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Decrescimento econômico e desigualdade
Assim o Estado, tanto social quanto policial, tratou de gerir o crescimento da massa populacional sobrante composta de pobres e miseráveis pertencentes à base da pirâmide social. Para isso, a elevação da carga tributária, que subiu mais de 40% em relação ao PIB, se mostrou fundamental. Destaca-se, contudo, que o aumento na arrecadação fiscal se fez concentrado, sobretudo entre os segmentos de menor renda, uma vez que os ricos conseguiram se safar, como sempre.
Marcio Pochmann1
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O Brasil deu mais um passo para trás, contabilizando seis anos consecutivos de contínua incapacidade de recuperar o nível de produção alcançado em 2014. As consequências negativas atingem praticamente todas as dimensões da vida nacional: anarquia nas contas públicas, abandono tecnológico, retardo acentuado na incorporação tecnológica, desemprego, desigualdade e fome escalar.
Algumas evidências podem ser observadas nos Relatórios da Riqueza Global produzidos pelo grupo financeiro Credit Suisse, com sede em Zurique, na Suíça. Em 2020, por exemplo, o Brasil assumiu a 3a posição de país mais iníquo do mundo, segundo o índice Gini de desigualdade na distribuição da riqueza nacional (0,89).2 Em 2010, quando o Índice de Gini foi de 0,82 (8,5% maior que o de 2020), o Brasil ocupava a 10ª posição.
1 Marcio Pochmann é professor e pesquisador do Cesit/Unicamp e da Universidade Federal do ABC (UFABC). 2 O Índice (coeficiente ou razão) de Gini é uma das medidas adotadas para indicar desigualdade quantitativa, variando de zero (completa igualdade) a um (completa desigualdade).
Se comparado com o Índice Gini de 2000 (0,85), quando o Brasil estava no 8º posto, a queda na desigualdade na repartição da riqueza nacional entre 2000 e 2010 foi de 3,5%. Para o Credit Suisse, o país respondeu por somente 0,67% da riqueza global de 2020, ao passo que em 2014 chegou a representar 1,04% de todos ativos mundiais (financeiros e não financeiros). Em apenas seis anos, a presença brasileira na riqueza mundial declinou 35,6%.
No período de tempo anterior, o Brasil conseguiu multiplicar por 2,8 vezes a sua participação relativa na riqueza global. Entre 2002 e 2014, por exemplo, o peso do país na soma mundial dos ativos financeiros e não financeiros mundiais saltou de 0,37% para 1,04%.
A quantidade de bilionários brasileiros permaneceu estável em 65, de 2014 e de 2021, conforme o ranking da Forbes sobre os bilionários do mundo. Nesse mesmo período de tempo, a riqueza média por adulto no Brasil decaiu 17,6%, pois passou de 22,2 mil dólares, em 2014, para 18,3 mil dólares, em 2020. O mistério da prevalência da quantidade de bilionários, não obstante a queda na riqueza no Brasil, decorre fundamentalmente de dois diferentes mecanismos.
O primeiro está associado à máquina financeira de valorização do estoque da velha riqueza, cada vez mais concentrada em poucas famílias proprietárias. Em 2000, por exemplo, a composição da riqueza líquida podia ser dividida em menos de 40% pertencentes aos ativos financeiros e mais de 60% em ativos não financeiros. Duas décadas depois, a maior parte da riqueza do Brasil provém dos ativos financeiros. Por isso, o papel fundamental do Banco Central independe dos interesses da população. A dependência do Banco Central exposta à vontade popular colocaria em risco a melhor gestão financeira do estoque da velha riqueza pertencente aos maiores proprietários de ativos no país.
O segundo mecanismo resulta do papel do Estado em atuar favoravelmente aos ricos, privilegiados e poderosos. O funcionamento da República depende do sistema tributário que onera mais os pobres do que os ricos proporcionalmente à renda, bem como a despesa pública se volta aos que menos precisam. Conforma, em síntese, os monopólios sociais, por intermediação estatal que garante a prevalência da desigualdade entre
ricos e pobres, poderosos e fracos, privilegiados e desfavorecidos. Isso tem prevalecido no Brasil pelas atribuições do papel do Estado na garantia diferenciada da educação, saúde, previdência, entre outras políticas públicas ao conjunto da população.
O inédito desaparecimento do progresso econômico desde a segunda metade da década de 2010 impôs um conjunto de consequências desconhecidas ao Brasil, tradicionalmente constituído por ampla atração do capital externo e por massiva incorporação de imigrantes. Enquanto os investimentos diretos provenientes do exterior se encontram atualmente abaixo de 40%, se comparados à 2014, o país aumentou em 81% a quantidade de brasileiros mais qualificados que imigraram para os países ricos pertencentes à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
De forma insustentável no Brasil, a volta da dominância do receituário neoliberal parece perseguir a ortodoxa tese do decrescimento econômico defendido desde a década de 1970 nos países de capitalismo avançado.3 Mas ao contrário do advogado pela controversa proposta de contenção econômica para estancar a degradação ambiental, os governos do pós-golpe de 2016 procuram levar ao limite o neoextrativismo destrutivo da natureza brasileira.
Com a renda per capita, em 2020, 11% abaixo do que era em 2014, os brasileiros vivem situação inusual, jamais experimentada ao longo da trajetória do capitalismo desde a sua implantação dominante nos anos 1890. Em valores monetários, a renda nacional anual dividida pelos habitantes de 2020 (R$ 35,2 mil) foi 4,3 mil reais inferior à de 2014 (R$ 39,5 mil).
No caso do Produto Interno Bruto de 2020, por exemplo, o decréscimo econômico significou R$ 466 bilhões a menos do que foi contabilizado em termos reais em 2014. Convergente com o decréscimo econômico, o país registrou o saldo negativo entre abertura e fechamento de empresas de 382,2 mil estabelecimentos entre 2014 e 2018, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE – Demografia Empresas). Com 8%
3 Ver em: The Entropy Law and the Economic Process, de N. Georgescu-Roegen (1971); Decrescendo
Cantabile: Petit Manuel pour une décroissance harmonique, de J. Besson-Girard (2005); Décroissance ou barbárie, de P. Aries (2005); Petit traité de la décroissance sereine, de S. Latouche (2007).
a menos no estoque total de empresas ativas no Brasil, o saldo no geral dos ocupados chegou a 2,753 milhões de trabalhadores. Ou seja, 7,9% a menos no total das ocupações assalariadas em apenas 4 anos.
Além do fechamento de empresas no Brasil, constata-se também a fuga do capital externo e o abandono de importantes empresas multinacionais. No ano de 2020, por exemplo, o Brasil recepcionou o ingresso de 34,2 bilhões de dólares em investimento direto externo, o que equivaleu a 1,9% do PIB. Ainda conforme o Banco Central, a soma dos investimentos externos do exterior no Brasil foi de 87,7 bilhões de dólares em 2014, ou seja, 3,6% do PIB. Em seis anos, a queda na entrada de capital estrangeiro no país foi de 61%. Se contabilizar a fuga das empresas multinacionais, a situação do desinvestimento externo no Brasil se torna muito mais grave. A partir da segunda metade da década passada, a economia nacional passou a registrar o ineditismo da saída de mais de 30 filiais das corporações transnacionais nos mais diversos setores de atividades empresariais.
No ramo de autoveículos, por exemplo, o Brasil perdeu cinco empresas (Ford dos EUA, Mercedes-Benz e Audi da Alemanha, a Mahindra da Índia e Geely Motors da China), enquanto nos estabelecimentos empresariais de aplicativos foram três firmas que abandonaram o país (a estadunidense Lime e as espanholas Cabify e Glovo). Na eletroeletrônica, o país assistiu à saída da japonesa Sony e da sul-coreana LG Electronics, ao passo que no setor farmacêutico foram embora a suíça Roche e a estadunidense Eli Lily. No setor atacadista e de restaurantes, a incúria governamental convive com a perda das estadunidenses Forever 21, Hooters, Wendy’s e Walmart e das francesas Kiabi e Fnac. Também cabe mencionar a partida das empresas do ramo de cosméticos e bijuterias como a estadunidense Kiehl’s, a francesa L’Occitane e as britânicas Lush e Accessorize. No setor financeiro, a saída do estadunidense Citibank e do britânico HSBC, bem como da companhia britânica de aviação Virgin Atlantic; das japonesas Nintendo de jogos eletrônicos, consoles e periféricos; e a Nikon, fabricante de câmeras fotográficas e microscópios; da irlandesa CRH e da franco-suíça LafargeHolcim, de cimentos; da Duke Energy e da indústria gráfica RR Donnelley dos EUA e das empresas do ramo da alimentação General Mills e Häagen-Dazs dos EUA, e da Kirin do Japão.
Nesse cenário, demarcado pelo decrescimento econômico e da diáspora dos investimentos externos, aumentou também a pressão de parte da força de trabalho mais qualificada para procurar desesperadamente oportunidades melhores de vida e ocupação em outros países. Conforme o observatório das migrações da OCDE, o Brasil saltou de 68 mil imigrantes legais, em 2004, para 123 mil em 2018, ao passo que em 2021, a quantidade de brasileiros que tentaram entrar ilegalmente nos Estados Unidos foi a maior de todos os tempos.
Tudo isso transcorre diante do aprofundamento do processo de desqualificação social. Com a desindustrialização nacional e o reposicionamento na Divisão Internacional do Trabalho enquanto fazendão do mundo, o inchaço da sociedade de serviços seguiu transcorrendo, acompanhado tanto pela precarização dos assalariados quanto pela empreecarização de conta proprista, microempreendedor individual e pejotista. Com isso, o processo da desqualificação social decorrente dos incapacitados da sobrevivência à lógica de competição mercantil-capitalista ampliou e se complexificou, exigindo novas e crescentes atribuições vinculadas ao Estado. Até então, o Brasil conhecia as categorias dos dependentes a serem assistidos (doentes, deficientes, crianças, desempregados, idosos e outros) e dos marginalizados sociais expostos à ruptura social.
Pela Constituição Federal de 1988, os governos do ciclo político da Nova República (1985-2016) buscaram ampliar as tarefas da gestão da massa sobrante da população aos requisitos de contratação laboral impostos pela dinâmica declinante do capitalismo no Brasil. Lembre-se que nos últimos 40 anos, o país acumulou duas décadas econômicas perdidas (1980 e 2010), responsáveis pela estagnação da renda per capita e pela queda da participação relativa no PIB mundial de 3,2%, em 1980, para 1,7%, em 2020. Ainda que desaceleradamente, a população continuou a crescer e sem oferta suficiente e adequada de trabalhos remunerados, avolumou-se o estoque de supranumerários de grande dimensão nacional.
Diante disso, o Estado foi acionado em duas frentes: a social e a policial. De um lado, a significativa ampliação do contingente de assistidos pelo Estado Social, sobretudo através das políticas de transferência de renda. Em 2019, por exemplo, o país registrou cerca de 27% de sua
população dependendo do recebimento de recursos monetários diretos do orçamento público para sobreviver, o que significou 10 vezes mais do que o registrado ao final do ciclo dos governos autoritários. De outro, a expansão do Estado policial, pela política do encarceramento ou do compartilhamento do monopólio da violência. Em 2020, por exemplo, a quantidade de presos se aproximou de 800 mil brasileiros, o que representou a terceira maior população carcerária do mundo (ante 90 mil presos em 1990). Ao mesmo tempo, instalou-se a prática da guerra civil pela política do compartilhamento do monopólio da violência pelo Estado com o banditismo social (crime organizado, milícias e medidas de armamento popular). O resultado tem sido a escalada dos homicídios que, multiplicada por cinco vezes nas últimas quatro décadas, colocou o Brasil entre os países mais violentos do mundo.
Assim o Estado, tanto social quanto policial, tratou de gerir o crescimento da massa populacional sobrante composta de pobres e miseráveis pertencentes à base da pirâmide social. Para isso, a elevação da carga tributária, que subiu mais de 40% em relação ao PIB, se mostrou fundamental. Destaca-se, contudo, que o aumento na arrecadação fiscal se fez concentrada, sobretudo entre os segmentos de menor renda, uma vez que os ricos conseguiram se safar, como sempre. Na “Era dos Fernandos” (Collor, 1990-1992 e Cardoso, 1995-2002), por exemplo, a alíquota máxima do imposto de renda caiu 40%, enquanto lucros e dividendos se tornaram isentos.
Acontece que após seis anos de decrescimento econômico iniciado em 2015, o processo de desqualificação social avançou consideravelmente, incorporando segmentos intermediários da estrutura social. Com o desemprego aberto e oculto atingindo quase 40% da força de trabalho em 2020, a ruína da classe média assalariada e proprietária assumiu cada vez mais a sua face de evidência. Assim, a fragilização dos estratos sociais intermediários da estrutura social os levou para o processo de importante desqualificação social.
Tanto assim que, em 2020, as medidas de transferência de renda do orçamento federal atingiram o público equivalente a 40% da população brasileira, isto é, 13 pontos percentuais acima do verificado em 2019. Ade-
mais das tradicionais categorias dos assistidos e dos marginalizados expostos à ruptura social, a gestão da massa sobrante pelo governo central passou a abarcar também os estratos fragilizados contidos no interior da antiga classe média assalariada e proprietária. No ano passado, por exemplo, políticas de ajudas monetárias de vários tipos (créditos, isenções fiscais, auxílios de renda) provenientes do orçamento público chegaram como ambulâncias de resgate aos combalidos segmentos intermediários da sociedade, expostos ao jamais visto processo de desqualificação social.