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A luta coletiva por moradia

Se por um lado há que se lamentar, denunciar e seguir na luta por reparações decorrentes de arbitrariedades perpetradas nos despejos efetivados, há muito que se aprender e celebrar com a resistência construída pelos trabalhadores e as conquistas obtidas neste nefasto e trágico período histórico em que ainda vivemos.

Diego Vedovatto1

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Todos falam que devemos ficar dentro de casa durante a pandemia, mas eu fiquei sem casa e com duas crianças. Crislaine Cristina2

De acordo com informações organizadas pela Campanha Despejo Zero3 no período compreendido entre 1º de março de 2020 e 6 de junho de 2021, ao menos 14.301 famílias foram removidas de suas casas em conflitos possessórios coletivos durante a pandemia da covid-19. Sabe-se

1 Diego Vedovatto é advogado popular especialista em Direitos Sociais do Campo. Integrante do

Setor Direitos Humanos do MST, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). 2 Agricultora sem-terra acampada no Acampamento Quilombo Campo Grande/MG. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2020/08/em-meio-a-pandemia-sem-terra-sao-despejados-e-tem-escola-destruida-em-mg/. 3 Informações sobre a campanha podem ser obtidas no site www.campanhadespejozero.org/.

que o número efetivo é um pouco superior, afinal muitos casos sequer chegam ao conhecimento e sistematização nacional. Ainda assim, deveria ser estarrecedor que aproximadamente 50 mil pessoas tenham sido expulsas de seus lares em decorrência de ordens judiciais em ações possessórias ou por decisão da Administração Pública nas chamadas remoções administrativas.

O mesmo levantamento aponta que 84.092 famílias viveram sob risco e seguiram ameaçadas de remoção violenta nesse período. Não menos relevante é a informação de que em ao menos 54 casos foi conquistada a suspensão dos despejos, beneficiando diretamente 7.356 famílias que conseguiram permanecer em suas casas. Conquista somente possível com intensa mobilização popular bem articulada com a luta política e jurídica para efetivação do direito humano à moradia, no mesmo período.

Se por um lado há que se lamentar, denunciar e seguir na luta por reparações decorrentes de arbitrariedades perpetradas nos despejos efetivados, há muito que se aprender e celebrar com a resistência construída pelos trabalhadores e as conquistas obtidas neste nefasto e trágico período histórico em que ainda vivemos. Resgatar e analisar de forma muito resumida as disputas institucionais dos últimos meses em torno desse tema é o principal objetivo desse texto.

Há que se rememorar que, no Brasil, a primeira iniciativa expressa sobre suspensão de despejos e remoções forçadas em conflitos possessórios coletivos rurais e urbanos apareceu na Recomendação 01/2020 da Rede Nacional de Conselho de Direitos Humanos, em 19 de março de 2020,4 que assim recomendou expressamente:

3. Ao Poder Judiciário, a suspensão por tempo indeterminado do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções determinadas em processos judiciais, pois os processos de remoção, além de gerar deslocamentos de famílias e pessoas que foram impactadas, também as obrigam a entrar em situações de maior precariedade e exposição ao vírus, como compartilhar habitação com outras famílias e, em casos extremos, a morarem na rua [...].

4 Recomendação 01/2020 disponível em: https://wp.ibdu.org.br/wp-content/uploads/2020/08/recomendacao-conjunta-Covid.pdf.pdf.pdf.pdf.pdf-Helena-Duarte-Marques.pdf.

Ato contínuo, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), por meio da Resolução 10/2020,5 aprovou essa recomendação e determinou a sua expedição para todas as entidades públicas e privadas envolvidas com a proteção à moradia, para se manifestarem sobre seu atendimento ou impossibilidade de fazê-lo. O início desse diálogo institucional com diversos espaços do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, em diferentes níveis e entes federativos, abriu as portas de uma longa jornada de lutas que ainda está em curso.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por sua vez, também no já longínquo 19 de março de 2020, editou a Resolução 313/2020 (depois alterada pelas Resoluções 318/2020, 314/2020 e 317/2020), que estabeleceu o regime de plantão e funcionamento do Judiciário em período de exceção pandêmica. Embora tenha relacionado em seu artigo 4º matérias processuais específicas sobre diversos temas e determinado no artigo 5º a suspensão dos prazos processuais, não resguardou qualquer tratamento especial às causas possessórias e ao direito à moradia. Assegurou apenas de forma genérica no parágrafo único do artigo 5º que a “suspensão dos prazos processuais não obsta a prática de ato processual necessário à preservação de direitos e de natureza urgente”.

Atenta à gravidade dos efeitos trágicos de reintegrações de posse durante a pandemia, no plano legislativo, em 16 de abril de 2020, a deputada federal Natália Bonavides apresentou o primeiro projeto de lei que tinha por objetivo regulamentar a suspensão do cumprimento de toda e qualquer medida judicial que resultasse em despejos, desocupações ou remoções forçadas, durante o estado de calamidade pública reconhecido em razão da covid-19 (PL 1975/2020).6 Apesar de requerer tramitação sob o regime de urgência e surgirem outros PLs semelhantes sobre o tema, a tramitação do assunto no congresso foi extremamente lenta e ainda está inconclusa, aguardando análise sobre o veto presidencial.

5 A íntegra da Resolução pode ser lida em: www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-de-direitos-humanos-cndh/copy_of_Resoluon10RecomendaoConjuntaRedeNacional.pdf. 6 A íntegra do PL pode ser lida em: www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2249882.

Somente com constituição e ampliação das articulações em torno da Campanha Despejo Zero e, também de forma especial, da atuação difusa e concreta de centenas de organizações da sociedade civil, das Defensorias Públicas, do CNDH e da Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão (PFDC) no caso a caso, alguns juízes passaram a suspender reintegrações de posse com fundamento na excepcionalidade da pandemia. Alguns tribunais de justiça e tribunais regionais federais, ao regulamentarem em suas jurisdições a atuação em tempos de pandemia, começaram então a resguardar tratamento mais cauteloso em conflitos possessórios no período.

O Supremo Tribunal Federal (STF), em dois casos específicos, primeiro no Recurso Extraordinário n. 1.017.365, de relatoria do ministro Edson Fachin, e depois na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 742 –, de relatoria do ministro Marco Aurélio, determinou, respectivamente, a suspensão dos processos e de liminares de reintegração de posse em áreas indígenas e quilombolas em todo o território nacional.

Não obstante, em agosto de 2020, com a mobilização de significativo aparato policial para o despejo de 14 famílias ocorrido no denominado “Acampamento Quilombo Campo Grande” em Minas Gerais, o tema novamente ganhou grande repercussão nacional e internacional. Diante da manutenção do despejo por diversas instâncias judiciais e administrativas em Minas Gerais, foi protocolado o pedido de Medida Cautelar 97520, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que teve acolhimento e solicitação de informações ao Estado brasileiro. Embora o mérito ainda aguarde apreciação definitiva, em 9 de dezembro de 2020 foi realizada audiência no âmbito da CIDH sobre a temática específica dos despejos forçados na pandemia. Em tal ocasião, o presidente da sessão, Joel Hernandes, assim como as demais comissionadas presentes, foram uníssonas em demonstrar preocupação com o tema. Advertiram as autoridades brasileiras presentes acerca da gravidade de realização de despejos em desacordo com protocolos internacionais, especialmente acerca da indispensável adoção de procedimentos prévios mínimos que protejam os direitos à moradia, à saúde e à vida das pessoas, como por exemplo a: i) intimação de todas as pessoas e órgãos públicos envolvidos; ii) a elaboração democrática de planos detalhados e exequíveis de realocação; iii) o exaurimento de

todas as vias possíveis de mediação e conciliação; e iv) especial proteção às crianças, adolescentes e idosos.

Paralelamente, em reunião do Observatório dos Direitos Humanos do CNJ, em 10 de dezembro de 2020, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) apresentou proposta para que o CNJ regulamentasse a suspensão dos despejos em período de pandemia. Acolhendo tal proposição, vinda novamente das organizações da sociedade civil em defesa dos direitos humanos, o CNJ aprovou somente em 2 de março de 2021 a Recomendação 90/20217 que confere tratamento específico aos conflitos possessórios nos seguintes termos:

Art. 1º Recomendar aos órgãos do Poder Judiciário que, enquanto perdurar a situação de pandemia da covid-19, avaliem com especial cautela o deferimento de tutela de urgência que tenha por objeto desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, sobretudo nas hipóteses que envolverem pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica [...].

Art. 2º Recomendar aos órgãos do Poder Judiciário que, antes de decidir pela expedição de mandado de desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, verifiquem se estão atendidas as diretrizes estabelecidas na Resolução no 10, de 17 de outubro de 2018, do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Ainda que tardia, tal recomendação é institucionalmente muito relevante, afinal, recomenda expressamente a adoção das diretrizes estabelecidas na Resolução 10 do CNDH que se configura, sem dúvidas, no mais detalhado instrumento jurídico vigente no ordenamento pátrio sobre a regulação dos processos possessórios com vistas à proteção da dignidade humana dos ocupantes, inclusive independentemente de excepcionalidades sanitárias como vistas na pandemia.

Ainda assim, sem a aprovação de uma lei específica ou de ordem impositiva com efeito para todos em âmbito nacional, após grande repercussão de despejo violento ocorrido em ocupação no Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília no início de abril de 2021,8 o Partido Socialismo e

7 A íntegra da Recomendação pode ser lida em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1256102021030560422a6ac453a.pdf. 8 Stropasolas, Pedro e Tawane, Nayá. GDF despeja 38 famílias em Brasília nesta segunda: “Crime humanitário”, diz advogada. Brasil de Fato, 05/04/2021. Disponível em: https://www.brasildefato.

Liberdade (Psol) propôs no STF a ADPF 828,9 apelidada de “ADPF dos Despejos”, que teve justamente como pedido principal a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer atos que determinem despejos coletivos neste período. A ação distribuída sob a relatoria do ministro Roberto Barroso logo contou com a atuação processual de dezenas de organizações da sociedade civil, que pediram ingresso na condição de amigos da corte. Em 4 de junho de 2021, os pedidos liminares foram parcialmente deferidos pelo relator e, em sessão virtual realizada em 10/6/2021 formou-se maioria em torno da suspensão dos despejos pelo prazo de 6 meses. O feito teve um pedido de destaque pelo ministro Gilmar Mendes e o mérito depende de apreciação definitiva.

Importante destacar a relevância de tal precedente, no qual o STF admitiu e analisou uma ação de controle concentrado de constitucionalidade, relacionando o direito social à moradia (art. 6º CF) à proteção à saúde (art. 196 da CF), havendo consenso na relativização do exercício dos direitos possessórios e de propriedade para proteção da vida de ocupantes.

Somente em 14 de julho de 2021 o Congresso Nacional aprovou o PL 827/2020, que reuniu as demais proposições sobre suspensão de despejos na pandemia. Todavia, a partir de pressões do setor ruralista, foi retirada da versão final do texto a proteção contra despejos coletivos em áreas rurais. Mesmo assim, restringindo-se apenas às ocupações urbanas, com marco temporal para ocupações ocorridas antes da pandemia, em 6 de agosto de 2021 a presidência da república vetou proposta, sem reanálise do Congresso sobre eventual derrubada dos vetos.

Fica evidente que o Executivo e o Legislativo pouco fizeram para a proteção do direito à moradia neste período. O Judiciário, ainda que com atraso, conseguiu dar respostas mais protetivas à vida e à moradia das pessoas em situação de vulnerabilidade, sem desconsiderar que muitos despejos aconteceram e tantos outros ainda podem acontecer. De todo modo, o saldo institucional mais importante deste período talvez seja a retomada

com.br/2021/04/05/gdf-autoriza-despejo-de-38-familias-em-brasilia-crime-humanitario-diz-advogada. Acesso em 11 nov. 2021. 9 A íntegra da ADPF pode ser lida em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6155697.

da discussão sobre o direito à moradia e a utilização da Recomendação 10/2018 do CNDH como referência jurídica adequada acerca dos procedimentos de mediação e proteção de direitos das partes envolvidas em conflitos possessórios coletivos.

Não deve restar dúvidas a quem quer que seja que negar o acesso à terra é negar o direito à saúde e à vida dos povos do campo e da cidade. A partir da organização e da luta popular, com o indispensável protagonismo da sociedade civil organizada, poderemos construir a efetivação do direito à moradia nestas terras, para que nunca mais qualquer mãe seja expulsa de sua casa com suas crianças sem ter para onde ir, em qualquer tempo, principalmente durante uma pandemia.

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