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Por que Espinosa hoje?

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Bibliografia

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Nossa sociedade passa por uma crise mundial que como sabemos é política, econômica, social, ambiental e sanitária. Entretanto, diante de todos os terríveis efeitos causais das diferentes dimensões da nossa crise atual, nós parecemos não reagir à altura dos fatos. Se tratarmos do nosso contexto mais próximo e nos recolhermos ao Brasil, encontraremos uma realidade ainda mais angustiante. Convivemos, todos os dias, com notícias que beiram a fantasia. Já são centenas de milhares de mortes pelo novo coronavírus, mas há ainda quem se recuse a cumprir as medidas de segurança mais banais. Também podemos observar uma série de manifestações bárbaras, antiéticas que partem tanto de uma minoria ruidosa que apregoa valores antidemocráticos e reivindica uma suposta liberdade individual que lhe foi arrancada, quanto dos próprios representantes do estado nacional. Diante de tudo isso, a maior parte da sociedade se porta inerte. Nós parecemos ter perdido nossa capacidade de nos afetar. É essa aparente impotência, uma das mais graves dimensões da nossa crise atual, que me motivou a desenvolver esse trabalho. Porque, para todas as outras crises, é possível enxergar, identificar, mais ou menos claramente, as suas causas. A crise ambiental tem a ver com o nosso modelo de desenvolvimento que explora os recursos naturais indistintamente; a crise econômica, para muitos,

relaciona-se com o próprio funcionamento do capitalismo; a política, com fatores histórico-sociais, assim por diante.

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Entretanto, as causas para essa nossa inação não nos são facilmente identificáveis. Por que, diante de tantas manifestações antiéticas, nos portamos como se nada pudéssemos fazer? É como se houvesse uma força inacessível, intrínseca a nós, que nos impõe a letargia, ou, como nos apresenta Homero Santiago, a partir da leitura de Bento de Espinosa, filósofo holandês do século XVII, “por que lutamos por nossa servidão como se lutássemos por nossa liberdade?”01 .

Para o filósofo Antonio Negri, olhar para o pensamento de Espinosa é fundamental para o momento de crise em que estamos vivendo. As crises, diz Negri, são sempre uma “violação negativa do ser, interposta contra a sua potência de transformação”02. São em momentos de crise, portanto, que o poder transformador do homem é comprometido. Esse estado de impotência, de impossibilidade de transformação, se assemelha ao que Espinosa define por servidão. Em sua grande obra, Ética, o filósofo trata justamente do percurso desse estado de maior servidão para um estado de maior liberdade. Isso implica fundamentalmente no aumento do potencial transformador do homem, isto é, de colocar-se para além do devir. A liberdade relaciona-se, então, ao aumento da potência de agir e a servidão, à diminuição da potência de agir.

01 SANTIAGO, Homero. As aproximações entre Spinoza, Nietzsche e Antonio Negri. [Entrevista concedida a] Márcia Junges. Revista IHU On-line, n. 397, 06 ago. 2012. 02 NEGRI, Antonio. Espinosa Subversivo: e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p.15.

Na parte IV da Ética, essa condição de impotência e sua relação com a servidão é descrita:

Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeitado que é, muitas vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior”03 .

Aqui se coloca em pauta a questão dos afetos04, bastante significativa em seu pensamento e que, para alguns autores, será, inclusive, tratada como a teoria dos afetos em Espinosa, dada a especificidade científica com o qual ele trata o tema. Nesse sentido, a primeira ideia que deve ser compreendida é que o afeto abordado pelo autor não é aquele relacionado ao carinho, embora também o incorpore. Afeto, deve ser entendido no sentido do verbo afetar, isto é, aquilo que nos toca e que, de alguma maneira, nos move. Nas palavras do autor: “por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída”05 .

Diante das afecções, portanto, poderia-se pensar que o homem devesse agir de modo a controlar seus afetos, seus sentimentos, para que enfim pudesse encontrar a verdade sem os efeitos enganosos dos sentimentos. Essa

03 SPINOZA, Benedictus. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. p.155. 04 Afecção e afeto, embora sejam conceitos parecidos, são distintos. Afecção é aquilo que se passa no nosso corpo, está no campo do acontecimento instantâneo que nos atinge, aquilo que nos chega no momento, já o afeto está naquilo que ocorre logo após as afecções no corpo. Isto é, como essas afecções são experimentadas por nós. É a nossa capacidade de existir variando. Isto é, está relacionada ao processo, e esse processo ocorre com a variação da nossa potência de existir. 05 SPINOZA, op cit., 2007. p.98.

é a ideia que vigorava no pensamento filosófico até então e a qual Espinosa vai se opor firmemente, inaugurando uma nova forma de se pensar os afetos. Afeto, visto como paixão, era considerado oposto à razão: aquilo que de certa forma trabalha como encobrimento do nosso eu racional, cabendo então a nós controlar nossos afetos de maneira que eles não nos desviem da ordem moral.

Entretanto, há um aspecto central na filosofia de Espinosa que se opõe a essa ideia. Trata-se do que se chama de paralelismo na relação entre mente e corpo. Ele vai nos mostrar que não há qualquer possibilidade de domínio da razão sobre os afetos, na medida em que mente e corpo são dois atributos de uma única substância, sem existir uma relação hierárquica de comando entre eles. Dessa forma, Espinosa rompe com a tradição que vinha definindo a mente como superior ao corpo e que, assim, poderia exercer o comando sobre ele06 .

Nesse sentido, poderia-se pensar que, se não conseguimos controlar nossos afetos através da razão, poderíamos ao menos evitá-los. Entretanto, Espinosa defende que essa ideia também é ilusória. Na vida social, não há lugar para hermetismo, estamos sempre em contato e em troca incessante de afetos. Ou seja, nós, como parte do todo que somos, como parte da natureza, não conseguimos agir como se estivéssemos em uma ilha na vida social. Não somos um poder isolado da natureza, um império dentro de um império07, somos parte dela, podendo o corpo ser afetado, mas, também, afetar o meio.

06 Ver: CHAUÍ, Marilena. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Editora Moderna, 2001. p.53 et. seq. 07 Ver: SPINOZA, op cit., 2007. p.97.

A razão pela qual somos submetidos a servidão resulta de sermos uma parte finita da substância infinita08. Sendo assim, é impossível que não sejamos afetados pelo mundo à nossa volta. A realidade nos atravessa constantemente e é impossível que, dada sua infinita potência, ela não nos submeta de inúmeras formas. Sim, somos ínfimos, mas ainda somos uma parte da substância infinita. Estamos mergulhados na natureza, somos uma parte do todo.

Entretanto, há um movimento atual de negação da cidade que age nesse sentido de rejeitar que somos parte do meio urbano e de um todo, esforçando-se em promover a privação dos afetos que intercambiamos em nossa relação com o meio. Priorizamos o transporte individual nos blindando em carros particulares, nos encastelamos em grandes muros de condomínios fechados e tentamos afastar os diferentes, segmentando, por classe social, os lugares de serviços e lazer. Entretanto, para o pensamento filosófico de Espinosa, todas essas são ações ilusórias. Nenhuma “bolha” é possível na medida em que somos parte do todo. Sendo a cidade lugar do qual formamos parte, lugar incessante de trocas de afetos, é impossível que não afetemos ou sejamos afetados em todos os momentos.

Quando Espinosa nos apresenta a ideia de afetos ele não o faz de maneira a qualificá-los. Os afetos fazem parte da natureza humana, de modo que para entendermos devemos conhecê-los. Ao invés de avaliá-los positivamente ou negativamente, ele nos apresenta como afetos passivos e afetos ativos. Os passivos, também chamados de paixões, ocorrem quando somos dominados pela exterioridade, isto é, quando nosso corpo e mente são submetidos às forças externas. Isto é, o estado do corpo e da mente são uni-

08 Por substância infinita, Espinosa se refere à Deus.

camente frutos das exterioridades. Ao contrário, os afetos ativos “advém da ação da mente e do corpo”09, portanto, nos tornamos causa dos nossos afetos.

Nesse movimento de negação da cidade, não correspondemos ativamente perante os nossos afetos, somos dominados pelo meio e, assim, nossa capacidade de ação é diminuída. Quando somos afetados, sofremos uma alteração e, com isso, nossa potência de ação aumenta ou diminui.

Aumentar nossa potência é expandir nosso território de ação no mundo e caminhar em direção a uma independência maior em relação ao ambiente – o que não significa diminuir as relações com a exterioridade, mas sim o contrário –, pois apenas quando somos a causa interna de nossos afetos aumentamos nossa potência de agir10 .

Portanto, negando a cidade como lugar de trocas, estamos constantemente dominados por afetos passivos, diminuindo a possibilidade de nos colocarmos para além do devir que, por sua vez, ataca contra a nossa capacidade de sermos causa dos nossos afetos.

Espinosa, em sua própria vida, tentou colocar-se além do devir, entendendo a filosofia mais pelos seus efeitos em relação ao que está fora dela que como um conteúdo ou teoria. Isto é, relacionando filosofia e vida. Nesse sentido, incidindo fortemente na religião, questionou os valores de seu tempo em uma época em que a Igreja não só permeava as discussões políticas e filosóficas, como regia toda a

09 BERTINI, Fátima. Afetos em Espinosa e a Cidade como Civitas, REVISTA CONATUS, Fortaleza, volume 9, número 18, p. 11-18, dez. 2015. p.13. 10 MARQUES, Mariana. Espinosa e Afetividade Humana. In: MARQUES, Mariana. Afeto e sensorialidade no pensamento de B. Espinosa, S. Freud e D. W. Winnicott. 2012. Dissertação (mestrado em Psicologia Clínica), Pontifícia Universidade Católica do Rio Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. p. 16.

vida social. Atacou a religião e, a partir dela, a superstição e o medo, características que, em seu entendimento, baseavam o pensamento religioso.

Sendo filho judeu de portugueses que já haviam sido expulsos pela perseguição na península ibérica, foi, uma vez mais, condenado. Temendo o pior, viu-se obrigado a abandonar Amsterdã. Ainda assim, persistiu. Como nos mostra Marilena Chauí, Espinosa seguiu dedicando sua vida a localizar as causas da servidão em seu tempo e as causas dessas causas, encontrando-as em nós mesmos enquanto seres passionais. Investigou, a partir disso, o que poderíamos fazer para governar nossos afetos e desfazer esses lugares de servidão, “oferecendo sua própria filosofia como exemplo desse caminho libertador”11 .

Assim, todo o pensamento de Espinosa é a busca da liberdade através da ação, ou, como nos apresenta Chauí, um “convite a perder o medo de viver em ato”12. Entendendo isso, busco defender que, a exemplo de Espinosa, nós possamos subverter e ir para além do devir nesse momento de inflexão que estamos vivendo. Entendendo a atualidade do pensamento do filósofo, pensá-lo hoje consiste justamente nessa ideia de que não sejamos sujeitados a um devir do qual não detemos a verdade13 .

Espinosa, ao expor seus pensamentos, nos oferece ferramentas para pensar e é isso que o caracteriza enquanto um clássico. No modo como enfrenta as questões do seu tempo, nos ensina caminhos para interrogar o nosso próprio tempo em diversos recortes. Tudo cabe em Espinosa, em tese não há nada que não possa ser visto sob o ponto

11 CHAUÍ, op cit., 2001. p.82. 12 Ibidem, p.83. 13 NEGRI, op cit., 2017. p.15.

de vista de seu pensamento, na medida em que constrói um pensamento integral, no qual trata o todo.

Depois de muito tempo esquecido, Espinosa tem sido revisitado com uma forte conotação social e política, como acontece na trilogia de Antonio Negri e Michael Hardt14 . Neste trabalho proponho que o seu pensamento, ao refletir em um agir coerente, se desdobre para as discussões sobre o viver hoje na cidade. Diversos autores contemporâneos nos atentam para a importância das cidades como objeto de estudo da vida social, tanto do ponto de vista de um sentido mais político e das relações de poder que lá se estabelecem, quanto, cada vez mais, naquilo que nos é mais tangível, que representa a configuração formal das cidades. Percebendo que a vida social está diretamente relacionada com as articulações físicas das nossas cidades.

Nessa discussão sobre as cidades, Espinosa nos possibilita pensar e repensar a impotência de ação que marca nosso momento presente, dando-nos ferramentas para, através do entendimento de nossos afetos, aumentar nossa potência de agir. É a possibilidade de discutirmos novas maneiras de se pensar a participação cidadã na produção da cidade.

14 NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império (2000); Multidão (2004); BemEstar Comum (2009).

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