5 minute read

Por que ecologia hoje?

As cidades estão hoje no centro da discussão internacional. Um discurso muito recorrente é a ideia de que, pela primeira vez na história da humanidade, a maior parte das pessoas vive em cidades. Entretanto, mais que isso, através principalmente de uma escalada enorme das megacidades nos países em desenvolvimento, nas próximas três décadas 70% da população mundial viverá em centros urbanos, como aponta o relatório de 2019 da ONU sobre as “Perspectivas da Urbanização Mundial”01 .

Mesmo que haja uma concordância entre os pesquisadores na defesa pelo modelo de cidades mais compactas, o relatório aponta para o seguimento do modelo de crescimento das chamadas cidades dispersas. As maiores cidades do mundo não estarão mais na Europa, nos Estados Unidos ou na China, mas cada vez mais em países do chamado Sul Global, na África e na Ásia Meridional, como Índia e Paquistão. Diferentemente dos processos históricos urbanos, em que as maiores cidades correspondiam também às maiores economias e à condição de hegemonia política, o crescimento populacional nas cidades no futuro não virão acompanhadas do crescimento econômico proporcional. Esse processo tende, na verdade, a condições extremas de desigualdade e condições de vida precárias para grande

Advertisement

01 United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2019). World Population Prospects 2019: Volume II: Demographic Profiles.

parte da população. É na cidade onde o desequilíbrio socioambiental se torna mais evidente.

A questão ambiental traz, de fato, fenômenos variados que se expressam em diversas escalas. De modo que é necessária uma abordagem que compreenda todos os níveis em que os problemas socioambientais se manifestam. A questão ambiental é, portanto, ao mesmo tempo, global e local, tal qual as grandes questões atuais do nosso mundo globalizado. De modo que, por um lado, entender os problemas na escala local pode nos ajudar na precisão de modelos climáticos globais, por outro lado, identificar os impactos ambientais a nível global pode nos ajudar a propor transformações concretas que ocorrem localmente, ou como nos sugere a famosa frase, pensar global e agir local. Essas mudanças passam, indubitavelmente, por processos de transformação na cidade.

A questão ambiental tem se desenvolvido com muita intensidade em diversas áreas do conhecimento e também tem tido, através do termo sustentabilidade, o seu conceito apropriado pelo ambiente corporativo que o observou como possibilidade de agregar valor aos seus produtos. Não é diferente no mercado imobiliário. Desde o princípio eu me deparei com a dificuldade de usar a terminologia do discurso sustentável que foi, de certa maneira, surrupiado pela lógica mercadológica. Os produtos verdes, ecologicamente corretos se configuraram em uma nova estratégia de mercado, estimulando a alta do preço desse tipo de produto que são destinados geralmente para a parte da população que pode pagar por ela, isto é, ironicamente para a fração da população que mais consome e mais gera resíduos. Tentei encontrar caminhos onde a questão da sustentabilidade caminhasse junto à justiça social, sendo

de fato para todos e não para uma parcela privilegiada que pode pagar por isso.

Os problemas ambientais advém da relação que estabelecemos com a natureza. Como já comentado neste trabalho, a cultura ocidental, de modo geral, possui em sua fundação a narrativa da tradição judaico-cristã. Narrativa essa que foi construída historicamente e nos coloca em uma condição de exterioridade à natureza. Como nos apresenta Nara Oliveira: “O ocidente mantém uma relação de domínio e exploração do ambiente como marca de perpetuação da soberania da espécie humana na Natureza, como forma de vivenciar seu mito de origem”02 .

Me parece que está ficando clara a necessidade da mudança dessa perspectiva que estabelece a relação de dominação sobre a natureza. Estamos sendo forçados a isso de algum modo. Gradualmente, percebemos que estamos inseridos em um campo universal comum, seja pela nossa mais completa impotência diante dos desastres naturais e dos, cada vez mais comuns, eventos extremos (estiagens e secas; inundações bruscas e alagamentos; vendavais e ciclones; tornados; incêndios florestais), ou, pela pandemia do novo coronavírus que nos submeteu à mudanças de hábitos a nível global.

Repensar novas possibilidades de reverter essa dinâmica exploratória de modelo de cidade não é necessariamente a pretensão de voltar a algum estado anterior da natureza, tampouco a visão preservacionista por si só ou algum tipo de romantismo. Mas sim, propor modos de interação com

02 OLIVEIRA, Nara. O conceito de natureza em Espinosa: contribuições para uma crítica ecológica mais efetiva. 2016. Dissertação (mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016. p.32.

a cidade que ultrapasse nosso antropocentrismo e aproxime o meio ambiente do homem, partindo da ideia de se estabelecer relações de composição entre eles. É colocar em xeque o paradigma moderno mecanicista que vem moldando as formas de se pensar e construir as cidades. É acenar para uma lógica mais integral, que enxergue para além das partes e possibilite uma noção complexa de cidade.

Nesse sentido, o pensamento ecologista tem se ramificado e participado de diversos campos do conhecimento, evidenciando a sua vocação transdisciplinar. Sendo a essência de seu pensamento o estudo de ecossistemas, parece clara a ênfase que apresenta no estudo da interrelação entre os elementos que os compõem, opondo-se ao pensamento reducionista. Nessa lógica de pensamento mecanicista, parece que algo se perdeu, desaprendemos a pensar de modo inter-relacional. A Ecologia nos traz uma outra perspectiva. Sendo uma ciência que estuda relações complexas entre seres e a relação desses seres com o ambiente, nos oferece muitas ferramentas para se pensar inter-relacionalmente. Capacidade essa tão necessária e carente nos dias atuais. Através da ecologia podemos aprender a como lidar melhor com a complexidade do nosso mundo globalizado, entendendo maneiras de trabalhar com informações e dados de diferentes disciplinas. Ou de um ponto de vista mais prático, ela pode nos contribuir na articulação de políticas públicas integradas que envolvam diferentes secretarias de um município, por exemplo.

A ecologia também pode contribuir para a elaboração da noção de bem comum vinculada à natureza. Curioso notar que tal noção também foi partilhada dentro da instituição que mais representa a nossa tradição cristã, sendo tema

da encíclica Laudato si do Papa Francisco, no qual aborda a necessidade do cuidado com a natureza, a nossa casa comum. Para Negri e Hardt, o comum refere-se “em primeiro lugar, à riqueza comum do mundo material - o ar, a água, os frutos da terra e todas as dádivas da natureza”03 . Essa definição reforça a ideia de que o homem não está separado da natureza, mas “ centra-se, antes, nas práticas de interação, cuidado e coabitação num mundo comum”04 .

Sendo a natureza um bem comum, a questão ambiental é, também, um problema comum. Embora ainda haja quem defenda o contrário, é incontestável a realidade da nossa crise ecológica. Entendo que pensar essa questão ultrapassa a capacidade técnica ou a viabilidade econômica, mas trata-se, antes de mais nada, de uma questão ética, de vontade de fazer.

03 NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Bem-estar Comum. Rio de Janeiro: Record, 2016. p.8. 04 Idem.

This article is from: