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O corpo de Espinosa na cidade

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Bibliografia

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A enorme rejeição que Espinosa sofreu ao longo da história se deve, entre outras coisas, à sua interpretação sobre o corpo. Diante tanto da tradição judaico-cristã, como do paradigma cartesiano, a inovação espinosana sobre a compreensão do corpo é admirável.

Como nos apresenta Gilles Deleuze, Espinosa propõe um novo modelo que traz o corpo como objeto de análise01 . Até então o corpo era visto, muitas vezes, como elemento impuro que deveria estar submetido ao domínio da mente ou, até mesmo, incapaz de ser analisado. “O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo - exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente - pode e o que não pode fazer”02. Ele entende que não é possível pensar mente e corpo nem de forma hierárquica, nem separadamente. Critica o dualismo cartesiano de seu contemporâneo Descartes03, segundo o qual corpo e mente são duas substâncias distintas, demonstrando, ao contrário, o paralelismo que existe entre mente e corpo, devido ao fato de serem dois modos de uma única subs-

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01 DELEUZE, G. Espinosa - Filosofia Prática. 2002, p. 23. 02 SPINOZA, Benedictus. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.101. 03 Ver: DAMÁSIO, António. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras. 2012.

tância. O neurologista António Damásio, em seu livro, no qual demonstra as proximidades do pensamento de Espinosa com as teorias mais avançadas da neurociência, vai comentar a inovação do filósofo sobre a questão mente-corpo:

Se a minha interpretação das afirmações de Espinosa estiver correta, julgo que Espinosa vislumbrou qualquer coisa de revolucionário para o seu tempo. Mas se assim foi, o vislumbre espinosiano não teve nenhum impacto na ciência. A árvore caiu silenciosamente na floresta, e ninguém a viu nem ouviu. Quer seja vista como vislumbre espinosiano ou como um fato independente, a implicação teórica dessas idéias está longe de ser digerida04 .

A mente é a ideia do corpo, isto significa que uma mente passiva corresponde um corpo passivo, bem como, uma mente ativa corresponde um corpo ativo. “Pela primeira vez na história da filosofia, a mente humana deixa de ser concebida como uma substância anímica independente, uma alma meramente alojada no corpo para guiá-lo, dirigi-lo e dominá-lo”05. O corpo, na filosofia de Espinosa, não é alojamento da mente, nem subjugado a ela, mas modo singular autônomo e potente. Por essa razão assume lugar de destaque na interpretação da natureza humana de Espinosa.

Toda sua filosofia advém da teoria dos afetos, os quais chegam através de afecções no corpo. “Um corpo afeta

04 Idem. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 230. 05 CHAUÍ, Marilena. Espinosa: poder e liberdade. In: Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais; DCP-FFLCH, Departamento de Ciências Políticas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP, Universidade de São Paulo. 2006. p. 121.

outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que também define um corpo na sua individualidade”06. Nossos corpos se afetam a todo momento pelas coisas que nos cercam, mas também tem a capacidade de afetar o que está à sua volta. Ou seja, o corpo é o ponto de partida desse desencadeamento da rede de afetos.

O corpo é uma entidade capaz de ser afetada de múltiplos modos; afetado por outros corpos, por ideias, por encontros entre ele próprio e os outros corpos e outras ideias. Além disso, enquanto o nosso corpo possui uma capacidade infinita de sofrer afecções, a nossa alma possui uma capacidade igualmente ilimitada de formar ideias das afecções do nosso corpo. Como o nosso corpo se define, portanto, como um poder de ser afetado, quanto maior é a sua capacidade de afecção, maior é a sua potência. A constituição do nosso conhecimento não somente não elimina o corpo e as afecções corporais como a exige e mais ainda, exige a mediação necessária do corpo para a formação do conhecimento.

Espinosa é um pensador dos corpos07. Ele nos apresenta um corpo singular, mas também coletivo no sentido em que precisa de outros corpos, os quais precisam dele: são interdependentes. “Um corpo humano é tanto mais forte, mais potente, mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, isto é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções corporais”08. Deleuze

06 DELEUZE, op. cit., 2002, p. 128. 07 Ver: ULPIANO, Claudio. Pensamento e liberdade em Spinoza. Palestra proferida na Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988. 08 CHAUÍ,op. cit., 2006, p. 120-121.

nos mostra que o conceito de corpo é vasto e pode se configurar de variadas formas. “Um corpo pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma ideia, pode ser um corpus linguístico, pode ser um corpo social, uma coletividade”09 . Para que o corpo coletivo nas cidades floresça, é preciso cultivar e fortalecer os laços dos cidadãos com a materialidade das cidades.

Enxergamos, com a pandemia do novo coronavírus e o decorrente isolamento social, que o que mais nos fez falta foi o contato com os demais corpos, bem como com a cidade naquilo que ela tem de mais tangível, seus elementos que a formam, seus espaços e suas pessoas. Por mais que tenhamos diversas novas ferramentas que nos possibilitam, através de experiências virtuais, prosseguir com nossas atividades acadêmicas, profissionais ou até mesmo sociais, me parece clara a importância dos nossos locais de encontros físicos na cidade. São nesses espaços que a vida afetiva realmente acontece, espaços esses que se configuram como nossos territórios afetivos pessoais e nos possibilitam o aumento da nossa potência de agir.

É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras. E, inversamente, é nocivo aquilo que torna o corpo menos capaz disso.10

09 DELEUZE, op. cit., 2002, p.132. 10 SPINOZA, op. cit., 2009. p.182.

Então, a vida de cada um de nós se explica pelos encontros que cada um de nós fazemos, encontros que trazem composição e aumento de forças e encontros que decompõe. Isso seria a nossa existência. Ou seja, para Espinosa, toda a questão da vida se explica por encontros afetivos. Encontros afetivos implica em dizer que cada um de nós geraria para a sua própria vida os territórios afetivos. A nossa vida passaria, portanto, pelos territórios que nós construiríamos.

A cidade é o lugar onde o corpo expressa sua condição dinâmica, onde sua prática temporal é exercida, e intercorpórea, manifestada na sua relação com todas as demais materialidades do meio que o cerca. Isto é, a cidade como estrutura temporal e espacial da experiência corpórea.

Apesar disso, do ponto de vista do planejamento, a cidade enquanto materialidade tem sido em grande medida esquecida. O antropólogo Antônio Risério, na série documental “A cidade no Brasil”, baseada em seu livro homônimo, comenta sobre uma diferenciação elementar que os gregos faziam para designar a cidade. Além de pólis, que remete à cidade em sua concepção mais política, de relação poderes, existe também a ásty, que trata da cidade em seu aspecto físico, na sua materialidade urbanística e arquitetônica11. No campo do planejamento urbano, a ásty tem sido renegada em função de um foco excessivo na pólis. Como nos alerta Risério, “a discussão ambiental acontece na polis, mas é na ásty que pode acontecer a realização objetiva de um projeto de cidade que respeite as pessoas e a natureza”12 .

Nesse sentido, Milton Santos também ressalta a importância da materialidade urbana. A cidade é feita de espacialida-

11 A cidade no Brasil. Direção de Isa Grinspum Ferraz. São Paulo: SESC TV, 2018. 12 A cidade no Brasil. op cit., 2018.

de, não só de leis13. Portanto, a pólis não basta como forma de entender a cidade. Por esse ponto de vista, segundo Ermínia Maricato14, mesmo que tenha havido, desde o final do século XX, grande avanço no que se refere aos instrumentos de políticas públicas urbanas, notamos agora que eles não foram capazes de assegurar a urbanização socializadora e democrática esperada, revelando dificuldade no âmbito das ideias e soluções. Isto é, os nossos instrumentos urbanos normatizados em leis, embora tragam propostas acertadas, ainda tem dificuldade de aplicabilidade na cidade.

Nesse sentido, resgatar a particularidade da prática profissional da arquitetura e do urbanismo de permitir uma materialização formal, pode apresentar-se enquanto alternativa interessante de diálogo entre pólis e ásty. A arquitetura é uma disciplina que se realiza na sua concretude material. Diferentemente das outras ciências humanas, acontece realmente quando da sua formalização. Isso me faz pensar, ou pelo menos gostaria, que é possível acreditar em um potencial transformador do espaço na experiência corpórea no meio com o qual nos relacionamos.

A filosofia de Espinosa, em conjunto com novas formas colaborativas da prática arquitetônica e urbanística, pode nos trazer pistas de como favorecer a melhoria da ásty em busca desse equilíbrio com a pólis. No lugar de insistir no incremento de uma obediência moral representada pela legislação urbana, seria interessante pensar no estabelecimento de uma rede vivencial de territórios afetivos de corpos e mentes ativas na cidade. E é na ásty que a realização formal desses territórios afetivos pode se efetivar.

13 Ver: SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. 14 MARICATO, Erminia. Metrópoles desgovernadas. Estudos avançados, São Paulo, v. 25, n. 71, pág. 7-22, abril de 2011.

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