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O lugar do homem na cidade

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Bibliografia

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Os que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens parecem, em sua maioria, ter tratado não de coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora dela. Ou melhor, parecem conceber o homem na natureza como um império num império. Pois acreditam que, em vez de seguir a ordem da natureza, o homem a perturba, que ele tem uma potência absoluta sobre suas próprias ações, e que não é determinado por nada mais além de si próprio01 .

Espinosa começa a terceira parte de sua Ética colocando a questão do lugar do homem na natureza. Isto é, contesta se nós estamos fora de uma ordem natural, sendo capazes de perturbá-la ao invés de segui-la e, ainda, se temos sobre nossas ações um poder absoluto capaz de refrear os nossos desejos. Desde um ponto de vista da cultura ocidental, o homem sempre foi colocado em uma posição de domínio da natureza. Entretanto, a filosofia de Espinosa será contrária a esse pensamento predominante que enxerga o homem como um império dentro de um império.

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O pensamento espinosano, segundo o professor Claudio Ulpiano, ao romper com essas concepções tradicionais, o faz baseado em duas grandes vertentes estruturantes: a

01 SPINOZA, Benedictus. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 97.

visão que apresenta de Deus e da natureza humana02. Em sua noção de Deus, ele ataca a teologia tradicional, contradizendo a idealização de um Deus transcendente, criador, que está além da natureza. A filosofia de Espinosa entende Deus enquanto imanente, produtor e o identifica à Natureza: “Deus sive Natura”03. Deus, portanto, é entendido como a própria natureza.

Para Espinosa, tudo possui uma determinação causal e pode ser compreendido à luz da razão. Afastar as imagens antropomórficas e antropocêntricas da divindade, que aparecem, por exemplo, na clássica passagem bíblica “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”04, é afirmar que Deus “não é um poder monárquico e legislativo, uma vontade soberana que comanda e julga as ações humanas”05. Mas, sim, causa imanente da existência, o todo.

Por outro lado, ao tratar da natureza humana, a segunda vertente estruturante apontada por Ulpiano, demonstra que nós somos parte do todo, da natureza, e, ainda, uma parte menor dentro dela. Por essa razão, sabendo que o mundo é muito superior a nós06, é preciso aprender a lidar com nossa condição menor e com a complexidade do mundo que nos atinge. Algo em comum com o que nos aponta Edgar Morin ao tratar sobre o enfrentamento das

02 ULPIANO, Claudio. Pensamento e liberdade em Spinoza. Palestra proferida na Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988. 03 Clássica expressão em latim escrita por Espinosa que significa: Deus, ou seja, a natureza. 04 Outra passagem bíblica que apresenta a superioridade humana em relação à natureza é aquela que diz “Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu...”, colocando o homem em posição de domínio. 05 CHAUÍ, Marilena. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011. p. 69. 06“A força pela qual o homem persevera no existir é limitada e é superada, infinitamente, pela potência das causas exteriores”. (E, IV, P3).

incertezas do mundo07. Com isso, entende-se que somos confrontados por forças externas, e, desta maneira, há de se aprender com o constrangimento que elas nos causam.

Isso significa também dizer que não temos o poder de dominar a natureza ou nossos desejos. Todos os seres que existem são dotados de ação e paixão, sendo constrangidos pelos afetos. Isso rompe com a visão de um homem racional, dotado de livre-arbítrio. Contrariamente ao que imaginara, até então, a tradição do pensamento, Espinosa defende que o homem não é uma substância composta de duas outras (corpo e alma), no qual a razão controla as emoções, mas sim um modo singular finito da Substância única (Deus). Isto é, o homem seria efeito imanente da atividade dos atributos substanciais.

Portanto, o homem não é perturbador da ordem natural, mas uma parte dela tanto nos seus acertos, quanto nos erros. É “uma potência natural capaz de tomar parte na atividade infinita da Natureza”08. Segundo Espinosa, é sábio, então, aquele que entende que há de tomar parte, entendendo que a presença de Deus está dentro de si. Dessa forma, Espinosa se aproxima de um dos princípios usados por Morin para pensar a complexidade: o hologramático09 . Demonstrando que não apenas a parte está no todo, como o todo também está na parte.

O todo para Espinosa, conforme apresentado, é a natureza, ou, pode-se entender, o meio no qual todas as coisas existem e acontecem. Assim, neste trabalho, propõe-se

07 Ver: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: RS Sulina, 2015. 08 CHAUÍ, op. cit. 2001. p. 70. 09 Ver: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: RS Sulina, 2015. p.74-75.

uma transposição da relação do homem com a natureza, evidenciada por Espinosa, para a relação do homem com a cidade, entendendo a cidade como o meio no qual estamos, em nossa maioria, inseridos.

Há uma questão de falta de reconhecimento do homem como parte do meio em que vive. Não nos entendemos como parte da natureza ou, pensando a possibilidade da transposição, que também conformamos a cidade. E, sendo o mundo cada vez mais urbano, como mostram as projeções, o nosso meio vem tornando-se, majoritariamente, a cidade. Nesse cenário, a natureza torna-se, em certa medida, urbana.

Assim, embora pareçam antônimos, enxergamos a nossa relação com a natureza e com a cidade de maneira muito parecida. Temos enxergado e tratado ambas, natureza e cidade, como se estivessem meramente a nosso serviço e dispor. Na concepção das civilizações orientais, por exemplo, essa relação se dá de maneira bastante diferente10 e os homens enxergam-se enquanto semelhantes aos demais elementos da natureza11. A cultura ocidental, por outro lado, foi construindo, ao longo dos séculos, a ideia de que a natureza nos pertence, de que é nossa propriedade. Inicialmente, entendia-se a natureza como “coisa de ninguém”12, e, assim, era explorada de maneira ilimitada. Com a percepção da escassez dos recursos, revelada pelo processo industrial e a consolidação do capitalismo, passou-

10 Ver: BRANCO, Samuel. M. Ecossistêmica: uma abordagem integrada dos problemas do meio ambiente. São Paulo: Edgard Blucher, 1989. p. 170. 11 Exemplo disso são os quadros chineses milenares, nos quais se o homem está presente é em igualdade de condições, ou em segundo plano, com outros elementos, animais e vegetais que os compõem. 12 GERENT, Juliana. A relação Homem-Natureza e suas Interfaces. In: Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 11(20): 23-46, jan-jun. 2011.

-se a entendê-los como propriedade de todos os homens e que, devido a uma necessidade de sobrevivência própria, deveriam ser preservados.

Dessa forma, evidenciou-se ainda mais o caráter antropocêntrico da relação do homem com a natureza, na qual o primeiro se coloca enquanto prioridade em relação ao segundo, que passou a ser visto como primordial à existência humana. A proteção à natureza é dada como lei, como um pacto entre os homens, e em nada relaciona-se ao entendimento do homem enquanto parte deste meio. Estabelece-se, portanto, uma relação de dominação entre soberano e objeto.

Nesse sentido, buscando a transposição dessas ideias ao meio urbano, nossa relação com a cidade aproxima-se muito de nossa relação com a natureza no sentido de enxergá-las enquanto espaços que estão a nosso serviço. Apenas usufruímos de seus recursos sem nos perceber enquanto parte delas. Entretanto, em minha leitura, em nossa relação com as cidades, estamos ainda mais atrasados: é comum o entendimento do espaço público como espaço de ninguém. Não fomos capazes, ainda, de entender a cidade enquanto espaço de todos, quanto mais nos aproximar da noção de que também conformamos a cidade e somos parte dela, podendo construí-la e reconstruí-la continuamente, entendendo nosso lugar nesse meio urbano que funciona de maneira integrada.

Essa visão integrada também não aparece do ponto de vista das políticas públicas urbanas. Os problemas da cidade ainda são tratados de forma fragmentada, acirrando as disfunções socioambientais, que têm como respostas, em sua grande maioria, políticas públicas setoriais desarticuladas que tratam as partes desses problemas separada-

mente. E, ainda, em muitos dos casos, atacam sintomas ao invés de atingir as causas. Nosso contexto é tão neurótico que nossas políticas setoriais não dão conta nem de si mesmas. Grande parte das políticas habitacionais criam anti-cidades; políticas de mobilidade causam congestionamento e as de segurança, insegurança. É fundamental que entendamos a cidade em sua complexidade, ou seja, que para os problemas complexos que ela nos apresenta, possamos dar as respostas complexas que eles exigem.

Tanto a falta de percepção da complexidade da cidade quanto a relação de usufruto estabelecida com ela se dão por não sermos capazes de perceber que formamos parte dela. Portanto, voltando a crítica de Espinosa à relação homem-natureza, parece que ainda seguimos a lógica clássica de entender os homens enquanto um império num império. Para Espinosa a liberdade é alcançada na medida em que nos aproximamos da ordem da natureza, “a autodeterminação do agente em conformidade com sua essência”13. Desta maneira, nessa falsa posição de superioridade que nos designamos, não seríamos capazes de alcançar a liberdade.

Liberdade para Espinosa nada tem a ver com o conceito de livre-arbítrio, para ele o homem é livre “pois é uma parte da Natureza, e tem em si a capacidade de ação própria”14 . Isto é, não temos o poder absoluto de adaptar as coisas exteriores ao nosso uso, mas podemos conhecer a ordem da natureza e estar de acordo com ela. A liberdade, para Espinosa, é o conhecimento da ordem da natureza. A na-

13 CHAUÍ, op. cit, 2011. p. 69. 14 OLIVEIRA, Nara. O conceito de natureza em Espinosa: contribuições para uma crítica ecológica mais efetiva. 2016. Dissertação (mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016. p. 54.

tureza, portanto, não é nem nossa subordinada nem nosso mestre, mas, sim, nossa aliada. Nós aprendemos com Espinosa que fazendo alianças com a Natureza a nossa vida vai se engrandecer. Ou seja, a filosofia se torna uma ética: uma ética do conhecimento que se contrapõe diretamente a uma moral da obediência.15

Podemos trazer essa concepção da ética do conhecimento espinosano ao campo da cidade. Os instrumentos urbanos tradicionais são, na maioria, concebidos enquanto figura jurídica negativa, que pregam a obediência. Para alcançar a ética do conhecimento, propõe-se aqui o surgimento de ferramentas urbanas propositivas, para além das tradicionais. Que consigamos colocar no planejamento da cidade elementos mais propositivos que normativos, entendendo que o cidadão não é aquele que obedece às leis, mas aquele que constrói e modifica a cidade.

Assim como nos sugere Espinosa em relação à natureza, que nós também possamos entender a cidade como nossa aliada, promovendo, dessa forma, a ampliação do território afetivo das pessoas.

15 Para Espinosa, a moral seria uma soma de normas que se identificam com as noções de lei e de julgamento. Enquanto a ética seria uma indicação de conduta imanente, relativa a uma concepção qualitativa das formas de viver, intrinsecamente ligada à experiência pessoal.

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