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A cidade como bem comum

Uma ideia que tem se difundido é que a pandemia do novo coronavírus tem amplificado as nossas disfunções enquanto sociedade. Escancarando nossas desigualdades, dando visibilidade a nossa crise urbana. Entretanto, ficou clara a percepção de que a humanidade não está sozinha no mundo. Sabemos que as condições de resposta ao coronavírus são absurdamente desiguais. Sabemos que, na pandemia, mas não só nela, na violência urbana e nos desastres ambientais, a desigualdade é sempre mais letal aos mais pobres. Mas se não for possível conceber, nessa situação de vulnerabilidade global, a implicação de todo o grupo social nas suas relações de desigualdade e a consequência implacável dessa situação para todos, provavelmente sairemos com uma situação sócio-ambiental muito pior quando da divulgação da primeira morte pelo coronavírus.

Há uma necessidade de transformação que leva em conta esse entendimento, e essa transformação passa pela concepção de bem comum. O comum é um conceito estudado por muitos atores, como Antonio Negri e Michael Hardt, David Harvey, Bruno Latour, Isabelle Stengers, Christian Laval. Sua concepção dissolve a tradicional polarização do público e do privado enquanto duas categorias que, desde a Grécia Antiga, estruturam as bases dos pensamentos ocidentais.

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Atualmente, as pautas de inovação e novas tecnologias, muitas vezes, são vistas como pautas ligadas ao campo da direita, por aqueles que se dizem de esquerda. Por outro lado, pautas relacionados ao meio ambiente são vistas sob a ótica da ideologia de esquerda, por aqueles que se dizem de direita. São dicotomias como essas que, buscando resolver as questões postas em debate, colocam as respostas a partir da defesa do público ou do privado, quando na verdade esvaziam o verdadeiro problema por ignorância ou preconceito.

O comum extrapola uma noção de política governamental do estado nação soberana, implicando em uma consciência global, planetária. Isso significa dizer que “uma democracia da multidão só é imaginável e possível porque todos compartilhamos do comum e dele participamos”01 .

Hardt e Negri afirmam que o comum é primeiramente a riqueza do mundo material natural e, além disso, resultado da produção social. Isto é, um conceito que “não coloca a humanidade separada da natureza, seja como sua exploradora ou sua guardiã; centra-se, antes, nas práticas de interação, cuidado e coabitação num mundo comum, promovendo as formas benéficas do comum e limitando as prejudiciais”02 .

Aqui, destacamos um ponto chave da relação desse conceito com a Ecologia: a ideia de pensar o homem e a natureza de maneira não hierarquizada, entendendo o primeiro inserido dentro do segundo e, assim, pensar as questões socioambientais a partir do entendimento da natureza como bem comum. A cidade poderia ser também o espaço

01 NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Bem-estar Comum. Rio de Janeiro: Record, 2016. p. 8. 02 Ibidem. p. 8.

onde as estruturas do pensamento ecológico desenvolvem-se, intermediando a relação do homem com o meio. É poder fazer uso das relações propostas por esse campo do conhecimento para pensar outras formas organizacionais para a cidade no sentido do comum. “uma ecologia centrada igualmente na natureza e na sociedade, nos seres humanos e no mundo não humano, numa dinâmica de interdependência, cuidado e transformação mútua”03 .

Assim, como defendem Negri e Hardt, o comum está nos mais diferentes campos da vida, não se trata apenas das riquezas materiais da natureza, mas também dos elementos que formam a vida social. Eles defendem que o ambiente para a realização do comum são as cidades, “das pessoas vivendo juntas, compartilhando recursos, comunicando-se, trocando bens e ideias”04. E, a partir dessa lógica, para esse trabalho faz muito sentido olhar para a produção dos espaços comuns da cidade, possibilitando espaços de encontros entre os corpos. A vivência do comum deixa de ser sentida quando subtraímos dos espaços urbanos as possibilidades de permanência e encontro. Aqui, é possível estabelecer um diálogo com a teoria de Espinosa, que defende os encontros como potências afetivas necessárias para o aumento do estímulo à ação.

Reforçamos, então, que as três noções apresentadas: a visão mais sistêmica ou, até mesmo, complexa, a ética ambiental e a constituição do comum ressoam para o entendimento de uma cidade dos encontros, onde as pessoas se articulam politicamente e podem transformar a cidade transformando a si mesmos.

03 Ibidem. p. 196. 04 Ibidem, p. 278.

Que a privação da sociabilidade nesse momento tão difícil que estamos passando nos mostre o quanto esses momentos de contato entre pessoas nos são vitais e que consigamos realizar a importância dos espaços livres e da constituição do bem comum para o movimento de participação cidadã.

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