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Por uma cidade alegre da ação

Outro ponto crucial do pensamento de Espinosa é o conatus. Para ele, “cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”01. A esse esforço de perseverar em seu ser, ele dá o nome de conatus. Na mente, o conatus recebe o nome de desejo, enquanto no corpo, apetite. Assim como a noção de corpo e de afeto, e também em decorrência deles, esse conceito foi trabalhado por Espinosa em discordância a uma concepção tradicional. Sobretudo aquela ligada ao cristianismo que associa o desejo a uma carência de algo, isto é, uma sequela da imperfeição humana. De maneira oposta, para Espinosa, o conatus é a “própria essência do homem”02 .

Essa potência de agir que temos, conatus, pode variar positivamente, isto é, sair de um estado de menor perfeição para um estado de maior perfeição. Como também pode, por outro lado, sair de um estado de maior perfeição em direção a um estado de menor perfeição, variando negativamente. Essa variação vai depender do tipo de afeto que estabelecemos em nossos encontros, ou seja, se são ativos ou passivos. O conatus é a expressão dessa nossa capacidade de variar nos afetos.

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01 ESPINOSA, Baruch. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 105. 02 Ibidem, p. 141.

Entretanto, por mais que tenhamos a possibilidade da diminuição da nossa potência, como já vimos, o homem, assim como os demais seres, quer perseverar na sua existência. Isso significa que, ao contrário da ideia de que temos um impulso destrutivo dentro de nós, defendida por muitos pensadores, Espinosa vai defender justamente o contrário. Vai defender que somos positividade, somos uma vontade que se afirma, através do conatus, pela força da vida. Todavia, já que somos essa positividade que luta por perseverar em si, por que seguimos com eventos contínuos de diminuição da potência de agir?

Trata-se dos afetos passivos, das paixões tristes, que como já vimos são forças externas que acabam por nos constranger. Sendo o desejo uma potência, como aumentá-lo, como nos tornamos mais potentes? Como firmamos o nosso desejo?

Só existe uma forma, alcançando aquilo que nos é útil. Aquilo que nos produz alegria.É uma concepção de homem que torna inconcebível a separação do eu e dos seus interesses.A essência do eu é o seu interesse. Se o interesse surge na relação com o mundo, o desinteresse é a negação da relação com o mundo. É isso que não se pode conceber, porque o homem sempre tende ao mundo, aquilo que lhe é útil.

É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras. E, inversamente, é nocivo aquilo que torna o corpo menos capaz disso03 .

Agir de forma desinteressada, embora seja uma atitude moralmente valorizada, é um atentado à natureza desejante do homem, desatrelando as ações de sua responsabilidade. Ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, as ações movidas por interesses seriam mais úteis que as ações altruístas, convidando ao compromisso04. O útil, a realização do nosso desejo, aumenta a nossa potência. Negar o nosso útil é negar a nós mesmos. Construímos uma modificação da natureza do nosso próprio ser. Do ponto de vista do pensamento de Espinosa, um mundo de ações interessadas teria um salto qualitativo.

Espinosa desmonta a ideia de que o homem é um ser isolado, para ele, a melhor coisa para o homem é o outro homem. Também se contrapõe à noção de que o que está fora de nós nos ameaça, ao passo que, normalmente, entendemos que as exterioridades ameaçam o que nos é útil. Relação essa que se reflete na cidade, que passa a ser o espaço do medo e da insegurança. Entretanto, as ideias de Espinosa apontam para o sentido oposto. Aquilo que está fora é a possibilidade de gerar encontros que provocam maior alegria e, portanto, ação. Estamos inseridos e fazemos parte da natureza, da mesma forma com a cidade, de

03 Ibidem, p. 182. 04 GIACOIA, Oswaldo. O poder dos afetos. Palestra proferida no programa Café Filosófico, Campinas, jul. 2018.

maneira que é preciso nos entender enquanto parte dela e conseguir, deste modo, estabelecer relações de composição, isto é, tomar parte da cidade05 .

Precisamos criar cidades que sejam mais interessantes para as pessoas, que nos convidem a compor com elas de modo que consigamos enxergar a utilidade que elas têm para nós, principalmente enquanto coletividade, e também construir um compromisso enfático com a cidade e com aquilo que interessa. É, para além de usar a cidade, a possibilidade de transformá-la transformando nós mesmos06 .

Segundo Chauí, o exercício da liberdade está relacionado à felicidade alcançada através do desejo por um bem imperecível, “sendo capaz de ‘comunicar-se igualmente a todos’ e de ser por todos compartilhado”07. Aproxima-se, então, da ideia de que o homem não é individual, mas coletivo.

O sujeito para Espinosa não é um sujeito individual, monádico, encerrado sobre si mesmo, mas sim aquele que é capaz de perceber a sua inserção na ordem universal da natureza. É aquele que é capaz de detectar os seus encontros úteis, unir-se a objetos que aumentem a sua potência e de evitar o encontro com objetos que produzem afecções tristes e que por conseguinte, diminuem a sua potência08 .

A cidade poderá ter momentos que apontam para um lugar da vida coletiva da alegria (autonomia), relacionada à ativi-

05 MARTINS, André. Os afetos em Espinosa e Winnicott. Palestra proferida no programa Café Filosófico, Campinas, 2005. 06 Ver: HARVEY, David. Cidades rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 07 CHAUÍ, Marilena Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Editora Moderna, 2001. 08 GIACOIA, Oswaldo. O poder dos afetos. Palestra proferida no programa Café Filosófico, Campinas, jul. 2018.

dade ou tristeza (servidão), relacionada à passividade09. De tal modo que podemos passar a buscar mais encontros ativos que nos causam alegria e, também, evitar aqueles que nos causam tristeza. A alegria é o sentimento de que nossa capacidade ou aptidão para existir aumentam, isto é, agimos. Ao contrário da tristeza que é o sentimento da diminuição de nossa aptidão para existir e agir, isto é, nos tornamos passivos. “O desejo que surge da alegria é, em igualdade de circunstâncias, mais forte que o desejo que surge da tristeza”10 .

Existem nas cidades as potências individuais de cada um, as quais vão, cotidianamente, consolidando um conatus coletivo transformador. Ou seja, conforme os afetos individuais passam a convergir para um afeto coletivo, constrói-se uma potência comum de ação. Assim sendo, para alcançar a alegria, é preciso entender-se enquanto parte da natureza, parte integrante de um todo, afastando pretensões de onipotência. Negri diz: “À verdade espinosana, que é verdade de uma revolução realizada nas consciências, busca do ser por si da ética através da multitudo e descoberta da efetividade desse processo”11. De tal maneira que a ação seja movida pelo conhecimento da vida coletiva. Fazer desse conhecimento o mais potente dos afetos pode nos ajudar a afastar o medo e abandonar a paralisia diante dos momentos de crise, aumentar a nossa potência de agir, pensar e ser com criatividade e alegria.

09 Bertini, Fátima. Afetos em Espinosa e a Cidade como Civitas, REVISTA CONATUS, Fortaleza, volume 9, número 18, p. 11-18, dez. 2015. 10 ESPINOSA, Baruch. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.110. 11 NEGRI, Antonio. Espinosa Subversivo: e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p.16.

Entendemos que recuperar o pensamento filosófico de Espinosa é recuperar um pensamento potente que pode nos indicar caminhos possíveis no sentido da superação das dicotomias edificadas pelo racionalismo moderno. Caminhos que percebam a complexidade das relações afetivas nas cidades e que possam entendê-las politicamente. Caminhos que vão além da relação de oposição entre objetividade e subjetividade; racionalidade e afetividade; ação e reflexão; individualidade e coletividade e público e privado.

Espinosa constrói esses caminhos constituindo uma totalidade que valoriza o corpo,os afetos e o coletivo, fruto das relações entre o homem e o mundo.Convite para nos tornarmos parte ativa dos encontros e da vida, aumentando nossa potência de agir na cidade, de forma a transformar a ela e a nós mesmos.

“a ecologia geral suscita o problema homem e natureza no seu conjunto, na sua amplitude, na sua atualidade”

Edgar Morin

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