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Por uma cidade afetiva

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Bibliografia

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A construção do pensamento de Espinosa possui um elemento central que o distingue consideravelmente em relação aos demais filósofos. Trata-se da noção de afeto. Para Espinosa os afetos são um ponto chave para a dinâmica da vida social e possuem uma condição de ambivalência: podem tanto nos induzir a servidão, quando estamos, a eles, submetidos, como também podem nos induzir a liberdade, possibilitando a transformação. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções”01 .

Nas nossas vidas nas cidades, nossos corpos estão constantemente sendo afetados pelos outros corpos com os quais nos encontramos02. Entretanto, uma vez que a mente é ideia do corpo e também, ideia dessa ideia, ela concebe ideias desses afetos corporais. De tal modo que “a relação originária da mente com seu corpo e de ambos com o mundo é a relação afetiva”03 .

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01 ESPINOSA, Baruch. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.98. 02 Uma ironia é que a ideia de afeto, em geral, quando aplicada às cidades é usada para descrever processos destrutivos. Como, por exemplo, em: as cidades mais afetadas pela pandemia, as chuvas que afetaram a cidade de São Paulo, a população afetada pelas enchentes etc. 03 CHAUÍ, Marilena. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011. p. 85).

A teoria dos afetos de Espinosa, como nos apresentam alguns autores, vai demonstrar que, além da evidente aproximação com a paixão, o afeto também tem potencial transformador que nos induz à ação. Não existe, em seu pensamento, a oposição clássica entre o que poderíamos chamar de razão e emoção. De modo que tampouco há julgamento: como a afetividade pertence à natureza humana, não se deve fazer dela nenhum juízo de valor moral. Não há oposição entre bem e mal em relação aos afetos. Isto é, os afetos não são necessariamente bons ou maus, mas sim, como vai nos mostrar Espinosa na terceira parte da Ética, ativos ou passivos. À vista disso e compreendendo a cidade como o lugar de encontros afetivos por excelência, nos resta saber que tipo de afetos, ativos ou passivos, nós estamos favorecendo em nossas cidades. Que tipo de encontros nós vivenciamos com os demais corpos da cidade, se são, como nos apresenta Deleuze, bons encontros que aumentam a nossa capacidade de agir e somos, portanto, ativos ou maus encontros que diminuem nossa capacidade de agir e somos, portanto, passivos04 .

O bom encontro é aquele em que nos conectamos ativamente a um corpo, em outras palavras, é aquele no qual um corpo se combina com o nosso, que tem atributos que se compõe com os nossos. Deparar-se ocasionalmente com um grande amigo, a sombra de uma árvore em um dia de calor ou ouvir na rua uma música da qual gosta muito, os bons encontros são momentos em que nos descobrimos mais próximos da cidade e de nós mesmos, onde nossa capacidade de afetar e ser afetado se amplia.

04 Ver: DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta. 2002.

Em contrapartida, o mau encontro é aquele que nos leva para um estado menor de potência. Estar preso em um congestionamento, não ter onde abrigar-se durante a chuva ou torcer o pé em um buraco na calçada, os maus encontros são momentos em que nos afastamos da cidade e de nós mesmos, nos limitam, constrangem e fecham as nossas possibilidades de interação com a cidade.

Todas as metrópoles contemporâneas são ‘patológicas’ no sentido de que suas hierarquias e divisões corrompem o comum e bloqueiam os encontros benéficos através de racismos institucionalizados, segregações entre ricos e pobres e várias outras estruturas de exclusão e subordinação. (...) E a patologia é que ela não só impede encontros positivos como bombardeia encontros negativos05 .

Os encontros que grandes cidades, como São Paulo, nos possibilitam hoje são, em sua maioria, maus encontros. Uma cidade de muros06 que desagrega e limita nossas possibilidades afetivas. Sua paisagem urbana nos constrange constantemente com barreiras físicas e simbólicas, estabelecendo ilhas sociais que são legitimadas, especialmente pelas classes mais altas, através do discurso da violência e do medo. Invariavelmente, vem acompanhado por, como nos mostra Caldeira, “preocupações raciais e étnicas, preconceitos de classe e referências negativas ao pobres e marginalizados”07. Já dizia Espinosa, “A que ponto o medo ensandece os homens! O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição”08 .

05 NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Bem-estar Comum. Rio de Janeiro: Record, 2016. p.285. 06 Ver: CALDEIRA, Teresa. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. 07 Ibidem, p.9. 08 ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 6.

Em decorrência do discurso da violência e do medo, nossas cidades têm conformado contextos de segregação cada vez mais intensos. Essa organização da cidade nos coloca em um lugar de constrangimento cotidiano. Como não possibilita interações de composição conosco, nossas ações acabam sendo, em sua maioria, reativas àquilo que a cidade nos impõe. Logo, uma cidade que não nos convida a compor com ela, mas nos limita e se reproduz a partir da lógica das restrições.

Os espaços da cidade se tornam estranhos, quando não correspondem à dinâmica histórica-política ou à dimensão afetiva das pessoas na vivência do espaço urbano (...) devido a orientação adotada de uma lógica da racionalidade técnico-científica ou econômica, externa à realidade dos cidadãos09 .

Os espaços da cidade, então, reduzem as possibilidades de atividades, permanências e encontros entre as pessoas, diminuindo o nosso campo afetivo com o qual nós interagimos com ela. As ações pelas quais a cidade se transforma, diante de uma tentativa de privação dos afetos, são realizadas por forças externas à população. Como a cidade se reproduz a partir de uma lógica que é externa aos cidadãos, não nos vemos como causa dos afetos gerados na interação com os demais corpos urbanos, de modo que geramos apenas afetos passivos, depositando em outrem as causas dos nossos afetos. Essa pode ser uma das razões pela qual espaços públicos recém inaugurados sejam, tantas vezes, mal recebidos pela população e acabem se deteriorando rapidamente ou simplesmente não sejam utilizados, transformando-se em grandes espaços vazios. “Agimos quando somos causa interna dos efeitos que produzimos dentro e

09 BERTINI, Fátima. Afetos em Espinosa e a Cidade como Civitas, Revista Conatus, Fortaleza, volume 9, número 18, p. 11-18, dez. 2015. p.14.

fora de nós, da mesma forma que padecemos quando a causa dos efeitos que produzimos nos é exterior”10 .

Precisamos reavivar o potencial catalisador da cidade de provocar o encontro, a troca e o convívio mútuo entre corpos. Através dos afetos ativos as pessoas tomam parte da cidade e se estabelecem de fato enquanto cidadania. É preciso criar novas configurações de cidade que incentivem o aparecimento de bons encontros. Criar espaços que os possibilitam, geraria o aumento da potência de agir individual, mas também, sobretudo, coletiva. “Com efeito, se, por exemplo, dois indivíduos de natureza inteiramente igual se juntam, eles compõem um indivíduo duas vezes mais potente do que cada um deles considerado separadamente. Portanto, nada é mais útil ao homem do que o próprio homem”11 .

A cidade, entendida como um coletivo formado pela associação de corpos individuais, pode tender a uma maior servidão ou a uma maior liberdade, a depender da sua potência de pensar comum. Ou seja, a capacidade de que as reflexões e discussões do coletivo se convertam em ações efetivas. Isso só se torna possível se a comunidade não delega a uma figura exterior à realidade local as decisões dos temas que acometem essa comunidade e toma para si, enquanto coletividade, o poder transformador de seus espaços. A criação de um ambiente construído sustentável depende das relações de afetividade entre as pessoas e entre as pessoas e o lugar em que elas habitam. Possibilitar um

10 MARQUES, Mariana. Espinosa e Afetividade Humana. In: MARQUES, Mariana. Afeto e sensorialidade no pensamento de B. Espinosa, S. Freud e D. W. Winnicott. 2012. Dissertação (mestrado em Psicologia Clínica), Pontifícia Universidade Católica do Rio Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. p. 14. 11 ESPINOSA, Baruch. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.169.

lugar que afete e permita ser afetado é essencial. “Sem conexão humana a um espaço ou a uma cidade, os melhores esforços para criar ambientes saudáveis não serão bem-sucedidos”12 .

A cidade pode possibilitar condições de bons afetos na medida em que fortalece meios para que o homem possa tomar parte dela. Espinosa, na sua contraposição dos afetos passivos e ativos, nos mostra a importância de nós mais do que entendermos que somos parte, tomarmos parte. Ou, para usar uma palavra em alta, apropriar-nos da cidade. Incorporar, portanto, dentro do planejamento, maneiras pelas quais as pessoas possam contribuir com esse processo de construção permanente de nossas cidades, seria um passo fundamental para a construção de uma cidadania ativa.

Uma cidade afetiva é aquela que nos convida a compor com ela nas mais variadas formas de interações possíveis, é aquela que permite a ampliação das vivências afetivas entre todos os corpos que a formam. Onde nossa imaginação, nossas sensações e afecções são expandidas e, assim, ampliamos consideravelmente nossa capacidade de ação. Dessa maneira, sendo agentes ativos nessa trama afetiva que forma a cidade, é mais fácil que conheçamos os efeitos desses afetos em nós, o que nos afeta e como nos afeta. De modo que possamos minimizar os maus encontros e maximizar os encontros alegres na cidade. Ou ainda, segundo Negri e Hardt sobre o pensamento de Espinosa: “A alegria é na realidade resultado de encontros alegres com outros, encontros que aumentam nossos poderes, e da instituição desses encontros de tal maneira que perdurem e se repitam”13 .

12 SCHWARTZ, Martha. In: MOSTAFAVI, M.; DOHERTY, G. (Org.). Urbanismo Ecológico. Barcelona: Gustavo Gilli, 2014. p.525. 13 NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Bem-estar Comum. Rio de Janeiro: Record, 2016. p.415.

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