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Violações de direitos quilombolas em alcântara desconstelam política espacial brasileira e comprometem parcerias internacionais

Nós, quilombolas, estamos firmes na defesa do direito de permanecer em nossas terras e territórios. Não aceitamos arcar com erros de um projeto que nunca decolou. Vamos defender nossas vidas e garantir a titulação do território quilombola de Alcântara.

Violações de direitos quilombolas em alcântara desconstelam política espacial brasileira e comprometem parcerias internacionais

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Danilo Serejo1

Concebida pelos militares e instalada pela ditadura militar na década de 1980, a Base Espacial de Alcântara foi criada com o objetivo de executar atividades de lançamento e rastreamento de engenhos aeroespaciais, testes e experimentos do Ministério da Aeronáutica relacionados com a Política Nacional de Desenvolvimento Aeroespacial. A base espacial nunca teve sucesso pleno, especialmente no que diz respeito ao seu principal projeto, o Veículo Lançador de Satélite (VLS), que teria por finalidade incluir o Brasil no rol de países que dominam a tecnologia espacial. A última tentativa de colocar o VLS em órbita ocorreu em 2003 e foi abortada devido a um estranho acidente, que matou toda a cúpula intelectual do programa

1 Danilo Serejo é quilombola de Alcântara/MA, integrante do Movimento dos Atingidos pela Base

Espacial de Alcântara (Mabe), bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás, mestre em

Ciência Política (Programa de Pós-graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia) pela

Universidade Estadual do Maranhão.

aeroespacial sem que as causas do acidente tenham sido devidamente respondidas.

Desde então, o programa aeroespacial brasileiro, que já vinha sofrendo cortes orçamentários, teve uma drástica queda de investimentos financeiros no seu principal equipamento tecnológico, o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Essa situação levou os militares e os planejadores do programa a abandonarem o objetivo inicial do CLA, que seria apoiar a política espacial brasileira, e o transformaram em base de aluguel.

É nesse contexto que foi aprovado o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), em 2019, com o governo dos Estados Unidos para uso da Base de Alcântara. Além das questões geopolíticas relativas à soberania nacional, denunciadas por diversos setores da sociedade brasileira, a cessão da Base de Alcântara aos EUA é representativa da falência da política espacial nacional. Mas há outras questões importantes neste debate: o ônus da política espacial brasileira sempre recai sobre os ombros dos quilombolas de Alcântara, legítimos proprietários das terras onde a base espacial foi instalada em 1980. O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) agudiza o histórico de violações perpetradas pelo Estado brasileiro na condução de sua política espacial em Alcântara. Pontuaremos, a seguir, alguns dos principais eventos que desconstelam a trajetória espacial em Alcântara.

Para sua instalação na década de 1980, a ditadura militar expulsou 312 famílias quilombolas de aproximadamente 30 comunidades do litoral do município e as assentou em sete agrovilas, instalando uma série de problemas de ordem fundiária, social, alimentar, econômica e cultural para aquelas famílias e comunidades, razão pela qual o Estado brasileiro responde a uma série de ações na justiça nacional e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos.

O projeto original dos militares sempre foi expulsar todas as comunidades do litoral e utilizá-lo para interesses nunca devidamente esclarecidos do programa aeroespacial. No entanto, na primeira década do século XXI, toda a área desapropriada (52 mil hectares) pelos militares e pelo governo do Maranhão foi formalmente reconhecida pelo Estado brasileiro como território quilombola, inclusive com Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), publicado pelo Instituto de Colonização e Refor-

ma Agrária (Incra) em novembro de 2008. Isso jamais foi judicialmente contestado por algum órgão na União, nem mesmo aqueles referidos na gestão da política espacial. Concomitantemente, uma Ação Civil Pública do Ministério Público Federal, com decisão favorável às comunidades, foi movida contra a União, obrigando-a a titular todo o território como propriedade coletiva dos quilombolas da região. Essa decisão judicial jamais foi contestada pela União ou sofreu qualquer tipo de recurso. Em outras palavras, uma substancial reviravolta nos planos militares foi imposta por decisão judicial.

Todavia, os militares que parecem não ter feito a transição democrática em 1988, na prática, não reconhecem o território quilombola de Alcântara. Ao contrário, insistem em expandir ilegalmente o CLA sobre o litoral alcantarense, território das comunidades, e expulsar mais de 800 famílias e 30 comunidades da região, a despeito do RTID publicado em 2008 e das decisões judiciais favoráveis às comunidades.

A base espacial não possui estudos de impacto ambiental e nem licença de funcionamento. As comunidades quilombolas e a sociedade brasileira têm o direito de saber quais os danos à saúde e ao meio ambiente gerados pelas atividades de lançamento de foguetes em Alcântara. Em caso de parcerias internacionais, tal cuidado e obrigação devem ser redobrados, pois, segundo a legislação ambiental em alguns países, é proibido o uso de combustível nuclear nesse tipo de atividade. A ausência de estudos de impacto ambiental do CLA pode favorecer o uso de combustíveis altamente nocivos à vida humana, proibidos em outros países.

O AST foi firmado em um cenário de insegurança jurídica, pois o território quilombola de Alcântara, até o momento, não recebeu o título de propriedade coletiva de suas terras, conforme normatizam a CF/88 e o Decreto 4887/2003. Não houve consulta prévia, livre e informada às comunidades, conforme impõe a Convenção n. 169 (C169) sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A titulação coletiva do território é a premissa básica para qualquer negociação sobre o Centro de Lançamento de Alcântara, pois sem essa garantia as comunidades serão penalizadas. E os militares são responsáveis pela negativa do título de propriedade coletiva. É nesse contexto que se

insere a Resolução n. 11 do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.2 À época da tramitação do AST no Congresso Nacional, autoridades políticas defensoras do acordo, ao serem questionadas por lideranças quilombolas de Alcântara3 acerca dos impactos e ameaças de remoção decorrentes do documento firmado com os EUA, sustentaram que a parceria nada tinha a ver com questões fundiárias. Mas a Resolução 11 estabelece responsabilidades no âmbito da administração pública.

Em 2018, enquanto o Estado negocia às escondidas o nosso futuro e nossas vidas, nós, quilombolas, elaboramos o Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado. Em 2019, apresentamos uma Reclamação formal contra o Estado brasileiro na OIT pelo descumprimento da C169 no acordo com os Estados Unidos; atualizamos a denúncia que tramita na CIDH e realizamos uma audiência naquela Comissão, na qual o governo foi instado a se explicar. Em 2020, criamos o Grupo de Estudos para a Economia, Memória e Verdade das Comunidades Quilombolas de Alcântara, que reúne lideranças quilombolas, assessorias e professores universitários para estudar o histórico, o direito à memória, verdade e reparação e direitos econômicos das comunidades frente ao projeto CLA.

Em 2021, tardiamente, o governo tenta estabelecer diálogo para realizar consulta prévia. Por se tratar de acordo internacional, precisa-se de aprovação do Congresso Nacional. É, portanto, uma medida legislativa cujo momento para realizar a consulta prévia seria durante a tramitação do AST no Legislativo nacional. E tanto o Congresso quanto o governo federal prescindiram de sua obrigação.

A consulta, nos termos da C169, deve ser livre, prévia e informada, ou seja, a decisão deve resultar de uma construção conjunta entre as partes envolvidas, com todos os estudos necessários (ambientais, de viabilidade

2 Cf. Resolução n. 11 de 26 de março de 2020, publicada no Diário Oficial da União em 27/3/2020. Disponível em: www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-11-de-26-de-marco-de-2020-249996300 3 Cf. Carta de Alcântara ao Congresso Nacional. Disponível em: http://www.global.org.br/blog/ em-carta-ao-congresso-quilombosde-alcantara-denunciam-acordo-de-salvaguardas-de-base-espacial/

econômica, componentes étnicos e sociais). Ao contrário, a Resolução 11 atesta que o governo já tomou a decisão de remover nossas comunidades. Perde sentido, dessa forma, a realização da consulta prévia, pois seria uma audiência pública apenas para legitimar a decisão do governo.

O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entra agora em sua fase de implementação. A Agência Espacial Brasileira já fez chamamento público para que empresas interessadas em utilizar o CLA se inscrevam. Três empresas americanas e uma canadense foram selecionadas: Hyperion, para operação do sistema de plataforma de lançamento do VLS (Veículo Lançador de Satélites); Orion AST, para o lançador suborbital; C6 Launch, para o perfilador; Virgin Orbit, para o aeroporto.4

Este acordo não inclui estudos de viabilidade econômica para a região e para o Maranhão. As supostas vantagens econômicas foram as principais razões que levaram o governador do Maranhão, Flávio Dino, a defender o acordo bolsonarista de entrega da Base de Alcântara para os EUA às custas das vidas e dos direitos quilombolas, mesmo se autoproclamando o maior dos antibolsonaristas. A experiência mais recente do acordo firmado com a Ucrânia para o desenvolvimento do Projeto Cyclone 04 foi denunciada em 2015, porque aquele país jamais arcou com o aporte financeiro, deixando o Brasil em prejuízo.5 Resta saber se, neste caso, conforme espera o governador do Maranhão, os ventos do Norte serão capazes de mover moinhos.6

Sabemos que os militares fracassaram na gestão do programa aeroespacial e tentam transferir o ônus do seu insucesso para os quilombolas. O histórico de autoritarismo, racismo e violações dos direitos quilombolas7 desconstela e desautoriza a política espacial brasileira a avançar sobre o ter-

4 Para mais informações acerca do papel de cada empresa selecionada, sugerimos: “Empresas dos

EUA e do Canadá vão atuar no Centro Espacial de Alcântara”. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-04/empresas-dos-eua-e-do-canada-vao-atuar-no-centro-espacial-de-alcantara 5 Cf. Amaral, Roberto. Programa Espacial Brasileiro: impasses e alternativas. Disponível em: https://cosmosecontexto.org.br/programa-espacial-brasileiro-impasses-e-alternativas/ 6 Trecho da música “Sangue Latino”, de Ney Matogrosso. 7 Consultar: Serejo, Danilo. A atemporalidade do colonialismo: contribuições para entender a luta das comunidades quilombolas de Alcântara e a base espacial. São Luís/MA: UEMA/PPGCSPA/

PNCSA, 2020.

ritório dos quilombolas. Isso corresponsabiliza países e empresas estrangeiras por violações perpetradas em Alcântara desde 1980 e que jamais foram solucionadas pelos governos brasileiros. Nós, quilombolas, estamos firmes na defesa do direito de permanecer em nossas terras e territórios. Não aceitamos arcar com erros de um projeto que nunca decolou. Vamos defender nossas vidas e garantir a titulação do território quilombola de Alcântara.

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