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Arquitetura e Liturgia Flavio Ferreira

ARQUITETURA E LITURGIA

Flavio Ferreira

O espaço e o monumento religioso, que são obras arquitetônicas, foram decisivos na criação das primeiras cidades e das primeiras religiões em cada continente.

Como surgiram as primeiras cidades?

Até algumas décadas, acreditava-se que a primeira revolução tecnológica, a partir de uns 8.000 anos atrás, fora a causa do surgimento das primeiras cidades: Jericó e Ur, Erech, Kish e Nippur, na Suméria; Teotilhuacan, na Meso-América; Nazca e Tiahuanaco, na América do Sul; e Shang, na China.

Essa primeira revolução tecnológica, em que foram inventados o calendário, a escrita, a irrigação, o pão, o pano, foi o maior degrau tecnológico já escalado pela Humanidade, bem maior do que os outros dois grandes degraus: a revolução industrial do século XVIII e a revolução da informática, que ainda estamos vivenciando.

Achava-se, até algumas décadas, que reunir um grande número de pessoas em um só ponto, alimentá-las, vesti-las, dar-lhes teto, governá-las, só seria possível com o pão, o pano, a água abundante e a escrita para registrar o passado e assim bem definir as necessidades do presente e do futuro.

Entretanto, estudos arqueológicos demonstraram que ocorreu o inverso: que esta primeira revolução tecnológica surgiu quando as primeiras cidades já existiam, e surgiu dentro dessas cidades, devido à sinergia gerada por muitas pessoas vivendo em um mesmo lugar. Em outras palavras, a cidade não foi um efeito da revolução tecnológica, mas a causa dela.

Se assim é, a pergunta permanece: como surgiram as primeiras cidades?

Kevin Lynch, o genial autor de Uma teoria da boa forma urbana, de 1981, responde a esta gigantesca pergunta. Ele escreve:

“Tudo indica que o primeiro passo para a civilização ocorreu ao longo de um único caminho, tomado independentemente diversas vezes na história humana. Uma vez que este caminho é tomado, as idéias de civilização tais como cidades, escritas, como também as guerras, podem ser transmitidas para outras comunidades humanas próximas, as quais então se movem ao longo de diferentes e menores trajetórias.

“Mas o caminho clássico, independente, parece começar a partir de um assentamento pastoril que é capaz de produzir um superávit de comida e o qual, com um santuário e ritos locais, articula as agudas ansiedades sobre fertilidade, morte

e a continuidade da comunidade humana.

“Um santuário particularmente atrativo começa a ganhar reputação, atraindo peregrinos e presentes de uma área maior. Este se torna um centro cerimonial permanente, servido por sacerdotes especialistas, e eles desenvolvem seus rituais e cenário físico para compor a atratividade do lugar (i.e. espaços e monumentos arquitetônicos). Lugar e cerimônia oferecem aos peregrinos alívio das ansiedades e se tornam, em si, experiências fascinantes e estimulantes.

“Bens, cerimônias, mitos e poder se acumulam.

“Novas habilidades se desenvolvem para servir à nova elite, para gerenciar seus negócios, ou para impor seus desejos às populações dos arredores. Os presentes voluntários são convertidos em tributos e submissão. A coleta e armazenamento de alimentos têm uma vantagem secundária, já que servem como reserva nas fomes e como um meio de trocar produtos complementares.

“O ambiente físico (i.e. a arquitetura) tem um papel-chave neste desdobramento. Ele é a base material da idéia religiosa, o estímulo emocional que liga as pessoas ao sistema.

“A cidade é um lugar grandioso, um alívio, um novo mundo, como também uma nova opressão.”

Como podemos apreender deste texto de Kevin Lynch, a arquitetura foi fundamental para as religiões, para a sua liturgia, desde o início.

Vamos agora analisar como são resolvidos os espaços arquitetônicos de uma nova religião em cidades já construídas e com religiões já estabelecidas. Não se trata, neste caso, de novas religiões trazidas por colonizadores, como na América, mas de religiões que evolvem dentro das próprias cidades, como quando do surgimento do Cristianismo na Roma pagã.

Os espaços de culto da nova religião nunca se estabelecem nos templos da antiga religião, nem ela projeta seus novos espaços seguindo tipologias arquitetônicas semelhantes aos templos existentes, já que a nova religião tem que se diferenciar da antiga também nos seus espaços materiais e na sua liturgia. Os espaços sagrados da nova religião são criados dentro de espaços profanos.

Voltando a Roma, quando o Cristianismo começava a se estabelecer: as igrejas cristãs não se situaram nos templos de Júpiter ou de Vênus, ou no Panteon, mas nas basílicas, que eram os supermercados da época. Da forma da basílica emergiu a forma da igreja românica, da qual emergiu a forma magnífica da igreja gótica. Só depois de mais de mil anos, no Renascimento, as igrejas cristãs se inspiraram nos espaços circulares, centrais, dos templos pagãos, e o Panteon levou séculos para se transformar em uma igreja cristã. Hoje novas religiões também ocupam espaços profanos, como cinemas, e constroem seus templos novos com arquiteturas diversas das religiões tradicionais.

Qual é a reação da religião já estabelecida?

Na Contra-Reforma, a reação da Igreja Católica ao ascetismo protestante foi acentuar e dramatizar as diferenças na arquitetura: o barroco é o estilo da Contra-Reforma. Não é por acaso que o barroco se concentra, na Europa, nas áreas de conflito. Na Alemanha estão as mais belas obras de arquitetura barroca religiosa da Europa.

O sucesso foi tanto que mesmo os protestantes construíram algumas igrejas barrocas. As igrejas do arquiteto Neuman são obras-primas.

O melhor exemplo brasileiro do barroco são Ouro Preto e suas igrejas: frontões retorcidos, paredes curvas, profusão de dourados, anjos esvoaçantes, imagens em atitude declamatória, pinturas de tetos que, segundo Carlos Drummond de Andrade, são mais que pinturas, pois parecem que “rompem o teto para um diálogo direto com Deus”.

Esses três momentos do passado distante nos ajudam a entender a forte relação entre arquitetura e liturgia ao longo da história e, por contraste, nos ajudam a perceber um certo afrouxamento dessa relação atualmente. Por quê?

Até os anos ‘70-’80, estiveram vigentes alguns dos grandes e simples esquemas racionalistas surgidos no século passado e no início deste, que tinham todos um ponto em comum: o passado e o já feito eram imperfeitos, errados, e tínhamos de demolir este passado imperfeito e construir um novo mundo a partir do zero.

A crença de que as novas ciências solucionariam as incertezas sobre a matéria e a filosofia; o marxismo ortodoxo, ao propor a destruição de todas as estruturas sociais e políticas e a criação de uma sociedade completamente nova; a psicanálise, ao propor revolver até o inconsciente, para se ter um indivíduo completamente novo, são alguns des-ses esquemas racionalistas.

Mais próximo de nosso tema, o Movimento Moderno em Arquitetura, que surge nos anos 20, também propõe a demolição das cidades existentes e a construção de cidades completamente novas, com outra arquitetura, construídas sobre a terra arrasada, ou sobre a terra virgem.

O Movimento Moderno propõe uma arquitetura simples, funcional, desataviada, sem simbolismos, sem referências ao passado. Milhares de anos de experiências e de aprendizado das relações simbólicas entre arquitetura e liturgia são, até certo ponto, esquecidos. Neste período, tirante belas exceções, os projetos de arquitetura religiosa não conseguem tocar o coração dos fiéis, mesmo os projetados por ótimos arquitetos. Por outro lado, surge um grande número de projetos medíocres, o que nunca tinha acontecido antes.

Por outro lado ainda, ansiedades milenares, principalmente as de cunho individual, são esquecidas, já que há uma grande confiança de que a ciência, as novas estruturas políticas e os novos espaços arquitetônicos resolveriam as grandes questões humanas. A ênfase são as questões coletivas. No fim desse período, o Vaticano II simplifica os ritos católicos. Já nos anos 30 surge o princípio da incerteza na Física, mas é a partir dos 70 que os grandes esquemas racionalistas (e suas certezas) começam a ser refutados e substituídos por um número bem maior de teorias empíricas de abrangência bem mais modesta. A unicidade é substituída pela pluralidade. É a Pós-Modernidade.

Intervenções urbanas, projetos e livros de teoria da arquitetura, como A imagem da cidade, de Kevin Lynch, Complexidade e contradição da arquitetura, de Robert Venturi; e O modo atemporal de construir, de Christopher Alexander, refutam os paradigmas do Movimento Moderno, e propõem que a cidade e a arquitetura sejam vistas sob um novo olhar. Reconhece-se que não é possível ignorar milênios de experiências acumuladas. Valoriza-se o existente, o já-feito, tanto nos projetos

novos quanto na restauração e na reforma dos edifícios. Nunca se reformou ou se restaurou tanto.

Considerando este complexo contexto atual, como devem ser hoje as relações entre Arquitetura e Liturgia?

Do lado da arquitetura, partir para um esquema inteiramente novo pode ser, paradoxalmente, já antigo. Não seria continuar no caminho que já se encerrou nos anos ‘70, como vimos antes? Invadir espaços profanos, como fizemos em Roma há quase dois milênios, é o que as novas religiões estão fazendo agora. Nos diferenciamos ou não? Para nos diferenciarmos, o melhor precedente é o da Contra-Reforma? Devemos ter uma arquitetura religiosa com fortes relações com elementos do passado, e com elementos eternos, atemporais? Devemos reformar os templos de arquitetura medíocre sem relações arquitetônicas com a liturgia, o atemporal e o sagrado? De que maneira?

RITA SERPA

é bailarina, coreógrafa, meitre de balé e professora de dança litúrgica. É coordenadora do Projeto Luar – projeto de arte na Baixada Fluminense e em comunidades-favelas do Rio e da Zona Oeste da cidade. É ligada ao Serviço Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia, da Igreja Católica Romana.

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