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Elementos urbanos afetivos

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A ética ambiental

A ética ambiental

Elementos urbano afetivos

Levantamos, a partir de Espinosa e da Ecologia, elementos que dizem sobre nossa relação com a cidade, sendo possível perceber nela algumas questões, para as quais buscamos apontar formas possíveis de pensar essa relação. A partir da discussão teórica, chegamos, então, a três questões que suscitam a necessidade de reavaliação da relação que estabelecemos com o meio no qual vivemos.

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Percebemos uma visão de cidade ainda muito fragmentária, que não possibilita que nos enxerguemos enquanto parte dela e, inclusive, muitas vezes, faz com que tentemos evitá-la. Assim, é necessário pensar soluções que considerem a cidade de forma mais complexa, aumentando as possibilidades de interação social. Que a rua deixe de ser um espaço apenas de mobilidade urbana, mas seja um lugar de apropriação cidadã por meio de usos múltiplos e complexos. Que o espaço público seja mais diverso, resgatando os espaços que hoje estão destinados à mobilidade particular, motorizada, possibilitando que o pedestre se converta em cidadão. Isto é, possa realizar todas as funções que hoje não podem ser efetivadas porque as ruas, a maior parcela de espaço público de uma cidade, estão pensadas para uma única função: deslocamento. Entende-se que tanto mais o espaço se permita ser afetado pelo cidadão, maior será a potência coletiva em promover transformações necessárias nas nossas cidades. Uma oportu-

nidade para desenvolver a potência coletiva e iniciativas ecológicas.

Além disso, identificamos que a visão que temos de nossa relação com a natureza também se aplica a nossa relação com a cidade, uma relação de uso e exploração, apontando para a necessidade de uma ética ambiental que nos permita identificar a responsabilidade individual sobre assuntos comuns, como a gestão de resíduos ou como os problemas relacionados à drenagem.

E, por fim, o terceiro ponto que apresentamos como deficiente é a mobilização social, que veio sendo marcada por uma inércia e marasmo social diante de uma série de manifestações antidemocráticas que ameaçam a coletividade. Essa questão aponta para a necessidade de uma organização popular comum e colaborativa, entendendo que o comum vai além do público e do privado e pode, assim, compor espaços ativos na cidade.

Todos esses pontos apontam para a noção da participação, a qual tem se tornado um tema muito discutido e acabou por significar diversas coisas ao mesmo tempo. Tal conceito, a exemplo de outros, como sustentabilidade, autonomia e empoderamento, na medida em que vão sendo utilizados com frequência, acabam sendo incorporados a discursos que subvertem seu sentido primário e escondem dentro de si ambiguidades latentes.

Neste trabalho, a participação é entendida no sentido de valorizar a presença do corpo afetivo na cidade. Para tal, ela precisa ter elementos que convidem as pessoas para constituições de relações de composição. É a ideia de que cada um compõe a cidade, é parte dela e, mais ainda, pode tomar parte dela. Nesse sentido, acreditamos que seria importante uma articulação governamental de criação de

instrumentos pensados em figuras jurídicas como a gestão compartilhada, mas, mais que isso, que na nossa sociedade da informação as pessoas conseguissem, através do comum, se instrumentalizar para agir nas cidades por meio do compartilhamento de conhecimentos, imagens, códigos, dados, informações, afetos.

Visando a aproximação entre todos os corpos da vizinhança, incluindo seus moradores, o comércio local, os espaços comuns, ao mesmo tempo, que tende a apontar para a preocupação ecológica nas nossas cidades, propus o Guia de Elementos Urbanos Afetivos que procura mostrar que é possível a atuação de qualquer cidadão na busca pelo fortalecimento de espaços comuns na cidade. O intuito do guia é deixar os corpos mais expostos, mais suscetíveis à trocas de afetos com os demais corpos da cidade.

A ideia de propor um guia de elementos urbanos afetivos vem da vontade de organizar um repertório de desenhos, projetos, experiências, ideias que possuam em si um potencial comum de apreensão sensível do meio ambiente urbano em oposição ao automatismo das cidades apressadas. Utilizando como chave de leitura a teoria dos afetos de Espinosa bem como ao pensamento da Ecologia, temos a vontade de olhar para esses elementos em sua dicotomia intrínseca inter-relacional com o cidadão entre afetar e ser afetado, ser parte e tomar parte.

Os elementos urbanos propostos não são intervenções urbanas no sentido de algo que vem de fora, uma operação exterior à lógica local. Mas são um reconhecimento de ações que já estão em curso na sociedade. Não é um projeto taxativo, apresenta-se como uma proposta de composição com os atores locais, de ação compartilhada,

fornecendo um agrupamento de elementos, todos eles existentes e latentes de expansão.

A escolha por elementos táticos, em sua maioria, está relacionada com a inversão de perspectiva sobre como os espaços públicos são construídos e reconstruídos nas nossas cidades. Com a utilização de elementos efêmeros, torna-se possível, ao mesmo tempo, ativar as discussões sobre os lugares comuns da cidade e melhorar a qualidade ambiental desses espaços. De certa maneira, volta às origens do planejamento urbano pelo fato de permitir colocar em debate quais são as necessidades do espaço público a partir da perspectiva dos seus cidadãos antes da efetivação definitiva do projeto urbano.

Dessa maneira, quando ocorre a posterior intervenção sobre esses espaços, a vizinhança já pôde estruturar uma rede de vivências afetivas que não permitirá transformações alheias à sua realidade, e, assim, seguramente serão realizadas a partir de um outro ponto de vista mais diverso, complexo e ecologicamente mais coerente.

A despeito de toda a legislação que abarca o urbano, as nossas cidades parecem ter crescido ainda na desordem, na ausência de normas. Parecem aceitar que em certos espaços se faça necessário o cumprimento legal das normas urbanísticas enquanto outras, aquelas historicamente esquecidas, sejam completamente desconsideradas. Esse trabalho entende como completamente importante os nossos avanços relativos às normativas urbanísticas, entretanto, entende também que elas não foram suficientes. Isto é, hoje vemos que não alcançamos a cidade que esperávamos.

Nós, durante muito tempo, visitamos e insistimos unicamente na polis, está na hora de “fazermos as pazes com a

asty”01 e atuarmos por meio de um desenho urbano que se coloca aberto para receber relações de composição com os demais corpos da cidade, bióticos e abióticos. Esse trabalho procura incentivar esse tipo de prática, promovendo espaços produzidos pelos seus cidadãos, que sejam próprios a outros usos que não o da mobilidade apenas, que sejam mais simpáticos à formas mais diversas de uso do espaço comum. É uma maneira de planejar a partir da experiência, da prática, que se concretiza na escala local do desenho urbano.

O guia se enquadra em uma visão do planejamento urbano que reconhece a importância da escala micro e que incorpora um ponto de vista pró-ativo e não puramente normativo como se caracterizam majoritariamente as políticas urbanas. Nada mais é do que a apresentação de elementos que, ao meu ver, geram condições que favorecem encontros ativos e nos convidam a compor com eles, de modo que nos identifiquemos com o espaço urbano. São elementos que diversificam as nossas formas de interação com a cidade, entendendo-a como lugar de encontros e de vivências afetivas. Elementos que nos afetam, mas que também podem ser por nós afetados. Tais elementos foram pensados em três princípios estruturantes do guia: naturalização, pacificação e pausa.

Por naturalização entendemos aqueles elementos que nos possibilitam uma proximidade maior com as estruturas naturais, nos sensibilizando para a nossa responsabilidade enquanto parte constituinte da cidade. Busca-se desenvolver mecanismos de recuperação que tragam visibilidade a esses elementos naturais e da paisagem, propondo uma cidade que ofereça a nós possibilidades de composição

01 A CIDADE. Série A Cidade no Brasil. São Paulo, Sesc Tv, 2019. Programa de TV.

com ela. De tal maneira que podemos nos relacionar ativamente com esses elementos, pois passamos a conhecer, pela causa, sua constituição natural.

A pacificação passa, antes de tudo, pela necessidade de se repensar os espaços em direção à uma maior segurança, garantindo meios básicos para a permanência na cidade. Propõe-se reconquistar os lugares atualmente destinados aos meios de transporte motorizados, liberando-os para as mais diversas atividades que a população possa desejar.

Por sua vez, os elementos urbanos de pausa refletem a necessidade de parar e permitir ser afetado. Nossas vidas cotidianas aceleradas passam pela cidade e não nos damos o direito de parar para olhar, escutar, sentir e pensar. Esses elementos nos convidam, a partir da interação mútua, momentos de maior reflexão sobre a nossa relação com a cidade.

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