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O lugar da natureza nas cidades

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Ecologia

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Analisando diversos períodos do planejamento urbano, é possível perceber que ocorreram mudanças quanto à forma de compreender e pensar a relação da cidade com a natureza. Os paradigmas criados ao longo da história sobre a relação do homem com a natureza são diversos e tem variado segundo seu contexto histórico.

Olhando para a Antiguidade, as cidades ainda eram incipientes, tendo sua representação materializada nas cidades gregas. Para a construção dessas cidades, a fonte de inspiração era a própria natureza e estabelecia-se com ela uma relação de contemplação.

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As cidades medievais europeias eram protegidas por grandes muralhas, que separavam fisicamente natureza e cidade, iniciando a construção do pensamento dicotômico entre as duas. Ao mesmo tempo, nas cidades feudais, os habitantes sentiam falta do contato com a natureza, o que levava as classes altas a deixar a cidade em direção ao campo nos dias de lazer. Entretanto, o entendimento da natureza ainda era bastante marcado pela interpretação da Bíblia, impondo características teológicas à natureza. Foi o momento no qual teve início a dominação do homem sobre a natureza, com técnicas agrícolas, por exemplo.

Em seguida, com o advento das cidades comerciais, concretiza-se a superação dos obstáculos físicos e intelectuais no entendimento da natureza, dissecando-a e entendendo

suas partes, junto à construção de uma noção mecanicista da natureza. Quanto às cidades, a retirada das muralhas permite um maior contato entre o urbano e o natural. Porém, a relação entre eles manteve-se na ordem estética, limitando-se às classes altas por meio de grandes e decorados jardins.

Chegando às cidades industriais, a natureza passa a ser entendida como recurso. Isto é, já existe a dominação técnica do homem sobre a natureza, e, em decorrência disso e do modelo capitalista de exploração, a característica da relação homem-natureza passa a ser de usufruto. A condição urbana do momento são cidades densas e insalubres, com falta de infraestrutura urbana. Dessa forma, no final do século XX, são feitas grandes reformas nas cidades europeias visando a função higienista dos espaços livres. A solução para a insalubridade das cidades é a criação de grandes parques paisagísticos. A natureza, portanto, passa a representar possibilidade sanitária de qualidade para a cidade. Entretanto, de acordo com Mumford01, “o parque era entendido não como uma parte integrante do meio urbano, mas como um local de refúgio cujo valor essencial vinha do contraste com a ruidosa e empoeirada colmeia urbana”. Evidenciando que esses parques não davam conta das necessidades da população, teve início um movimento para os subúrbios que, uma vez mais, afastou o campo da cidade.

Em resposta a essas mudanças geradas na cidade, no final do século XIX e início do século XX, foram produzidas algumas teorias que revelam, cada uma a sua forma, buscas para solucionar a sempre presente questão da relação cidade-natureza, apontando para as contradições perma-

01 MUMFORD, Lewis. Paisagem natural e paisagem urbana.Revista Landscape, 1960. p. 286.

nentes entre as necessidades de ocupação e os processos naturais.

Frederick Olmsted, por exemplo, defendia que, para além de olhar para a natureza como uma entidade viva em constante diálogo com as pessoas, ela deveria ser pensada e analisada sob a perspectiva estética e ecológica. A partir dessas ideias, em 1864, propôs uma plano para o desenvolvimento da paisagem de Yosemite Valley na Califórnia. Foi o primeiro sistema metropolitano de parques, sendo possível devido ao desenvolvimento de uma estratégia de gestão que sustentasse as ideias teóricas. Suas propostas enfatizam constantemente a harmonia com as leis da natureza, atingida “pelo entendimento, revelação e preservação das formas e cenários da paisagem refletindo as características locais e regionais”02 .

Quase concomitantemente, entre 1880 e 1890, Ebenezer Howard fez sua proposta de cidade-jardim sob a perspectiva de uma síntese sadia entre cidade e campo. A defesa de Howard é que não existem apenas duas possibilidades: a vida no campo ou a vida na cidade. É possível também o equilíbrio entre as duas, por meio da junção das maiores potências de cada forma de vida, urbana e rural. Assim, sua teoria propõe pequenas cidades autônomas rodeadas de terrenos agrícolas, todas conectadas entre si através do transporte ferroviário. O interior de cada cidade é marcado pela grande quantidade de áreas verdes, equilibrando a urbanização com a natureza.

02 MENEGUETTI, Karin Schwabe. De cidade-jardim à cidade sustentável: potencialidades para uma estruutura ecológica urbana em Maringá. Tese (doutorado - Área de concentração: paisagem e ambiente). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. p. 24.

As ideias de cidade-jardim materializaram-se em Letchworth, com o projeto de Raymond Unwin e Barry Parker. Unwin acreditava que era necessário dar limites ao crescimento das cidades, sem necessariamente cercá-las com muralhas. Para ele, seria interessante criar largas faixas de separação, “formadas de parques, áreas de jogo ou até terrenos de cultivo. Em todo caso, precisaríamos estabelecer uma linha que separasse a cidade e o campo”03 .

Quem também exerceu grande influência quando foram realizadas as primeiras cidades jardins foi Patrick Geddes, constituindo o que viria a ser chamado de planejamento regional, em 1915. Defendia a ideia de que é impossível pensar a cidade sem sua paisagem natural, olhando para a articulação do território a partir do entendimento de que as complexidades entre ação humana e ambiente devem ser percebidas em termos dos atributos “povo-trabalho-lugar”. Muitas vezes, comparava os padrões de crescimento urbano ao de um recife de coral, sendo, assim, o primeiro a apresentar um entendimento fundamentalmente orgânico das cidades.

Geddes foi o mestre de Lewis Mumford, que explorou como os processos humanos eram entrelaçados com os processos naturais na cidade e seu entorno, propondo uma abordagem específica para entender e analisar paisagens regionais. “Para ele, o planejamento genuíno era uma tentativa de clarificar e agarrar firmemente todos os elementos necessários para trazer os fatos geográficos e econômicos em harmonia com os propósitos humanos”04, sendo a harmonia uma estabilidade nos sistemas ecológicos que transforma as regiões em sistemas de inter-relações.

03 CHOAY, Françoise. O urbanismo. São Paulo: editora perspectiva, 1965. p. 230. 04 MENEGUETTI, op. cit. 2007. p. 29.

Ainda no sentido da relação cidade-natureza, vale destacar as teorias criadas nos CIAM, nas quais, entre seus princípios, estava a relação do homem com os espaços livres e a natureza existente neles, que, nesse caso, era bastante vinculada ao lazer. Defendia-se a necessidade de espaços livres para poder exercer uma vida saudável e, então, buscava garantir o verde no cotidiano (edifícios rodeados por vegetação), nos finais de semana (grandes parques urbanos) e nas férias (montanhas ou praias). Nesse sentido, os preceitos criados pelo urbanismo moderno contribuíram para o desenvolvimento de diferentes teorias, como a de Le Corbusier, que pensa a cidade em abundância de espaços verdes, como um grande parque, com blocos pré-fabricados sobre ele.

Entretanto, por volta dos anos 60, há uma mudança na forma como vinha sendo entendida a relação da cidade com a natureza. Com a exacerbação da crise ambiental, diversas questões passam a ser percebidas e discutidas e, com isso, novas e diversas teorias passam a estudar o fenômeno urbano, algumas delas com uma lente ecológica.

Portanto, diante da questão ambiental, a temática do meio ambiente e da sustentabilidade também atingiram o pensamento sobre as cidades, de modo que o modelo de desenvolvimento urbano tem sido debatido também sobre a ótica ambiental. Mais recentemente, tem-se reivindicado o uso da palavra ecologia para o tratamento das questões relacionadas ao meio ambiente urbano. Passando da ecologia “na” cidade, que considerava os elementos da cidade similares aos naturais, como parques, ruas arborizadas e terrenos vazios, para a ecologia “da” cidade, que leva em conta todo o ambiente urbano integralmente. A abordagem ecológica, também avançou como um tipo de prática urbana ambientalmente mais responsável e tem se difundi-

do, inclusive, nas estruturas organizacionais de municípios, que passaram a ter secretarias de ecologia urbana, por exemplo. Também encontramos a terminologia do urbanismo ecológico, sugerindo que essas práticas se estabelecem enquanto um conceito próprio e que se articulam em torno de pensamentos comuns.

Não estamos sugerindo que o Urbanismo Ecológico seja um modo totalmente novo e singular de prática arquitetônica - ao contrário, ele utiliza uma multiplicidade de ferramentas, técnicas e métodos antigos e novos, em uma abordagem multidisciplinar e colaborativa em relação ao urbanismo visto através das lentes da ecologia. Essas práticas devem se voltar para o aperfeiçoamento das condições urbanas existentes assim como para nossos planos de cidades do futuro05 .

Esse trecho de Mostafavi nos mostra que, para ele, as práticas do urbanismo ecológico se constituem mais na articulação de processos e ferramentas do que na criação de novas tecnologias. Vai de maneira oposta ao viés, talvez encabeçado pelas Smart Cities, que também disputa a temática ambiental, mas o aborda através da técnica e da produção de novas tecnologias. Isto é, para ele, a prática do urbanismo ecológico deve ser entendida como algo processual e não como um fim em si mesma. É um novo modo de entender a relação entre cidade e natureza, pensando-as de maneira mais integrada. Propõe-se uma abordagem ecológica no planejamento urbano, que tem início com um entendimento da cidade como parte da natureza, implicando no avanço sobre a percepção dualista de homem e natureza a partir de uma abordagem complexa.

05 MOSTAFAVI, Mohsen.; DOHERTY, Gareth. (Org.). Urbanismo Ecológico. Barcelona: Gustavo Gilli, 2014. p.26.

É justamente esse pensamento sistêmico que une a temática da Ecologia e das cidades, tendo como finalidade a investigação sobre as necessidades para sobrevivência dos ecossistemas e das populações humanas. É pensar portanto, dentro desse sistema integrado que corresponde a cidade, os fluxos de energia, de água e de resíduos que aqui se deslocam. De modo oposto, as grandes cidades, como São Paulo, não incorporam as leis da natureza em seu planejamento. Nós perdemos as referências naturais e geográficas da paisagem do lugar. São Paulo foi sendo construída e reconstruída através de uma relação de negação com sua própria geografia. É uma cidade pouco inteligível, com uma sucessão de construções homogêneas, variação excessiva de gabaritos, o que nos faz perder a sensibilidade para as formas geográficas da cidade.

Para Odum e Barret, as cidades criadas pela sociedade urbana-industrial, nomeada por eles de tecnoecossistemas, se converteram em parasitas dos sistemas naturais. Ele nos alerta para a necessidade de formar uma conexão com os ecossistemas naturais de sustentação da vida na cidade de modo mais positivo ou mutualista do que temos hoje. “Os parasitas e os hospedeiros tendem a coevoluir para sua coexistência na natureza; do contrário, se o parasita retira muito de seu hospedeiro ou anfitrião, ambos morrem”06 .

Hoje estamos vivenciando indícios desse grande desequilíbrio, com eventos extremos cada vez mais constantes, as enchentes rotineiras, os desabamentos, dia virando noite em decorrência de queimadas amazônicas e a pandemia do novo coronavírus.

06 ODUM, Eugene; BARRET, Gary. Fundamentos de Ecología. México D.F.: Cengage Learning, 2008. p.71.; tradução do autor.

Dadas as condições de incapacidade dos instrumentos de gestão pública, podemos fazer uso das soluções que a Ecologia nos oferece, transpondo-as para as questões urbanas de forma a auxiliar na instrumentalização para atuação em situações críticas. Um bom exemplo é a infraestrutura verde, que incorpora as leis da natureza para pensar drenagem urbana, favorecendo processos biológico-naturais.

(...) precisamos encarar a fragilidade do planeta e de seus recursos como uma oportunidade para investigar novas possibilidades arquitetônicas, e não como uma forma de legitimação técnica para promover soluções convencionais. (...) Imaginar um urbanismo que foge ao status quo exige uma nova sensibilidade – capaz de incorporar e acomodar as condições conflitantes inerentes à ecologia e ao urbanismo. Esse é o território do urbanismo ecológico07 .

07 MOSTAFAVI, Mohsen.; DOHERTY, Gareth. (Org.). Urbanismo Ecológico. Barcelona: Gustavo Gilli, 2014. p. 17.

“Como a maioria das pessoas pensam em termos materialistas, não podem entender a minha obra. Esta é a razão pela qual não considero necessário apresentar meros objetos, para fazer com que as pessoas comecem a entender que o homem não é um mero ser racional”

Joseph Beuys

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