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A cidade complexa

Termino, então, essa apresentação teórica levantando os principais pontos comuns entre a teoria de Espinosa e o pensamento da Ecologia que nos ajudam a compreender o caminho proposto neste trabalho para a participação cidadã nas cidades. Foram levantados três conceitos fundamentais e importantes nessa relação: a ideia de uma cidade complexa, o desenvolvimento de uma nova ética ambiental e o entendimento da cidade como um bem comum. Esses três conceitos são apresentados neste capítulo final, cada um em um subcapítulo, e apresentam-se como uma síntese das ideias apresentadas anteriormente.

Conforme exposto, nosso modelo de desenvolvimento modernizador foi moldado pelo paradigma cartesiano, naturalizado e estimulado até hoje como se fosse a única alternativa. Entretanto, percebemos, a partir de Espinosa e da Ecologia, em constante diálogo com Morin, que o pensamento reducionista simplifica as questões e não é capaz de exprimir a totalidade e as relações da realidade ou dos fenômenos. Há uma tentativa de querer organizar o complexo, fragmentar a realidade em pequenas partes desconexas que acaba por gerar cegueira, ao invés de elucidar o entendimento, como se pretendia. O paradigma simplificador vê o uno e vê o múltiplo, mas não vê que o uno pode ser múltiplo ao mesmo tempo01 .

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01 Ver: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: RS Sulina, 2015.

“A dificuldade do pensamento complexo é que ele deve enfrentar o emaranhado (o jogo infinito das inter-retroações), a solidariedade dos problemas entre eles, a bruma, a incerteza, a contradição”02. E é justamente neste ponto que as teorias de Espinosa e da Ecologia nos ajudam com ferramentas para entender que existe uma constante relação do todo com as partes. Isto é, não só o todo contém as partes como as partes também contém o todo.

Nesse sentido, Morin apresenta o princípio hologramático do pensamento complexo, que diz da ideia de que todas as partes também possuem a informação do todo, e essa concepção estaria presente no mundo biológico assim como no mundo sociológico, e, portanto, nas cidades. A ideia do hologramismo consegue ir além do reducionismo que só vê as partes e do holismo que só vê o todo.

Na relação constante de uno e múltiplo, é impossível nos enxergarmos enquanto externos à natureza e ao meio no qual vivemos. O que quero dizer é que tanto Espinosa quanto a Ecologia nos conduzem a entendermo-nos como parte de um todo maior e, portanto, que não somos superiores aos outros elementos da natureza.

Portanto, se estamos inseridos nesse todo, seja para a Ecologia, seja para Espinosa, a nossa relação com o mundo importa. Entretanto, é preciso saber olhar para essa realidade de maneira complexa. Estamos submetidos às afecções e às nossas relação com os outros corpos do mundo. Assim, Espinosa e a Ecologia convergem no paradigma complexo no que tange os acasos e as incertezas do nosso encontro com o meio.

02 Ibidem. p. 14.

A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneos, inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Em um segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimento, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas, então, a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza…03

As duas teorias, assim como Morin, nos ensinam que, dentro dessa rede de complexidade não temos poder sobre as coisas como imaginamos, não podemos estabelecer uma relação de domínio com a natureza. Dessa maneira, não se trata de controlar e dominar o real, mas de exercer um pensamento capaz de lidar com ele04, negociando e dialogando.

Na tentativa incessante de dominar o mundo, que exercemos a partir da noção de superioridade do homem e da uma visão reducionista da realidade, colocamos a razão como hierarquicamente superior. Isto é, buscamos encerrar o mundo em partes, dividir as questões em caixas e conceitos isolados, que não consideram a passionalidade das relações humanas. Em contraposição a isso, Espinosa nos convida a olhar para os afetos e essa camada do mundo que vai além da razão, desmistificando a hierarquização da mente sobre o corpo.

Reconhecer a complexidade nas cidades é também reconhecer esse viés afetivo proposto pelo filósofo, dando ênfase para as relações. Assim, sendo a cidade um ecos-

03 Ibidem. p.13. 04 Ibidem. p.14.

sistema complexo, é preciso que pensemos soluções complexas para ela. Não podemos pensar em soluções isoladas e fragmentadas que atacam os sintomas ao invés das causas, como propostas habitacionais que não levem em conta as questões de mobilidade, por exemplo. É fundamental que para os problemas complexos que a cidade apresenta, possamos dar as respostas complexas que eles exigem. Um exemplo de grande valor nesse sentido e próximo do nosso contexto é o programa Ligue os Pontos, da prefeitura de São Paulo, um programa que apresenta uma visão poucas vezes empregadas nas nossas políticas públicas, por possuir uma abordagem sistêmica do problema, abrangendo diversas secretarias, diversos atores da cidade em diversas escalas da metrópole.

Portanto, olhar para o paradoxo do uno e do múltiplo, no campo da cidade, é também pensar sobre a escala micro, de ação pontual, em relação com a escala macro de políticas urbanas integradas. O que quero dizer é que uma ação pontual não é apenas uma ação pontual, pois ela deve considerar o todo e conter em si uma parte dele; da mesma forma que uma política pública deve considerar suas diferentes partes e possibilidades de atuação, materializando-se em projetos locais, mantendo um diálogo constante entre as escalas. Pensar a cidade complexa nos ajuda a agir localmente, na micro escala, e também no macro, estruturalmente.

Olhar para a relação entre as diferentes escalas, entre as partes e o todo é perceber que a relação entre as diferentes escalas do planejamento não é unidimensional, mas sim uma conjunção da unidade/micro e do múltiplo/macro. É, portanto, extrapolar a ideia linear de causa e efeito, dialogando com a ideia de que não se pode conceber o todo sem as partes, nem as partes sem o todo.

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