ruralista para desapropriação de terras e possível exploração dos territórios por setores da mineração, energia e de empreendimentos de ocupação ilegal que envolvem os arrendamentos, loteamentos, construção de portos e bases militares. A boiada passou em todos os setores, destruindo as políticas públicas, desmontando políticas de controle e proteção ambiental, de proteção das populações tradicionais e indígenas.

As mulheres estão atentas aos projetos e às diferentes maneiras com que as corporações e os latifundiários chegam nos territórios. Os problemas ambientais e a imposição de outros modos de vida são percebidos e trazem conflitos na vida cotidiana. As mulheres têm marcado sua posição em relação aos projetos do capital: reagem coletivamente e respondem aos problemas de maneira criativa e com resistência.

O tempo da natureza não acompanha o tempo produtivista nem a destruição dos bens comuns a favor do lucro. São muitas as experiências cotidianas que mostram como os modos de vida das mulheres e das comunidades se tornam estratégias de resistência contra a força do capital. A agricultura diversificada, a guarda de sementes, a preservação e troca de espécies, o uso de plantas para a saúde, a produção de alimentos relacionada com os princípios da natureza e os trabalhos coletivos na terra são conhecimentos transmitidos principalmente entre as mulheres.

As redes solidárias são articulações que favorecem a compra direta. Agricultores e agricultoras agroecológicas, de assentamentos e quilombos, são sujeitos desse processo, junto a grupos urbanos que atuam em busca de um consumo responsável. Os laços entre as cidades e o campo, as roças e as quebradas permitem maior acesso a alimentos sem veneno, preços justos e cria alternativas ao modelo de produção baseado na exploração. Nas cidades, é preciso ressignificar o sentido da alimentação a partir do que podemos aprender com quem produz perto de nós. Isso é parte do longo e necessário caminho para nos livrarmos da fome e da exploração feita pelas grandes cadeias de produção de alimentos. E para enfim alcançarmos, enquanto sociedade, a soberania alimentar.

“Se o povo vai às ruas durante uma pandemia, é porque o governo é pior que o vírus”

A decisão sobre os atos de rua de 2021 em meio a pandemia não foi fácil, mas com organização e mobilização responsável, salientando sempre todos os cuidados de higiene e prevenção, o 29 de maio inaugurou uma nova onda de ações nas ruas contra o bolsonarismo. As manifestações que o antecederam, em 2020, também foram fundamentais para semear a mobilização e denunciar os inúmeros ataques contra a vida. São exemplares as ações protagonizadas pelo movimento negro contra o genocídio, além de todas as ações por auxílio emergencial, vacina e a saída de Bolsonaro e seus aliados.

Temos ido às ruas com a atitude do cuidado como uma prática coletiva de responsabilidade entre todas as pessoas. Organizamos distribuição de máscaras, vaquinha para transporte seguro e, nos atos, é comum ver as pessoas borrifando álcool para as outras, atentando e chamando atenção para o uso correto da máscara. As mulheres, com base no feminismo, discutem a ideia de que o cuidado das pessoas precisa ser sempre coletivo se queremos construir uma sociedade calcada na valorização da vida. Assim, o medo, que também é coletivo, se ameniza nos gestos de cuidado, nos olhares de tantas companheiras e companheiros que, desde 2020, não se encontravam na rua.

Cuidar da vida exige muita solidariedade, um princípio e uma prática popular dos movimentos sociais. Durante a pandemia, a solidariedade popular se concretiza na auto-organização que identifica as necessidades de cuidado, enfrenta a pobreza e a violência em ações articuladas por movimentos sociais que estão em luta para interromper o projeto de morte que governa o país.

As mobilizações das ruas também alimentaram o exercício da construção de unidade da esquerda e dos movimentos. Estar na rua fortalece as organizações, fazendo a esperança aproximar-se. Nos bairros e praças, as ações simbólicas – como a ação das 500 velas – também são fundamentais: nos permitem trabalhar nosso luto coletivo e tornar visíveis nossos posicionamentos e propostas feministas na malha de nossas cidades e territórios. Nosso compromisso é lutar por justiça por todas as mais de 600 mil vidas,

a maioria pobres e negras, que foram interrompidas por uma estratégia genocida conscientemente organizada por esse governo. Não nos esqueceremos, e cobramos justiça para cada pessoa, por toda a população.

Nossa luta é contra o bolsonarismo: é por trocar o governo, mas também por enfrentar o desafio de reconstruir este país que tem sido destruído pelo fascismo. O bolsonarismo é a face atual do ultraneoliberalismo, do autoritarismo e da aliança conservadora tanto com setores religiosos e neopentecostais quanto com empresários e corporações. Esse conjunto de elementos articulados minam as bases materiais de sustentabilidade da vida, acirra a cultura heteropatriarcal, dissemina o racismo, as discriminações, a violência, o ódio e a perspectiva de destruição dos movimentos e da esquerda.

A organização popular é parte da nossa história, seja no campo, seja na cidade. A partir das comunidades, dos territórios e dos comuns, suas ações materializam, ao mesmo tempo, a luta política e a garantia de condições dignas de vida. É como reivindicamos na Marcha Mundial das Mulheres: mudar o mundo para mudar a vida das mulheres, mudar a vida das mulheres para mudar o mundo. É através da organização popular que os direitos sociais são conquistados, com noções de direitos que nascem com as ações convocadas pela sociedade civil.

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