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O racionalismo de Espinosa

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Bibliografia

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O pensamento de Espinosa é em grande medida antagônico às ideias fortificadas por nossa formação social do ocidente das chamadas tradições judaico-cristãs. Razão pela qual, seu pensamento não faz parte de um senso comum. Em um primeiro momento suas ideias podem causar certo estranhamento, mas à medida que o contato vai se estreitando e os conceitos se inter-relacionando, sua filosofia vai nos envolvendo e apresentando sua lógica integral.

Marilena Chauí classifica o pensamento de Espinosa como um racionalismo absoluto01, isso significa que para ele a realidade pode ser inteiramente inteligível pela razão humana, de modo que não há espaço para forças ocultas misteriosas. Decorre daí parte de um dos principais pontos de seu pensamento imanentista: a identificação de Deus à natureza. Se Deus é onipresente, não há como imaginá-lo fora do mundo. Ele não seria, portanto, uma força transcendente, mas sim imanente. Para Espinosa, Ele é o conjunto de todo o mundo natural, tudo o que se encontra nele, incluindo os homens, suas mentes e seus corpos. “A filosofia espinosana é a demolição do edifício filosófico-político erguido sobre o fundamento da transcendência de Deus, da Natureza e da Razão”02 .

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01 Ver: CHAUÍ, Marilena. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Editora Moderna, 2001. p.34 et. seq. 02 Idem. Espinosa: uma subversão filosófica. Revista Cult, no109, março, 2010.

Racionalismo absoluto significa, portanto, libertar-se das causas da ignorância para com isso libertar-se das causas do medo e da esperança e, ao fazê-lo, libertar-se de seus efeitos religiosos e políticos. Racionalismo absoluto é a confiança na capacidade libertadora da razão03 .

Esse racionalismo é absoluto, portanto, na medida em que tem o propósito de explicar a totalidade, representada pela existência de Deus enquanto única substância, e eis a razão pela qual o caracterizam como monista. Isto é, Espinosa constrói um edifício do pensamento, tem a presunção de explicar o todo e assim o faz. É uma abordagem integral, que articula todos os conceitos dentro de um grande universo que se auto refere reiteradamente. “O método de escrita segue a ordem geométrica e tem sua última parte remetida à primeira como se formasse um círculo de pensamento, que se adere e se vincula às definições e proposições, sendo todas explicitamente demonstradas”04 .

Não tratarei de apresentar o seu pensamento enquanto essa totalidade, pelo menos não diretamente, dado que expondo as partes algo do todo poderá ser captado. Abordarei algumas ideias principais que fazem de sua obra algo fora do senso comum, algumas delas não possuem concepções facilmente dedutíveis, por isso é importante situar alguns desses conceitos para evitar confusões mais adiante. Justamente por esse motivo, tais conceitos foram muito mal recebidos à sua época, pois tensionavam tanto

03 CHAUÍ, op. cit. 2001. p.35. 04 OLIVEIRA, Nara. O conceito de natureza em Espinosa: contribuições para uma crítica ecológica mais efetiva. 2016. Dissertação (mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016. p.56.

os preceitos religiosos, quanto o processo de racionalização do mundo que começava a se articular na época.

A filosofia de Espinosa se insere na formação do pensamento moderno, isto é, nesse processo de racionalização que mudou estruturalmente a vida social através do avanço das ciências, no qual as premissas não científicas foram paulatinamente sendo refreadas. Tal movimento é descrito por Max Weber como “desencantamento do mundo”. Espinosa, ao mesmo tempo que, de certa maneira, ajuda a construir esse edifício do pensamento moderno, como um dos precursores do racionalismo filosófico, traz importantes tensionamentos sobre as bases pelas quais os próprios ideais modernos se ampararam. Inclui, no seio da sua filosofia, conceitos aparentemente contrários entre si que conflituam com a construção desse processo chamado “desencantamento do mundo”. Propõe um diálogo incessante entre: pensamento e sentimento, objetividade e subjetividade e razão e paixão.

Também por esse motivo, Espinosa foi um autor muito mal recebido em seu tempo, tendo sido pouco lido durante um longo período, até ser recuperado pela filosofia alemã e depois pela filosofia francesa já no século XX. Tamanha foi a perseguição sofrida por Espinosa, ao ponto de espinosismo haver sido convertido em insulto, que suas ideias foram, de certo modo, apagadas na construção do pensamento moderno.

Ao longo desse processo de racionalização, iniciado ao redor do século XVI, prosperou uma visão de sociedade das máquinas perfeitas, da apoteose da técnica, das grandes invenções, da arte e das ciências, onde o homem, responsável por tantos avanços, foi elevado à condição de superhomem, que tudo pode, se aproximando ao papel de

Deus. Isto é, um ser dotado de superpoderes, capaz de resolver todos os problemas da humanidade através da técnica.

Nessa visão de sociedade não havia lugar para algumas das questões abordadas pela filosofia de Espinosa, tais como: a incorporação de um entendimento sistêmico do todo na relação de interdependência entre as partes; a forma que ele entende a relação mente-corpo e, a partir disso; a importância dos afetos para o conhecimento. Esses conceitos, de formas variadas, têm sido desvelados hoje em sua importância, aparecendo em teorias relevantes da atualidade. Entendo que recuperar Espinosa é recuperar esses conceitos e as ferramentas que eles nos trazem para pensar a nossa ação no mundo de hoje.

O primeiro desses conceitos é o que poderíamos chamar de uma visão sistêmica na articulação do pensamento. O filósofo compreende a importância do todo nas partes e das partes no todo, isto é, conhecer a totalidade sem negligenciar as partes que a integram mutuamente. O racionalismo de Espinosa, ao contrário de como frequentemente essa linha do pensamento se desenvolveu, principalmente no campo científico, não é mecanicista, nem reducionista. Ao longo do processo de racionalização do mundo que comentávamos, o paradigma reducionista ou cartesiano, como gostam de nomear alguns autores, se expandiu, sendo entendido como a “tendência a admitir que qualquer corpo (ou fenômeno) poderá ser sempre dividido em unidades menores, as quais deverão ser examinadas isoladamente”05. Esse método não reconhece que algo se perde quando dissociamos o todo em partes e as estudamos isoladamente. Isso ocorre a despeito da filosofia

05 Ver: BRANCO, Samuel. M. Ecossistêmica: uma abordagem integrada dos problemas do meio ambiente. São Paulo: Edgard Blucher, 1989. p.17.

espinosana, que já apontava para questões que colocavam em xeque o paradigma reducionista e acenavam para um pensamento integral, sistêmico ou, até mesmo, complexo. Tal conceito será explorado no próximo subcapítulo, “O lugar do Homem na Cidade”, abordando a figura humana e sua relação com o meio do qual faz parte. Será discutida, então, a ideia do homem não mais como animal racional e dotado de livre-arbítrio, mas como mais um submetido às leis do todo, a Natureza. Resgatando, dessa maneira, o entendimento do homem em interação ininterrupta com o meio do qual faz parte, através de trocas incessantes de afetos.

O segundo dos conceitos que é também um dos insights que fazem parte de teorias importantes da atualidade e que já se encontravam, de alguma maneira, presentes em Espinosa, diz respeito à relação mente-corpo. Para ele não é possível conceber qualquer separação entre corpo e alma, matéria e mente. “Nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento ou ao repouso, ou a qualquer outro estado (se é que isso existe)”06. Espinosa reaviva o corpo, propondo um novo modelo que o considera objeto de análise. Até então, o corpo era visto, muitas vezes, como elemento impuro ou até mesmo incapaz de ser analisado. Em outras palavras, a mente não é melhor que o corpo, o espírito não é mais puro que o corpo e não há um domínio do corpo pela razão. Essa discussão estará presente no subcapítulo “O Corpo de Espinosa na cidade”, na qual buscaremos chegar na ideia de como as interações corpóreas e a materialidade urbana são importantes para o viver nas cidades.

06 SPINOZA, Benedictus. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. p.100.

O terceiro e último dos conceitos é o afeto, um dos temas mais importantes da filosofia espinosana. Até sua época, os afetos, as paixões, eram consideradas empecilhos para o exercício da razão. Entretanto, para Espinosa, “é fundamental conhecer os efeitos dos afetos em nós”07. Somente entendendo o que nos afeta e como nos afeta é que podemos cultivar a nossa alegria, aumentando nossa potência de existir e agir no mundo. O exercício intelectual que Espinosa nos propõe, incorpora, de maneira substancial, a relação entre conhecimento e alegria. O conhecimento, para ele, é o mais potente dos afetos. Essas ideias serão desenvolvidas no subcapítulo “Por uma cidade afetiva”, explicitando a cidade enquanto lugar de trocas, onde a ausência de afetos é inconcebível.

Espinosa tem sido recuperado em diversas áreas do conhecimento. É sabido, por exemplo, que algumas das intuições do autor sobre a atividade da mente humana foram de certa maneira ratificadas pelos estudos atuais no campo da Neurociência08. Autores contemporâneos também têm recuperado seus conceitos, como Morin, que, assim como Espinosa, propõe a compreensão da totalidade em relação com as partes que a formam e nos dá, com seus ensinamentos, ferramentas com as quais podemos lidar melhor com a complexidade do mundo09. Outros autores, como Antonio Negri e Michael Hardt, resgatam as ideias espinosanas, entendendo os afetos com um vigor substancialmente ético-político. Nesse sentido, as trocas afetivas são fundamentais para a construção de uma coletividade que

07 GIACOIA, Oswaldo. O poder dos afetos. Palestra proferida no programa Café Filosófico, Campinas, jul. 2018. 08 Ver: DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 09 Ver: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: RS Sulina, 2015.

parte para a ação. No último subcapítulo desta parte, “Por uma cidade alegre da ação”, aprofundarei a discussão recuperada por Negri e Hardt, olhando para a relação do conhecimento com a alegria e concebendo a terapia da mente de Espinosa como essencialmente política.

Todos esses conceitos até aqui apresentados estão ligados à ideia de homem que Espinosa constrói e sua relação com o meio que o cerca, a natureza, ou a partir de uma releitura pessoal, de onde nos compete viver a maior parte dos homens: as cidades.

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