Proclamar Libertação 45 - 2020-2021

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CAPA - PL 45 CURVAS terça-feira, 6 de outubro de 2020 11:43:49



PROCLAMAR LIBERTAÇÃO Volume 45 AUXÍLIOS HOMILÉTICOS LECIONÁRIO COMUM REVISADO DA IECLB – ANO B Editado por FACULDADES EST da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil Coordenação: Verner Hoefelmann

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© Editora Sinodal, 2020 Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3037-2366 editora@editorasinodal.com.br www.editorasinodal.com.br Conselho editorial de Proclamar Libertação: Júlio Cézar Adam, Martin Volkmann, Paula Naegele, Robson Luís Neu, Sissi Georg, Verner Hoefelmann Coordenação editorial: Verner Hoefelmann Produção editorial e gráfica: Editora Sinodal Série: Teologia Prática – Auxílios Homiléticos Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdades EST. Tel.: (51) 2111 1400 est@est.edu.br Fax: (51) 2111 1411 www.est.edu.br Conselho editorial: Prof. Dr. Júlio Cézar Adam (coordenador), Prof. Dr. Flávio Schmitt, Prof. Dr. Oneide Bobsin, Prof. Dr. Marcelo Saldanha Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P963 Proclamar libertação, v. 45: auxílios para o anúncio do evangelho / [editado por] Faculdades EST; Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil; [coordenado por] Verner Hoefelmann. – São Leopoldo: Sinodal; EST, 2020. 372 p. ; 15,5 x 22,5 cm

Conteúdo: v. 45: lecionário comum revisado da IECLB – Ano B.

ISBN 978-65-5600-007-7

1. Teologia prática. 2. Homilética. I. Faculdades EST. II. Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. III. Hoefelmann, Verner. CDU 251 Bibliotecária Débora Zschornack – CRB 10/1390 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora.

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APRESENTAÇÃO

A

legre-se muito, ó filha de Sião! Exulte, ó filha de Jerusalém! Eis que o seu rei vem até você, justo e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta (Zacarias 9.9). Ele vem! Sim, está aí o advento, o novo ano eclesiástico. Renasce a esperança de um novo tempo, sob o domínio e os cuidados do Senhor. Tivemos um ano tão diferente, marcado pelas consequências dramáticas da pandemia de Covid-19. O cuidado com a vida levou à suspensão de encontros presenciais nas comunidades. A impossibilidade de encontros comunitários nos entristeceu, mas os diferentes meios de comunicação serviram de espaço para anunciar a palavra de Deus e manter unidas as comunidades. Houve um aumento extraordinário na presença da IECLB em redes sociais. Cultos, reflexões, orações e estudos bíblicos estão acessíveis agora também em plataformas digitais. A palavra de Deus, que orienta a vida e mantém a esperança, é proclamada num infinito areópago (Atos 17.19). Também ações diaconais foram difundidas e motivadas nos meios digitais. Nestes tempos difíceis e desafiadores, ministras e ministros necessitam ainda mais de auxílios homiléticos sólidos, aprofundados e inspiradores. Não podemos vender ilusões, mas apenas o Evangelho de Cristo e a esperança da instauração definitiva do reino de Deus. A segunda vinda do Messias Justo e Salvador é o consolo e a certeza para um povo sofrido e cansado com falsas promessas. Cuidado com os falsos profetas, que se apresentam a vocês disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes (Mateus 7.15). Os auxílios do Proclamar Libertação certamente nos ajudarão no exercício da verdadeira profecia. Esperamos o novo tempo e desejamos que o Proclamar Libertação 45 seja não somente um subsídio no preparo do anúncio da palavra de Deus, mas também um alimento para cada pessoa que dele faz uso. Não sabemos como será nossa atuação no novo ano eclesiástico, mas faremos tudo na observância da palavra de Deus e na confiança da presença divina entre nós. Agradeço profundamente a todas as pessoas que dedicaram tempo para o preparo dos subsídios deste volume do Proclamar Libertação. Deus abençoe o novo ano da igreja! Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossas transgressões, nos deu vida juntamente com Cristo – pela graça vocês são salvos (Efésios 2.4s). Sílvia Beatrice Genz Pastora Presidente da IECLB

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PREFÁCIO

O

presente volume de Proclamar Libertação reúne 58 auxílios homiléticos e litúrgicos sobre o Lecionário Comum Revisado da ­IECLB (ano B). Esta edição se soma, assim, a uma iniciativa que sobrevive ao tempo. Ao longo de quatro décadas e meia, ela procura servir como fonte de inspiração a ministros e ministras, que têm diante de si, a cada semana, a tarefa de auscultar a palavra de Deus revelada na história e de proclamá-la de forma atualizada ao povo de Deus no presente. Ao abrir as páginas de Proclamar Libertação e deixar-se orientar pelos textos bíblicos sugeridos e pelos impulsos esboçados em suas páginas, ministros e ministras fazem mais: ajudam a formar um sentimento de pertença e uma identidade teológica ao povo que se reúne em nossas igrejas. Em meio à diversidade de contextos, a unidade pode brotar assim de uma fonte comum que irriga a realidade local. Sabemos que a proclamação da palavra de Deus deixa impressas as marcas do tempo e do espaço. Mais do que nunca, leitores e leitoras haverão de perceber isso nas páginas que seguem, pois elas refletem com frequência o impacto de um flagelo que se abateu sobre a humanidade no período em que estavam sendo escritas. A pandemia da Covid-19 trouxe consequências não apenas para a área da economia e da saúde, mas também para as relações sociais, comunitárias, afetivas, psíquicas e espirituais. De diferentes formas, neste volume se procura entender os sinais conturbados de nosso tempo, em confronto com a palavra a ser proclamada. Nossa gratidão a esses autores e a essas autoras que fizeram esse esforço em meio à perplexidade, desorientação e insensatez que predominam em muitos ambientes. Nossa gratidão igualmente à direção da IECLB, que faz chegar às mãos de ministros e ministras um exemplar deste volume. Lembramos que datas eventualmente descobertas podem ser supridas com auxílios homiléticos anteriores, disponíveis nos volumes do PL e no portal da IECLB.

Verner Hoefelmann pelo Conselho Editorial de Proclamar Libertação

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SUMÁRIO AUXÍLIOS HOMILÉTICOS................................................................................ 9 1º Domingo de Advento – Marcos 13.24-37 Werner Wiese.................................................................................................. 11 2º Domingo de Advento – Isaías 40.1-11 Marivete Kunz................................................................................................ 17 3º Domingo de Advento – João 1.6-8,19-28 Anelise Lengler Abentroth.............................................................................. 22 4º Domingo de Advento – Romanos 16.25-27 Samuel Gausmann.......................................................................................... 28 Noite de Natal – Lucas 2.1-7 Vitor Hugo Schell........................................................................................... 33 Dia de Natal – Lucas 2.8-20 Flávio Schmitt................................................................................................. 39 1º Domingo após Natal – Isaías 61.10 – 62.3 Norberto da Cunha Garin, Edgar Zanini Timm.............................................. 46 Ano-Novo (Nome de Jesus) – Filipenses 2.5-11 Daniel Kreidlow.............................................................................................. 52 2º Domingo após Natal – João 1.10-18 José Kowalska................................................................................................ 57 Epifania de nosso Senhor – Mateus 12.14-21 Teobaldo Witter............................................................................................... 62 1º Domingo após Epifania (Batismo do Senhor) – Gênesis 1.1-5 Léo Zeno Konzen........................................................................................... 70 3º Domingo após Epifania – 1 Coríntios 7.29-31 Claiton André Kunz........................................................................................ 75 4º Domingo após Epifania – Marcos 1.21-28 Ana Isa dos Reis Costella, Irineu Costella...................................................... 80 5º Domingo após Epifania – Isaías 40.21-31 Manoel Bernardino de Santana Filho............................................................. 89 Último Domingo após Epifania – Marcos 9.2-9 Eduardo Paulo Stauder................................................................................... 95 Quarta-Feira de Cinzas – 2 Coríntios 5.20b – 6.10 Bianca Daiane Ücker Weber, Eder Alan Ferreira Weber.............................. 100 1º Domingo na Quaresma – 1 Pedro 3.18-22 Nilton Giese.................................................................................................. 104 2º Domingo na Quaresma – Marcos 8.31-38 Gerson Acker ............................................................................................... 108

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3º Domingo na Quaresma – Êxodo 20.1-17 Roger Marcel Wanke.................................................................................... 114 4º Domingo na Quaresma – João 3.14-21 Humberto Maiztegui Gonçalves................................................................... 121 5º Domingo na Quaresma – Hebreus 5.5-10 Marcelo Jung................................................................................................ 125 Domingo de Ramos – João 12.12-16 Roberto N. Baptista...................................................................................... 131 Quinta-Feira da Paixão – Marcos 14.12-26 Elke Doehl, Claudir Burmann...................................................................... 136 Sexta-Feira da Paixão – Hebreus 10.16-25 Júlio Cézar Adam.......................................................................................... 141 Domingo da Páscoa – Marcos 16.1-8 Rodolfo Gaede Neto..................................................................................... 149 2º Domingo da Páscoa – Atos 4.32-35 Leonídio Gaede............................................................................................. 156 4º Domingo da Páscoa – 1 João 3.16-24 Odair Airton Braun....................................................................................... 161 5º Domingo da Páscoa – João 15.1-8 Ricardo Brosowski........................................................................................ 166 6º Domingo da Páscoa – Atos 10.44-48 Luiz Carlos Ramos....................................................................................... 171 Ascensão do Senhor – João 14.1-12 Eldo Krüger.................................................................................................. 180 7º Domingo da Páscoa – 1 João 5.9-13 Renato Küntzer............................................................................................. 186 Domingo de Pentecostes – João 15.26-27; 16.4-15 Hans Alfred Trein......................................................................................... 192 1º Domingo após Pentecostes (Trindade) – Isaías 6.1-13 Carlos A. Dreher........................................................................................... 200 2º Domingo após Pentecostes – Marcos 3.20-35 Adélcio Kronbauer........................................................................................ 205 3º Domingo após Pentecostes – Marcos 4.26-34 Marcia Blasi, Marli Brun, Juliana Hoelscher Silveira.................................. 210 4º Domingo após Pentecostes – 2 Coríntios 6.1-13 Erní Walter Seibert........................................................................................ 215 5º Domingo após Pentecostes – Marcos 5.21-43 Carolina Bezerra de Souza, Eriksson Mateus Tomaselli.............................. 220 6º Domingo após Pentecostes – Ezequiel 2.1-5 [6-7] Nelson Kilpp................................................................................................. 225

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7º Domingo após Pentecostes – Marcos 6.14-29 Paulo Roberto Garcia.................................................................................... 231 8º Domingo após Pentecostes – Efésios 2.11-22 Kurt Rieck..................................................................................................... 236 9º Domingo após Pentecostes – João 6.1-21 Cláudio Kupka.............................................................................................. 243 10º Domingo após Pentecostes – Êxodo 16.2-4,9-15 Gerson Correia de Lacerda......................................................................... 249 11º Domingo após Pentecostes – João 6.35,41-51 André Martin.............................................................................................. 257 12º Domingo após Pentecostes – Efésios 5.15-20 Jorge B. Dietrich de Oliveira...................................................................... 261 13º Domingo após Pentecostes – João 6.56-69 Alberi Neumann, Paulo Sérgio Macedo dos Santos................................... 267 14º Domingo após Pentecostes – Deuteronômio 4.1-2,6-9 Marcos A. Rodrigues.................................................................................. 272 15º Domingo após Pentecostes – Marcos 7.31-37 Nádia C. Engler Becker.............................................................................. 278 16º Domingo após Pentecostes – Tiago 3.1-12 Claudete Beise Ulrich................................................................................. 284 17º Domingo após Pentecostes – Marcos 9.30-37 Cristina Scherer.......................................................................................... 291 18º Domingo após Pentecostes – Números 11.4-6,10-16,24-29 Roberto E. Zwetsch.................................................................................... 298 19º Domingo após Pentecostes – Marcos 10.2-12 Dione Carla Baldus..................................................................................... 307 20º Domingo após Pentecostes – Hebreus 4.12-16 Ramona Weissheimer................................................................................. 313 22º Domingo após Pentecostes – Jeremias 31.7-9 Astor Albrecht............................................................................................. 319 23º Domingo após Pentecostes – Dia da Reforma – João 8.31-36 Gottfried Brakemeier.................................................................................. 323 Finados – 1 Tessalonicenses 4.13-18 Wilhelm Sell............................................................................................... 328 24º Domingo após Pentecostes – Marcos 12.38-44 Wagner Tehzy............................................................................................. 335 25º Domingo após Pentecostes – Daniel 12.1-3 Eloir Enio Weber........................................................................................ 340 Domingo Cristo Rei – João 18.33-37 Martin Volkmann........................................................................................ 346

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ÍNDICES........................................................................................................... 351 Temas e textos nos volumes I – 45................................................................... 351 Perícopes dos volumes I – 45............................................................................ 357 Colaboradores e colaboradoras responsáveis pelos textos do volume 45......... 371

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AUXÍLIOS HOMILÉTICOS

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PRÉDICA: MARCOS 13.24-37 ISAÍAS 66.1-9 1 CORÍNTIOS 1.3-9

1º DOMINGO  29 NOV 2020 DE ADVENTO      Werner Wiese

Não fantasiemos nem especulemos, mas vigiemos

1 Introdução

“Deixamos para trás” o longo período do ano eclesiástico conhecido como tempo pós-pentecostes e que termina com o domingo denominado Domingo da Eternidade ou também de Domingo Cristo Rei. Encerrou-se, assim, o ano eclesiástico, porém não como um réveillon que atrai e fita os olhos em artifícios humanos, quaisquer que sejam. Os olhos da comunidade de fé estão fitos em Jesus Cristo exaltado – o Cristo Rei, o que contém o elemento da esperança, porque é por ele que ela espera. Observa-se que Jesus Cristo exaltado ou o Cristo Rei não é o Cristo triunfante com espada na mão da força-tarefa executada pelo poder imperial e religioso que pretensamente “evangelizava” continentes e dizimava povos que não se submetiam voluntariamente a ele. Do mesmo modo, é importante que no decorrer dos domingos de Advento não se fomente um sentimentalismo religioso que atinge seu auge na véspera ou no dia de Natal num infantilismo cristão com uma criancinha na manjedoura, criancinha esta que não incomoda ninguém. Teologicamente falando, o período de Advento que inicia hoje não prepara a vereda para uma criança inofensiva, mas prepara o caminho ou, dito diferente, prepara os corações humanos para esperar a manifestação e instauração definitiva do reino de Deus, distinto de todos os reinos e livre de toda dominação, subjugação humana, livre de privilégios e desvantagens nacionalistas. Fato é que o texto para a pregação está carregado de enormes expectativas – do começo ao fim, sem que no fim elas estivessem correspondidas ou dissolvidas. Ao contrário, o texto termina com o imperativo Vigiai! (v. 37). Isso é dito no horizonte do dia do Senhor como um novo agir de Deus para o seu povo. Aqui dá para fazer o link com Isaías 66.1-9 e 1 Coríntios 1.3-9. Ambos os textos têm no horizonte um novo agir de Deus. Eles confluem para a presença de Deus, porque ele agiu na história, age até hoje e vai levá-la a bom termo a despeito de todos os sinais no presente que parecem desmentir o agir salvador de Deus.

2 Exegese 2.1 – Elementos precedentes ao texto O texto para a prédica é parte do assim denominado discurso escatológico ou apocalíptico de Jesus, que se estende por todo o capítulo 13 do Evangelho de

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Marcos. Com variações, esse discurso é registrado nos três evangelhos sinóticos. De acordo com os evangelistas Marcos e Mateus, ele foi desencadeado pelo impacto que o edifício do templo em Jerusalém ornamentado causou aos discípulos de Jesus por ocasião de uma visita deles com Jesus ao templo: Mestre! Que pedras, que construções! (Mc 13.1). O evangelista Lucas omite esse detalhe. Em todos os casos, vale lembrar que os discípulos eram galileus e provavelmente tinham visto o templo poucas vezes, talvez fosse essa a primeira vez. A tradição sinótica registra apenas uma visita oficial de Jesus com seus discípulos ao templo durante o seu ministério. De toda maneira, o que eles viram no templo os impressionou profundamente. E Jesus, por assim dizer, jogou um balde de água fria sobre a empolgação dos discípulos com o brilho da religiosidade instituída e manifesta nas construções do templo e sua ornamentação: Vês estas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra, que não seja derribada (Mc 13.2). Isso, assim o registro do evangelista, evocou nos discípulos mais próximos de Jesus (os quatro primeiros na lista de Mateus 4.18-22) a curiosidade sobre o quando dos acontecimentos futuros decisivos: Dize-nos quando sucederão estas coisas [...] (Mc 13.4). Observado isso, anexam-se as palavras ou o discurso de Jesus que se estende até o final do capítulo 13. Para facilitar um pouco a compreensão dos elementos do discurso, pode-se estruturar o capítulo todo da seguinte forma: Marcos 13.1-4: a predição da destruição do templo e a pergunta pelo quando isso irá acontecer; Marcos 13.5-37: o discurso escatológico propriamente dito. Esse não se limita à destruição do templo, mas a transcende e aponta para a consumação (telos/alvo) da história. Essa não transcorre em linha reta como uma evolução natural das coisas como se a própria história em si portasse os ingredientes que desembocam necessariamente num mundo novo. Pelo contrário, o caminho para a consumação é extremamente difícil, conturbado e antinatural (v. 5-23). Entre os elementos precedentes ao texto da pregação, algumas expressões chamam a atenção, por exemplo: Vede que ninguém vos engane (v. 5); [...] em meu nome [...] enganarão a muitos (v. 6); Estai de sobreaviso [...] (v. 9; veja também o v. 23); Não acrediteis [...] (v. 21b). Trata-se de palavras de alerta. Em meio a elas, sobressaem algumas expressões formuladas positivamente: Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações (v. 10); [...] por causa dos eleitos que ele escolheu, abreviou tais dias (v. 20b). Esses elementos todos não deveriam ser ignorados na própria pregação. Disso se abstrai teológica e pastoralmente a tarefa primordial que norteia o ofício da pregação também em tempos confusos e extremamente desumanos que perpassam a história da humanidade, notadamente também os nossos dias. 2.2 – Aspectos exegético-teológicos do texto A perícope para a pregação propriamente dita pode ser dividida em duas unidades menores, porém inseparáveis uma da outra para a compreensão do todo. V. 24-27 – O cerne desses versículos é a futura vinda do Filho do Homem. Com ela se dará a consumação da história toda, não só do povo de Deus. Filho

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do Homem é uma expressão conhecida desde o Antigo Testamento. Ela aparece com bastante frequência no livro do profeta Ezequiel e aparece também no profeta Daniel. Em Ezequiel, Filho do Homem se refere primordialmente ao ser humano, especialmente ao próprio Ezequiel, por exemplo: Ezequiel 2.1,3,6,8; 3.1,3,4,10,17, e muitas vezes mais. Já no livro de Daniel, Filho do Homem é personagem messiânico esperado para o fim dos tempos (Dn 7.13), época em que Deus instaurará definitivamente seu reino (Dn 7.14). Esse é o sentido de Filho do Homem em Marcos 13.26, Mateus 24.30 e em outros textos mais, e se refere a Jesus Cristo, ressurreto e assunto ao céu, de onde é esperado para julgar vivos e mortos, como o próprio Credo Apostólico mais tarde o formulou e registrou. A vinda/manifestação do Filho do Homem põe fim ao curso dos elementos mais seguros que regem o cosmos e a vida humana: sol, lua e a constelação das estrelas bem como os “poderes dos céus”, isto é, as forças que mantêm o universo em funcionamento. O que se menciona aqui não são sinais precursores que apontam para o fim, mas é o “fim da existência atual neste mundo com todas as suas seguranças” (KLAIBER, 2010, p. 255). Por essa razão, esses acontecimentos não são mensuráveis com quaisquer recursos humanos, também não com as explicações cosmológicas sobre o futuro do sistema solar. Não se trata de afirmações científicas verificáveis e contestáveis. O centro das afirmações desses versículos é a consumação da história da perspectiva de Deus. O Filho do Homem não aparece explicitamente como juiz, mas muito mais como redentor, que reúne os “escolhidos” espalhados sobre a face da terra (v. 27). Essa é, por assim dizer, a única resposta à questão levantada no v. 4. V. 28-37 – Esses versículos retomam mais uma vez a questão dos sinais levantada no v. 4 em relação ao quando dos acontecimentos futuros. Num primeiro momento, Jesus conclama a que se observem os sinais (v. 28-32). Ele parte de elementos conhecidos dos seus ouvintes para ilustrar uma realidade não conhecida. Isso é um recurso didático-pedagógico eficiente, pois elementos estranhos não se explicam com elementos estranhos, mas com elementos familiares a quem se quer proporcionar aprendizado. Quanto ao prazo dos acontecimentos, faz uma dupla afirmação: o prazo está próximo (v. 29): Quando virdes acontecer estas coisas deve se referir ao que foi dito ao longo da fala em Marcos 13, o que inclui obviamente a manifestação do Filho do Homem e, por conseguinte, a irrupção derradeira do reino de Deus, que era uma expectativa em torno da pessoa e do ministério de Jesus. A segunda afirmação é que apesar dessa proximidade, o prazo é desconhecido (v. 32). Isso leva a uma segunda conclamação (v. 33-37): Estai de sobreaviso [...] Vigiai [...] Chama atenção que a palavra final, literalmente a última palavra no texto da pregação, não se limita aos ouvintes primários do discurso, mas inclui as possíveis futuras gerações que se deparam com as mesmas perguntas e inquietações da primeira geração: O que, porém, vos digo, digo a todos: vigiai (v. 37). Isso faz parte das palavras: Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão (v. 31). Vigiai é o que no final das contas importa. O pedido dos discípulos: Dize-nos quando sucederão estas coisas [...] (v. 4a) não foi respondido com um mapa ou uma agenda escatológica, mas com o imperativo de vigiar.

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Concluindo essa parte da análise, é propício lembrar que o texto da pregação para hoje, ou no mínimo uma parte dele, oportunamente também é indicado para o Domingo da Eternidade, que, de alguma forma, evoca a lembrança de entes queridos já falecidos e nos coloca diante da realidade inevitável de que um dia nós, os ainda vivos, pertenceremos aos que já partiram (1Ts 4.13-18) e não seremos mais inquietados pela pergunta quando isso vai acontecer.

3 Meditação e imagens para a prédica O texto para a pregação de hoje já foi abordado em Proclamar Libertação 36 para o 1º Domingo de Advento e, consequentemente, também pode ser consultado para a meditação e imagens para a prédica. Sem cair num jargão religioso, há de se destacar para hoje: em tempos confusos, violentos e, ao mesmo tempo, que promove a sensação do novo como algo promissor – um novo normal como já se convencionou falar a partir da pandemia da Covid-19, é fundamental que como pregadoras e pregadores nos apeguemos às palavras de Jesus tais quais são dadas no próprio texto para a pregação de hoje. Recomenda-se olhar mais uma vez ao que precede o texto, por exemplo: o fator desencadeador de todo o discurso no capítulo 13 de Marcos (veja os v. 1-4). A rigor, não se trata de um discurso como se fosse uma palestra sobre um determinado assunto com o objetivo de informar quem a assiste ou a quem interessar possa. Pregação não é palestra, é anúncio. As palavras de Jesus são uma espécie de interlocução não com destinatários fictícios, mas com pessoas muito ligadas ao que acontecia à sua volta, movidas por perguntas e anseios: Dize-nos [...] (v. 4). É importante que, como anunciantes da palavra neste domingo, procuremos detectar que perguntas e anseios movem as pessoas na comunidade de fé, e além dela em plena época de correria ou isolamento social e crise. Isso não significa que devamos dizer o que as pessoas querem ouvir, mas que não fiquemos devendo a elas palavras que as ajudem a partir do texto da pregação. O texto fornece boas pistas nessa direção, por exemplo, há de se considerar os elementos de alerta que perpassam o capítulo 13 todo: Vede que ninguém vos engane (v. 5); [...] em meu nome [...] enganarão a muitos (v. 6); Estai de sobreaviso [...] (v. 9; veja também o v. 23); Não acrediteis [...] (v. 21). Trata-se acima de tudo da enganação religiosa oportunista tão presente em nossos dias que facilmente cativa pessoas de boa fé. Obviamente, há de ser ter um cuidado sadio para que o anúncio da palavra deste texto não ocorra com o indicador de arrogância espiritual ou intelectual sobre outras pessoas. Contudo, tão ou mais importante que a denúncia do engano religioso são os elementos pastorais que perpassam todo o capítulo 13. Eles não deveriam ser omitidos, mas destacados, por exemplo: Não tivesse o Senhor abreviado aqueles dias, e ninguém se salvaria; mas, por causa dos eleitos que ele escolheu, abreviou os dias (v. 20), ou: Ele enviará os anjos e reunirá os seus escolhidos dos quatro ventos, da extremidade da terra até à extremidade do céu (v. 27). Isso é poimênica teológica no verdadeiro sentido da palavra e é extremamente consolador para quem anuncia a palavra neste domingo e também para quem é ouvinte

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dela: como anunciantes da palavra do Senhor não somos os ceifeiros ou encarregados para encher os celeiros. Essa tarefa cabe a Deus, de quem as pessoas são. Por outro lado, nenhuma das pessoas escolhidas/eleitas (eklektos) de Deus – estejam elas onde estiverem – é ou será ignorada nem esquecida. O Senhor as reunirá como um bom pastor reúne as ovelhas do seu rebanho. Portanto as palavras de alerta ou admoestação estão irmanadas com as palavras do cuidado de Deus com seu povo. Aliás, as primeiras emergem das segundas e são sustentadas por elas. Por isso apegamo-nos confiantemente às palavras de Jesus para este domingo. Do apegar-se às palavras de Jesus Cristo resultam, tanto para anunciantes da palavra quanto para ouvintes dela, duas questões: uma é a atitude de espera pela vinda do Filho do Homem, isto é, a espera pelo dia de Jesus Cristo. Por isso: esperar e vigiar pertencem intrinsecamente um ao outro. Trata-se de uma postura com expectativa positiva. Não de expectador para ver no que vai dar – se der certo, vamos aplaudir, se não der, vamos vaiar, ou: não tenho nada a ver com isso; estou fora. Essa seria uma postura que o evangelho não advoga. Importante é dizer que a espera ou expectativa do tempo de Advento não é uma expectativa do humanamente manobrável e realizável, ou manipulável e previsível. Disso de fato não precisamos, nem nós como anunciantes da mensagem nem a comunidade de fé no tempo de Advento, pois nossa história no Brasil em âmbito municipal, estadual e federal está farta de manobras, realizações interesseiras e manipulações. A segunda questão que emerge do apegar-se às palavras de Jesus no sentido do texto da pregação é vigiar no servir a Cristo. Não só o esperar e vigiar estão intrinsecamente ligados entre si, mas vigiar e servir também são inseparáveis. Aqui a pregação tem a tarefa de refletir e ajudar a esclarecer o que vigiar e servir significam hoje, em especial na época precedente ao Natal, que são dias corridos e, por vezes, altamente estressantes, que facilmente ofuscam o objetivo da época antecedente aos dias de Natal.

4 Subsídios litúrgicos Neste período de Advento, por natureza, há enfeites especiais no templo que lembram conscientemente o momento no ano eclesiástico que se inicia. Mas não apenas os aspectos visíveis no templo deveriam lembrar o momento específico. Obviamente, a liturgia toda do culto precisa afinar com o momento novo do ano eclesiástico que inicia com o 1º Domingo de Advento e considerar as tônicas do texto de base para a pregação. Para elaboração da liturgia felizmente não é preciso começar do zero, do nada existente. Pode-se recorrer a um rico material especificamente elaborado para essa época do ano.

Bibliografia BLASI, Marcia. 1. Domingo de Advento – Marcos 13.24-37. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação 36. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2011. p. 9-13.

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1º Domingo de Advento

KLAIBER, Walter. Das Markus-Evangelium. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlagsgesellschaft, 2010. VOIGT, Gottfried. Die bessere Gerechtigkeit. Homiletische Auslegung der Predigttexte der Reihe V. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt Berlin, 1982.

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PRÉDICA: ISAÍAS 40.1-11 MARCOS 1.1-8 2 PEDRO 3.8-15a

2º DOMINGO  06 DEZ 2020 DE ADVENTO      Marivete Kunz

A palavra permanece

1 Introdução O livro de Isaías, a partir do capítulo 40, apresenta relatos sobre os judeus deportados para a Babilônia. A predição de sua ida para o cativeiro está no capítulo anterior. Os capítulos 40 a 55 apresentam uma mensagem de esperança e conforto ao povo em época de tristeza. O exílio, para aqueles que não conseguiram progredir em seus negócios, tinha sido um período de desalento. Além disso, meio século tinha se passado e para alguns os deuses da Babilônia se mostravam mais fortes que Javé. Muitos acreditavam que o castigo do cativeiro seria permanente. Mas o livro anuncia que o tempo de castigo tinha acabado e que eles já tinham cumprido o período do cativeiro, até de forma dobrada. É nesse contexto que surge a mensagem de Isaías 40.1-11, mostrando que a palavra, enviada por meio dos profetas de Deus, não tinha mudado, mas será cumprida à risca.

2 Exegese V. 1 – Neste versículo, o verbo consolar, no modo imperativo, é muito enfático e mostra que o povo de Israel estava em aflição no cativeiro babilônico. O início do texto revela urgência tanto do envio da mensagem como do anúncio do amor de Deus pelos seus. Por meio da expressão “meu povo” evidencia-se que o Senhor quer “renovar a adoção de Judá” (RIDDERBOS, 1995, p. 310). Wiers­ be afirma a partir da expressão hebraica nāham que “consolar” significa “falar ao coração”, sendo também uma referência aos tempos de “grandes provações” (WIERSBE, 2007, p. 57). O texto não especifica quem eram as pessoas que recebem a mensagem, mas os cincos primeiros versículos evidenciam que era um grande número de pessoas. V. 2 e 3 – O castigo em dobro pode ser uma indicação à destruição de Jerusalém ou ao período de cativeiro. Wiersbe afirma que a expressão em dobro não quer dizer que Deus havia disciplinado injustamente seu povo, pois ele é misericordioso (Ed 9.13). Compreende-se que o castigo foi na medida certa (Jr 16.18) (WIERSBE, 2007, p. 57). Fica claro que o povo de Israel passou por um período de trabalho árduo e recebeu o castigo duplo de Deus por causa de seus pecados. Aqui é importante atentar para as palavras falai ao coração, pois não se fala apenas em castigo dobrado, mas também que o povo deveria ser consolado (v. 1) e tranquilizado, pois os pecados foram perdoados. A ênfase não está

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no castigo, mas no tranquilizar do próprio Deus. Falar ao coração é uma forma de cumprir a ordem, ou seja, de consolar o povo. Falar ao coração significa falar com ternura (RIDDERBOS, 1995, p. 310). Os olhos do autor voltam-se nesse momento para Jerusalém e sua condição, pois o tempo de seu trabalho árduo (ou milícia) acabou. V. 3 – Aqui aparece a figura do caminho, imagem que aparece em outras partes de Isaías, como em 11.16. As expressões e ênfases deste versículo costumam ser associadas pela tradição cristã a João Batista, o precursor que preparou o caminho para o ministério de Jesus Cristo. Essa vinculação com João Batista se confirma, por exemplo, em Mateus 3.3. V. 4 – Conforme Wiersbe, é possível ver, já no v. 3, que há “a figura de um emissário consertando as estradas e removendo os obstáculos, preparando o caminho para a vinda de um rei” (WIERSBE, 2007, p. 57). Os aspectos topográficos (deserto, ermo) podem estar simbolizando aqui a falta de vida. Nivelar o caminho no deserto era necessário devido às depressões. Os buracos deveriam ser tapados e as pedras, removidas, para o caminho ser acessível. V. 5 – Este versículo mostra que Deus está chegando e o mundo verá sua revelação e glória. Deus mostrará seu poder, majestade e bondade para toda a humanidade. O povo de Israel é mero instrumento no preparo do caminho para ele. V. 6 – Este versículo apresenta uma ordem para que o profeta clame. O verbo qerā se encontra no Qal, imperativo, masculino, diferentemente de quando a ordem é para Sião ou Jerusalém (v. 9), quando o verbo se encontra na forma feminina singular (bāsar). É possível que a pergunta que aparece neste versículo (que hei de clamar?) esteja relacionada com a ordem que aparece no v. 3 (clame). A pergunta que aparece aqui traz um tom de desespero. A resposta para esse desespero pode estar nos dois versículos seguintes. V. 7 e 8 – Os dois versículos mostram que a vida é frágil e transitória e que é Deus quem a controla. Mas eles mostram também que a palavra do Senhor é eterna e permanece eternamente (Sl 37.1-2; 90.1-6; 103.15-18). O ser humano (a carne) é semelhante à erva. Nações e lideranças cumprem seu propósito e desaparecem, mas a palavra de Deus, diferentemente, permanece para sempre (1Pe 1.24-25; 3.8-15). Isso significa: o povo de Israel pode confiar no caminho de retorno à terra natal, pois Deus vai manter suas promessas e estar ao seu lado. V. 9 e 10 – É incerto nesses versículos se Jerusalém é o arauto das boas novas, ou se essas boas novas seriam enviadas a Jerusalém. No final do v. 9, as boas novas são remetidas para Judá. Talvez o versículo mostre que as boas novas serão trazidas para Jerusalém, mas que essa também é responsável por levar tais notícias. Por isso poderiam ser ambas as coisas. Qual é a boa notícia que deveria ser anunciada por aqueles dias? Certamente a derrota da Babilônia e a libertação do povo judeu. O forte braço de Deus prevalecerá nas lutas. O povo é animado a levar as boas notícias com confiança, pois eis que ali está o seu Deus (v. 9), e ele vem com poder (v. 10). V. 11 – O povo exilado precisava receber o recado e entender que Javé não o havia abandonado ou se esquecido dele, pois ele ainda era seu rebanho e sua proprie-

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dade especial. O poderoso braço de Deus, que reaparece neste versículo, também é o braço que carrega as ovelhas, guiando-as até chegar em casa. Eis a boa notícia!

3 Mensagem Por que confiar na palavra do Senhor? Isaías 40.1-11 proclama o conforto que virá do Senhor a um povo identificado como meu povo (v. 1), que vivia aflito em terra estranha. O texto não declara o que tinha acontecido a Israel e não fala de forma precisa sobre exílio ou a restauração da terra. Mas sabe-se que os israelitas estavam refugiados em terra estranha e que Jerusalém estava em ruínas. Eles já estavam no cativeiro há pelo menos meio século. O exílio é visto como castigo pelo que eles haviam feito ou deixado de fazer, ou seja, pelos seus pecados. Mas independente do que houve no passado, agora é tempo do povo ser consolado com a palavra de Deus, pois o trabalho árduo acabou e eles haviam pago por seus erros. O profeta proclamou a libertação do povo que sofria longe de sua terra. Ele já estava fraco e indefeso frente às nações poderosas. Entretanto, a palavra do Senhor foi entregue ao povo por meio de seus profetas e o povo entendeu que havia esperança. Aquilo que lhes foi dito seria efetivado e eles poderiam confiar em sua palavra. Então vem a pergunta: por que, depois de tanto tempo, ainda confiar na palavra de Deus? Porque a palavra do Senhor está preservada e permanece A palavra do ser humano pode ser passageira, como sua vida o é. Tudo no ser humano é transitório e com o tempo até sua beleza se esvai. O que traz mudanças imperecíveis a toda a humanidade é a palavra de Deus, a qual, conforme o v. 8, permanece para sempre e cumpre o que promete. É a intervenção divina que garante a permanência da palavra escrita. O Salmo 119.89 diz: Para sempre, oh Senhor, está firmada tua palavra no céu. Em Washington há um escritório de padrões. Todo peso e toda medida (polegada, litro, milímetro, jarda, galão etc.) têm uma cópia perfeita nesse local para fins de comparação. Ali está a medida perfeita e o padrão para os demais. Assim é a palavra de Deus. A Bíblia e seu testemunho sobre Deus são uma manifestação confiável dos seus propósitos para conosco. Os céus e a terra passarão (2Pe 3.10), mas a palavra de Deus permanecerá (Mt 24.35). Conforme Isaías 40.8, seca-se a erva e cai a sua flor, mas a palavra de nosso Deus permanece (yqûm) para sempre. A ideia de permanecer/subsistir diz respeito à figura de alguém que está prostrado e esmagado, mas novamente fica em pé. Assim é a palavra: ela já foi objeto de perseguição, mas sua sobrevivência se transforma em milagre. Por dois mil anos, o ódio de algumas pessoas têm sido incansável e muito esforço tem sido feito para corroer a fé na inspiração e autoridade da palavra. Entretanto, cada amanhecer tem mostrado que essa palavra permanecerá. Essa foi a experiência do povo. Ele se sentia esmagado e acabado,

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mas o Senhor agora o levanta novamente, o coloca de pé. Essa foi a promessa entregue ao povo por seus profetas. E a palavra se cumpre. O texto estabelece um contraste entre aquilo que é eterno e aquilo que é perecível. Enquanto a palavra de Deus é eterna, a vida e o ser humano são como uma erva perecível e transitória. Na sua palavra eterna, o Senhor dá ao ser humano a certeza de seu favor. Além da erva, o texto traz outras figuras que mostram a fragilidade humana: a flor que murcha e cai, o vento que sopra. Mas sua palavra permanece e nunca é revogada. Por isso o povo podia confiar em suas promessas. Essa foi a mensagem entregue aos judeus no exílio, que se cumpriu tempos depois. Por isso hoje todos podem confiar em sua palavra, pois ela permanece e será cumprida. Porque ela traz esperança e segurança Diante de tantos desafios que o povo de Israel enfrentaria para retornar a Jerusalém, como a falta de recursos, era necessária uma palavra de esperança. E essa veio por meio do profeta Isaías. Em Isaías 40.1-2 vemos que a mensagem ao povo de Deus foi de encorajamento e esperança, pois o Senhor continuava com eles, continuava sendo seu Deus. O castigo não era algo permanente e eles já haviam pago o preço (v. 2). O povo tinha um desafio monumental, mas faltavam-lhe os recursos para realizá-lo. Se confiasse em suas próprias forças, certamente sucumbiria. Por isso o olhar deveria ser direcionado para as promessas de Deus, e não para si mesmo. Ele deveria olhar para o alto! Isaías então fala ao povo (v. 9): “Eis aí está o vosso Deus!”. O futuro parecia sombrio, com uma dura ou impossível tarefa a realizar. Mas o profeta mostrou a grandeza do Deus a quem o povo adorava. Esse Deus era maior que as circunstâncias da vida. As coisas do passado atormentavam o povo, pois ele havia desobedecido a Deus, se envolvido com idolatria, feito alianças indevidas, cometido imoralidades, rejeitando a mensagem dos profetas. Como consequência, colheram o cativeiro. Somente uma palavra de encorajamento poderia fazê-los enxergar o futuro que os esperava. Retornar seria uma grande alegria, mas também significaria fazer um caminho penoso, cheio de desafios. Mas com confiança em Deus tudo ficaria mais fácil. Percebe-se que a partir do v. 3 há uma ênfase na adoração, pois o povo retornaria para Jerusalém a fim de reconstruir o templo, local de adoração especial a Javé. A tarefa seria dura, mas também alegre. E o Senhor os guiaria, abrindo o caminho a seguir. As figuras e imagens que o texto apresenta, como no v. 3, indicam que o Senhor traria ao povo o seu favor. Isso também pode ser visto no v. 11. Todas as dificuldades que porventura aparecessem pelo caminho para a chegada do Senhor ou os empecilhos que bloqueassem o caminho seriam vencidos. O v. 11 termina com uma série de verbos formulados no futuro: apascentará, recolherá, levará, guiará. São palavras que evidenciam que aquele Deus que virá com poder (v. 10) também será o provedor. Ele vem como o pastor que cuida do seu rebanho com ternura e lhe dá atenção especial. Além disso, a glória de Deus (v. 5) controla a história. Por isso o povo pode retornar à sua terra natal.

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Conclusão A palavra de Deus irá se cumprir, ainda que as aparências indiquem o contrário. Assim como aquilo que foi anunciado ao povo judeu se cumpriu após meio século ou mais, certamente tudo o mais também se cumprirá. Tudo passa e tem um fim, a erva seca e as flores murcham e caem, a vida do ser humano finda. A palavra do Senhor, porém, está firmada no céu. Ela nunca passará, porque é eterna e merece toda a confiança.

4 Imagens para a prédica Ridderbos observa em relação ao v. 3 que, devido às condições precárias das estradas do Oriente, era feito um trabalho para que as estradas ficassem limpas e transitáveis quando os membros das famílias reais transitassem por elas. O arauto do texto proclama que o rei que se aproxima é o Senhor (v. 3) e que sua chegada será em Jerusalém. Sobre a palavra que permanece e é digna de confiança, pode-se utilizar a ilustração feita acima sobre o escritório de padrões existente em Washington: todo peso e toda medida (polegada, litro, milímetro, jarda, galão) têm uma cópia perfeita nesse local para fins de comparação. Ali está a medida perfeita, o padrão para tudo o mais.

Bibliografia RIDDERBOS, J. Isaías: introdução e comentário. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1995. WIERSBE, W. Warren. Comentário bíblico expositivo do Antigo Testamento: proféticos. Santo André: Geográfica, 2007. v. IV.

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3º DOMINGO  13 DEZ 2020 DE ADVENTO

PRÉDICA: JOÃO 1.6-8,19-28 ISAÍAS 61.1-4,8-11 1 TESSALONICENSES 5.16-24

Anelise Lengler Abentroth

O jardim brota do que foi semeado

1 Introdução Escrevo este estudo em tempos difíceis. O planeta está doente! Há uma guerra sem armas, sem fronteiras. Decreta-se calamidade pública em cidades, estados, países. Milhões de mortos, antes doentes, muito doentes, sozinhos, isolados. E agora, enterrados sem velamento, sem despedidas de pessoas amadas. A Covid-19 trouxe medo, angústias e fez o que ninguém imaginou: parou o capitalismo insano, devastador, pelo menos durante esse tempo. Advento é tempo de espera, de preparação para o novo que há de vir. Como ele será? Esperava-se o Messias. Há anúncio, mas ninguém sabe quem, quando, onde. Advento prepara-nos para o tempo de Deus, para a ação de Deus neste mundo doente. Oportuno é o texto de Isaías. É um texto de esperança pela reconstrução do país devastado. Deus chama, escolhe e envia os seus para levar boas novas, para animar aflitos e pobres, libertar presos, consolar quem chora, transformar o luto em festa. Ele faz isso porque ama a justiça, odeia o roubo e o crime e quer fazer uma aliança eterna de salvação e vida com seu povo. Para crescerem a justiça e o direito, é preciso semear o chão, pois assim como o jardim brota do que foi semea­do, assim o Senhor fará brotar sua salvação (v. 11). O texto da carta de Paulo em 1 Tessalonicenses 5.16-24 nos conclama a conformar nossa vida de acordo com a esperança que temos na vinda de Jesus Cristo. No novo tempo, Deus envia João para falar a respeito da luz (v. 6). Ele fala para que o povo possa ouvir a mensagem e crer nela. Mensageiros, testemunhas, profetas são enviados por Deus, porque ele quer salvar! Mas quem são eles e elas?

2 Exegese Há vastos recursos e detalhes exegéticos nas edições anteriores de Proclamar Libertação, escritos por pessoas competentes. Todos eles com contribuições relevantes, com enfoques diversos, que merecem ser pesquisadas. Resumidamente, recordamos que nosso texto faz parte do prólogo do Evangelho de João. É a primeira coisa que se lê, mas a última a ser escrita. Tudo o que existe é expressão da palavra de Deus. A presença da palavra é vida e luz para os seres humanos. No entanto, mesmo presente em tudo, a palavra quis chegar mais perto e fez-se carne em Jesus.

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3º Domingo de Advento

O Evangelho de João, também chamado “Evangelho do Discípulo Amado”, foi escrito por volta do ano 90 d.C. Passaram-se cerca de 60 anos entre os acontecimentos históricos e a redação do evangelho. A partir do ano 70 d.C., aumentou o conflito entre judeus e cristãos. Os judeus não aceitavam Jesus como o Messias esperado e os cristãos não aceitavam mais a observância cega da lei de Moisés. No contexto da expulsão dos cristãos das sinagogas é que acontece a redação final do evangelho. Dizem os estudiosos que esse evangelho foi tecido com três fios que se combinam entre si: um são os fios dos fatos da vida de Jesus, acontecidos pelos anos 30 d.C. O segundo são os fatos da vida das comunidades: os conflitos e as perseguições sofridas marcaram a maneira de descrever os conflitos de Jesus com os fariseus. E o terceiro são os comentários feitos pelo evangelista. As comunidades que estão por trás desse evangelho eram formadas por diferentes grupos. Havia judeus com postura crítica frente ao Templo de Jerusalém e à lei. Havia samaritanos, pagãos convertidos com origens históricas e culturais bem diferentes. Havia muita gente excluída de uma participação política, social e religiosa, dentre esses escravos, estrangeiros e mulheres. Sem esquecer a presença do pensamento gnóstico, que prioriza a razão e o conhecimento, em detrimento do corpo e da vida concreta. A situação difícil do povo, dominado e explorado pelo Império Romano, levou as comunidades a valorizar, aprofundar e defender a vida (palavra que aparece 36 vezes no evangelho). O seguimento a Jesus é entendido como vivência concreta e solidária do amor. Essa é a chave! Nesse contexto está a nossa perícope, composta por duas partes distintas, que foram incluídas dessa forma, mas fazem parte de um bloco somente. João foi enviado por Deus para falar, testemunhar sobre a luz, como fazem os profetas, mensageiros ungidos por Deus para uma tarefa. Percebe-se que o testemunho de João foi tão importante, que muitas pessoas começaram a pensar que ele fosse o próprio Messias anunciado. Isso chegou ao conhecimento das autoridades do Templo, que foram interrogá-lo. Fica evidente a centralidade de duas perguntas: quem ele é? E por que batiza? À primeira pergunta, ele responde enfaticamente que não é o Cristo, não é a luz. Também não é o Messias, o novo Moisés que viria para renovar a libertação do Egito e inaugurar um novo tempo. Nem ao menos Elias, que, segundo uma compreensão escatológica, seria o precursor do reino de Deus. Ele é o enviado a testemunhar sobre a luz. E a luz, no Evangelho de João, sempre é a metáfora para a vida de Cristo. O objetivo do testemunho é a fé das pessoas ouvintes. O batismo de João é a adesão do povo para a chegada do Messias, que já está presente, mas não é João. Ele é a voz que clama no deserto e que chama ao arrependimento, à mudança de rumo, de caminho. Ele não é digno daquele que vem em nome do Senhor e que já está presente, mas eles ainda não o conhecem.

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3º Domingo de Advento

3 Meditação Advento é tempo de preparação para a vinda do Messias, do Filho de Deus, do Deus que se tornou gente e habitou entre nós no Natal. João anunciou que ele já estava presente, mas que as pessoas ainda não o conheciam. Não posso imaginar qual será o contexto histórico real desse tempo de pregação, pois escrevo em pleno distanciamento social para evitar o colapso do sistema de saúde brasileiro e a morte de milhões de pessoas. Comércios fechados ou parcialmente, pouca produção industrial, muita procura por alimentos, remédios, insumos de proteção. A economia está ruindo, ou pelo menos o sistema baseado no estado mínimo e no sucateamento com vistas à privatização de todos os setores, especialmente o da saúde. A ordem que se impôs é outra. Com muita dificuldade os cofres estão sendo abertos e os recursos estão indo para onde é preciso para preservar vidas. Em meio aos esforços homéricos para fazer a população compreender que as medidas de isolamento são necessárias, o presidente da República, que tem “Messias” em seu nome, insiste em ser televisionado saindo às ruas, aos mercados populares, coçando o nariz e dando as mãos, cumprimentando as pessoas, inclusive idosas, que estão nas ruas. Estima-se que pelo menos 30% da população ainda vê nessa figura o “iluminado”, aquele que quer e pode colocar o país no rumo certo. Também vemos pastores de grandes templos religiosos, que são mantidos pelo dízimo dos fiéis, relutantes em parar os cultos, pois esses arautos de Cristo pregam contundentemente que o bicho não pega quem tem fé! Nesse contexto, cabe a pergunta a esses líderes: quem são vocês? Por que fazem o que fazem? A inclusão desses dois textos que se complementam no prólogo do Evangelho de João, nos faz perceber que era muito forte o movimento messiânico em torno de João Batista. Uma grande multidão o seguia e se deixava batizar por ele. Sua pregação era ouvida e mexia com a vida das pessoas. De tal forma, que alguns líderes foram enviados pelas autoridades do Templo para interrogá-lo. Precisavam saber de quem se tratava e o que estava anunciando. João, porém, nega categoricamente ser o Cristo. Ele tem consciência da sua humanidade, dos seus limites e se coloca como testemunha enviada por Deus para preparar o caminho para o Messias. João é aquele que grita no deserto (Is 40.3). Essa expressão do v. 23 (aquele que grita assim no deserto) nos faz pensar em terra seca, arrasada, que um dia já foi verde, abundante. Tornou-se árida, de difícil sobrevivência, de sofrimento extremo. Alguém grita nessa terra: “preparem o caminho para o Senhor passar”. Quem está no deserto, com certeza, está no limite de suas forças. Olha para todos os lados e vê areia em morros e vales. Preparar um caminho, aplainar morros, construir estrada, com que força, com que ânimo, com que esperança? Diz o profeta: “para o Senhor passar”. Quem aceita esse chamado? Com que garantia de que ele viria e que daria certo? Como seres humanos, muito facilmente depositamos nossas esperanças em pessoas. Somos levados a nos deslumbrar com falas elaboradas, com apelos emotivos, com imagens, sons, cheiros e toques. As ciências ajudam-nos a

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compreender como isso funciona. Assim, podemos fazer uso desse saber, desses recursos para o bem das pessoas, ou para o nosso próprio, tornando-nos admiradas, amadas, veneradas até. Nem sempre isso é feito com consciência ou por maldade. Faz parte de quem testemunha fazê-lo com convicção, com eloquência, com o melhor recurso possível. Mas não podemos nos esquecer da pergunta feita a João: quem é você? Por que faz o que faz? Cristo foi enviado ao mundo para salvá-lo. Ele está entre nós. Sua proposta de vida em abundância, de cuidado com a criação, de justiça, de partilha, de solidariedade e dignidade a toda a vida já foi e é ouvida constantemente. Pessoas são mensageiras, testemunhas, arautas, ungidas ou não, batizadas. Mas são humanas! Não merecem a honra de desamarrar as correias das sandálias dele (de servir!). Se Deus nos chama em nosso batismo, nos envia, faz suas testemunhas, Ele espera de nós não somente palavras, mas atitudes concretas que cuidem, recuperem e se comprometam com a vida digna de todas as pessoas. A vida é a chave! Vida das pessoas, da criação toda! A comunidade cristã é chamada a não fixar seu olhar nas pessoas nem depositar nelas a sua total confiança ou esperança. Pessoas são pessoas por mais que as amamos. O processo de reconstrução da vida mundialmente vai precisar de verdadeiro mutirão, porque o jardim brota daquilo que foi semeado. Se voltarmos ao que éramos antes, esperando “salvadores da pátria”, não teremos aprendido nada com todo o deserto e o sofrimento. Em breve será Natal mais uma vez. O tempo de Deus, o agir de Deus para salvar o mundo! E essa vontade de Deus acontece no trabalho, no comprometimento, no serviço, na participação de comunidade que se une para recuperar vidas, especialmente das que historicamente ficaram excluídas. Que a graça e o amor de Deus nos levem a conhecer e testemunhar firmemente a salvação que Deus fez e faz habitar entre nós.

4 Imagens para a prédica Sören Kierkegard escreveu: “Um incêndio se dá no interior de um teatro. O palhaço sobe no palco para avisar o público; eles pensam que é uma piada e aplaudem. O palhaço repete e é aplaudido com mais entusiasmo. É como eu penso que o mundo chegará ao seu fim: sendo aplaudido por testemunhas que acreditam que tudo não passa de uma piada”. Por que o público não entendeu o que estava acontecendo? O que se espera do palhaço? Por que a mensagem não foi levada a sério?

5 Subsídios litúrgicos João Batista, o batizador, em versos Por Sílvia Araújo Motta João Batista, pregador judeu, no início do Séc. I, chamado de JOÃO, o BATIZADOR,

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citado por Evangelizadores nasceu 2 a.C. e morreu 30 d.C. Filho do Sacerdote Zacarias e de Isabel, prima de Maria, a jovem Mãe de Jesus. Batizou muitos judeus, incluindo seu primo Jesus. João foi reconhecido Profeta! Considerado pelos cristãos, como o precursor do Prometido, o Messias, Jesus Cristo, por ele batizado no Rio Jordão. João Batista introduziu o Batismo de Gentios nos Rituais Judaicos de Conversão, adaptados para o Batismo do Cristão. João nasceu na cidade de Judá, a seis quilômetros de Jerusalém. Sua mãe pertencia à Sociedade Religiosa para a Educação, das “Filhas de Aarão”. João foi muitas vezes chamado de “Encarnação de Elias.” Até na forma de se vestir, com peles de animais e no método de exortação. O Discurso principal de João era sobre a vinda do MESSIAS, fonte de Esperança para a Nação que esperava sempre o dia de tornar-se digna e independente. Os judeus defendiam a ideia da sua nacionalidade ter iniciado com Abraão e que culminaria, na Verdade, com a chegada do Messias da Salvação.

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João, na aldeia chamada “Adão” pregou sobre o Messias: “Aquele que viria”, do qual não seria digno de atar-lhe as alparcas...” A polêmica surgiu, naturalmente... Importante notar o novo Batismo que João trouxe aos arrependidos... A experiência do Batismo de Jesus motivou ainda mais a sua fé e seus Ministérios vividos. A mando do Rei Herodes Antipas, João ficou dez meses preso até à morte, porque lhe fez críticas pelo discurso... A cabeça de João foi entregue ao Rei e o corpo queimado, em uma fogueira. Errei (Autoria desconhecida) Errei quando deveria ter falado e me calei. Errei quando aconselhei e deveria ser aconselhado. Errei em não pedir ajuda pensando que poderia ter suportado. Errei quando achei que todos estavam errados. Errei em não ouvir, pois deveria ter analisado. Errei em não pensar, pois deveria ter parado. Errei em gritar quando deveria ter me calado. Errei em me calar quando deveria ter gritado. Errei em negligenciar, pois deveria ter ajudado. Errei em fazer separação, tinha que promover a união. Errei em continuar, quando deveria ausentar-se para crescimento. Errei por errar, Errei por ensinar, Errei por aprender, Errei por quê? Porque não sei.

Bibliografia MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco; LOPES, Mercedes. Raio-X da vida: Círculos Bíblicos sobre o Evangelho de João. São Leopoldo: CEBI, 2000. RUBEAUX, Francisco. Mostra-nos o Pai. Uma leitura do Quarto Evangelho. Belo Horizonte: CEBI, 1989.

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4º DOMINGO   DE ADVENTO

20 DEZ 2020

PRÉDICA: ROMANOS 16.25-27 2 SAMUEL 7.1-11,16 LUCAS 1.26-38

Samuel Gausmann

Natal comum(unitário) e extraordinário

1 Introdução: Deus age no comum! A Carta de Paulo aos Romanos é uma das mais densas doutrinariamente, uma síntese bem elaborada do pensamento teológico do apóstolo. Agostinho converteu-se lendo essa carta (Confissões 8,13,23). Lutero começou a Reforma protestante com seu Comentário à Carta aos Romanos, onde ele debate a ideia da justificação. A densidade do conteúdo quer servir de inspiração para uma vivência comprometida da fé. No texto de 2 Samuel 7, Davi revela ao profeta Natã a intenção de construir um templo para Deus. Por intermédio de Natã, Deus lembra ao rei toda a sua peregrinação junto com o povo de Israel desde a saída do Egito. Deus enfatiza sua presença junto com seu povo (fui contigo por onde quer que andaste, v. 9) e que é ele quem vem e se manifesta e que na sua grandeza não pode ser “confinado” dentro de paredes. Deus estabelece aliança com Davi a partir do seu poder, glória e misericórdia. Em Lucas, novamente Deus faz uso do comum da vida para se manifestar e revela que vai habitar no ventre de uma jovem para visitar a humanidade sob forma humana. Deus desce da sua glória para estar ainda mais próximo do ser humano. Deus usa o incomum para comunicar sua glória e ter comunhão com a humanidade, revelando seu plano de salvação. Na proximidade de mais um Natal, a tríade de textos bíblicos quer nos revelar a glória de Deus se manifestando no comum para tornar nossa vida repleta de significado. A contagem regressiva já começou, você está preparado ou preparada?

2 Exegese: mistério revelado? A redação de cartas na antiguidade geralmente se orientava por uma divisão em três partes: introdução epistolar (apresentar quem escreve, a quem se destina e ainda uma saudação), corpo epistolar (desenvolvimento do conteúdo), conclusão epistolar (agradecimento aos destinatários e voto de bênção). Nosso trecho bíblico faz parte da conclusão da Carta aos Romanos, em que Paulo faz uso dessa convenção e a incrementa, tornando-a, além de uma conclusão, uma doxologia. Doxologia é uma fórmula litúrgica para louvar a Deus com preces, poesias ou hinos. Essa palavra provém da junção de dois termos gregos: doxa (glória) e logia (palavra). A palavra glória tem o sentido de louvor, exaltação, honra. Paulo apresenta diversas doxologias em suas epístolas (ex.: Gl 1.5; Ef 3.21; Fp 4.20;

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1Tm 1.17), o que nos revela que essa não era uma prática incomum para ele. No entanto, nenhuma doxologia é tão longa e elaborada como a de Romanos. A localização dessa doxologia na Carta aos Romanos não é consensual. Alguns manuscritos a apresentam em 14.23 e outros em 15.33. Isso pode indicar que a doxologia final é um acréscimo ao texto original do capítulo 16. Há também a hipótese de que a epístola original aos romanos terminaria em 15.33 com acréscimo do hino final (16.25-27) sem o texto de 16.1-24, colocando também em dúvida a autoria de Paulo para esses trechos finais. Uma forma de tradução seria: 25 Àquele que tem o poder de vos confirmar segundo o Evangelho que eu anuncio pregando Jesus Cristo – revelação de um mistério envolvido em silêncio desde os séculos eternos, 26 agora, porém, manifestado e, pelos escritos proféticos e por disposição do Deus eterno, dado a conhecer a todos os gentios para levá-los à obediência da fé – 27 a Deus, único e sábio, por Jesus Cristo, a Ele seja dada a glória, pelos séculos dos séculos! Amém. O termo grego para “confirmar” significa “firmar”, “sustentar”. Deus é poderoso para confirmar nossa filiação divina por meio de Cristo e nossa irmandade pela fé: uma irmandade universal! Na tradução de Almeida consta no v. 25 segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo. Essa expressão “meu evangelho” não quer dizer que Paulo tem sua própria versão do evangelho. Ele abre a carta desta forma: Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus (Rm 1.1). Nesse sentido, a tradução segundo o Evangelho que eu anuncio pregando Jesus Cristo expressa melhor a ideia do apóstolo sobre a missão para a qual foi chamado. Além de eterno, Deus é descrito como o “único sábio ou único e sábio”. Esses dois termos caros ao monoteísmo podem ser traduzidos separada (ao Deus único e sábio) ou juntamente (a Deus, o único sábio). Mesmo que o tema da sabedoria divina possa ser encontrado no pensamento grego, aqui sabedoria é aquela manifestada em Cristo. Ela não é um conhecimento proveniente de iluminação interior, mas consiste em uma revelação encarnada. Deus é sábio e por isso estabeleceu um plano apropriado a seu desígnio eterno (o “mistério”) e o executa por meio de Jesus Cristo, mediante a pregação do evangelho. Deus é o único: essa expressão reflete o conceito central da confissão originária de Israel, o chamado shemá Israel: Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor (cf. Dt 6.4). Paulo quer destacar a exclusividade de Deus diante dos muitos deuses em Roma e sua sabedoria suprema. O substantivo mystērion é composto a partir da raiz myō, que significa “ser silencioso”, “fechar a boca”. O sufixo tērion designa tanto o lugar onde se dá a ação quanto a ação em vista de determinado fim. A palavra “mistério” significa algo silenciado em vista de um fim particular e não algo inacessível ou incompreensível. A maior parte da ocorrência da palavra “mistério” aparece no contexto do conhecimento e, em função disso, muitas vezes, num esquema de

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revelação (Rm 16.25-26; 1Co 2.7-9; Ef 3.1-13; Cl 1.26-27). Não estão em foco os mistérios das religiões gregas que somente os iniciados podiam compreender. Os mistérios de Deus só podem tornar-se conhecidos por meio da própria revelação divina e não porque as pessoas sejam suficientemente engenhosas para chegar a tal conhecimento. Nesse sentido, mistério não é um enigma para ser decifrado, é algo sagrado e que foi revelado por Deus em tempo oportuno: a vinda de Cristo. Esse acento teológico de revelação ao termo mistério é ampliado quando percebemos que essa revelação não tem destinatário exclusivo, mas todas as nações do mundo. Toda a humanidade passa a ter acesso à fé, porque o Evangelho é força de Deus (Rm 1.16). O “agora” do v. 25 expressa a ação de Deus que se encarna na história da humanidade para orientá-la em direção a seu alvo. Entre todas as nações (v. 26): desde Abraão, Deus fez a promessa de abençoar todas as nações. Ele começou pela família de Abraão: instrumento da bênção e não alvo único dela. Paulo sabia que a igreja de Roma ficava no centro nevrálgico de um império, que começava a perseguir cristãos. Essa igreja foi fundada por judeus e, mais tarde, eles foram expulsos pelo imperador Cláudio e isso deu ocasião para que mais gentios participassem da igreja. A fórmula “por Jesus Cristo” enfatiza a exaltação de Cristo à direita de Deus como intercessor e mediador, como Paulo o apresentou em Romanos 8.34. Em Romanos 16.25, assim como em Romanos 16.27, Deus vem apresentado em relação com Jesus Cristo, mesmo não sendo qualificado como “Pai de Jesus Cristo”.

3 Meditação: o encantamento no cotidiano O apóstolo Paulo eleva seu olhar para a glória de Deus ao finalizar uma carta tão depurada no discurso teológico. A conclusão da carta não é com frases de impacto do seu redator nem com um desfecho dogmático, mas com uma doxologia! Da mesma forma, o Natal não compreende apenas o conhecimento da história do nascimento do filho de Maria e José, mas a fé na encarnação do Salvador. No comum da gente de Roma se manifesta a extraordinária glória de Deus, chamando pessoas para a fé. O contexto cosmopolita de Roma não era nada favorável para a criação e a manutenção de igrejas e ainda igrejas tão diversas, reunindo judeus e gentios. A glória de Deus manifesta-se também no fato de surgir igrejas em Roma e, por isso, serve de inspiração para olharmos com mais atenção para o colorido da glória de Deus no cinza do concreto de nossas cidades hoje. Assim como o menino Jesus nasceu longe dos palácios, há muita vivência de fé pulsando nas periferias das cidades e nos contextos agrários mais distantes. A doxologia ressalta que o poder de Deus age no comum e os olhos da fé percebem que o comum ganha ares extraordinários no comunitário. O apóstolo preocupava-se com a continuidade da comunidade cristã em Roma. A doxologia não contempla apenas informação. É anúncio! Nesse sentido, é fundamental destacar que Natal não é apenas uma data religiosa ou um feriado oportuno, mas é a rememoração do mistério divino revelado e encarnado, que mudou a história da humanidade para sempre. Rememorar esse mistério é atualizá-lo, permitindo que seu impacto continue transformando vidas! Somos tentados

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a nos perder no comum, na rotina, ainda mais quando se trata de rituais e datas religiosas. É possível que nossa vida do dia a dia, agitada com a preparação para o Natal, seja preenchida com extraordinários significados? A experiência de Maria (Lc 1.26-38) responde com um enfático sim! Ela mostra-nos o que acontece quando o comum torna-se extraordinário! Muitas vezes queremos limitar as dádivas de Deus de acordo com nossos padrões. A caminhada do Advento é o divino irrompendo dentro do mundano. Mesmo que o mundano capriche nos sons, cores e sabores, nada se iguala ao retumbante milagre da encarnação. O 4º Domingo de Advento torna-se um prelúdio da sinfonia da encarnação, um “esquenta” da festa da divina presença, um prólogo da história de amor de Deus pela humanidade. Estamos acostumados a analisar, perscrutar teológica e cientificamente as verdades bíblicas. E mesmo uma carta tão densa no conteúdo como Romanos, finaliza com adoração e contemplação. No 4º Domingo de Advento vamos desarmar o espírito para que os olhos do coração contemplem a glória de Deus e a mente aceite a simplicidade e a veracidade do amor divino. O anúncio do Natal não é para valer apenas para uma época, mas para a vida inteira, ou seja, uma vida glorificada e que, por isso, glorifica a Deus por meio de si e edifica, pela fé, outras vidas. Uma vez visto, não tem como “desver”, uma vez que sabemos, não há como ficar indiferente. A mensagem de Deus, uma vez revelada, não tem como ser barrada, sufocada ou controlada – se eles se calarem, as próprias pedras clamarão (Lc 19.40). Não seremos mais os mesmos depois de experimentar um Natal doxológico com a glória divina refletida no estudo e vivenciada no dia a dia.

4 Imagens para a prédica: Natal comunitário (comum+unitário) Um jornalista, certa vez, afirmou: “Um fato é como um saco – só fica em pé quando está cheio”. No mundo virtual circulam muitas notícias falsas (fake news) e o Natal nos traz a notícia mais incrível e impactante de todos os tempos: o nascimento do Salvador. No Advento estamos com o saco cheio de esperança ou apenas de “saco cheio”? Preparar dois sacos parecidos com os sacos de presentes do Papai Noel. Deixá-los bem cheios e volumosos. O primeiro, encher com balões e estourá-los nomeando coisas do Natal: presentes, enfeites, comidas, bebidas, festas, amigo secreto, feriado etc. Tudo isso passa até o final do Natal e o que permanece é o saco vazio – a vida vazia. No segundo saco colocar uma caixa/ embalagem grande o suficiente para preencher o saco e dentro dessa embalagem uma cruz para destacar que o maior presente do Natal é o Filho de Deus, Jesus Cristo, o mistério do amor de Deus revelado ao mundo. Esse presente permanece e precisa ser lembrado todos os dias. Outra simbologia impactante seria com o laço vermelho da Coroa de Advento. Nos textos bíblicos previstos é destacada a aliança de amor que Deus faz conosco, cujo auge é Cristo. Cada pessoa vai ganhar dois pequenos laços vermelhos: o primeiro é para ela se lembrar de fazer uma ação por dia que glorifique a Deus até o Natal, e o segundo é para presentear alguém junto com um gesto de solidariedade. Lembrar a importância de, a partir deste domingo, estreitar, intensificar, reatar laços afetivos. Depois de refletir sobre o significado dessa doxolo-

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gia e termos sido privados de cultivar tantos laços afetivos por causa da pandemia do coronavírus, como quero vivenciar a espera para o Natal? Chama a atenção o jogo de palavras que Paulo usa: séculos eternos/agora, envolvido em silêncio/dado a conhecer e os sinônimos revelado, manifestado e conhecido. Nesse sentido, vale explorar imagens de contraste, como: do silêncio ao anúncio, das trevas à luz, do mistério à revelação, da gestação ao nascimento, da inércia ao movimento, do Advento ao Natal (o “pulo de alegria” do 4° Domingo de Advento para o Natal, afinal serão somente quatro dias), do afastamento à comunhão (lembrar o isolamento social devido à pandemia da Covid-19. Espero que nessa época esteja liberada toda forma de contato físico, pois enquanto escrevo sigo a orientação #fiqueemcasa).

5 Subsídios litúrgicos: extraordinariamente comum Destacar a dimensão de mistério do Advento e a expectativa biblicamente adequada para a espera. A Coroa de Advento é pedagógica nesse sentido. O acendimento da quarta vela da coroa pode ser realizado no momento do Glória, fazendo alusão ao canto de glória dos anjos conforme Lucas. Se é costume deixar esse glória para a véspera de Natal, o acendimento das velas pode ser realizado durante a leitura de Romanos: a cada versículo, acender uma vela, e depois do “amém” do v. 27, cantar aleluia e então acender a última vela. O desafio é fazer da doxologia não apenas um momento da liturgia, mas o fio vermelho que perpassa todo o culto. Da ortodoxia à doxologia: a doutrina que não apenas convence a mente, mas comove o coração. O profundo conhecimento da palavra que leva ao intenso louvor e ao desprendido serviço em amor. Paráfrase da doxologia de Paulo: Ouve, ouve, comunidade! Hoje é a oportunidade de ouvir a história da salvação, quando Deus enviou seu Filho para a humanidade! Vem chegando o Natal, mas com ele tanta hiperatividade: vamos atentar ao que é mais importante: Deus veio a nós e é atuante! Glória a Deus que nos socorre, glória ao único e sábio Deus que nos unifica com ele: ele que é comunhão, nos chama para viver em mutirão! Logo é Natal, não nos esqueçamos do principal! Natal extraordinário é lembrar que no comum Deus se manifestou, que o mistério foi revelado e como suas filhas e seus filhos fomos consagradas e consagrados!

Bibliografia LEENHARDT, Franz J. Epístola aos Romanos – Comentário Exegético. São Paulo: ASTE, 1969. REYNIER, Chantal. Para ler a Carta aos Romanos. São Paulo: Loyola, 2015.

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PRÉDICA: LUCAS 2.1-7

NOITE  24 DEZ 2020 DE NATAL

ISAÍAS 11.1-9 ROMANOS 1.1-7

Vitor Hugo Schell

Esperança para além das circunstâncias

1 Introdução O texto de Isaías 11.1-9 sucede aos relatos do juízo do Senhor sobre Israel por causa de sua insistência na impiedade. O Senhor levanta povos inimigos e os conduz como instrumentos desse juízo. Insistente e solenemente a palavra do próprio Senhor é repetida: [...] Apesar disso tudo, a ira divina não se desviou; sua mão continua erguida (cf. Is 9.12; 9.21; 10.4). O texto deixa claro que o Senhor não está alheio ao sofrimento do seu povo e que seus opressores não passarão impunes. O texto de Isaías 11.1-9 encontra-se logo após a palavra de juízo de Deus contra a Assíria, que nem mesmo percebe estar sendo um instrumento do juízo de Deus. Para o Senhor, os assírios são a vara do seu furor, em cujas mãos está a vara de sua ira (cf. 10.5). Ao terminar sua obra contra o monte Sião e contra Jerusalém, o Senhor também castigaria o rei da Assíria (cf. 10.12). A imagem da floresta incendiada e arruinada perpassa esses capítulos (veja Is 9.14,18; Is 10.17-19), trazendo a imagem da devastação que resulta do juízo de Deus. A salvação prometida por Deus, vinda do meio de um remanescente de Israel (veja Is 10.20ss) é ilustrada adiante por meio da imagem de uma floresta arrasada (veja Is 10.33-34), no meio da qual esse novo ramo, esse broto surge do tronco de Jessé (cf. 11.1). A promessa é de esperança, de algo novo, pois sobre esse “broto” repousará o Espírito do Senhor, dando-lhe sabedoria e entendimento, conselho e poder, conhecimento e temor do Senhor (cf. v. 2). As características do seu reinado são a justiça, a retidão e a fidelidade, em contraste a tudo o que é dito sobre as lideranças tanto dos povos em geral, quanto do próprio Israel (compare, p. ex., Is 9.14-16). O texto de Isaías lança o olhar para além de qualquer possibilidade imaginável sobre a terra, que se encherá do conhecimento do SENHOR como as águas cobrem o mar (v. 9). Na nova realidade de justiça trazida pelo Senhor reinará a paz. Diante do leitor se coloca agora a imagem do paraíso, do santo monte de Deus, onde crianças brincam com animais hoje selvagens e perigosos e onde ninguém fará nenhum mal, nem destruirá coisa alguma [...] (v. 9). O apóstolo Paulo, em Romanos 1.1-7, fala claramente da concretização da promessa, sobre esse renovo do Senhor, o qual foi prometido por ele de antemão por meio dos seus profetas nas Escrituras Sagradas [...], que, como homem, era descendente de Davi [...] declarado Filho de Deus com poder, pela sua ressurreição dentre os mortos: Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 1.2-4). A comunidade de Roma, a quem Paulo remete sua carta, é incluída no propósito salvífico do

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Senhor de chamar dentre todas as nações um povo pela obediência que vem pela fé. Também os romanos são chamados para pertencerem a Jesus Cristo (v. 6), em quem a graça e a paz da parte de Deus (v. 7) se encontram definitivamente. Em Lucas 2.1-7, no texto da prédica, o evangelista relata a maneira como se concretizou o plano de salvação de Deus, de antemão anunciado pelo profeta Isaías e posteriormente também pelo apóstolo Paulo.

2 Exegese O evangelista Lucas, como nenhum outro, sincroniza os eventos realizados por Deus com os acontecimentos da história mundial, assim como experimentados pelos contemporâneos de Jesus. Lucas enfatiza o governo de Deus sobre o mundo todo e o cumprimento de seus desígnios. Os eventos mundiais relacionados apontam tanto para a realidade da encarnação de Deus em Jesus Cristo, seu agir em tempo e local específicos, como também parecem servir a Lucas como pano de fundo, como cenário, para o novo que acontece em Jesus e é decisivo para a história mundial. O cenário, nesse sentido, não é irrelevante. A “história que realmente importa” acontece justamente nesse cenário, nesse contexto trágico para o povo. A revelação do salvador acontece em tempo e espaço específicos. O provinciano povo siro-palestinense, que na época voltava a valorizar suas origens e dessa forma também buscava o fortalecimento de sua identidade como descendente das doze tribos de Israel, penava sob os mandos e desmandos dos romanos, que se faziam representar em suas províncias por aliados políticos. César Augusto, que comandou o Império Romano de 27 a.C. a 14 d.C., havia decretado um recenseamento em todo o seu território de domínio. Lucas faz questão de informar seus leitores de que se tratava do primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria (cf. v. 2). Não caberia aqui a discussão a respeito das contradições entre as informações sobre o recenseamento no tempo de Quirino, assim como trazidas por Lucas e por documentos extrabíblicos. Mais frutífera se mostra, nesse sentido, a abordagem da referida problemática à luz da ampla discussão a respeito da historiografia na Antiguidade, no contexto judaico-helenista e, a partir disso, também à luz das intenções teológicas de Lucas. Claro que o recenseamento tinha como intenção principal o controle da população pagante de impostos, recolhidos per capita, além do que já era recolhido normalmente nas coletorias espalhadas pela região de tráfego e que se tornavam em meios de corrupção e exploração. Lucas retrata de forma muito plástica esse contexto de corrupção e exploração na história do publicano Zaqueu, por exemplo, no capítulo 19. Israelitas corruptos associavam-se ao império na exploração dos mais necessitados. O culto no templo, associado à politicagem das trocas de favores por poder e riqueza, formava uma engrenagem de injustiça que também levava, logicamente, para longe da paz. O cenário é de confusão e desolação. A esperança era depositada nos mais diversos movimentos de libertação, dos mais sectários, alienados, piedosos e fanáticos aos mais politizados, revolucionários. A ordem imperial é clara e todos devem retornar às suas cidades de origem para realizar o alistamento. José, tendo possivelmente emigrado do sul, da Judeia,

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a Nazaré da Galileia, ao norte, em busca de novas oportunidades no exercício de seu ofício de carpinteiro, retornou a Belém, cidade de Davi, porque pertencia à casa e à linhagem de Davi (cf. v. 4. Compare 1Sm 16.1 e Mq 5.2). Maria, que estava prometida a José em casamento e estava grávida, também se submete à viagem (cf. v. 5; veja também Lc 1.27). Papiros atestam a realização de um censo no mesmo período também no Egito, os quais apontam para a necessidade de cada um registrar-se na sua terra natal juntamente com suas esposas (cf. GRUND­ MANN, 1969, p. 77). Outro fator a ser levado em conta em relação ao drama vivido pelo casal era a proximidade da hora do nascimento, assim como os falatórios maldosos em Nazaré a respeito da situação de Maria. Como aponta Morris, “[d]evemos refletir, talvez, que foi a combinação de um decreto pelo imperador na Roma distante e das línguas mexeriqueiras de Nazaré que trouxeram Maria a Belém exatamente no tempo certo para cumprir a profecia acerca do local de nascimento de Cristo (Mq 5:2)” (MORRIS, 1983, p. 81). O casal vive na expectativa do primeiro filho, que é aguardado pelo casal como resultado do agir salvador de Deus em meio ao seu povo. Veja que o drama de José frente à gravidez de Maria nos é relatado somente em Mateus 1.18ss. Lucas faz questão de ressaltar o estranhamento, mas sobretudo a alegria de Maria frente à revelação dos planos do Senhor que nela se cumprem (veja Lc 1.29ss e Lc 1.46-55. Ao cântico de Maria segue-se o relato de Lucas a respeito do nascimento de João Batista, o cântico de louvor de seu pai, Zacarias, e a menção à atuação pública do Batista em Israel, que antecede diretamente Lc 2.1-7). O casal certamente vive um drama pessoal marcado pela esperança confiante nas promessas do Senhor, por um lado, e pela realidade caótica que aponta para a direção oposta. Enquanto estavam lá, chega o tempo do bebê nascer (cf. v. 6) e o que lhe resta naquela situação é ser enrolado em panos e ser deitado em uma manjedoura porque não havia lugar para eles na hospedaria (cf. v. 7). O relato de Lucas segue apontando para o anúncio do nascimento de Jesus aos pastores por um anjo do Senhor. Não são os “pastores oficiais de Israel” (compare Ez 34) que recebem a notícia, mas os simples pastores do campo. O que lhes servirá de sinal na busca pelo Salvador, que é Cristo, o Senhor seriam justamente os panos, com os quais o bebê estaria envolto, e a manjedoura, onde estaria deitado (cf. v. 11 e 12). O relato não abre espaço para fantasias ou para tendências docéticas.

3 Meditação A complexa realidade enfrentada por José, Maria e pelo recém-nascido Jesus é pintada por Lucas de forma muito viva. Frente ao cenário dos decretos oficiais, de manifestações de poder, de ações de controle e exploração governamentais, de rebeliões populares e falsas promessas de paz, estão Maria e José em seu dilema pessoal. Maria, José e Jesus são invisíveis aos poderosos e precisam fazer o que fora ordenado pelo imperador. Nesse sentido, Jesus nasce sob a lei dos judeus e sob a lei dos romanos (compare Gl 4.4). Na sua bagagem não se encontram nem os punhais dos rebeldes zelosos que se afiam contra o império dominador nem o ouro que move o poder em Jerusalém, seu rei e seus sacerdotes. Jesus

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nasce em uma época muito difícil, de extrema polarização, de soluções ofertadas pelos mais diferentes grupos, de confusão política e religiosa. Política e religião misturavam-se e confundiam no Templo, no culto oficial, mas também na cabeça dos guerrilheiros zelosos, que aguardavam a vinda do rei, do profeta, do Messias que libertaria o povo de Israel do seu jugo de escravidão (compare, p. ex., Is 10.27). As expectativas em relação ao libertador, ao Messias, eram muitas e se expressavam das mais diferentes formas. Mas justamente enquanto o mundo se agitava sob o comando de César Augusto, que para uns era considerado um deus e para outros a figura do próprio diabo, os desígnios de Deus vão acontecendo, assim como deveria ser. De Nazaré, José e Maria se dirigem para a assim conhecida cidade de Davi, Belém, pois ali deveria nascer o Messias (veja Mt 2.5-6). Maria e José são ignorados pelos poderosos de Israel e do império, são mal falados, provavelmente, pela vizinhança de Nazaré, mas estão no centro da atenção do Senhor dos Exércitos, do Deus de toda a terra. Naquela criança está se cumprindo a promessa de justiça e paz, outrora anunciada pelos profetas. O Senhor Deus está atento. Juízo e salvação estão acontecendo! O texto de Isaías 11.1-9 registra a promessa feita de que em meio ao remanescente de Israel, do renovo, do broto novo em meio à terra arrasada, o próprio Senhor Deus agiria, se faria presente, trazendo juízo, justiça e paz. Em meio ao caos, à opressão e confusão, o próprio Deus se faz presente. Em Jesus de Nazaré, nascido não por acaso em Belém, utilizando-se da ideia trazida pelo evangelista João, o projeto de Deus, a palavra de Deus, a vontade de Deus está presente em carne e osso (cf. Jo 1.14). O próprio Deus se faz presente, tendo enviado seu próprio Filho. O Senhor não envia mais uma ideia, nem mais um profeta apenas. Por outro lado, o enviado não é mais um entre os guerrilheiros que juntam ao redor de si militantes que agem por imposição de força ou poder. Isso, inclusive, eles deveriam ter aprendido já a partir das palavras proféticas, como aquelas uma vez dirigidas a Zorobabel: [...] Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos (Zc 4.6). Mas entre os discípulos de Jesus percebe-se no desenrolar da história a insistência nesse tipo de metodologia reprovável de acabar com os opositores. Em certo momento da caminhada, “os espirituais” Tiago e João querem, por exemplo, fazer cair fogo do céu para acabar com os opositores samaritanos (veja Lc 9.51ss) e ainda no fim da trajetória de Jesus se mostra o pensamento da conquista pelo uso da espada (veja Lc 22.49ss). Jesus pensa de outra forma e age de outra forma. Isso precisa ficar claro! Tudo acontece por meio do seu Espírito, que não é de dominação e imposição, mas de amor, de serviço. Era para esse serviço em amor que seus discípulos estavam sendo chamados e é para esse pensamento e atitude que seus discípulos e discípulas ainda hoje são chamados (leia Fp 2.5-11). É a partir disso que sinais do reino de Deus poderão acontecer, se tornarão reais já agora, enquanto a caminhada continua em direção à justiça e a partir dela à paz completa, perfeita, eterna. Assim como o próprio Deus está presente em Jesus em carne e osso, suas discípulas e seus discípulos são chamados a passos concretos, a atitudes concretas para a justiça e paz enquanto caminham atrás do próprio Jesus, o Cristo, nascido e crucificado em favor de todas as pessoas, em tempo e local específicos, conforme o plano de Deus, sem se deixar levar por outras ideias

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ou falsificações messiânicas. Queremos sinais que apontem para essa salvação maravilhosa, queremos “ver a coisa acontecer” e buscamos esses sinais que para nós apontem para algo realmente divino, espetacular, que traga a certeza e nos inspire confiança. É interessante que os sinais apontados pelos anjos aos pastores são os “panos e a manjedoura”. A notícia é espetacular e aquela noite foi, de fato, maravilhosa. Mas quando o anjo do Senhor aparece aos pastores, eles ficam aterrorizados de medo (Lc 2.9). A notícia, porém, é de esperança e de grande alegria (cf. Lc 2.10). A esperança e a alegria não estão no Templo nem na casa do rei Herodes, não vem de outro lugar senão de onde se encontra o próprio Jesus Cristo. Que aquele menino Jesus, envolto em panos e numa manjedoura, era de fato o Cristo, somente poderia ser visto, entendido, crido a partir dos olhos da fé, somente poderia ser presenteado pelo próprio Deus. Jesus de Nazaré, nascido em Belém e morto na cruz, em Jerusalém, é o Cristo! Essa era a confissão básica dos primeiros cristãos e a confissão de fé a ser feita ainda hoje em palavras e atitudes. Que aquele menino, carne e osso, enrolado em panos e na manjedoura era o Cristo permanece ainda hoje “escândalo e loucura” (compare 1Co 1.21-25). Caso soubessem quem de fato estava para nascer, teriam encontrado um lugar melhor para o menino e seus pais. Lá estavam o emigrante José e sua esposa Maria que se colocaram a caminho por causa do recenseamento ordenado e nisso não havia, a princípio, nada de especial. O fato é que não havia lugar para eles. A concretude dessa “falta de lugar para eles” é gerada pela escuridão dos olhos da fé que não podem enxergar naquele menino o Salvador. A fé, ou a falta de fé no menino, de que ali estava, de fato, o salvador envolto em panos numa manjedoura, molda a atitude frente à realidade daquele momento. O lugar concreto que damos a ele nas coisas ordinárias do dia a dia também hoje é reflexo da nossa convicção de fé ou de nossa incredulidade. Que o próprio Senhor, por meio do seu Espírito nos conduza à confiança no Salvador que nasceu em Belém e, a partir dele mesmo, a passos concretos de fé em direção ao seu reino de justiça e paz. Amém.

4 Imagens para a prédica A prédica elucida a história bíblica narrada em Lucas 2.1-7, de forma que as conexões com a realidade de desesperança, exploração, sofrimento e expectativa vivenciada em nosso país e no mundo se tornam evidentes. Imagens que expressem a confusão política e religiosa de nossos tempos poderão ser utilizadas. O foco, porém, deveria permanecer na importância do momento único vivido em Belém, da Judeia, no emigrante José e sua esposa Maria e no nascimento de Jesus Cristo, o Salvador para além de todos os tipos de expectativas messiânicas atestadas em seu tempo e também daquelas tão presentes em nosso tempo. A mensagem é de alegria, esperança, salvação! O foco também deve estar na confissão de fé em Jesus de Nazaré como Cristo de Deus e na vivência concreta na perspectiva de seu reino de justiça e paz.

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5 Subsídios litúrgicos As velas são subsídios que simplesmente fazem parte desta data especial do calendário da igreja e podem ser utilizadas das mais variadas formas para sublinhar os elementos trazidos na pregação da palavra. Os hinos tradicionais de Natal, que recontam a história vivida em Belém e demonstram a singularidade da pessoa de Jesus Cristo, sua obra salvadora e a escuridão das estruturas do mundo sem Deus, podem ser utilizados antes e depois do momento da prédica, para a moldagem da liturgia.

Bibliografia GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. Nachdruck der zweiten, neubearbeiteten Auflage. In: FASCHER, Prof. D. Erich (Hrg.). Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1969. MORRIS, Leon L. Lucas. Introdução e Comentário. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Mundo Cristão; Vida Nova, 1983. (Série Cultura Bíblica).

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PRÉDICA: LUCAS 2.8-20

DIA DE NATAL

ISAÍAS 52.7-10 HEBREUS 1.1-4 (5-12)

25 DEZ 2020

Flávio Schmitt

1 Introdução Os textos bíblicos indicados para a celebração de Natal no ano de 2020 falam da revelação de Deus. Como nos diz o texto de Hebreus, havendo Deus falado, em várias ocasiões e de muitas formas (Hb 1.1), agora chegou a hora dos mensageiros anunciarem a boa notícia de paz e salvação. Deus se revela em seu filho Jesus. Dois aspectos chamam atenção no testemunho da revelação, a saber: Jesus nasce à noite e a revelação é confiada a pessoas humildes. Depois de um ano atípico para a humanidade, chegou a hora de fazer memória do que Deus fez por nós, seu povo, sua comunidade. Especialmente em tempos difíceis, Deus manifesta sua presença entre nós através de mensageiros. Eles nos trazem notícias de paz e salvação, que podem transformar nossa tristeza em alegria. Na tradição da Igreja Ocidental, o Natal tornou-se a data mais comemorada do calendário eclesiástico. Milhares de pessoas retornam ao convívio da comunidade por ocasião do Natal. Não é preciso dizer aqui o que o Natal representa para as comunidades cristãs de nosso tempo. Ainda assim, este Natal será ainda mais especial em vista do que foi o ano de 2020. Os textos indicados para leitura no Dia de Natal nos remetem à promessa e ao cumprimento. No texto de Isaías 52.7-10 é anunciada a chegada da hora. Pés formosos estão a anunciar boas novas de paz. Já no início do capítulo há um convite para a festa. É hora da preparação. Nas palavras do profeta, Natal é a afirmação de que Deus reina! (v. 7). O texto de Hebreus 1.1-4 (5-12) apresenta Jesus como o centro da história, como a definitiva palavra reveladora de Deus e seu papel na ação salvífica. O livro começa lembrando que Deus falou ontem e que fala também hoje. A diferença é que hoje ele não nos fala por intermediários, mas por meio de seu próprio Filho. O texto indicado para a pregação de Natal é Lucas 2.8-20. Talvez seja esse texto de Lucas uma das perícopes que mais tem recebido a atenção ao longo das 45 edições de Proclamar Libertação (cf. PL 44, 2019, p. 373). Ainda assim, há aspectos do texto a serem destacados.

2 O texto Em geral, o texto de Lucas 2.1-20 é considerado uma unidade. Essa unidade apresenta três subdivisões, a saber: 1-7 (o censo e o nascimento), 8-16 (o

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anúncio aos pastores) e 17-20 (testemunho dos pastores). Dessas três partes, interessam especialmente as duas últimas. Depois de falar do decreto de César Augusto convocando a população do Império Romano para um recenseamento, o texto de Lucas volta sua atenção para os pastores. Pastores são os personagens que começam (v. 8) e terminam (v. 20) nosso texto. V. 8-16 – A cena do anúncio da boa-nova aos pastores e o testemunho dos mesmos nos levam até os arredores de Belém. Belém é uma localidade onde a prática do pastoreio de ovelhas e cabritos remonta aos tempos abraâmicos. É ali, na cidade de Davi, como havia sido anunciado pelo profeta (Mq 5.2), onde se encontram os pastores a cuidar de seus rebanhos, que nasce o Salvador. Pela narrativa do texto, os pastores não se encontram em Belém. Estão nos campos. Possivelmente nas proximidades de Belém. Somente depois da aparição do anjo é que decidem ir até Belém. Anúncio e confirmação do nascimento ocorrem em locais distintos. Duas observações chamam atenção na caracterização dos pastores. Primeiro, que eram trabalhadores. Como cuidadores de ovelhas, eram discriminados pelos rabinos. Pelo seu estilo de vida, não participam das atividades religiosas. Vivem uma situação de pobreza e marginalidade. Além disso, tinham a fama de serem trapaceiros. Segundo Champlin (1982, p. 28), fontes judaicas dão conta que as ovelhas criadas nos campos que circundavam Belém estavam reservadas para o sacrifício no templo. Neste caso, é possível que os pastores de Belém possam ter sido pessoas especialmente escolhidas para essa tarefa, com vistas à criação de ovelhas para a adoração no templo. Justamente esses pastores, cuidadores de rebanhos, tão acostumados com o nascimento de ovelhas, são os privilegiados presentes no nascimento do Cordeiro de Deus. A presença do anjo (v. 9) remete à crença popular de que a visão de Deus ou de algum ser celestial seria capaz de provocar a morte instantânea do observador. Nesse sentido, a presença do personagem anjo explica o temor dos pastores. Contudo, essa experiência dos pastores também remete à manifestação da presença de Deus, seja na sarça ardente (Êx 3.14), numa nuvem protetora (Êx 13.21) ou por meio de algum intermediário (1Rs 8.10s; Is 6.1-3). De qualquer forma, o que no passado havia sido privilégio de patriarcas e sacerdotes, agora “se torna experiência de humildes pastores” (CHAMPLIN, 1982, p. 28). Com a fala do anjo, no versículo seguinte, Lucas expressa a proclamação universal das “boas novas” do evangelho. Não se trata de uma mensagem destinada apenas para judeus, mas para todo povo e para o povo todo. Para os judeus, a proclamação de uma boa nova que traria “grande alegria”, não estava relacionada com a vinda de um ser divino, mas humano. Na compreensão dos judeus, o Messias seria um ser humano enviado por Deus. Porém Lucas anuncia que o Messias é o Senhor. A combinação única no Novo Testamento das palavras gregas Christos e Kyrios é intencional por parte de Lucas.

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Salvador (Sōtēr), Cristo (Christos) e Senhor (Kyrios) apontam para títulos cristológicos. Os termos usados indicam que também aqui Lucas quer comparar o menino deitado na manjedoura com o imperador Augusto. Salvador também é um termo usado no culto ao imperador. Aliás, César Augusto era considerado filho de deus, o salvador prometido e o grande pacificador das nações; com o seu nascimento teria iniciado uma nova era (KILPP, 1995, p. 44).

É no contexto de precariedade, desconfiança e escuridão que o milagre é anunciado. Como bem observou Nelson Kilpp em seu comentário (KILPP, 1995, p. 44), o anúncio do anjo aos pastores ocupa o maior espaço do texto. E o anjo fala do menino. Não se trata de um menino qualquer, como tantos outros que possam ter nascido em condições semelhantes. Este menino, cujo nascimento é anunciado aos pastores em primeira mão, necessita mais do que de olhos para ser discernido. O extraordinário na criança da estrebaria que só os olhos da fé conseguem captar é expresso nas palavras do anjo: “Hoje vos nasceu na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor”.

O anjo anuncia um grande paradoxo. Por um lado, as palavras Salvador, Cristo e Senhor. De outro, uma criança, envolta em faixas e deitada numa manjedoura. Tudo parece impossível e inacreditável. Mas este é o sinal: uma criança. O ambiente e as condições definitivamente não rimam com a majestade de quem é anunciado. Aqui Deus não apenas se revela, mas se revela de forma totalmente surpreendente. Ele se torna Emanuel. A humildade de Jesus apenas prenuncia a maneira de Jesus viver sua vida. O anjo não está só. Com ele há uma grande multidão de soldados celestiais (v. 13). O anúncio dos anjos deve ser entendido como sendo a paz conferida às pessoas a quem Deus agrada. “É a própria mensagem do Evangelho que Deus traz paz a todos os homens, porque todos são objetos do ‘querer bem’ dele” (CHAMPLIN, 1982, p. 30). O que Lucas procura testemunhar é que a tão badalada era de paz e segurança (1Ts 5.3) inaugurada por Augusto é nada se comparada com a realidade expressada com o louvor da multidão dos exércitos celestiais: Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens (v. 14). A cena termina com os anjos deixando os pastores sozinhos, ocasião em que decidem conferir a situação. Como sabiam que o nascimento havia ocorrido em Belém? Aqui o texto, de forma subliminar, remete à expectativa messiânica do povo judeu anunciada pelos profetas. A palavra grega traduzida por “acharam” (v.16) dá conta de que houve uma busca por parte dos pastores: Acharam Maria e José... Lucas confere prioridade para Maria, contrariando o que era de se esperar pela cultura da época. A palavra grega traduzida por menino é brefos, recém-nascido. V. 17-20 – A partir do v. 17 começa a ação evangelizadora dos pastores. Depois de confirmar o que lhes havia sido anunciado (eles viram), começam a

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falar a palavra que haviam recebido. E todos que a ouviram dos pastores ficaram admirados (v. 18). Aqui alguns verbos se destacam: ver, falar, ouvir e admirar-se. O v. 19 coloca Maria na cena novamente. Enquanto pastores dão testemunho do que “viram e ouviram”, Maria guarda as palavras em seu coração. “A ação de Maria foi diferente – uma espécie de tranquila reflexão sobre os muitos acontecimentos que se precipitavam em tão curto espaço de tempo” (CHAMPLIN, 1982, p. 31). Por fim, o texto se volta novamente para aqueles que foram os primeiros evangelistas das boas novas do nascimento do Messias. E voltaram os pastores, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, como lhes fora dito (v. 20).

3 Meditação A passagem de Lucas para este dia de Natal nos apresenta algumas possibilidades de abordagem. Destaco três, a saber: o acontecido, a narrativa e a mensagem. Quanto ao acontecido, há toda uma riqueza a ser explorada pela prédica. Uma das confissões de fé mais antigas do Antigo Testamento reza que na origem do povo de Deus se encontram nômades criadores de ovelha como Abraão e Sara (Dt 26.5-9). Como pastores, patriarcas e matriarcas se tornaram nossos pais e nossas mães na fé. São herdeiros da promessa. Abraão e Sara creram e isso lhes foi imputado para justiça. Sim, pastores foram os primeiros a firmar uma aliança com Deus, cujo sinal era a circuncisão. No momento em que Deus abre um novo capítulo na história da salvação de seus filhos e filhas, pastores novamente estão no centro dos acontecimentos. Tal como Abraão, também eles são chamados a sair, a ir, a encontrar o Salvador. O acontecido tem relação direta com as promessas de Deus feitas no passado. Profetas anunciaram, o povo aguardava e finalmente o dia do cumprimento chegou. Diferente de outras datas e celebrações que também são aguardadas, aqui uma nova era de paz e justiça, há muito esperada, começa a acontecer. São muitas as imagens usadas para falar da espera por algo novo, inusitado. Porém dificilmente possa existir uma imagem mais adequada para falar desse tipo de espera do que a de uma mulher grávida, que aguarda pelo nascimento de seu filho ou filha. Ela sabe que é só uma questão de tempo. No caso de Jesus, a história estava grávida do Messias. O povo crente sabia que a hora de Deus fazer justiça era uma questão de tempo. Hoje sabemos que as expectativas em torno da vinda do Messias não se confirmaram. Para quem esperava por um matador que libertaria o povo de Israel da opressão romana, o nascimento de Jesus foi um grande fiasco. Afinal, ele não correspondeu ao roteiro que lhe estava reservado. Ainda assim, foi fiel ao projeto de Deus e de seu reino. A narrativa de Lucas também tem seus destaques. Primeiro, Lucas faz o nascimento de Jesus corresponder aos anúncios proféticos. Belém, como útero do messianismo de Israel, precisava acolher o nascimento de Jesus, não obstante as contradições que lhe são inerentes (não tem lugar, no meio de animais etc.).

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Ao narrar o nascimento de Jesus, Lucas confere destaque especial aos pastores. Eles recebem a notícia do anjo. Em sintonia com aquele que se tornou conhecido como o “evangelho dos pobres”, o destaque aos pastores remete à condição (social, econômica, política) dos mesmos. Nada são, nada têm, nada podem. Como pastores, desempenham uma importante atividade econômica, inclusive religiosa. As necessidades humanas contempladas na criação de ovelhas vão da lã ao sacrifício no templo. Além de ambientar o nascimento e conferir uma função especial aos pastores, a narrativa também reserva um lugar especial para Maria. José parece um ator coadjuvante. Maria, porém, está no centro da narrativa. Ela se destaca não apenas como genitora, mas especialmente pela atitude de meditação e reflexão. “A meditação e a reflexão de Maria levam-na a enxergar na criancinha miserável mais do que uma criancinha miserável, na manjedoura mais do que uma manjedoura, nos panos mais do que simples panos” (MANSK; GAEDE, 2014, p. 36). Também faz parte da perspectiva da narrativa o destaque conferido aos títulos cristológicos. Salvador, Messias e Senhor condensam o cerne da confissão de fé da comunidade primitiva. O recém-nascido da manjedoura é isto mesmo: Salvador, Messias e Senhor. A mensagem de Lucas 2.8-20 confronta-nos com questões centrais do Natal. Natal é antes de mais nada o nascimento de Jesus. Jesus não é ninguém mais e ninguém menos que o Messias. Não o messias matador, mas o Messias que é capaz de dar a sua vida pelas ovelhas. O Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Natal é Deus fazendo morada no meio de nós. É Deus conosco. É palavra que se faz carne. A mensagem de Lucas também nos diz que esse anúncio do nascimento não pode ser confiado aos poderosos. Natal é coisa para gente humilde e humilhada, gente desanimada, mas esperançosa; gente sofrida, mas que não perde a confiança. Para quem está com a vida resolvida, Natal até pode ser um bom feriado, uma oportunidade para conviver com familiares. Contudo, para compreender e viver o que significa o nascimento de Jesus são necessárias outras referências. Essas nos são dadas pelo testemunho dos pastores, pela postura de Maria e pelas palavras dos anjos. Que palavras! Ao falar da mensagem é preciso também considerar que a história do nascimento de Jesus contada por Lucas já não consegue mais sensibilizar as pessoas que a ouvem. Quando muito, crianças ainda ficam encantadas com o “romantismo“ da história. Lucas, porém, nos fala do modo de ser de Deus, do Deus de Jesus. Ele é um Deus que se revela, se dá a conhecer, se torna companheiro e próximo. Esse Deus se revela onde menos se espera, nos lugares que menos combinam com um lugar para Deus, mas onde pessoas se encontram. No seu jeito de ser, Deus vem ao nosso encontro. Ele não somente vem ao nosso encontro, mas nos presenteia com a boa nova. Jesus é a boa nova de Deus. Por fim, Deus faz tudo isso para não nos perder. Ele quer nos salvar. Ele sabe que, longe de seu amparo, bênção e proteção, estaremos ameaçados e machucados.

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A esse modo de ser de Deus somente há uma forma de corresponder. O modo humano de corresponder ao que Deus faz por nós é fazer o que pastores, anjos e Maria fazem no texto.

4 A pregação Para a escolha do caminho a ser seguido na pregação, o texto oferece um leque de oportunidades: personagens, cenários, palavras e o acontecimento em si. Embora possa ser oportuno dar destaque para algum personagem da narrativa (presente ou ausente no texto), convém considerar todos os personagens destacados por Lucas: pastores, anjos, Maria, José e a criança. Também convêm voltar a atenção para os muitos contrastes presentes no texto. Numa reflexão sobre o evangelho, Carlos Mesters e Mercedes Lopes destacam os seguintes: ●  Na escuridão da noite brilhou uma luz (2.8-9). ●  O mundo lá de cima, o céu, parece desabar e envolver nosso mundo cá de baixo (2.13). ●  A grandeza de Deus se manifesta na fraqueza de uma criança (2.7). ●  A glória de Deus se faz presente numa manjedoura de animais (2.16). ●  O medo provocado pela aparição do anjo dá lugar à alegria (2.9-10). ●  Pessoas que vivem marginalizadas são as primeiras convidadas (2.8). ●  Os pastores reconheceram Deus presente numa criança (2.20). O ano de 2020 também se mostra oportuno para conduzir a pregação do Natal. Mais do que nunca, este ano foi alimentado pela espera. Não pela espera de um messias, mas pela espera de uma vacina. Toda essa situação de espera pode servir como pano de fundo para falar do nascimento de Jesus. Esperar faz muita diferença. Assim como no caso da vacina, a espera pela vinda do Messias era algo que se sabia que iria acontecer. Assim como uma vacina pode fazer toda a diferença, mudar toda a rotina, assim o nascimento de Jesus quer nos comprometer com a nova vida. A diferença é que Jesus já nasceu.

5 Subsídios litúrgicos Saudação Glória a Deus nas alturas e paz na terra entre as pessoas a quem ele quer bem. Oração do dia Ó Deus, tu que nos surpreendes com tua vinda ao mundo na criança da manjedoura, dá-nos a disposição dos pastores. O dom de Maria, que olha os fatos com sabedoria, que enxerga além do aparente e percebe que tu ages nas coisas que para nós parecem contraditórias. Vem a nós neste dia de Natal e dá que por meio da tua Palavra possamos enxergar além da nossa própria realidade. Por Jesus, teu Filho, que viveu e experimentou a nossa humanidade e

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que, contigo e o Espírito Santo, vive e reina de eternidade a eternidade. Amém. (MANSK; GAEDE NETO, 2014, p. 41). Oração geral da igreja a) Intercedemos por nossos irmãos e irmãs que encontram dificuldades, falta de sentido de vida, que enfrentam a enfermidade, o desemprego e a dependência. Faz com que a mensagem de Natal se transforme em motivo de esperança e confiança. Que todos possam se sentir guardados em tuas mãos. b) Intercedemos por paz na terra, paz na família, paz entre as gerações, paz na comunidade e na igreja, paz entre os povos para que desse modo o mundo experimente a alegria que transformou a vida triste dos pastores acampados nos arredores de Belém. c) Intercedemos, nosso Deus, por fé no mistério do Natal e por disposição para atitudes, palavras e pensamentos que estejam sempre orientados pelo que Jesus ensinou e praticou. d) Intercedemos pelas pessoas desprezadas, perseguidas e enlutadas em nosso país. Que a paz de Jesus nos motive a conviver como irmãos e irmãs. Que a paz de Jesus nos torne livres para sermos compassivos, solidários com todas as pessoas que sofrem. e) Deus amado, que guiaste os pastores, acompanhaste Maria e José, acompanha também nossas famílias. Conduze-nos pelo caminho do diálogo, pelos trilhos do companheirismo, sempre pronto para o perdão e a reconciliação, para que em nosso lar também possamos sentir o doce gosto da paz querida pelo menino Jesus. Por Jesus Cristo. Amém. (Adaptado de BRAUN, 2008, p. 42.)

Bibliografia BRAUN, Odair. Lucas 2.1-20. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação 33. São Leopoldo: Sinodal, 2008. p. 37-43. CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo: Millenium, 1982. v. 2. KILPP, Nelson. Lucas 2.1-20. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação 21. São Leopoldo: Sinodal, 1995. p. 41-45. MANSK, Erli; GAEDE NETO, Rodolfo. Lucas 2.(1-7) 8-20. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação 39. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2014. p. 36-42.

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1º DOMINGO    APÓS NATAL

PRÉDICA: ISAÍAS 61.10 – 62.3

27 DEZ 2020

LUCAS 2.22-40 GÁLATAS 4.4-7

Norberto da Cunha Garin Edgar Zanini Timm

Importa a dignidade da vida

1 Introdução O tempo é de manifestar a novidade que acaba de ser noticiada e celebrada pelo Natal do menino Jesus: Glória a Deus nas maiores alturas e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem (Lc 2.14). O texto de Lucas sugerido para este domingo remete à visualização da esperança que se manifesta pela presença do menino Jesus como luz para o tempo de trevas vivido pelo povo sob a dominação romana e o império de leis religiosas radicais. Tanto na visão de Simeão quanto na de Ana, os acontecimentos do templo motivavam alegria e representavam um sinal dessa esperança. As palavras de Gálatas apontam para uma nova dimensão desse sentimento: a de herdeiros mediante a graça de Deus. Ambas as leituras apontam para o futuro como um tempo que já chegou, mas que está em constante construção, como o novo ano que se inicia, depois de um longo período de sofrimentos, perdas, dores e tristezas provocados pela pandemia da Covid-19. A moldura histórica do texto de Isaías localizava-se no período denominado pós-exílico, quando os deportados de Judá retornavam para Jerusalém com a finalidade de restaurar um templo sagrado e uma cidade sagrada, completamente destruídos. Nesse cenário aconteceu o encontro entre as famílias que retornaram de múltiplas diásporas, mas principalmente as do exílio babilônico, e as que permaneceram na terra, ou que foram incorporadas por meio de exílios promovidos pelos diferentes soberanos que dominaram a região. Dominação estrangeira e corrupção da classe dirigente local tornaram-se ingredientes destrutivos desse contexto. Economicamente, os persas entendiam mais conveniente repatriar exilados, o que lhes proporcionava menor custo de manutenção. Devastações promovidas por sucessivas invasões, secas, pragas e fomes compunham o quadro de pobreza frequentemente denunciado por textos proféticos da época. Pessoas entristecidas, abatidas, famintas e desabrigadas compunham esse cenário que tinha como causa, em grande parte, os desmandos da classe que dominava durante o retorno. As palavras do profeta, antes, foram as vossas iniquidades que criaram um abismo entre vós e o vosso Deus (Is 59.2a), demarcavam o conflito existente entre uma classe de trabalhadores e uma classe que se beneficiava da produção desses. O texto da prédica compromete-se com a construção de esperanças, baseadas nas promessas de Javé, que apontam para o término da devastação e das

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humilhações que cercaram tanto os deportados para a Babilônia quanto o resto que permaneceu na terra. O acabamento editorial deve ter transcorrido ao redor de 400 a.C. A partir de sua leitura é possível perceber a diferença existente entre o projeto de reconstrução dos retornantes e o projeto do resto que permaneceu, como uma tensão significativa que marcou a convivência desses dois grupos. A maior parte dos retornantes desejava desenvolver a unificação em torno do templo, enquanto a maior parte do resto desejava, com um plano diferente, ampliar as fortalezas da cidade (Is 66.1-3). O tom do texto de Isaías é o da alegria: o povo sofrido não precisava mais aguardar, pois já se encontrava no tempo da libertação, que envolvia justiça e abundância. A perspectiva é de que já era possível perceber o sabor da salvação, mas era necessário avançar em direção à plenitude. Entretanto, era necessário perceber que a reconstrução, seja do templo ou das muralhas da cidade, se constituía numa obra em andamento. Portanto havia esperanças, mas essas precisavam ser construídas. Contudo, deve-se levar em conta que os persas impuseram dificuldades e impostos altos, na medida em que possibilitaram a reorganização cultural e religiosa de Judá, além das dificuldades criadas pela administração interna, que se desviou dos propósitos de Javé (Is 59.3-8).

2 Exegese V. 61.10 – Este versículo representa um hiato entre o 61.9 e o 61.11. O texto aponta para alguns termos-chaves: alegrar-se (śōwś), o que indica para 1 Sa­muel 2.1, repetido pelo evangelista em Lucas 1.46; salvação (yeša‘), satisfação das necessidades fundamentais e de justiça (ṣəḏāqāh), restauração do direito e da equidade. O status mudou: não se tratava da alegria pela realização da salvação (Sl 126) e da justiça, mas da esperança de que isso estivesse próximo. Tratava-se da alma que se alegrava. E era a alegria da fé em Javé, como “meu Deus”. Não é simples determinar a identidade do autor, mas percebe-se que não se tratava do servo de Javé, mas de um arauto, já que perdeu a visão universalista daquele. O Targum (traduções e comentários em aramaico da Bíblia hebraica que datam do Segundo Templo até o início da Idade Média, utilizadas para facilitar o entendimento aos judeus que não falavam o hebraico como língua mãe) atribui a identificação dessa expressão a “Jerusalém”. Ao reportar-se à vestimenta (hilb îšanî), pode ser uma referência sacerdotal (Êx 28.4) em função da metáfora das vestes; essa metáfora também aparece em Isaías 59.17, apropriada e reinterpretada em Efésios 6.17 (uma alusão ao capacete do soldado romano) e em 1 Tessalonicenses 5.8 para indicar as atitudes autênticas de um cristão. Como um noivo veste as melhores roupas para a solenidade especial do casamento, ou como as vestes do sumo sacerdote revestido com todas as suas roupas sacerdotais, assim Jerusalém é adornada com os mantos de salvação e de justiça; o diadema (pə’êr) é uma referência à presença de um rei, parte da identidade de nação. V. 61.11 – Este versículo parece complementar o anterior, pois segue na mesma toada: ressalta a centralidade do templo como elemento de poder diante dos outros povos, mas com uma ênfase distinta, focada no meio rural: o broto (ṣimḥāh) que nasce da terra, a semente (zêrū’eha) que germina no jardim (ima-

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ginário babilônico), as ervas e plantas que parecem mortas durante o inverno (msd) revivem na primavera e retomam seu vigor, apontavam para a possibilidade de nascer como uma nova nação com o retorno dos exilados. Ressaltam-se alguns termos: fará surgir (yaṣmîaḥ): é uma ação de Javé em favor dos retornantes; a justiça (ṣeḏāqāh): trata-se da ação de organização da vida e se reporta ao resto que tinha ficado na terra ao sabor dos bandoleiros (Ne 1.3), mas também apontava para a corrupção da classe dirigente e para os altos impostos cobrados ­(Is 58.6,9); tratava-se de um projeto que servia às lideranças inescrupulosas que se aproveitavam dos mais fracos para explorá-los (Is 56.10-12); ao reportar-se ao louvor (ūṯehillāh), o texto indica a importância da celebração, da festa que alimentava o espírito humano; as nações (haggōwyim): tratava-se de uma expressão deuteronomista do projeto elaborado na Babilônia, que preconizava a restauração pela centralidade do poder ao redor do templo (Is 54.1-6), tanto político quanto religioso e servia para que as outras nações os visualizassem, especialmente os inimigos. O projeto do resto, aquela parcela que permaneceu na terra, era bem distinto, pois não passava pela centralidade do templo, nem pela majestade dos cultos de sacrifício (Is 66.1-3). V. 62.1 – Neste versículo o profeta manifesta o desejo de interceder por Sião e a continuidade do projeto dos retornantes fica explícito. Como o salmista (Sl 126), há uma vontade ardente de viver em Sião, o que sinalizava o projeto de centralização do poder, tanto político quanto religioso. O profeta já está vivendo na realidade da volta, mas sua vontade se projeta para o futuro. Importante destacar algumas expressões: pelo amor (ləma’an), repetida duas vezes – uma referente ao monte, mas que para Judá significava a cidade santa e outra que nominava Jerusalém –, demonstra o compromisso com o projeto; sua justiça (ṣiḏqāh) que se tornasse clara, salvação dela (wîšū’āṯāh) clareasse como uma lâmpada: trata-se da repetição dos temas do final do capítulo 61. A novidade é a intercessão incessante (‘ešqōwṭ), que se ajusta à campanha de reconstrução nacional. Essa insistência na intercessão remete ao Salmo 137.5-6 no estilo de um hino a Jerusalém. De alguma forma foi retomada por Lucas 11.5-8 na parábola do amigo importuno. V. 62.2 – O estabelecimento do projeto dos retornantes manifestaria a glória de Judá. Assim com um rei, uma capital e um Deus, as outras nações reconheceriam sua importância e sua autonomia. Os v. 3-9 elucidam essa pretensão de ser reconhecida novamente como uma nação entre tantas. Trata-se do projeto de restauração da identidade. Algumas expressões significativas: a tua glória (kəḇōwḏêḵ) refere-se ao brilho que a nação teria com a execução do projeto. Trata-se de uma promessa de eternidade. O nome (šêm): apagar o nome de uma nação fazia parte da aniquilação dos impérios, que exerciam, mediante violência, a dominação dos mais fracos. O estabelecimento de um novo nome remetia à divindade (Yahweh) que lhe concederia essa nova identidade (Yəhūḏāh). Desde 61.10 até 62.2, a justiça, a salvação, a vitória, a felicidade, o louvor, a glória aparecem como promessas de Javé. Trata-se de necessidades que estavam mais claras nos v. 4, 8 e 9. Isaías 54.1-6 se reporta a essa promessa de restauração de forma mais abrangente.

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V. 62.3 – Algumas expressões significativas: uma coroa (‘ăṭereṯ): aponta para o projeto dos retornantes baseados na centralização do poder e na restauração da monarquia; um turbante (ūṣənîp̄ ): retoma 61.10, onde se fala do diadema na cabeça do noivo. Jerusalém seria essa coroa que manifestaria o brilho de Javé.

3 Meditação A mensagem do texto da prédica representa a essência do projeto dos retornantes e uma era de boa nova. Ela fala de alegria e de esperança e se ancora em Javé como um Deus capaz de restaurar a grandeza de Judá. O texto em análise, pelo inverso, aponta para o lado conturbado do retorno: havia um tributo caro a ser pago aos persas; havia corrupção nas lideranças locais; havia injustiça e ausência de condições de vida plena. Tudo isso continuava, mesmo depois do retorno de alguns e da tentativa de reconstrução da nação. O profeta aponta para a restauração da justiça e do direito, como diminuição das desigualdades, mas tudo isso deveria passar pela reconstrução do templo e a centralidade do poder. O projeto dos retornantes se ancorava na restauração da monarquia centralizada e na necessidade de ser vislumbrada como uma nação autônoma entre outras nações. Pode-se dizer que no coração dos retornantes havia o desejo de restaurar o idealístico reino de Davi do século nono. O conflito apontado pelo profeta se reporta à distinção entre os dois projetos de reconstrução: o dos retornantes, firmado na centralidade de uma nova monarquia, e o do resto, firmado na necessidade de restaurar a dignidade das pessoas, tanto as que voltaram quanto as que permaneceram na terra. Enquanto a exaltação do projeto dos retornantes estava na aparência de um reino autônomo, a ênfase do projeto do resto estava na restauração da dignidade dos vulnerabilizados pelos frequentes ataques de bandoleiros, pelo sofrimento enfrentado no estrangeiro e pela ausência de condições mínimas de sobrevivência. Sobretudo, tornava-se necessário o estancamento da sangria provocada, por um lado, pelos altos impostos cobrados pelos persas e, por outro, pela crescente corrupção da classe dirigente local, encarregada de liderar o retorno, mas que se locupletava com os recursos disponíveis da nação. O texto menciona o contexto rural como uma tentativa de alcançar as pessoas que permaneceram na terra e tocavam suas vidas sobrevivendo do que plantavam. Fala de sementes, de brotos e de germinação, mas isso também estava vinculado à necessidade de resplendor de Jerusalém perante “todas as nações”. O monte e a cidade santa estariam no centro do projeto que precisava ser evidenciado como uma “tocha acesa”. A justiça desse projeto não se destinava às pessoas, mas à glória de Jerusalém. O resultado da proposta não se destinava a recompor a dignidade das pessoas para que vivessem em paz, sem fome e com saúde, mas para que os outros reis e as outras nações a reconhecessem como uma nação soberana e autônoma, o que, ao que parece, nunca conseguiram realizar. Fazendo uma leitura do texto à luz dos acontecimentos que vivenciamos atualmente em meio à pandemia da Covid-19, que se espalhou pelo mundo e ceifou milhares de vidas, também se estabeleceram projetos divergentes de en-

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frentamento. Por um lado, havia o projeto daqueles que não se importavam com o número de pessoas que viriam a morrer como consequência da enfermidade. Para esses, importava salvar a economia, dizendo que era necessário salvar os empregos, mas cujo projeto poderia esconder a preocupação em não chegar ao final do ano com uma recessão tão acentuada. Era necessário salvar os lucros financeiros, interesse que se colocava acima da perda de um número de idosos, que inclusive poderia diminuir o déficit previdenciário. Por outro lado, havia o projeto daqueles que se importavam com as vidas, fossem de idosos ou de qualquer idade. Uma vida perdida representava uma tragédia que devia ser evitada. Para esses, a economia representa um meio para a existência do ser humano, que uma vez combalida, poderia acender o sentimento de solidariedade, de justiça, de redistribuição dos bens de cada nação e de todas as nações fraternamente. A pandemia deveria ser um estímulo para conter a ganância dos que enriquecem explorando a fraqueza dos que possuem menos poder de pressão política e econômica. Importa a dignidade da vida de todas as pessoas ao invés do lucro de uns poucos. Ao celebrar o Natal do menino Jesus, é necessário recordar que ele se importou com os vulnerabilizados, levantou aos caídos e morreu por todos.

4 Imagens para a prédica Recontar a história da Paraolimpíada de Seattle de 1992, na qual, durante uma corrida de pessoas com Síndrome de Down, um dos competidores cai. Uma menina percebe, retorna e beija o caído. Todos param sua corrida, voltam para onde se encontra o caído, ajudam-no a se levantar e caminham, de mãos dadas e juntos, até o final da competição. Caso haja possibilidade, exibir o vídeo. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=7CCmdJwP1KE>. Muito mais importante do que vencer é chegar juntos, com dignidade.

5 Subsídios litúrgicos Oração participativa D: Deus, que o projeto da nossa igreja seja pautado sempre pela construção da dignidade de todas as pessoas, sem discriminar as mais vulneráveis e sem exaltar as mais talentosas. T: Deus de amor, escuta nossa oração e mobiliza nossos corações para ajudarmos a construir a dignidade de todas as pessoas. D: Senhor, que os recursos da nossa igreja, antes de privilegiar o brilho e o sucesso do templo e da congregação, contribuam para a diminuição das desigualdades entre irmãos e irmãs da nossa comunidade. T: Bendito Deus, ouve nossa prece e nos mobiliza para privilegiar a equidade de recursos dos nossos irmãos e irmãs. D: Senhor, que a justiça, o direito e a dignidade das outras pessoas ultrapassem nossas falas e se concretizem em ações verdadeiras.

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T: Deus de amor, escuta nossa oração e nos encoraja a praticar essas nossas próprias palavras. Amém.

Bibliografia ALTMANN, Lori. Segundo Domingo após o Natal. In: STRECK, Edson Edílio (Coord.). Proclamar Libertação 19. São Leopoldo: Sinodal, 1994. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/conteudo/proclamar-libertacaovolume-xix-1993-1994>. Acesso em: 09 maio 2020. LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Loyola, 2008. PARAOLIMPÍADAS DE SEATTLE. Disponível em: <https://www.youtube. com/watch?v=7CCmdJwP1KE>. Acesso em: 14 maio 2020.

VÉSPERA DE ANO-NOVO PRÉDICA: JOÃO 10.14-16,27-29 ÊXODO 13.20-22 APOCALIPSE 3.7b-8,10-13

Pesquise: Proclamar Libertação, v. 33, p. 50ss www.luteranos.com.br (busca por: João 10.14-16,27-29)

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ANO-NOVO (NOME DE JESUS)

01 JAN 2021

NÚMEROS 6.22-27 LUCAS 2.15-21

Daniel Kreidlow

PRÉDICA: FILIPENSES 2.5-11

O humilhado-exaltado Deus-humano

1 Introdução A temática do “nome de Deus” aparece como fio vermelho nos três textos previstos para o dia do Ano-Novo. Em Filipenses 2.5-11, o nome de Jesus é exaltado e colocado acima de todos os nomes. Jesus é testemunhado como Senhor (Kyrios), nome usado na Septuaginta para traduzir o termo hebraico YHWH (Javé). Já o Evangelho de Lucas 2.15-21 relata a ida dos pastores até a estrebaria onde estava o menino recém-nascido. Logo após, o foco do texto recai sobre a circuncisão e o dar nome ao menino. Ele recebe o nome Jesus, assim como o anjo o anunciara antes mesmo de sua concepção. Por último, o texto de Números 6.22-27 nos traz a bênção aaraônica. Nela o nome de Deus (YHWH) é colocado como marca e bênção sobre todos os filhos de Israel. O texto para prédica, Filipenses 2.5-11, já foi estudado diversas vezes em edições do Proclamar Libertação. O presente estudo pressupõe a leitura das contribuições anteriores.

2 Exegese A Carta aos Filipenses é um dos textos com características mais pessoais escritos pelo apóstolo Paulo. Ele conhecia a comunidade pessoalmente (2.12), o que possibilitava um relacionamento de proximidade com “todos os santos em Cristo Jesus” na cidade de Filipos (1.2). Filipos foi nomeada assim pelo seu fundador, Filipe da Macedônia, e foi a mais importante cidade da parte leste dessa região. A partir de 168 a.C., ela ficou sob senhorio romano, com o status de uma colônia romana (At 16.12), o que possibilitava direitos de governo próprio, dando a seus cidadãos o mesmo direito que os cidadãos em Roma possuíam. A cidade não pode ter sido pequena, pois continha um teatro com capacidade para aproximadamente 50 mil pessoas. Como em toda grande cidade daquela época, também em Filipos podemos encontrar difundido o sincretismo. A adoração de deuses da fertilidade, os cultos de mistérios de tradição egípcia, assim como orgias em honra a Dionísio, o deus do vinho, não deviam ser estranhos entre os filipenses. A comunidade cristã em Filipos foi fundada durante a segunda viagem missionária do apóstolo Paulo e é a primeira comunidade a surgir na Europa

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(At 16.11-40). Ao chegar à cidade, Paulo encontra Lídia, vendedora de púrpura, num lugar de oração próximo a um rio. Lídia e sua casa convertem-se ao ouvir o Evangelho e assim lança-se ali a semente de uma nova comunidade de fé. Além da conversão de Lídia, o livro de Atos relata ainda a conversão de outra pessoa em Filipos, enquanto Paulo e Silas ficaram presos na cidade. Um guarda da prisão onde eles estavam encarcerados também se converte e provavelmente se soma à futura comunidade. Esses encontros com pessoas e ao mesmo tempo a formação da comunidade são interrompidos, pois Paulo e Silas são chamados a sair da cidade após serem libertados. A Filipos eles voltam outra vez somente na sua terceira viagem missionária (At 20.6). Paulo escreve a Carta aos Filipenses enquanto ele provavelmente era prisioneiro em Roma (1.7). Ele a redige por três motivos principais: primeiro, a Carta aos Filipenses mostra-se como uma carta de gratidão, pois Paulo agradece pela ajuda recebida por meio de Epafrodito (4.10-20); segundo, revela-se como uma carta de acompanhamento, pois revela o cuidado que o apóstolo demonstra pela comunidade (2.25) e anuncia o envio de Timóteo como um auxiliador (2.19). Um terceiro motivo da redação da carta poderiam ser as contendas e brigas havidas na comunidade. Paulo exorta os filipenses à união (2.1-4) e pede por mudança de comportamento entre os membros da comunidade (4.1-3). Dentro desse conteúdo exortativo que a carta transmite se encontra também o texto de Filipenses 2.5-11, o famoso hino cristológico. O texto retrata a obra salvífica de Deus em Cristo Jesus, que sendo Deus se torna humano para salvação e redenção daqueles que creem. Deus se humilha resgatando e dignificando o ser humano. Semelhantemente a João 1.1-14, o hino quer testificar a preexistência de Jesus Cristo, uma confissão de fé que possivelmente tem como pano de fundo concepções judaicas antigas, como a da Sabedoria (Pv 8). Segundo a tradição judaica, também a Sabedoria existia antes de tudo (Pv 8.22-31). V. 5 – O vínculo entre o hino cristológico e o texto anterior da carta nós encontramos no v. 5. Toda a exortação parenética encontrada nos versículos 1-4 possuem como fundamento Jesus Cristo, assim como ele é revelado no hino cristológico. Ter o mesmo modo de pensar ou o mesmo sentimento em Cristo mostra a ligação que toda pessoa cristã, segundo Paulo, possui com o Cristo testemunhado nesse trecho da carta. V. 6 – De modo semelhante à Sabedoria do livro de Provérbios, Jesus é testemunhado como sendo igual a Deus (en morphē theou hyparchōn) e, consequentemente, estando com ele desde o início. Em contraposição a Provérbios, Cristo não é designado no hino cristológico como cocriador do mundo existente. Contudo, o entendimento dele como cocriador do que existe encontramos em Paulo e em outros textos do Novo Testamento (1Co 8.6; Cl 1.16, assim como em Jo 1.3 e Hb 1.2). V. 7 – Embora Cristo tivesse a mesma forma (morphē), ou melhor, fosse igual a Deus, ele se humilha deixando essa forma, esvaziando-se (ekenōsen), tornando-se igual a um servo humano. Que um Deus tivesse vindo à terra com aparência de um ser humano não era estranho para nenhuma pessoa que vivia em Filipos. Nas mitologias da época, os deuses Júpiter e Mercúrio assumem,

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por exemplo, a aparência humana e surgem entre homens e mulheres. Mas Paulo estava anunciando algo muito diferente aos filipenses. V. 8 – Isso nos é reforçado agora. Cristo, que era igual a Deus, se humilha e se rebaixa (etapeinōsen heauton), assumindo, como ser humano, a obediência até a morte de cruz. Jesus Cristo não é, assim, um deus vestido de humanidade. Ele é antes disso verdadeiramente ser humano. De deuses que vinham ao mundo os filipenses já haviam ouvido. Mas de um Humano-Deus-Crucificado eles ouvem de Paulo pela primeira vez. Com a expressão “e morte de cruz” (thanatou de ­staurou) o apóstolo introduz ao hino cristológico (que em sua origem não é redação de Paulo) sua teologia da cruz, teologia essa que foi minuciosamente anunciada em outras cartas que ele escreveu (1Co 1.18ss). V. 9 – A morte de cruz de Jesus não é o fim desse ser humano testemunhado no início do hino como sendo igual a Deus. Após sua humilhação, surge sua exaltação e com isso uma drástica mudança. Jesus Cristo recebe um nome acima de todos os nomes. Ele é identificado e dignificado como Kyrios. E, ao mesmo tempo, seu tornar-se humano dignificou a humanidade. Dignidade não está aqui vinculada à força e ao poder, e sim à humildade e fraqueza do Deus-Humano crucificado. V. 10-11 – A exaltação do humano-Deus-crucificado traz consigo a consequência do reconhecimento do senhorio de Jesus Cristo. O humano-Deus-crucificado é Kyrios, nome acima de todos os nomes, nome usado para traduzir a designação hebraica para Deus (YHWH) no Antigo Testamento. Aquele que morre na cruz e no terceiro dia ressuscita é verdadeiramente ser humano e Deus.

3 Meditação O hino cristológico de Filipenses contém uma mensagem social. É notório que na comunidade há divisões e brigas (Fp 2.2,3). E a causa dessas divisões é a busca de alguns membros por status, sendo que uns gostariam de estar em posição privilegiada em relação a outros. Assim, o apóstolo Paulo exorta, por meio do hino, a eliminação da busca por privilégios e status. Em contraposição a isso, no entendimento de Paulo, na comunidade deve haver a busca pela humildade. E é Jesus Cristo a imagem dessa humildade. Sendo igual a Deus, ele possuía o mais alto status possível, mas por amor ao ser humano o abandona. Ao tornar-se igual a nós, Cristo assume a forma de servo, servo que sofre a morte de cruz para que a humanidade pudesse ser salva. Ele assumiu como Humano-Deus o lugar do ser humano condenado e pecador. Por isso foi elevado por Deus e recebeu o nome que está sobre todo nome. Para os cristãos filipenses havia aí um profundo desafio e encorajamento. Primeiro, os que pertenciam à classe dos excluídos e desprezados recebiam a boa notícia de que Deus se colocava ao lado deles. Também eles possuíam valor e dignidade. Segundo, os que pertenciam a uma classe privilegiada, seja por causa do nome que carregavam ou por causa do aspecto financeiro, recebiam a boa notícia e a exortação de que podiam em fé ajudar outras pessoas, colocando-se junto a quem menos era, menos tinha ou sofria por algum motivo. Em prol de uma

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sociedade justa, as pessoas com mais possibilidades deveriam ter a capacidade de assumir uma posição ao lado de quem menos possui. Uma sociedade ou uma comunidade que não tem essa coragem e esse desprendimento está descumprindo a vontade de Deus anunciada no hino cristológico. O hino cristológico contém também uma mensagem ao ser humano como indivíduo. Paulo está preso na cadeia no momento em que escreve a carta e testemunha esse Deus-humano em Cristo. Também Jesus foi condenado e morto pelos judeus e romanos. Quem vê seu Deus sofrer enfrenta e suporta de forma mais leve a própria dor, o próprio sofrimento e a própria morte. Se o próprio Deus assume e enfrenta a morte, Paulo não a percebe como contradição na sua história pessoal. O hino cristológico revela-nos o destino de todo ser humano e a dignidade que há em toda pessoa. Quem era igual a Deus abre mão de sua posição de igualdade com ele ao tornar-se verdadeiramente humano, não assumindo somente uma aparência de ser humano. Assim nos é testemunhado que o humano é criado à imagem de Deus e deve ser visto em sua dignidade como criatura, e isso independente do seu status social. Desta forma, a igreja primitiva anuncia e enfatiza a dignidade humana enquanto testemunha a encarnação do próprio Deus entre nós seres humanos. A mensagem do hino cristológico de Filipenses é uma “contramensagem” às exigências e aos desejos do mundo. Como imperador, César queria ser adorado e reverenciado como sendo Deus. Sêneca escreve na época do apóstolo Paulo para o seu aluno Nero que ele não podia abandonar seu alto status, pois sua posição é que o possuiria como imperador. Independente para onde Nero fosse, seu status o perseguiria. Consequentemente, na figura do imperador se encontram temas como status e divindade. A essa falsa imagem de Deus incorporada pelo imperador na fala de Sêneca o apóstolo Paulo contrapõe a verdadeira imagem de Deus com o hino cristológico em sua Carta aos Filipenses. Deus em Cristo Jesus vincula-se à fraqueza, humildade e humanidade necessitada. Essa imagem de Deus pode ser encontrada no mais insignificante ser humano e não no César poderoso. Por último, o hino cristológico contém uma mensagem sobre Deus em uma linguagem poética-mítica: Jesus, o Cristo, não é nenhum mito. Ele é uma figura histórica concreta. Ele anunciou o reino de Deus e concretiza seu anúncio, ele fala sobre Deus e o encarna em meio à humanidade. Esse Deus que viria com seu reino pode ser reconhecido por todas as pessoas. O hino cristológico dá um nome a esse Deus: Jesus Cristo, o crucificado. Os discípulos de Jesus tinham a esperança de que Deus e seu reino fossem revelados em todo o mundo. Eles ouviam sobre a vinda do reino sempre de novo no ensino de Jesus. Mas a crucificação acabou desestabilizando essa esperança. Porém, com as aparições do crucificado-ressurreto, essa esperança do reino de Deus recebeu concreticidade: o crucificado-ressuscitado Jesus Cristo vive e é Deus. Na mensagem de Paulo, Jesus é SENHOR (Kyrios), pois ele era e é igual a Deus (YHWH). Se Jesus como crucificado estava ao lado dele, então ele pertencia desde sempre a essa esfera e era Deus. Assim, ele possuía também seus atributos e somente por um momento deixou de ser igual a Deus, tornando-se humano e sofrendo morte de cruz. A linguagem poético-mitológica revela uma figura nada

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mítica: Jesus Cristo. Desta forma entrelaçam-se memórias históricas sobre Jesus de Nazaré e dá-se concreticidade a um Deus que era inacessível e mitológico, o Eterno e Criador. O mito e sua linguagem são certamente poesia, mas trazem à luz verdades concretas sobre nós humanos e Deus. Com base no exposto acima, podemos resumir e afirmar que o hino cristológico com sua linguagem mitológica nos exorta não somente à eliminação do status injusto e maléfico em meio à sociedade e à comunidade cristã. Antes de mais nada, ele nos encoraja a acolhermos a transitoriedade e as limitações da nossa vida. O hino ajuda-nos na aceitação da fragilidade da nossa realidade como seres humanos por meio de uma confiança que se baseia no Cristo encarnado. Esse Cristo deixa de ser igual a Deus para se tornar um como nós, valorizando e dignificando o humano. Dessa forma, ele possibilita a todo ser e a qualquer vivência indigna neste mundo novo valor e respeito.

4 Imagens para a prédica Deus dignifica a humanidade por meio de Cristo Jesus ao tornar-se um como nós. O hino cristológico enfatiza que não no poder e na força existem valor supremo e dignidade, mas no colocar-se ao lado daqueles fragilizados, desprezados e prejudicados. Por isso, tomando a temática da dignidade do humano que foi exaltada com Cristo, percebo duas possibilidades de vínculos temáticos para a celebração: a) Dignidade e Ano-Novo: Um novo ano nos possibilita e motiva a um recomeço, o que podemos facilmente vincular com a busca de uma dignidade perdida ou a tentativa da renovação da dignidade. A possibilidade de uma retrospectiva do que se foi com o ano que termina e o fortalecer do renascimento de novos sonhos com o ano que inicia está ligada ao resgate ou afirmação de valor e dignidade próprios. b) Dignidade e o nosso nome: O “nome” que cada pessoa carrega está ligado a valor e dignidade. Nosso nome é algo pelo qual somos reconhecidos e que nos identifica. Desde os tempos do Antigo Testamento, os nomes já tinham relação com o local e o momento do nascimento de uma criança. Em muitos outros casos, tinham relação também com o futuro, como no caso de nomes proféticos. O nome representava o próprio indivíduo, sua personalidade, seu caráter, enfim, o valor que a pessoa iria carregar. Por isso muitas pessoas ainda hoje não querem “sujar” ou “manchar” o nome que possuem ou o nome de sua família. O nome que possuímos e carregamos está ligado à presença ou ausência de dignidade.

Bibliografia LOHMEYER, Ernst. Die Briefe an die Philipper, an die Kolosser und an Philemon. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1953. (KEK 9). MÜLLER, Ulrich B. Der Brief des Paulus an die Philipper. Leipzig: ­Evangelische Verlagsanstalt, 1993. (ThHK 11/1).

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PRÉDICA: JOÃO 1.10-18

2º DOMINGO    APÓS NATAL

JEREMIAS 31.7-14 EFÉSIOS 1.3-14

03 JAN 2021

José Kowalska

O Logos encarnado

1 Introdução A véspera de Natal fica cada vez mais longe e no imaginário popular a festa do Natal já passou. Mas o tempo de Natal se estende até a celebração da Epifania, 06 de janeiro. Por isso estamos no 2º Domingo após Natal. Continuamos a celebrar o mistério da encarnação de Cristo. Utilizando a terminologia de João, o Verbo que se fez carne e habitou entre nós. No lecionário contamos com uma só série de leituras no ciclo trienal. Por um lado, isso mostra que não é comum a celebração deste domingo, já que nem sempre podemos ter um segundo domingo após o Natal. Por outro lado, esse grupo de leituras segue os casos de datas específicas em que a temática do evangelho é seguida pelos outros textos bíblicos. O hino do profeta Jeremias está relacionado com a volta do povo exilado a Israel. Nesse poema Deus mesmo se coloca como aquele que traz uma nova vida, que liberta e permite que a alegria volte aos corações. A Carta aos Efésios retoma e aprofunda a intermediação de Cristo para recebermos a graça divina por meio da predestinação, para ser parte das pessoas que acreditam. Paulo aqui lembra aquilo que recebemos, a consequência da nossa união com Cristo. No presente auxílio serão utilizados os v. 10-18, evitando assim uma possível duplicidade de leitura e pregação em relação ao 3º Domingo de Advento.

2 Exegese Interessante notar que, apesar de estar presente em todas as traduções para o português, o sujeito da primeira frase do v. 10, Palavra/Verbo (Logos), não está presente no texto bíblico. Aqui é feita uma nova referência ao v. 1, onde sim está explicitado o sujeito. Por isso se faz necessária uma breve explicação sobre o conceito Logos. Geralmente o título Logos é considerado como a expressão mais elaborada de toda a cristologia neotestamentária. Em todo o Novo Testamento, ele só é encontrado nos textos da escola joanina: no prólogo do evangelho, no início da primeira epístola e em Apocalipse 19.13. Colocar o título Logos no prefácio do Evangelho de João demonstra que é indispensável relacionar a revelação divina na vida de Jesus e a revelação na preexistência. Uma age na outra.

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A relação do título Logos com Jesus só pode ter-se dado depois da morte de Jesus. É uma reflexão teológica que pressupõe uma experiência litúrgica. Assim sendo, as afirmações referentes ao Logos são fruto de uma reflexão profunda sobre a vida de Jesus, que é a revelação central de Deus. O Logos é Deus em ação. Outro aspecto interessante é a intervenção do Logos na criação. Por meio dele todas as coisas foram criadas, pois ele mesmo já estava junto a Deus no começo. Isso coloca um paralelo inevitável com o início do livro de Gênesis, onde também, no início, Deus criou todas as coisas. Assim, o Logos é também cocriador, ao ser ele o intermediário da criação das coisas. Isso demonstra a divindade do Logos ao ter uma das características de Deus: a criação. É colocada tanta importância no Logos, que sem ele coisa nenhuma foi criada, senão por ele (Jo 1.2-3). Para João, a boa nova é que o Logos já não age em forma espiritual, não é mais uma realidade transcendente. Agora, encontra-se na forma de um homem, o Logos converte-se em humano. Permanecendo o que era, o Logos revelou-se na carne, ou seja, revelou-se realmente na forma humana. A pessoa de Jesus não deve se entender como um segundo Deus, mas como Deus mesmo encarnado. Deus se faz presente e conhecido pelas pessoas na forma humana de Jesus. Porém foi o Logos, Deus em sua revelação escatológica, que se tornou homem, não o próprio Deus em si. E ainda mais, Jesus é o Logos encarnado, não o Logos em si. De forma geral, no texto em estudo, apresenta-se a dialética entre o anterior e o novo. Nos v. 10-12, o Logos veio para aquilo que era seu, ou seja, seu grupo, mas não foi reconhecido. Por isso surge um novo grupo, que, sim, o recebe e reconhece. No v. 13, encontra-se a diferenciação entre aquilo que está relacionado com o humano (carne/sarks) e o divino, aqui sendo usado o caso do nascimento/ paternidade. No v. 17, está colocado de forma contrastante o recebido por Moisés (lei) e por Jesus Cristo (graça e verdade). Por último, no v. 18 é ressaltada a maior diferença em nossa perícope: a proximidade de Jesus como o unigênito de Deus que está no seio do Pai, em contraste com qualquer outra pessoa. Jesus Cristo, o Logos encarnado, é apresentado como tendo uma relação única com Deus Pai. Vemos isso no v. 10, pela intermediação na criação do cosmos, no v. 14, na revelação da natureza divina ao mostrar a sua glória e no v. 18, ao revelar de forma única a Deus. Tudo isso sendo completado com o testemunho de João Batista, relatado no v. 15. Em nove versículos, encontramos quatro vezes o reforço do evangelista para mostrar que aquele a quem ele reconhece como Senhor é totalmente diferente daquilo que se tinha previamente em termos humanos. Em termos estruturais, não podemos encontrar uma estrutura facilmente delineável. Mas pode-se ver que o v. 10a introduz a intermediação na criação do kosmos. Neste caso, kosmos pode ser entendido não somente como a suma da totalidade das coisas criadas (universo, criaturas, toda a humanidade), mas também como cenário de alegrias e sofrimentos. Assim, a encarnação do Logos se faz para dentro do mundo das relações humanas. Daí que, como indica no v. 10b e 11, os seus, a sua “gente” (ou como interpreta NTLH “seu país/seu povo”) não o receberam. Depois, nos v. 12 e 13, segue a novidade com a diferenciação entre biologia e teologia, entre ser filho, ser filha pelo sangue e carne ou ser filho ou filha

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porque se teve fé. Aqui encontramos a chave hermenêutica da fé para o recebimento do Cristo e a sua mensagem de salvação. O v. 15 é colocado como um enxerto nesse hino no início do evangelho. O testemunho de João Batista, que em parte já foi relatado nos v. 6 a 9 e que será depois mais detalhado nos v. 19 a 34, indicam uma relação entre ambos os grupos de seguidores. A indicação direta de João Batista: Este é aquele de quem eu falei, que vem depois de mim, traz o cumprimento da profecia messiânica. O v. 14 traz a provisoriedade do Logos neste kosmos sob sarks. Pois ele não fixa residência, mas morou em tendas (de skēnē). Assim sendo, a presença do Logos “entre nós” estava designada como temporária, mesmo que de muita importância para aquelas pessoas que acreditaram nele (v. 12). Os v. 14 e 16-18 trazem o resultado da presença temporária: ver a sua glória, o recebimento de graça/charis (não como NTLH que indica no v. 14, amor e no v. 16, bênção) e da verdade. Além de tudo, isso completa com a revelação do Pai. Esse resultado é entendido como sendo assumido por aqueles que leem ou cantam esses versículos, pois estão escritos na primeira pessoa do plural (habitou entre nós, vimos a sua glória, todos nós temos recebido). Ponto a ser considerado na reflexão posterior do texto.

3 Meditação Em tempos de fake news e pós-verdades, como receber a notícia da encarnação? Será verdade verdadeira ou simples invenção? Por que é tão importante que Cristo tenha realmente encarnado? Não seria melhor ter simplesmente um Deus que estivesse além de tudo isso que está acontecendo? Por que tinha que ser diferente e único em relação a Jesus Cristo? Era preciso uma linguagem tão complicada para expressar algo tão natural como o nascimento de um bebê? Essas e muitas outras perguntas surgiram ao mergulhar no texto em estudo. Talvez você consiga responder algumas, outras ficarão para a volta gloriosa de Cristo. Mesmo assim, é bom se questionar sobre um dogma que dividiu a igreja em seus inícios e em relação ao qual até um imperador romano teve que intervir. Voltemos para nossa realidade e a necessidade de encarnar também o texto bíblico para a nossa vida. Ainda estamos no tempo do Natal, mas a magia natalina já passou. Estamos na ressaca do réveillon, com todas as esperanças colocadas num 2021 que seja melhor do que o ano anterior, que veio com todos os problemas decorrentes da pandemia. As pessoas têm seus olhos fixos no que virá, não no que foi. Mesmo assim, temos o desafio de pregar sobre a encarnação do Logos. Querendo ou não, Cristo se fez carne e, a cada ano, nos lembramos desse fato tão importante no Natal. Assim, Cristo sempre foi. O problema são as pessoas que não o querem reconhecer como realmente ele é. Não estamos falando daquelas pessoas que não acreditam em Deus. Falamos daquelas pessoas que normalmente lotam as igrejas pelas festas do Natal. Cabe perguntar-lhes o que elas celebraram no último 24 ou 25 de dezembro. Será que realmente fizeram que nem João Batista e testemunharam a vinda de Cristo?

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Pensemos de forma positiva. Pensemos como geralmente o fazemos. Nós estamos do lado certo, fazendo sempre as coisas de forma correta. Assim como também as pessoas que celebraram o último Natal. Todos nós cremos e somos pessoas cristãs com plena consciência de quem é Cristo para nós e da sua relação especial com o Pai. Recebamos a boa notícia, aquilo que Cristo nos transmitiu. Sim, podemos crer porque nascemos da vontade divina e podemos nos orgulhar de sermos chamados filhos e filhas de Deus. Para as pessoas cristãs, a chave para conhecer Deus é Cristo. Eis aqui a nossa especificidade diante do mundo religioso. Para nós, “Cristo” é a senha que nos leva a um novo nível no jogo da vida, chegamos à plenitude. Vemos a Deus por meio da glória de Cristo e descobrimos uma forma diferente de viver. Importante ressaltar que por intermédio de Moisés recebemos a lei; por intermédio de Cristo, graça e verdade. Como pessoas de confissão luterana, encontramos este duo: lei e evangelho. A lei é dura, cortante. O evangelho é acolhedor. Muitas vezes, esquecemos que seguimos Cristo, o Logos encarnado, aquele que mostra a real face de Deus. Pois só ele a viu e a revelou para nós. A revelação de Deus se dá numa pessoa de carne e osso, uma pessoa concreta e real. Não é fake nem pós-verdade. Não é um meme que circula nas redes sociais. Mas traz muita alegria aos corações que a recebem. É uma notícia libertadora reconhecer que Cristo é aquela pessoa que foi tão humana, que somente podia ser divina, e que essa pessoa realmente viveu como nós. Não é preciso deixar nossa humanidade para seguir Deus, ao contrário, em nossa humanidade é onde vivemos como pessoas cristãs. Mais do que um culto de decisão, de saber-se convencido de poder se entregar ao Senhor, estamos hoje diante de uma pregação que mostra tudo aquilo que Deus fez por nós. O início do Evangelho de João traz uma dimensão que muitas vezes é esquecida no mundo ocidental: a face graciosa de Deus. A quem procuramos? A quem pregamos? A quem seguimos?

4 Imagens para a prédica Extrato de A Gaia Ciência, de Friedrich Nietzsche Acaso você ouviu falar daquele louco que acendeu uma lanterna nas claras horas da manhã e correu à praça do mercado gritando incessantemente: “Eu procuro Deus! Eu procuro Deus!”. Como muitos dos que não acreditam em Deus estavam por lá naquele momento, ele provocou muito riso. “Por que, ele se perdeu?”, disse um. “Terá sido esquecido pelo caminho como uma criança?”, disse outro. “Quem sabe está se escondendo?”; “Será que tem medo de nós?”; “Talvez tenha ido viajar?”; “Ou emigrado?”. Assim eles gritavam e riam. O louco pulou no meio deles perfurando-os com seus olhos. “Aonde foi Deus”, gritou ele. “Eu lhes direi. Nós o matamos – vocês e eu. [...] o louco se calou e olhou novamente para os seus ouvintes; e também eles estavam em silêncio, olhando-o com estranheza. Finalmente, ele arremessou

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no chão sua lanterna, que se quebrou e se apagou. “Eu vim cedo demais”, disse ele; “meu tempo ainda não chegou”. A brincadeira “Onde está o bebê?” Outra simbologia que pode ajudar a explicar o texto é aquela brincadeira feita com bebês pequenos, em que as pessoas escondem o rosto atrás das mãos ou de um material e com a face “escondida” perguntam: onde está o bebê? Depois disso afastam as mãos ou aquilo que impedia de ter uma visão direta da criança e diz: achou!

5 Subsídios litúrgicos Credo Niceno-Constantinopolitano Dentro do contexto da encarnação do Logos, consideramos importante a possibilidade do uso, neste culto, do credo que remarca de forma especial, por um lado, a humanidade de Cristo e, por outro, a divindade de Jesus. Seria bom ressaltar na costura as seguintes frases: “Filho unigênito de Deus”, “por quem todas as coisas foram feitas” e “o qual por nós homens [ressaltar aqui a necessidade da linguagem inclusiva] e pela nossa salvação desceu do céu”. Oração de confissão de pecados Deus, perdoa-nos ao não reconhecermos Jesus como aquele que tu enviaste ao mundo para trazer a graça e a verdade. Com nossas atitudes e ações, mostramos que não o recebemos em nossos corações. Permite-nos que nos lembremos de que somos teus filhos e tuas filhas porque renascemos para novidade de vida por meio do Batismo. Dá-nos teu Espírito, para que possamos cada dia testemunhar com palavras e gestos aquele que veio para salvar o mundo, Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.

Bibliografia CULLMANN, Oscar. Cristología del Nuevo Testamento. Buenos Aires: Methopress, 1965. O GRANDE TEATRO DO MUNDO. O louco: De A Gaia Ciência de Friedrich Nietzsche. Chemnitz, 1882 d.C. Disponível em: <http://www.teatrodomundo. com.br/o-louco/>. Acesso em: 31 ago 2020.

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EPIFANIA DE NOSSO SENHOR

06 JAN 2021

PRÉDICA: MATEUS 12.14-21 ISAÍAS 52.7-10 COLOSSENSES 1.24-27

Teobaldo Witter

O amor na comunidade de Jesus e as dores deste mundo

1 Introdução Os últimos dois meses foram de profunda travessia. Mergulhamos, no Ocidente, em um tempo de agitação e trabalhos. As empresas correram para deixar documentação em dia e fazer prestação de contas. As comunidades fizeram suas assembleias para prestar contas, acertar detalhes do novo orçamento e planejar o próximo ano. No movimento social, realizaram-se assembleias e conferências. Todos e todas realizando, de uma ou de outra forma, as comemorações conjuntas para celebrar o convívio no ano que finda. Conclui-se o ano civil. Ano-Novo, festa de réveillon e férias, para quem pode tirar férias. Isso é parte do nosso contexto atual. Nos textos bíblicos, para este Domingo de Epifania encontram-se aspectos relevantes que ligam eles entre si. Isaías 52.7-10 faz a narrativa de uma boa notícia ao povo no exílio: Deus reina e está retornando a Sião. O profeta é o mensageiro que narra que Deus salva seu povo e mostra seu poder às nações. O que a Epifania quer anunciar é que todos os confins da terra verão a salvação de Deus. “O aspecto do consolo e a abertura para os outros povos constituem pontos de ligação entre a leitura do Antigo Testamento e o texto de prédica” (VOIGT, 2011, p. 63). Colossenses 1.24-27 tematiza a revelação de Cristo aos gentios. Reporta-se à alegria, mas a alegria “nos seus sofrimentos”, nas aflições de Cristo, a favor do corpo de Cristo, que é a igreja, da qual o apóstolo está sendo ministro. Paulo narra que o mistério estivera oculto durante “séculos e gerações”. Ele tornou-se ministro de acordo com a Palavra para dar cumprimento ao Evangelho que se manifestou aos santos. Aos quais Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza da gloria deste mistério entre os gentios (toda criatura debaixo do céu), isto é, Cristo em vós, a esperança da glória (Cl 1.27). Mateus 12.14-21 narra como mensagem fundamental Isaías 42.1-4. O texto de Isaías 42.1-7 foi tema de estudos exegéticos e homiléticos em quatro auxílios, nos PLs de números 21, 25, 35 e 36. Por isso também é importante ter presente o contexto do profeta Isaías. Os volumes do Proclamar Libertação mencionados contêm informações exegéticas e indicações para a prédica. O texto de Isaías é um dos quatro cânticos do servo sofredor, ou seja, 42.1-4; 49.1-6; 50.4-9; 52.13 – 53.12. Ele é o primeiro dos quatro cânticos. O cântico em questão tem como tema a revelação e a vocação do servo de Javé. Javé apresenta seu servo, o eleito. Seu nome não aparece no texto. Visto a partir do tempo de Jesus (e do

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nosso também), trata-se de um texto antigo da profecia que continua bem novo, atual, em todos os tempos.

2 Considerações exegéticas 2.1 Contextos Mateus 12.14-21 é composto por oito versículos, sendo que quatro são citações de Isaías 42.1-4. É a mais longa citação de Isaías em Mateus. Mas não é cópia literal. E não tem sua fonte no texto original hebraico ou na Septuaginta. Provavelmente, trata-se de uma tradução livre. Para Voigt (2011, p. 63-64): “O vocabulário, formulações e omissões não permitem determinar exatamente o texto-base da citação. É possível que tenhamos aqui uma tradução ou citação livre do texto massorético, com influências da LXX ou do Targum”. O texto em Mateus é antecedido por duas ações de Jesus que quebram a lei do sábado (Mt 12.1-13). Jesus e seus discípulos colhem espigas e se alimentam num sábado, o que é proibido por lei religiosa. Segue-se uma acalorada discussão. Jesus faz referência à misericórdia, contra os holocaustos. E diz que o Filho do Homem é o senhor do sábado (v. 8). Depois Jesus entrou numa sinagoga. Ali havia um homem que tinha uma mão ressequida. Então os fariseus perguntaram: É lícito curar no sábado? Jesus não responde, mas mediante perguntas ajuda os fariseus a pensar sobre as coisas práticas de sua vida como, por exemplo, os cuidados com uma ovelha que, num sábado, venha a cair numa cova. Jesus então afirma que pode curar no sábado e curou o homem da mão ressequida. Isso desagrada os fariseus, sua fúria cresce e eles decidem matar Jesus. Este se retirou, acompanhado por uma multidão doente e faminta. Ele curou muita gente, mas pediu que “não o expusessem à publicidade”. No contexto posterior (Mt 12.22ss), Jesus continua no meio da multidão, cura doentes e ensina. Os fariseus continuam ali para acusá-lo de estar curando pelo poder do demônio. Jesus deixa-os sem argumentos com seus ensinos. E a trama farisaica para matar Jesus continua. 2.2 O texto: Mateus 12.14-22 V. 14-16 – Jesus percebe a trama dos adversários e se retira dali. Ele não foge, mas se retira com sabedoria, enquanto muitos vão com ele. Como em Mateus 8.16, todos os doentes são curados. O tempo messiânico, que Mateus liga com a figura do servo de Deus, também é caracterizado por consolo, cura e restauração da justiça. O silêncio ou a não publicidade das obras é traço que caracteriza o servo de Deus no v. 19. V. 17 – O evangelista explicita que a profecia de Isaías é cumprida em Jesus. Possivelmente a expressão “para que se cumprisse” não se refere somente aos v. 15-16, mas a toda a atividade do servo, descrita a seguir. Em Mateus, Jesus é o cumprimento da promessa profética. V. 18 – Javé apresenta seu escolhido. Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo (Mt 3.17). Seguindo a LXX, Mateus utiliza o termo grego pais,

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cujo primeiro significado é “criança” e, depois, “servo”. O recebimento do Espírito também é referido no batismo de Jesus (3.16). Em Mateus 12.22-32, são apresentados atos como comprovação da presença do Espírito. O derramamento do Espírito não se dá no final dos tempos, como no judaísmo, mas no batismo, quando o céu se abre e Deus fala (Mt 3.13-17; Mc 1.9-11), e continua nas obras de Jesus. Esse texto narra que o servo amado de Javé anunciará juízo aos gentios. Juízo, nesse texto, pode ter o significado de “direito/justiça” (ordem jurídica) ou “juízo/julgamento” (sentença judicial). O caráter não seria de condenação, mas de salvação. Para Voigt (2011, p. 64), “a partir de Mateus 23.23 e do contexto em Isaías, a tradução ʻdireito/justiçaʼ parece ser mais adequada. Aqui se trata do direito de Deus, respectivamente da justiça de seu reino, que será anunciada e estabelecida em toda a terra”. V. 19 – O contraste entre a visão humana de estabelecer a paz com armas e o caráter de humildade e mansidão do servo de Deus é chocante. Não tem guerra, nem espiritual, mas criação de comunhão mediante o compartilhamento de dores. “É a comunhão nas dores, no sofrimento da outra pessoa”, sobre a qual escreve Dietrich Bonhoeffer. Essa comunhão está prenunciada em Mateus 11.29 (Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve) e será retomado em Mateus 21.5 (Eis aí te vem o teu Rei, humilde, montado em jumento). É prática da renúncia à violência. Voigt (2011, p. 64) escreve que “não se trata de uma característica passiva, mas de atitude ativa que visa à promoção da paz” e de justiça em todas as relações. V. 20 – Este versículo fala de situações humanas de vulnerabilidade, de fragilidade. Estamos de mãos vazias a suplicar por misericórdia. Como vivi a maior parte de minha vida entre pobres e miseráveis, tenho em minha mente imagens de “caniço quebrado” que não tem serventia. Um pavio que está soltando fumaça que os violentos apagam e substituem. São lixo sem valor. O Deus conosco, que pregamos no Natal, revitaliza-os. A que se referem essas imagens? Imagens deixam liberdade para interpretações. Segundo Voigt (2011, p. 64), “um Targum reproduz Isaías 42.3 da seguinte maneira: ‘humildes como uma cana dobrada não serão quebrados; necessitados como um pavio apagando não serão extintos’. Vemos aqui a ligação da imagem do caniço e do pavio com os humildes e pobres”. O servo de Deus preserva aquilo que é considerado descartável pela sociedade. Preservar tem sentido ativo, de compromisso e cuidado. Pois somente com atitude ativa o direito será conduzido à vitória. E vitória tem o sentido de reafirmação, de restituição do direito, de prática da justiça restauradora sobre toda a terra. A identificação do servo com os necessitados ficará ainda mais explícita em Mateus 25.31-46. V. 21 – Para o educador Paulo Freire, de esperança vem esperançar, que é “se levantar, é construir, é não desistir”. Esperar significa, também, “esperança”. Mateus acentua o não desistir. A esperança de salvação para todos os povos está no nome do servo, ou seja, em Jesus, o Messias. As nações há muito tempo esperam, não desistem, têm esperança na justiça, no reino, na salvação. Até mesmo a buscam onde não a encontram: nos ídolos, nos mentirosos, nos encantadores, nos enganadores. A missão tem acentuado caráter universal. A missão dada a Israel para transmitir o direito e a salvação de Deus é assumida por Jesus. Mateus escre-

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ve para comunidades judaicas. Israel não está excluída da missão. Mas o Espírito de Deus é universal, para todos os povos e nações, de todos os tempos e lugares.

3 Meditação A igreja celebra o fim ano eclesiástico no tempo do Domingo Cristo Rei ou Domingo da Eternidade. Conclui-se o ano e inicia-se novo ano. Então é Advento. As quatro velas para a Coroa de Advento são providenciadas. Luzes brilham para todos os lados, na igreja, na rua, na avenida, nas casas. Quando a casa estiver toda iluminada, então é Natal. Natal é quase que como um resumo das celebrações até aqui ocorridas. Para a maioria, ufa! Graças a Deus que terminou. As exceções explicam a regra. E a regra é, a partir dessas datas, sair de férias, encontrar com parentes, amigos e amigas, viajar. A maioria não se encontra mais na igreja para receber de Deus a revelação de Jesus Cristo nas trevas. O cruzamento do fim do ano civil e o fim do ano eclesiástico levam-no a pensar no fim. O Domingo da Eternidade e o ano velho expressam o sentimento de que acabou. Acabou. Esgotou o tempo. Cultural e psicologicamente, o Advento e o Ano-Novo induzem a pensar no início ou no recomeço. No mundo fiscal e civil, a vida segue com votos de feliz ano novo. No mundo eclesial, no mundo da fé cristã, o fim ainda não chegou. É vida que segue. Ela segue com votos de missão. Os povos do Oriente que visitam Jesus, no dia 06 de janeiro, pregam a missão. Nesse sentido, Epifania é como novo tempo da missão de Deus. A luz brilha na escuridão. Deus revela Jesus, que é missionário. Vai a todos os povos, de todos os tempos e lugares. A celebração da Epifania do Senhor. A igreja celebra a festa da Epifania do Senhor. Epifania é um termo de origem grega que significa manifestação, revelação, aparição. Celebra a manifestação de Jesus Cristo como o Messias, o filho de Deus Pai e Salvador do mundo. Recolhem-se as luzes colocadas nas igrejas e nas casas no Advento. A manifestação de Deus acontece em meio aos fatos reais da vida, por obra e iniciativa dele. A visita dos magos do Oriente (Mt 2.1-12) é a narrativa mais conhecida e utilizada nessa época. A referência aos magos indica que a revelação em Cristo alcança toda a humanidade. Também Mateus 12.14-21 testemunha a universalidade da ação de Deus em favor da humanidade ao mencionar o anúncio do direito aos gentios. A narrativa tem ligação com o evento do batismo de Jesus (Mt 3.17). Nos dois casos, a revelação do filho como o Cristo que serve é obra de Deus. Epifania é revelação, júbilo e compromisso. A revelação de Deus traz bênção e promessa. O primeiro ato revelador é a criação. Deus revela sua vontade com palavras criadoras: Disse Deus: haja luz; e houve luz (Gn 1.3). E tudo o que Deus fez era bom! Ao ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, foi confiada a tarefa de cuidar da criação divina. Deus revela-se a Abraão com a promessa de grande descendência e de uma terra que produz com fartura. E lhe diz: Sê tu uma bênção! [...] em ti serão benditas todas as famílias da terra (Gn 12.2-3).

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Deus revela seu nome a Moisés com a perspectiva de libertação do povo da escravidão no Egito. Deus faz uma aliança com Israel para, em seu meio, revelar sua justiça. Revelação é ato de misericórdia. Deus se revela a profetas e profetisas. Vai e anuncia. Não digas “sou criança”, porque eu estarei contigo, diz ele para Jeremias. Tenho que andar, tenho que falar, tenho que gritar, ai de mim se não o faço, testemunha o profeta. Sai detrás do arado e vai anunciar minha justiça à cidade, diz Deus para Amós. Deus se revela, acolhe, consola, abençoa e envia para a sua missão. Com a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não há somente um povo eleito. Todos os povos podem fazer parte da nova aliança. O mistério, que estivera oculto há séculos das gerações, agora se manifestou sem restrições (cf. Cl 1.26). Faria bem, na época de Epifania, acentuar o caráter universal da graça de Deus. A missão de Deus é para o campo, para a favela, para o bairro periférico e pobre, para o centro da cidade, para o morador em situação de rua, para o rico. Assim como não está restrita a um só povo, a revelação de Deus não está restrita a uma igreja ou a um grupo determinado. O texto para a prédica fala da revelação do servo de Deus a todas as nações. Trata-se do servo de Deus. E esse servo recebeu o Espírito de Deus e promulgará o direito de Deus. Em Jesus, a manifestação de Deus assume uma forma concreta de ser humano. A concretude da manifestação não está apenas na forma humana. Ela está no objetivo e no modo de agir. O servo veio promulgar e fazer vitorioso o direito de Deus. Não é um direito que quebra e destrói, mas que levanta e resgata dignidade. É o direito que se coloca junto do fragilizado. Jesus está no fragilizado. Diante de uma situação de sofrimento, a atuação de Deus representa amparo e cuidado. A atividade de Jesus Cristo demonstra que a graça e a misericórdia são elementos centrais da revelação divina. O servo é a encarnação da missão de Deus. A comunidade, a igreja, em seus diferentes grupos e setores, têm uma tarefa missionária. Há, pelo menos, quatro pontos que a comunidade pode articular no seu planejamento missionário, segundo Voigt. Eu faço um resumo breve desses pontos. 1. A revelação – Eis aqui o meu servo, que escolhi (v. 18). 2. A capacitação – Farei repousar sobre ele o meu Espírito (v. 18). 3. A tarefa – Anunciará o direito aos gentios (18); fará o direito triunfar (v. 20). O direito de Deus será vencedor à medida que se estabelecer na terra, ou seja, quando as pessoas praticarem a justiça e a misericórdia, a exemplo do servo de Deus. 4. A forma de atuação – Não contenderá, nem gritará, nem alguém ouvirá nas praças a sua voz (v. 19); não esmagará a cana quebrada, nem apagará o pavio que fumega (v. 20).

4 Pregação As considerações exegéticas e a meditação fornecem algumas informações significativas para a pregação. Fiz encontros com base bíblica no texto da pregação. A mensagem considerou cinco pontos.

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4.1 A revelação É Deus quem aceita, revela e coloca na “comunhão dos santos” ­(Bonhoeffer) seu servo, sua serva. Importante mencionar o Batismo, quando Deus fala, age e cria vida e salvação, que é processo que se realiza em comunidade e no testemunho de vida cristã. Como sua comunidade pode realizar essas obras, no envio de Deus? 4.2 A luz em nossa vida Certamente, já tivemos muitas experiências de escuridão, quando era noite e não enxergávamos nada. Muitos pensamentos e medos vêm à memória de quem se encontra na escuridão. São medos reais e imaginários. Mas também existe escuridão quando não se tem perspectiva, sonhos não realizados, separações, agressões e o fim de convívios sonhados, mas não realizados. A luz em nossa vida significa que estamos sendo chamados das trevas para a maravilhosa luz (1Pe 2.9-10), feitos sacerdotes de Deus, comunidade de Jesus, para viver a misericórdia e o amor, viver e proclamar as virtudes do servo de Deus, que nos chamou da trevas para a luz. Como a comunidade pode viver publicamente essa fé libertadora? 4.3 A experiência da comunidade com pessoas que sofrem Quem são as pessoas que sofrem em nossa comunidade e nossa vizinhança, cidade, município? Qual é nossa postura diante do sofrimento de outras pessoas, do próximo? Três aspectos são importantes para a diaconia e a missão junto a pessoas que sofrem: 1. Amar o povo, a cidade, o bairro, a favela, o hospital. 2. Conhecer a realidade. A gente ama somente aquilo que conhece. Fazer o levantamento de maior quantidade e qualidade de dados possíveis, na sinceridade. 3. Ter um projeto claro de trabalho. 4. E mãos à obra. Nada é fácil, mas a vida vale a pena. 4.4 Retirar-se para o outro lado Em muitos momentos significativos para a vida e salvação que Jesus nos proporciona consta que ele se retirou. “Afastou-se dali”. E anunciou o projeto de Deus (Mt 12.18-21). Jesus fez a travessia. A comunidade de Jesus também faz travessia quando decide escutar mais Deus do que outros valores e outras coisas, quando decide obedecer a Deus (At 5.29). A travessia para o outro lado leva a misturar-se com o povo (Mt 12.22ss). 4.5 A missão – viver o Evangelho: empatia, compaixão e comunhão Nossa comunidade é comunidade que Jesus resgatou e fez dela sua obra de vida e salvação. Faz bonito: como é bonito ver um mensageiro correndo pelas montanhas, trazendo notícias de paz, boas notícias de salvação! (Is 52.7). Seu testemunho é transparente e vivo. Não tem nada a temer nem a esconder. Escutem

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os gritos dos vigias! Eles gritam de alegria [...] (Is 52.8-9). Deus é para todos os povos. Em seu nome esperam os gentios (Mt 14.21). Na presença de todas as nações, o Deus vai mostrar o seu santo amor. O mundo inteiro verá que foi o nosso Deus quem nos salvou (Is 52.10). O mistério que esteve oculto desde todos os séculos, e em todas as gerações, foi agora manifesto a seus santos (Cl 1.26). A comunidade recebe, por graça de Deus, o direito de honrar e glorificar Deus em todas as suas relações sociais e comunitárias. Viver o Evangelho em casa, na igreja, no trabalho, na sociedade.

5 Auxílios litúrgicos Temos que aprender a olhar as pessoas menos pelo que elas fazem ou deixam de fazer e mais pelo que elas sofrem. A única relação fecunda com as pessoas, especialmente com as fracas, é a do amor, isto é, a vontade de ter comunhão com elas. O próprio Deus não desprezou os seres humanos, mas tornou-se ser humano por causa deles (BONHOEFFER, 2003, p. 35). Kyrie

Quanto sofrimento no mundo por causa da Covid-19! Quantas pessoas faleceram? Quanta dor! Quanto luto! Até quando, Deus? Jesus diz: Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (Mt 5.7). Deus é bom, Deus cuida. Que bom que o sofrimento e a morte não são o fim. Tem vida, agora e depois. E nós, amados e perdoados, humanizados e reconciliados por Deus, queremos, agora, lembrar e trazer diante de Deus as dores do mundo. Suplicamos pelas pessoas que vivem na escuridão, são escravizadas pelo medo, pela escuridão da ignorância, pelo poder que escraviza, por ameaças, pela fome, pelo desemprego, pelos diversos tipos de drogas, por seus problemas não resolvidos e pelas doenças, pelos seus remorsos e rancores. Pensamos, especialmente, nas mães e crianças que estão em situação de vulnerabilidade. Pelos casais e pelas famílias que vivem em confrontos, pelas famílias que têm pessoas doentes em casa ou no hospital, pelas famílias enlutadas. Deus, colocamo-nos à tua disposição para sermos apoio solidário para as pessoas que são vítimas. Que o Senhor esteja com elas ali onde elas se encontram. Dá-lhes, Senhor, a felicidade, a paz e vida digna. Glória in excelsis Melhor é buscar o refúgio no Senhor do que confiar nas pessoas, do que confiar em príncipes e reis (Sl 118.8-9). Jesus nos consola, dizendo: Felizes as pessoas que trabalham pela paz, pois as tratará como seus filhos (Mt 5.9). Nós, certamente, estamos felizes, porque Deus escuta nossas orações, nossas súplicas e motivos de agradecimentos e louvor. Queremos reconhecer, agradecer, dar glória e louvor ao Senhor com as palavras de gratidão e alegria, cantando todos juntos: Glória (LCI, 70).

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Oração do dia A misericórdia de Deus dura para sempre (Sl 118.2-3). Querido Deus, nosso sofrimento pessoal nos leva a chorar de dor e nos encolher de medo quando experimentamos doença, ansiedade ou a morte das pessoas que amamos. Ensina-nos a confiar em ti. Que a tua comunidade pratique gestos e sinais do teu cuidado divino. Faze de nós verdadeiros discípulos e discípulas de teu Filho, que nos ensinou a ouvir a tua Palavra e a servir uns aos outros e umas às outras. Confiantes te pedimos isso em nome de teu amado Filho e pelo poder do Espírito Santo, que vive e governa agora e sempre. Amém.

Bibliografia BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003. MESTERS, Carlos. A missão do povo que sofre. São Paulo: Vozes, 1981. VOIGT, Emilio. Mateus 12.14-21: Auxílio Homilético. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação 36. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2011. p. 63-68.

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1º DOMINGO APÓS EPIFANIA   (BATISMO DO SENHOR)

PRÉDICA: GÊNESIS 1.1-5 10 JAN 2021

MARCOS 1.4-11 ATOS 19.1-7

Léo Zeno Konzen

Águas de vida e teologias de morte

1 Introdução Estamos entrando numa nova etapa do ano litúrgico, após a conclusão do ciclo de Advento e Natal. Chegamos ao tempo comum que, brincando, poderíamos chamar de tempo do “feijão com arroz”. Esse novo tempo começa com o batismo do Senhor. Jesus nos é apresentado como novo Adão, que vai iniciar uma nova história ou uma nova fase da história da salvação. Com a luz e a força do Espírito que desce sobre ele ao sair das águas, ele está pronto para iniciar a pregação da mensagem que o Pai lhe confiou. As águas do batismo lembram aquelas das origens, no primeiro relato da criação. Lá, sobre as águas ainda desorganizadas, já pousava o Espírito de Deus. É a criação repleta da força de vida que se manifestará mais e mais, a cada novo dia da criação. Em Éfeso, discípulos já encaminhados são enriquecidos com o batismo em nome do Senhor Jesus e também recebem o Espírito Santo. A teologia da criação e o movimento de João Batista, ao qual Jesus se filia pelo batismo, situam-se em contextos de periferia: a primeira, no exílio babilônico, o segundo em relação ao Templo e à sinagoga. Ambos enfrentam teologias de morte, embora se proclamem de origem divina. Daí nosso título: águas de vida e teologias de morte.

2 Exegese Olhar no todo, foco na parte: assim poderíamos traduzir um aspecto importante da metodologia de estudo dos textos bíblicos que procuraremos colocar em prática também aqui. Não custa reafirmar que a Bíblia não é um manual de história e que o texto de pregação não é parte de um livro de ciências naturais. A Bíblia é memória de uma experiência de fé vivida dentro de uma longa história. Portanto nada de fundamentalismos ou polêmicas com as ciências modernas! Dentro desse grande memorial há uma enorme diversidade. Não se perde, porém, a unidade fundamental. De Gênesis a Apocalipse ouve-se a mesma grande melodia, em movimentos distintos. A melodia começa obviamente no primeiro livro, o Gênesis. Não foi o primeiro a ser escrito, mas é o que dá entrada à grande casa construída por nossos irmãos e irmãs na fé. Saber de onde viemos faz parte

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1º Domingo após Epifania (Batismo do Senhor)

de nossa identidade. No Gênesis narram-se as “origens” de tudo, tanto do próprio universo quanto da humanidade e do “povo de Deus”. Os primeiros 11 capítulos tratam das origens mais remotas. Falam da criação do mundo e das vicissitudes da humanidade antes do início da lenta constituição do povo específico da Bíblia. Mas a história e as questões relevantes desse povo, vividas mais adiante, encontram-se qual tempero nesses relatos aparentemente tão distantes. Depois desses 11 capítulos segue um longo bloco que narra histórias dos patriarcas da fé do povo da Bíblia: Abraão, Isaque e Jacó e, finalmente e em especial, José. O primeiro relato da criação, com o qual inicia Gênesis 1-11, introduz na fé e na teologia bíblicas. Não se trata da fé que existia no começo, mas de um mosaico que reflete momentos diferentes da longa história. A composição desse relato é complexa. Integra contribuições de diversos momentos. Mas o chão que fez maturar esse belo fruto foi certamente o exílio (século VI a.C.) e os produtores principais foram sacerdotes do Templo, que tinham sido obrigados a viver, no exílio, a experiência da humilhação e da luta por liberdade e vida. Esses nobres exilados perceberam que o sofrimento a que estavam submetidos era justificado e reforçado por certa teologia babilônica. Sua fé não combinava com essa teologia idolátrica e diabólica. Nessa teologia babilônica, sol, lua, luz e outras coisas eram divindades! Era preciso mantê-las favoráveis para que houvesse colheitas, chuvas, estações, estabilidade política. Ameaças de dilúvios não faltavam! Nossos inconformados sacerdotes começaram a construir uma teologia inteligente que mantivesse o povo na fé e esperança no Deus que havia criado o seu povo e o havia libertado da escravidão do Egito. Aproveitaram-se de relatos babilônicos, transformaram-nos e criaram novos e próprios. Uma teologia em forma de relatos, de narrativas! O primeiro relato da criação mostra Deus (o Deus do povo de Deus!) criando o universo, separando partes e colocando tudo em ordem. Beleza! Deus viu que tudo era muito bom. Os babilônios estavam equivocados. As coisas não dependiam do culto oficial do império, nem eram determinadas por divindades como o sol e a lua. Essas coisas eram criaturas de Deus e lhe prestavam serviço! Nesse contexto, compreende-se também o pequeno texto no qual focamos nossa atenção. Nos primeiros cinco versículos do Gênesis, relata-se o primeiro “dia” do “trabalho” divino: “no princípio”, ele “cria” “o céu e a terra” e também a “luz”, separando-a das trevas. Antes mesmo de criar a luz, o “Espírito de Deus pairava sobre as águas”. “No princípio” (v. 1) expressa que nada havia antes, nenhuma das “divindades” dos babilônios ou outras coisas superiores ou anteriores. Deus está na origem. Ele “cria”, faz surgir e coloca em ordem as coisas. E não precisa fazer nenhum gesto mágico: ele cria por sua simples palavra. Palavra cujo valor eles foram descobrindo mais e mais no exílio. Palavra criadora! É importante a afirmação do texto sobre o Espírito de Deus: ele “paira” sobre as águas. Nada mais se diz sobre ele no primeiro relato da criação depois disso. Mas não é pouco! Tem-se a impressão que ele está aí como possibilidade

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de vida. A partir dessa possibilidade, a palavra de Deus “acorda” aquilo que está latente no céu e na terra, com seu deserto e vazio, com suas trevas e seu abismo. A palavra de Deus vai despertar essas possibilidades e vai fazer surgir estruturas de estabilidade, luminares, animais, plantas e o ser humano – mulher e homem. Primeira ordem da palavra de Deus é “faça-se a luz”. E a luz se fez, antes mesmo das conhecidas e veneradas divindades tidas como fontes da luz: o sol, a lua e as estrelas. E Deus separa a luz das trevas. A teologia babilônica começa a cair por terra! E a revolucionária teologia daqueles humilhados e sofridos sacerdotes proclama em alto e bom som: Deus viu que a luz era boa! E dá nome às novas realidades: chama de “dia” a luz, e de “noite” as trevas. Ainda nem há sol, nem lua, nem estrelas! E, assim, “houve uma tarde e uma manhã: o primeiro dia”. Começa o tempo organizado e estável. No prolongamento da narrativa, há outros dias. No final, no sétimo dia, o dia do descanso de Deus. Dia abençoado e santificado por Deus! Memória perigosa e subversiva no contexto do exílio, onde não havia descanso semanal nem feriados para os exilados. Um direito sagrado do povo, mesmo que ainda não plenamente possível!

3 Meditação Além do contexto bíblico de cada texto, levamos em conta o contexto litúrgico em que ele é lido e meditado. O texto de Gênesis que tentamos compreender um pouco melhor na parte anterior é proclamado na celebração do 1º Domingo após a Epifania, quando se celebra o batismo do Senhor. O evangelho narra esse acontecimento da vida de nosso Senhor. Jesus foi batizado por João Batista. E a leitura de Atos dos Apóstolos (19.1-7) também fala de batismo, fazendo uma importante diferenciação entre o batismo de João e aquele em nome de Jesus. Nas três leituras aparece o Espírito de Deus, Espírito Santo. Vamos nos aproximar desse elemento comum para entender melhor os versículos iniciais da Bíblia, o batismo pregado e ministrado por João, o batismo de Jesus e suas implicações, sem deixar de perguntar-nos pelo que isso tudo representa para o nosso batismo. Em Gênesis, como referimos acima, diz-se que o Espírito de Deus pairava sobre as águas. No evangelho (Mc 1.4-11), afirma-se que, ao Jesus sair da água, o céu se rompeu e o Espírito Santo desceu sobre ele. Em Atos, destaca-se que, ao serem batizados em nome de Jesus, aqueles irmãos e irmãs de Éfeso foram enriquecidos com o dom do Espírito Santo que desceu sobre eles. Em todas essas situações, o Espírito produziu vida e missão. Em Gênesis, com o Espírito pairando sobre as águas, toda a criação pôde desabrochar para sua existência, organização e missão. No evangelho, pelas águas do batismo, o Espírito como que consagrou Jesus para sua grande e desafiadora missão. Começava aí uma nova criação. Jesus é um novo Adão, no qual e pelo qual a humanidade se renova pela força do Espírito. Nos discípulos em Éfeso, não se explicitam os

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efeitos do Espírito, mas pode-se intuir que produziu novas criaturas que nascem da videira que é Jesus. É quase espontânea a lembrança da missão de Jesus proclamada na sinagoga de Nazaré por meio do conhecido texto de Isaías: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas-novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos (Lc 4.18). É assim que Lucas introduz a missão de Jesus. Não podemos esquecer que os ambientes em que se forma essa teologia do Espírito são de periferia e de contestação de práticas e teologias vigentes. Vimos isso na análise do texto de Gênesis. Lá, o ambiente era de contestação da teologia babilônica que justificava e promovia uma sociedade imperialista e negadora de direitos fundamentais dos exilados e outros oprimidos. No batismo de Jesus, convém lembrar que se trata do batismo ministrado por João e que era um movimento também de periferia, fora e longe dos ambientes oficiais do Templo de Jerusalém ou das sinagogas dos fariseus. É em ambientes semelhantes a esses que se faz, também em nossos tempos, a experiência da presença e da manifestação do Espírito de Deus, do Espírito Santo. O que ocorre com Jesus, após ter-se inserido no movimento popular e profético de João por meio do batismo, ajuda a iluminar a compreensão do próprio texto do Gênesis: com a luz e a força do Espírito, Jesus parte para a missão de proclamar a Boa-Nova do reino de Deus. Explicita-se, assim, de modo mais claro, a força criadora e missionária do Espírito que já pairava sobre as águas, lá no princípio. Fica claro, também, que o Espírito que animou a caminhada missionária de Jesus não é algo estranho ao mundo criado por Deus. É como diz o Salmo 104.30: Envias o teu Espírito, e são criados, e assim renovas a face da terra. Inevitavelmente, o Espírito destacado na criação, no batismo de Jesus e naquele dos discípulos de Éfeso evoca o espírito profético. No Antigo Testamento, os profetas eram profetas pela luz e força do Espírito que tomava conta deles. No Novo, não é diferente. O próprio João Batista é profeta, e mais do que um profeta, na avaliação de Jesus. E Jesus, então, não só é pleno do Espírito como também o transmite aos seus. Finalmente, o batismo de Jesus nos remete também ao nosso batismo, recebido em nome da Trindade Santa. Para além das simples convenções sociais, esse batismo celebra nosso mergulho no projeto salvífico de Deus manifestado de modo mais evidente na vida de Jesus de Nazaré. O batismo nos associa a ele, a seu seguimento, fazendo-nos experimentar a graça e o compromisso desse enxerto na videira cultivada pelo Pai.

4 Imagens para a prédica Pode-se evocar a observação e admiração da natureza, de noite ou de dia, para despertar a grandeza e a beleza da criação de Deus. O Salmo 8 pode ajudar. A força de vida presente na criação pode servir como ponte para falar do Espírito de Deus que “pairava sobre as águas” e possibilitou o desenvolvimento das mais diversas formas de vida, com a luz e a força da palavra de Deus.

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As águas sobre as quais pairava o Espírito de Deus são também uma bela imagem que nos põe em contato com o batismo de Jesus e com o nosso batismo. Águas são a base da vida, mas também podem matar. O batismo é também uma morte, como bem sabemos. Mas sem elas não há vida. Podem fazer nascer para a missão, como a de Jesus. Se a água pode matar, isso de certa maneira é necessário. A teologia da criação (Gênesis) e o batismo de Jesus situam-se em contextos de afirmação de coisas e causas que se opunham às teologias dominantes. A adesão de Jesus ao batismo pregado por João foi nitidamente uma opção pela periferia e, consequentemente, um questionamento às teologias e práticas veiculadas pelo Templo de Jerusalém, dominado pelos sacerdotes saduceus, e pelas sinagogas, dominadas pelos fariseus. E a teologia da criação foi proposta (ou, quem sabe, renovada e aprofundada) pelos sacerdotes exilados, empobrecidos e humilhados no exílio, como alternativa de resistência e libertação dos judeus no exílio da Babilônia. Águas que geram vida e vencem a morte!

5 Subsídios litúrgicos Um recurso visual pode ser um recipiente com água posto num lugar bem visível para a comunidade. Talvez possa ajudar também colocar uma planta bem viçosa ao lado da água. Hinos que cantam a grandeza e a beleza da criação também são bem-vindos no culto. Também hinos que tematizam a ação do Espírito Santo e a missão de Jesus (e nossa) celebrada no batismo. Nos pedidos de perdão pode-se incluir o tema da destruição da criação e das consequências trágicas que ela provoca. Nada impede que se peça também perdão por aceitarmos teologias que abençoam a violência contra os pobres e tentam extinguir o Espírito de Deus! Cabe ainda a oração pela fidelidade corajosa e perseverante na vivência do nosso batismo.

Bibliografia SCHWANTES, Milton. Gênesis 1-11: Vida, Comunidade e Bíblia. São Leopoldo: CEBI, 2007. WESTERMANN, Claus. Genesi: Commentario. Milano: Piemme, 1989. 2º DOMINGO APÓS EPIFANIA PRÉDICA: JOÃO 1.43-51 1 SAMUEL 3.1-10(11-20) 1 CORÍNTIOS 6.12-20

Pesquise: Proclamar Libertação, v. XII, p. 129ss; v. XVI, p. 92ss; v. 22, p. 52ss; v. 28, p. 68ss; v. 34, p. 80ss; v. 36, p. 76ss; v. 40, p. 53ss; v. 43, p. 58ss www.luteranos.com.br (busca por: João 1.43-51)

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PRÉDICA: 1 CORÍNTIOS 7.29-31 JONAS 3.1-5,10 MARCOS 1.14-20

3º DOMINGO APÓS EPIFANIA

24 JAN 2021

Claiton André Kunz

Não sabemos quanto tempo temos!

1 Introdução Vivemos em tempos difíceis. Ocupamo-nos e preocupamo-nos com um número enorme de afazeres, que parecem só aumentar a cada dia. Se pudéssemos esticar um pouco o nosso dia, aumentando o seu tempo para 30 horas, como propõe a propaganda de um certo banco, não teríamos dúvidas em fazê-lo. Se pudéssemos aumentar o tempo de vida, garantindo que pudéssemos passar pelo menos dos cem anos, certamente muitos também o fariam. A vida real, entretanto, lembra-nos que, na verdade, é o oposto disso que acontece. A cada dia temos menos tempo e a cada instante percebemos que a brevidade da vida é inquestionável. Podemos até discordar da finitude da vida ou questionar o porquê de ser assim. Mas enquanto o fazemos, mais um pouco do nosso tempo acaba de passar. Diante dessa realidade, o que precisamos fazer é aprender a gerir o tempo e aproveitar todas as oportunidades. Não podemos perder nenhum momento de nossa vida, até porque não sabemos quanto tempo ainda temos.

2 Exegese Algumas observações exegéticas sobre o texto de 1 Coríntios 7.29-31: V. 29a – Quando Paulo afirma que o “tempo” está abreviado, ele usa a palavra kairos, com a ideia de período de tempo, oportunidade, um tempo específico. Para abreviar, o apóstolo usa a palavra synestalmenos, um particípio perfeito passivo de systellō, que tem a ideia de limitar e abreviar. Esse verbo aparece apenas duas vezes no Novo Testamento (aqui e em Atos 5.6, com a ideia de cobrir e envolver). Em papiros antigos, esse termo é encontrado com a ideia de cortar gastos. Calvino interpreta a palavra em termos de brevidade da vida humana, embora pareça aqui que Paulo a está relacionando com o encurtamento do tempo devido à proximidade e esperança da volta de Cristo. V. 30 – [...] como se nada possuíssem. Para Paulo, significa que todas as relações terrenas têm que ser consideradas como passageiras, em vista da volta de Cristo. O verbo grego utilizado, katechontes, que significa “possuir, ter”, nessa construção com o advérbio negativo, traz a ideia de “não entrar na plena posse”, ou seja, bens terrenos são uma preocupação e não uma possessão.

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V. 31 – [...] porque a aparência deste mundo passa. Para “aparência” Paulo utiliza a palavra schēma, que significa forma, aparência externa ou molde. Ela é usada somente aqui e em Filipenses 2.7, onde diz que Jesus foi encontrado em “forma” humana. Quanto às coisas do “mundo” (kosmos) que passam, a ideia é de “recursos do mundo e oportunidades” que são passageiros. Quanto ao texto de Jonas 3.1-5,10, pode-se fazer as seguintes observações exegéticas: V. 1 – Veio a palavra do Senhor, segunda vez a Jonas. Isso lembra que Deus já havia chamado Jonas para essa missão, e ele havia falhado miseravelmente, pois havia fugido. Deus deu uma segunda chance para o profeta, assim como muitas vezes dá a todos nós também. V. 2 – Nínive é chamada de “grande” por três vezes neste livro (1.2; 3.2; 4.11). Ela era a capital de uma das maiores potências mundiais da época. A missão de Jonas envolvia pregação que visava provocar o arrependimento. Deus estava interessado nesse povo e tinha planos para ele. V. 3 – A cidade era de caminho de três dias para ser percorrida. O texto não afirma se esse tempo se refere a acompanhar sua circunferência ou de percorrê-la de um lado para o outro. Talvez se refira até à cidade-estado e não apenas à cidade central. De qualquer forma, finalmente Jonas foi cumprir a missão. V. 4 – O texto não afirma como Jonas foi até a cidade, mas apenas que começou a pregar percorrendo a cidade por um dia, exortando o povo ao arrependimento. Daqui a quarenta dias... Quarenta é o número das provações na Bíblia, sendo citado numerosas vezes nas Escrituras. V. 5 – Os ninivitas creram em Deus e proclamaram um jejum. O autor não informa quanto tempo Jonas pregou ou outros detalhes da ação dos ninivitas. É muito conciso. O que é certo é que o povo não esperou para ver o que aconteceria, mas imediatamente foi conclamado ao jejum e ao arrependimento. Quanto ao texto de Marcos 1.14-20, pode-se fazer as seguintes observações exegéticas: V. 14 – Aqui Marcos começa a narração do ministério ativo de Jesus. Pelo Evangelho de João conhecemos um pouco mais dos roteiros de Jesus e sua passagem pelos diversos territórios (Pereia, Galileia, Judeia e Samaria). Talvez se possa relacionar essa partida com o texto de João 4.1-4. [...] pregando o evangelho de Deus: enquanto o tom principal em João Batista era o arrependimento, parece que em Jesus a centralidade é no evangelho, embora na sequência também aborde sobre o arrependimento. V. 15 – Marcos apresenta a expressão de Jesus: “o tempo é chegado/cumprido” (peplērōtai ho kairos). Dizer que o tempo é chegado é como quando Paulo fala da “plenitude dos tempos” (plērōma tou chronou) em Gálatas 4.4 ou do “cumprimento dos tempos” (plērōma ton kairon) em Efésios 1.10. O reino de Deus havia chegado com a presença do Rei – Jesus. Já para a exortação ao arrependimento Marcos utiliza o termo metanoeite, um presente do imperativo de metanoeō. A ideia é de mudança de opinião, mudança de mente, arrependimento.

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Tanto o verbo para arrepender como o verbo para crer (pisteuete) estão no presente do imperativo, que indica que além de ser uma ordem a ser cumprida, deve ser executada continuamente, constantemente. V. 16 – Esses primeiros discípulos eram pescadores (halieis) e “sócios” (metochoi) como afirma Lucas (5.7). V. 17 – Na expressão eu os farei pescadores de homens, Marcos acrescenta (em relação a Mateus) o termo genesthai, que poderia ser traduzido por “serdes” (kai poiēsō hymas genesthai halieis anthrōpōn). A ideia é que o processo é longo e lento, mas que pode ser feito por Jesus e ele o fará. V. 18 – Para a ação dos discípulos, que “deixaram” suas redes e “seguiram” Jesus, Marcos utiliza dois verbos no tempo aoristo, que traz a ideia de uma ação pontilear, resoluta, decisiva. Para “seguiram”, o verbo utilizado é akoloutheō, que denota seguir, seguir como discípulo, aderir, associar-se pessoalmente. V. 19 – Para “preparando as redes” Marcos utiliza o verbo katartizō, em sua forma no particípio presente, com a ideia de pôr em ordem, remendar, limpar, dobrar e tornar as redes prontas para a próxima noite de pescaria. V. 20 – [...] deixando seu pai, Zebedeu, com os empregados no barco. A palavra usada para empregados, jornaleiros, vem do termo grego para salário (mistōthos). Fica claro que Zebedeu e seus filhos tinham um razoável negócio de pesca, em cooperação com André e Simão (Lc 5.7,10). Somente Marcos acrescenta esse detalhe. Tiago e João deixaram o barco, seu pai e os empregados. O negócio continuaria, mas eles deixaram tudo para seguir Jesus contínua e definitivamente.

3 Meditação Na Primeira Carta aos Coríntios, Paulo faz uma longa discussão sobre o casamento no capítulo 7. Em meio a essa discussão, encontramos o texto base para este 3º Domingo após a Epifania. Junto com os textos auxiliares de Jonas 3.1-5,10 e Marcos 1.14-20, pode-se tirar as seguintes aplicações: a) O tempo que temos é curto Paulo, ao discutir sobre casamento em 1 Coríntios 7, parece dar algumas recomendações bastante estranhas: Está solteiro? Não procures esposa! (v. 27); [...] aqueles que têm esposa, vivam como se não tivessem (v. 29b). Numa visão superficial, pareceria que ele tem uma perspectiva totalmente adversa ao casamento. Entretanto, essas afirmações precisam ser analisadas contra o pano de fundo da expectativa escatológica do apóstolo: o que quero dizer é que o tempo é curto (v. 29a) e a forma presente deste mundo está passando (v. 31b). Paulo tinha uma expectativa de que o fim de todas as coisas estava muito próximo. Aos tessalonicenses, ao falar da parousia, ele afirma que os mortos iriam ressuscitar primeiro e depois nós, os que estivermos vivos seremos arrebatados (1Ts 4.17). Isso mostra que ele tinha a expectativa da volta de Cristo ainda na sua geração. Também Pedro compartilha da mesma esperança quando afirma:

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3º Domingo após Epifania

Ora, o fim de todas as coisas está próximo (1Pe 4.7). Parece que a expectativa de todos os cristãos do primeiro século era muito semelhante. Além disso, precisamos refletir que além da iminência da volta de Cristo, também não sabemos quanto tempo de vida temos aqui neste mundo. Assim, precisamos conduzir nossa vida jamais nos esquecendo da finitude da nossa existência. De fato, o tempo é curto! (1Co 7.31). b) Se o tempo é curto, arrependam-se e creiam no evangelho João Batista, como precursor de Jesus Cristo, proclamava a proximidade do reino de Deus. Mas quando Jesus entra em cena, a afirmação é contundente: O tempo é chegado (Mc 1.15a). Não dá para esperar mais. A chegada do rei do reino confronta o ser humano para uma tomada de decisão: arrependam-se e creiam no evangelho (Mc 1.15b). O chamado e a resposta dos primeiros discípulos de Jesus (Simão, André, Tiago e João) exemplificam a reação adequada esperada por Jesus (Mc 1.6-20). Eles não sabiam quanto tempo ainda tinham. Por isso, no mesmo instante, eles deixaram suas redes e o seguiram (v. 18). A reação dos ninivitas diante da pregação contundente de Jonas de que em quarenta dias a cidade seria destruída (Jn 3.4) é outro exemplo que podemos assimilar e imitar. O tempo dado a essa cidade e a seus habitantes era, de fato, muito curto. Nenhum minuto poderia ser perdido. O relato diz que os ninivitas creram em Deus, proclamaram um jejum e todos se vestiram de pano de saco (em demonstração do seu arrependimento). Quando Deus viu que haviam abandonado seus maus caminhos, não mais os destruiu como tinha ameaçado (Jn 4.10). É essa urgência em nossa decisão e mudança de vida que Deus espera de nós. Se Paulo, há dois mil anos, já exortava seus leitores quanto à proximidade do fim dos tempos e à necessidade de uma tomada de posição diante do convite divino à fé e ao arrependimento, quanto mais nós hoje precisamos corresponder urgentemente a esse convite. Não há tempo a perder. c) O tempo de todos é curto Da mesma forma como o tempo para nós é iminente, é urgente, muitos ao nosso redor também têm pouco tempo para responder ao convite da graça. Por isso o convite de Jesus aos pescadores da Galileia foi enfático: sigam-me, e eu os farei pescadores de homens (Mc 1.17). Eles deixaram tudo e seguiram Jesus imediatamente, para se envolver na missão de proclamar as boas novas. E porque esses primeiros discípulos cumpriram sua missão, com urgência e determinação, é que o evangelho chegou até nós hoje. Mas ainda há muitos neste mundo que não conhecem as boas novas da salvação. A esses, eu e você somos chamados para proclamar o evangelho, no pouco tempo que resta.

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4 Imagens para a prédica Pode-se usar a seguinte ilustração na prédica: Esquadrinhemos os nossos caminhos, provemo-los, e voltemos para o Senhor! (Lm 3.40). Na Guatemala, a tribo de índios Kekchi tem uma boa palavra para arre­ pendimento, cujo sentido é: “dói meu coração”. Distante dali, no interior da África, a tribo Baouli tem um vocábulo talvez ainda melhor. O termo que usa quer dizer: “dói tanto que quero desistir disso”. Essa é a experiência que o Senhor desejava para seus filhos relapsos quando disse: Esquadrinhemos os nossos caminhos, provemo-los, e volte­mos para o Senhor. Trata-se aí de uma obra pessoal de avivamento. “Esqua­drinhemos”, insta ele, “os nossos caminhos”. Não me compete esmiuçar e criticar a vida de meu próximo. Devo voltar o farol da palavra de Deus para dentro de mim e esquadrinhar meus caminhos. Está muito certo preferir os outros em honra, no decorrer normal de nossa vida, mas quando se trata de endireitar nossa situação para com Deus, somos advertidos a começar em nós mesmos. Ao nos esquadrinharmos, podemos descobrir muita coisa que careça de ajuste. Lá na África existe uma interessante palavra tribal que descreve o que acontece ao coração de uma pessoa que se arrepende. Dizem eles: “torna-se destorcido”. Isso é justamente o que Deus deseja: destorcer todas as coisas torcidas, endireitar tudo o que está torto! Pode haver alguma dor nesse processo de destorção. Deus permite que doa o suficiente para desejarmos “desistir disso” e voltar “para o Senhor”. E é isso que os índios Chol, do sul do México, querem dizer quando descrevem o arrependimento como “o coração volta atrás”. (Extraído de: ALMEIDA, Natanael B. Coletânea de Ilustrações. São Paulo: Vida Nova.)

Bibliografia RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. Santo Paulo: Vida Nova, 1988. ROBERTSON, Archibald Thomas. Imágenes verbales en el Nuevo Testamento. Barcelona: CLIE, 1989.

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4º DOMINGO APÓS EPIFANIA

31 JAN 2021

PRÉDICA: MARCOS 1.21-28 DEUTERONÔMIO 18.15-20 1 CORÍNTIOS 8.1-13

Ana Isa dos Reis Costella Irineu Costella

Palavra e ação: práxis do amor cristão!

1 Introdução

Epifania abre o “pequeno” Tempo Comum. Nesse Tempo, os textos enfatizam a revelação de Jesus como o Messias e como o cumprimento das promessas do Antigo Testamento. Essa revelação se dá até por meio dos demônios que, segundo relatos do Novo Testamento, sabem quem Jesus é. Marcos revela um Jesus que passou pela morte e a venceu por meio da ressurreição. Como Jesus tem sido revelado hoje? E o que essa revelação tem a ver com o cotidiano e com a vida? Jesus é o Messias e o Filho amado de Deus, ele é a Boa Notícia de Deus, porque traz consigo a salvação. À sua presença é impossível ficar indiferente. A revelação de Jesus como Messias provoca uma confissão e, necessariamente, seguimento ou fuga. O texto de Deuteronômio relaciona-se com o texto de Marcos na medida em que aponta para o profeta que surgirá do meio do povo e que confessamos ser Jesus. Já o texto de 1 Coríntios traz uma resposta pastoral de Paulo à preocupação quanto aos alimentos que eram usados nos sacrifícios pagãos e consumidos por cristãos.

2 Exegese 2.1 Estrutura do Evangelho de Marcos e questões pertinentes Mc 1.1 – 9.50 – A atuação de Jesus na Galileia 1.1-13 – Título, João Batista, batismo e tentação de Jesus 1.14 – 3.35 – Início da atuação: curas, conflitos, chamamento de discípulos 1.14-15 – Proclamação da boa nova, anúncio do reino de Deus 1.16-20 – Chamado de discípulos 1.21-28 – Cura do homem dominado por um espírito mau 1.29-31 – A cura da sogra de Pedro 1.32-34 – Cura de doentes e endemoniados 1.35-39 – Anúncio do evangelho 1.40-45 – Cura de um leproso Etc. 4.1-41 – Parábolas do reino e a calmaria 5.1-43 – Três curas

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6.1 – 9.50 – Rejeição em Nazaré, instruções aos discípulos, morte de João Batista, distribuição de pães e peixes, curas, confissão de Pedro, conflitos, transfiguração Mc 10.1-52 – A caminho de Jerusalém Mc 11.1 – 13.37 – A atuação de Jesus em Jerusalém Mc 14.1 – 16.8 (9-20) – Paixão, morte (e ressurreição) de Jesus O Evangelho de Marcos não descreve a vida de Jesus como os demais evangelistas ou como uma biografia no estilo da história dos imperadores. Seu objetivo é anunciar o evangelho de Jesus, o Messias, o Filho de Deus. Sua forma revela que a atuação de Jesus cria mistério, suspense, interrogações e exige uma definição de quem ele é. Mesmo que os demônios conheçam seu segredo e Jesus os manda se calar, porque não sabem adorar seu mistério nem sua ação salvadora, o evangelista Marcos cria um itinerário interessante até confessar Jesus como verdadeiro Messias e Filho de Deus. Marcos escancara que Jesus não é um Messias poderoso e glorioso, como se esperava, mas um “Messias que seguirá o caminho da cruz, que se fará último e o servo de todos, porque não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida como resgate por muitos” (PAGOLA, 2010, p. 531). O convite de Marcos para crer em Jesus como verdadeiro Messias e Filho de Deus se dá diante do Jesus crucificado e diante do seu sepulcro vazio. “É ali que Deus pode revelar-nos seu Filho” (PAGOLA, 2010, p. 533). 2.2 Olhando cada versículo V. 21 – traz informações sobre a cena (análise das versões NTLH, Nova Pastoral, Jerusalém e ARA) Local: sinagoga em Cafarnaum: local de culto e de articulação da religiosidade judaica. Dia: sábado. A perícope não deixa claro se Jesus entrou no próprio sábado em Cafarnaum ou dias antes. O que se sabe é que foi em um sábado, na sinagoga judaica, que a cena em questão aconteceu. Sujeitos da ação: somente a NTLH apresenta Jesus e os discípulos que recém haviam sido chamados e que decidiram seguir Jesus. As demais versões, assim como no grego eisporeuontai apresentam “eles entraram”, não especificando quem são esses “eles”. V. 22 – Marcos não menciona o conteúdo do ensino de Jesus, mas fala sobre a reação provocada por esse ensino: as pessoas ficaram maravilhadas. Esse maravilhar-se aconteceu por causa do modo como Jesus ensinava, diferentemente de escribas e fariseus (que eram os responsáveis pela transmissão dos conteúdos, especialmente a observância da lei). Poderíamos definir autoridade como “a habilidade de levar outros a fazerem, de bom grado, sua vontade” (HUNTER, 2006, p. 32). V. 23-26 – Enquanto Jesus ensinava na sinagoga, um anthrōpos en pneumati akathartō (homem que tinha espírito imundo/impuro) dirige-se a Jesus. O

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paralelo da perícope é apenas encontrado em Lucas 4.31-37, que menciona que estava na sinagoga um anthrōpos echōn pneuma daimoniou akathartou (homem que tinha um espírito de demônio imundo/impuro). “Os demônios são concebidos como espíritos, ou seja, poderes ‘sem carne e osso’ (cf. Lc 24.39), que incidem sobre as pessoas e lhes causam malefícios” (WEGNER, 2003, p. 5), que provocam doenças físicas e psíquicas. Os “espíritos” são designados de impuros, porque: a) a impureza é ritual e cultual, por impedirem que a santidade de Deus se torne plena e abrangente; b) a impureza provém do contato dos demônios com coisas, seres ou lugares impuros (desertos, ruínas, cemitérios, sepulcros); c) a impureza decorre do fato das pessoas sofrerem com doenças causadas que faziam com que o endemoninhado contraísse impureza legal, sendo afastado da participação na vida religiosa. “A crença na ação de demônios como causadores de doenças era muito comum na Antiguidade, tanto em Israel como nos povos vizinhos” (VOIGT, 2008, p. 65), ainda que tenhamos relatos de pessoas que não criam nem em demônios, espíritos ou ressurreição, a exemplo dos saduceus, do sofista Luciano e de Hipócrates. Em geral, os exegetas tendem a ver, na “possessão diabólica”, uma enfermidade. Tratar-se-ia de casos de epilepsia, histeria, esquizofrenia ou “estados alterados de consciência”, nos quais o sujeito projeta de maneira dramática num personagem maligno as repressões e conflitos que dilaceram seu mundo interior (PAGOLA, 2010, p. 207).

Contudo, mesmo sendo legítimo pensar dessa forma, hoje é preciso compreender a diferença cultural e temporal que nos separa e que, para aquelas pessoas, o sofrimento era real e estava ligado a forças malignas e desconhecidas. De acordo com sua mentalidade (daqueles camponeses da Galileia), são eles que se sentem invadidos e possuídos por algum daqueles seres malignos que infestam o mundo. Esta é sua tragédia. O mal que padecem não é uma enfermidade a mais. É viver submetido a um poder desconhecido e irracional que os atormenta, sem que possam defender-se dele (PAGOLA, 2010, p. 207).

Pessoas que eram consideradas endemoninhadas precisavam da ação de um exorcista para livrá-las. Esses exorcistas afastavam os demônios, espíritos impuros ou maus, por meio do uso de amuletos, anéis, incensos, cabelos ou de palavras e fórmulas misteriosas. Em geral, era usada a invocação de um nome ou palavra poderosa e muito comum era o uso do nome de Salomão (considerado senhor sobre os demônios e patrono dos exorcistas, citado, inclusive por Flávio Josefo, que menciona lendas sobre Salomão), já que o nome de Deus (Javé) não podia ser pronunciado. Jesus não recorre aos recursos utilizados pelos exorcistas de seu tempo, mas estabelece uma relação peculiar com os endemoninhados. Bastam sua presença e o poder de sua palavra para impor-se (e, até, para que esses se manifestem, pois não é possível ficar indiferente a Jesus).

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Buscando submeter os demônios, fala diretamente com eles, penetra em seu mundo, pergunta-lhes seu nome para melhor dominá-los, grita-lhes suas ordens, gesticula, põe-nos furiosos e os expulsa. Desta maneira destrói a identidade “demoníaca” da pessoa e reconstrói nela uma nova identidade, transmitindo-lhe a força sanadora de sua própria pessoa (PAGOLA, 2010, p. 210).

Diante de Jesus, o comportamento da pessoa dominada pelo espírito imundo/impuro, demônio é o de manifestar como a presença de Jesus ameaçava e intimidava. Na perícope, o espírito se manifesta no plural, “nós”, e confessa que sabe a identidade de Jesus, revelando-o como “Santo de Deus”. V. 27-28 – Novamente Marcos descreve a reação das pessoas: maravilharam-se. Se, antes, estavam maravilhadas com o modo como Jesus ensinava, agora é acrescido o modo como Jesus se relacionava também com pessoas cuja identidade fora tomada/transformada pelo espírito impuro/imundo. “Para Jesus, as curas e os exorcismos eram parte integrante do anúncio do reino de Deus [...], um sinal de que o mal estava sendo vencido” (VOIGT, 2008, p. 70). A atuação de Jesus com os endemoninhados impressionava as pessoas, perguntando onde estava o segredo de sua força tão poderosa. Com Jesus, o próprio reino se faz presente, ainda que não em sua totalidade. A ação e as palavras de Jesus revelam sua identidade de Filho de Deus, de Messias.

3 Reflexões a partir do texto Reconhecer que Jesus é o Santo de Deus envolve mais do que (apenas!) uma confissão. Significa orientar a vida a partir de Jesus, de sua boa notícia. Significa continuar realizando os sinais do amor e da misericórdia de Deus no mundo. Significa assumir o discipulado. Enquanto escrevo este recurso para o PL, vivemos a pandemia do coronavírus e, no Brasil, uma visível polarização, negação até mesmo da existência do vírus e ódio pelo diferente. Nas diversas esferas, ouvimos confissões de que Jesus não vai deixar nada de mal acontecer aos seus escolhidos e vemos gestos de “arminha” mesmo com a Bíblia na mão. Vivemos tempos em que se ouvem pessoas afirmarem que Jesus é o Messias, mas as ações dessas pessoas contradizem – até mesmo, negam – sua confissão. Ora, até mesmo os demônios reconhecem em Jesus a presença de Deus. Confessar deveria significar professar a fé com a totalidade do ser (alma, coração, entendimento, forças) e que deságua no mar da própria existência, seguindo Jesus como discípulo que carrega a marca do amor. Um confessar apenas de “boca pra fora!” é o mesmo que palavras lançadas ao vento. A autoridade de Jesus reside no fato de ser Filho de Deus e na coerência de suas palavras e suas ações. “Diferentemente dos escribas e fariseus, Jesus dava mais importância à história das pessoas do que ao ‘pecado’ como ato moral. Entrava no mundo delas, percorria a trajetória de suas vidas. Gostava de ouvi-las” (CURY, 2012, p. 23). Jesus é o maior de todos os líderes, tem a habilidade de

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influenciar pessoas, de transformar sua vida, sem obrigar quem quer que seja a segui-lo, nem mesmo as pessoas por ele curadas. “Para Jesus, as curas e os exorcismos eram parte integrante do anúncio do reino de Deus” (VOIGT, 2008, p. 70). Jesus vai além de aliviar o sofrimento das pessoas enfermas e endemoninhadas ao dar à sua atuação uma interpretação transcendente, vendo em tudo isso um sinal e manifestação do reino de Deus. Jesus tem uma preocupação genuína com as pessoas que sofrem e padecem sob doenças e forças que roubam o próprio eu das pessoas. Jesus se importa a ponto de libertar as pessoas para que possam retomar sua própria identidade. Quem seriam os possessos no tempo de Jesus? Pagola descreve: Os possessos de quem Jesus se aproxima não são simplesmente enfermos psíquicos. São pessoas desnutridas, vítimas de violências endêmicas, impotentes para defender-se de abusos insuportáveis. Os endemoninhados não se sentem protagonistas de uma rebelião contra o mal, mas vítimas de um poder desconhecido e estranho que os atormenta destruindo sua identidade (PAGOLA, 2010, p. 208s).

Entendendo que curas e exorcismos eram manifestações do reino de Deus, Jesus se empenha em promover libertação. Uma das reações diante dos exorcismos de Jesus era de desacreditá-lo e até mesmo acusá-lo de estar possuído por Belzebu. Os que lançam esta acusação não pensam no bem que Jesus faz a estes enfermos. Pelo contrário, veem em seus exorcismos algum tipo de ameaça à ordem social. Libertando os endemoninhados, Jesus está reconstruindo um novo Israel, constituído por pessoas mais livres e autônomas; está buscando uma nova sociedade. Para neutralizar sua perigosa atividade, nada melhor que desacreditá-lo socialmente acusando-o de comportamento desviado [...] (PAGOLA, 2010, p. 211).

A questão da possessão demoníaca deveria ser objeto de reflexão na preparação da homilia. A leitura do texto bíblico poderá suscitar perguntas nas pessoas, que, talvez, após o culto ou mesmo durante a semana, venham procurar a ministra/o ministro, pois têm dúvidas sobre o assunto ou porque têm curiosidade ou porque acreditam que algo parecido esteja acontecendo com alguém. O filme “O exorcista” e a frequência de cultos de libertação, promovidos especialmente por igrejas pentecostais e neopentecostais, atestam que o assunto é atual e gera debates. Danièle Hervieu-Léger, em seu livro O peregrino e o convertido, menciona o crescimento da crença do diabo na França a ponto de levar a Igreja Católica, em 1997, a refletir seriamente e propor ações de acolhimento àqueles que se dizem possuídos, além de estabelecer exorcistas oficiais. Em 2003, Uwe Wegner apresenta quatro principais interpretações atuais do fenômeno, a partir de patologias de ordem física, psíquica e espiritual: 1. A interpretação que assume, até certo ponto, a cosmovisão bíblica e interpreta o fenômeno a partir da existência e ação de seres espirituais maléficos, o que se costuma fundamentar com as práticas e ditos exorcistas de Jesus e dos apóstolos e/ou com textos como Rm 8.38s; Ef 2.2; 6.11s; Mt 25.41/Ap 12.9, etc. Entende-se

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possessão, nessa interpretação, sempre como ação de fora para dentro de alguém, sendo que sobre a identidade e as características mais exatas de tais demônios são admitidas diferenças nos detalhes. No essencial, há consenso: a ação dos demônios manifesta-se, por excelência, nos casos em que impropérios e irreverência a Deus ou Cristo aparecem conjugados com mentalidade mórbida e autodestrutiva, mais alterações físicas, como força sobre-humana, alterações faciais e de voz, insensibilidade à dor, entre outras; 2. A interpretação demitologizante clássica, representada, p. ex., por Bultmann. Esta é de opinião que os avanços científicos em áreas como medicina, física, astrologia etc. tornam perfeitamente prescindível uma crença em demônios. O pressuposto é: o que era atribuído a demônios pode ser explicado plausivelmente de outras formas. Atualmente é, sobretudo, a parapsicologia que busca interpretar racionalmente os fenômenos ligados à possessão e exorcismos através de teorias como o sansonismo, a tiptologia, telecinesia, psicofonia, xenoglosia, hierognose etc.; 3. Interpretações da psicologia e psiquiatria. Estas sustentam que as possessões representam casos de doenças mentais ou psicossomáticas, a exemplo de neuroses, psicoses e, mais recentemente, dissociações de personalidade (multiple personality disorders); 4. Interpretações sociológicas. Nesses casos, entendem-se as possessões como estratégias para o aumento da autoestima ou então como comportamentos de protesto por parte de pessoas oprimidas (WEGNER, 2003, p. 20-21).

Essas principais tentativas podem complementar-se ou corrigir-se parcialmente sem, necessariamente, se excluírem. Ainda que as novas pesquisas consigam explicar, satisfatoriamente, muito sobre questões de possessões, prossegue Uwe Wegner, há casos que deixam perguntas e dúvidas. Talvez também nós façamos bem em nos esforçarmos para a elucidação racional dos fenômenos de possessão até onde isto seja possível, evitando, contudo, prensar todos os fenômenos dentro de uma única cosmovisão – e esta muitas vezes cunhada por um excessivo iluminismo e materialismo. Será sempre salutar se conseguirmos ter uma atitude de abertura para a possibilidade de o mundo criado por Deus compreender um pouco além daquilo que conseguimos ver e examinar em laboratórios ou clínicas terapêuticas (WEGNER, 2003, p. 21).

Olhando para documentos da IECLB, encontramos dois posicionamentos: A IECLB às portas do novo milênio, de 1999, e IECLB no pluralismo religioso, de 2000, que assim se manifesta: Doenças psicossomáticas e semelhantes requerem especial serenidade, responsabilidade e discrição da nossa parte. É preciso haver discernimento entre a competência espiritual e psicossomática. Esse é o alerta do sinal amarelo. Tais doenças não poderão ser curadas por decreto, muito menos em forma de show e espetáculo público, ou seja, em assim chamados cultos de libertação. Quando há suspeita de que uma pessoa seja possessa, “necessário se faz um criterioso e abalizado estudo, assessoramento de especialistas na área da saúde e envolvimento da liderança da comunidade para uma tomada de decisão a mais objetiva possível. Como em outras áreas, também nesse assunto decisões monopolizadas pelo pastor ou pastora

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e, mesmo, por um pequeno grupo exclusivo, abrem portas ao abuso e à arbitrariedade. Constatada a veracidade do caso, o exorcismo dar-se-á pela oração, com o envolvimento do pastor ou pastora e da liderança da comunidade. A cura requer também discrição, em respeito ao paciente e à sobriedade da atuação do Espírito. De modo algum, a oração deve ser desvirtuada, pelo exorcismo, em espetáculo público para a atração de novos fiéis” (cf. A IECLB às portas do novo milênio. cad. 1, item 2.7; 2.18,6). Aí o semáforo passa para o sinal vermelho.

É importante uma reflexão – anterior à preparação do culto e da homilia – sobre a questão de possessões. Vemos propagandear que “tal dia e tal hora vamos revelar espíritos imundos/malignos e expulsá-los”, provocando perguntas em membros de nossas comunidades, curiosidade ou, até mesmo, a bricolagem da fé. Jesus não fez encenação e tampouco espetáculo. O próprio evangelista Marcos narra os acontecimentos de forma natural, sem alardes. E um detalhe: o que aconteceu em nossa perícope não foi obra de seres humanos, mas de Deus, por meio de Jesus. Cremos em um só Deus, que se revela de forma trina. Assim, as forças do mal (e não uma entidade, como se houvesse um outro deus) sucumbem diante de Deus.

4 No horizonte da pregação Penso que o tema central de Marcos 1.21-28 seja a revelação de Deus em Jesus de Nazaré. A partir de Jesus, o reino de Deus já se faz presente entre nós, ainda que não em plenitude. O “milagre” relatado é um sinal da manifestação do reino de Deus na história da humanidade. O Santo de Deus é aquele cuja palavra, assim como no Gênesis, tem poder de organizar o caos, de libertar. A Epifania é obra de Deus. Sua manifestação espera uma resposta. Assim como os magos respondem indo ao encontro e o adorando, oferecendo-lhe o que de melhor possuíam, resta esperar que percorramos o mesmo caminho. Viver o Batismo é assumir a fé em Jesus em sua radicalidade. Para além de uma confissão apenas cheia de palavras, há o imperativo de essas terem brotado de um coração e uma mente confessante. Não basta reconhecer em Jesus o Santo de Deus. É preciso que essa confissão encontre eco em minha vida. Confessar e viver a fé é deixar que Deus faça novas todas as coisas (Ap 21.5), o que inclui, necessariamente, a minha vida, minhas ações, minhas palavras, meus gestos. Se 2021 for expressão de um novo tempo, e já o será se tivermos vencido esse novo coronavírus, tanto mais a práxis do amor cristão se revelará na unidade e coerência entre palavra e ação, enraizadas em Jesus. Contudo, o pecado é uma realidade que se manifesta na minha vida, por isso Batismo é conversão diária. Também a sociedade na qual estou inserida é marcada por pecados, doenças e forças do mal. Poderíamos metaforizar a possessão (além da reflexão feita no item anterior) como tudo aquilo que nos afasta de Deus, que nos arranca a identidade de filhas e filhos de Deus, que se opõe a Jesus. Essas forças do mal poderiam ser identificadas:  na esfera sistêmica/conjuntural – injustiça, desigualdade, criminalidade, depredação do meio ambiente em nome

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de um progresso que não se classifica como desenvolvimento, enriquecimento de uma minoria sem considerar as necessidades da ampla parcela da população, “dificultação” do acesso à saúde e escola de qualidade, marginalização racial, social e econômica, desemprego, falta de políticas públicas que promovam vida digna a todas as pessoas;  na esfera pessoal/comunitária – preconceito com “o diferente”, polarização que leva a ofensas e rompimentos, negação do pedir e ofertar o perdão, ganância de ter em detrimento do ser, arrogância, fake news. Cada pregadora/pregador identificará possíveis forças do mal em mecanismos, estruturas e características onde está inserida/o. As forças do mal trazem dor, sofrimento, rompimento, exclusão, perguntas, incertezas, e muitas pessoas, famílias, a criação toda sofrem consequências diretas. A práxis de Jesus, unidade entre sua palavra e sua ação, que revela o reino de Deus, deveria ser a força para nossa atuação e da comunidade na luta contra o mal, na vivência coerente entre palavras e ações, em atividades e projetos comunitários. A marca de reconhecimento da pessoa discípula de Jesus é o amor. Sem esse amor, que é obra de Deus, não há pertencimento ao projeto do reino de Deus. O chamado de Jesus se dirige a nós. O reino de Deus que ele tanto deseja: a derrota do mal, a irrupção da misericórdia de Deus, a eliminação do sofrimento, a acolhida dos excluídos na convivência, a instauração de uma sociedade libertada de toda aflição. Ainda não é uma realidade acabada, muito pelo contrário. É preciso continuar realizando sinais da misericórdia de Deus no mundo. Essa será precisamente a missão que ele confiará aos seus seguidores (PAGOLA, 2010, p. 214).

5 Recursos litúrgicos A Liturgia de Rememoração do Batismo prevê a renúncia ao mal e a afirmação da fé. O elemento da renúncia e adesão aparece explicitamente, pela primeira vez, em Tertuliano (160 a 220 d.C.). Essa ideia, no entanto, é neotestamentária, implica uma ruptura com a “velha natureza”. Nos dizeres da igreja antiga, a pessoa a ser batizada renunciava, neste ponto, a “Satanás e a todas as suas pompas e seduções”. Segundo a cosmologia da época, a pessoa que renunciava a Satanás e aderia a Cristo passava do reinado de um para o reinado do outro. Retirava-se do poder do demônio e colocava-se sob o poder de Jesus Cristo. Dessa forma, as pessoas empreendiam um corte com seu passado (estilo de vida, determinadas atividades, a religião pagã que seguiam etc.), integrando-se a um novo presente, diferente por causa de Cristo. O batismo implica ruptura com determinadas crenças, valores e formas de vida. O elemento litúrgico da renúncia e adesão expressa que essa ruptura tem a ver com decisões e opções tomadas pela própria pessoa. E, para tanto, ela conta com a ajuda de Deus, através do seu Espírito. [...] Como a renúncia é sempre seguida da profissão de fé e esta expressa sempre implicitamente uma adesão [...] (IECLB, Livro de Batismo, p. 53s)

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Após a renúncia e a profissão de fé, segue-se, na Liturgia de Rememoração do Batismo, a possibilidade de um compromisso, que expressa a disposição do discipulado do amor.

Bibliografia CURY, Augusto. O mestre dos mestres. Rio de Janeiro: Sextante, 2012. HUNTER, James. Como se tornar um líder servidor. Rio de Janeiro: Sextante, 2006. PAGOLA, Antônio. Jesus, aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010. VOIGT, Emilio. Jesus de Nazaré: manual de estudos. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008. WEGNER, Uwe. Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos. Estudos Teológicos, v. 43, n. 2, p. 82-103, 2003. Disponível em: <http://www3.est.edu.br/publicacoes/estudos_teologicos/ vol4302_2003/et2003-2uweg.pdf>.

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PRÉDICA: ISAÍAS 40.21-31 MARCOS 1.29-39 1 CORÍNTIOS 9.16-23

5º DOMINGO APÓS EPIFANIA

07 FEV 2021

Manoel Bernardino de Santana Filho

A vinda do Senhor

1 Introdução

A mensagem do Segundo Isaías é, na verdade, um evangelho. Depois do anúncio do desastre da nação vem a mensagem de consolo. É um evangelho, porque o propósito é anunciar boas novas, dizer ao povo que o tempo da solidão, do sofrimento, da dor passou. Várias figuras estão presentes nessa segunda parte do livro (40-55). Aqui aparece o Deus que intervém, que se revela como o pastor-guerreiro, que aparece para libertar as ovelhas do jugo opressor. Isaías é um profeta que faz uma severa crítica social. O que ele pretende é que haja a conversão de toda a nação para que haja temor do Senhor e justiça social. Por isso ele inicia comunicando o castigo, para depois apresentar a promessa de salvação. Segundo ele, o sistema vigente beneficiava uns poucos e oprimia a maioria do povo, o que não é diferente do nosso tempo. As autoridades legislam em causa própria. Isaías, porém, denuncia que Deus não tolera esse sistema e que agora agirá contra a classe dominante. As imagens que apresenta são: o escravo torna-se um vitorioso; o verme torna-se um debulhador e o necessitado é assistido no deserto. Por isso o Dêutero-Isaías é conhecido como o Evangelho do Primeiro Testamento. Sua mensagem é de paz, de conforto para o mundo e não apenas para Israel. Um dos textos que acompanham essa reflexão (Mc 1.29-39) apresenta o Messias na prática da cura e libertação das pessoas. Ele não só vê o clamor da nação, como observa a necessidade da pessoa individualmente. Ele cura os que lhes são apresentados e se dirige a muitas regiões com o propósito de anunciar a salvação. No texto de 1 Coríntios 9.16-23 encontramos a missão que Jesus deixou para a igreja. Precisamos dizer como Paulo: a justiça de Deus apresentada por Jesus Cristo precisa ser anunciada por nós, que somos sua igreja.

2 Exegese

A partir do capítulo 40 de Isaías muda tudo. A linguagem é outra. Ele é o profeta do sul, de Judá. Atuou entre 740 a 701 a.C. Foi uma época difícil e complexa. Aquilo que Amós viu como uma ameaça – a invasão Assíria – Isaías viu como realidade. Sua mensagem manifesta a todo instante a preocupação com a justiça. Aqui começa a segunda parte do livro. Está em pauta a predição da libertação dos judeus do exílio babilônico. ­Isaías retrata essa libertação como iminente. Ele faz referências a Ciro como

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agente da libertação e como instrumento de Javé para salvação do povo. A mensagem agora é de consolo. As primeiras palavras expressam, com ternura e urgência, a maravilhosa mensagem que está reservada a Israel. É uma profecia que anuncia a libertação de um estado de angústia, que teve início cem anos depois da morte de Isaías. Ele previu que Judá seria deportada (capítulo anterior). Aqui ele é transportado para um período próximo ao fim do período do exílio, quando Jerusalém já havia experimentado muito sofrimento. Assim, ele se dirige a esse povo para lhe dizer que a libertação está próxima de acontecer. Tao logo chegou a mensagem do desastre, vem a seguir a mensagem de consolo. É isso que caracteriza a palavra enviada a partir do capítulo 40 do profeta Isaías. O Dêutero-Isaías destaca a salvação de Javé. O profeta levanta-se para proclamar que, embora o desastre da nação possa indicar que os infiéis tenham que cair e pagar pelos seus feitos, ainda assim existe a realidade terrena, a ser chamado de “meu povo”, para quem o Senhor é o Deus que vem ao seu encontro para mudar a sua sorte. As promessas podem ter sido confiscadas por um tempo, mas é certo que elas não podem perecer. Isaías, na perícope escolhida para nossa meditação, afirma que há apenas um Deus criador. Ele é o que mantém tudo, controla tudo e prepara tudo para o objetivo designado. Portanto acreditar nele é ser assegurado de estar protegido em seu mundo e saber que o presente e o futuro estão seguros nas mãos do Senhor. O profeta destaca que o Senhor é aquele que conhece a maneira certa de moldar o mundo e preside a história mundial com a mesma tranquilidade consumada. A soberania de Deus nos atos da criação e da preservação da criação é apresentada como uma forma de responder a todos aqueles que põem em dúvida esse domínio de Deus sobre a criação. As pessoas são, para o profeta, como “gafanhotos”, como criaturas pequenas diante da majestade gloriosa do Deus, que está no céu, mas também se apresenta como companheiro do ser humano. O mundo é como a sua tenda. Ele cuida e abriga todas as pessoas debaixo de suas asas. O profeta destaca que as decisões que os governantes tomam parecem que são decisões autônomas. No entanto, elas estão totalmente sob o poder de Deus. Ele, em seu próprio tempo, determina o que há de ser: destrona os governantes por mais poderosos que pareçam ser e tira a autoridade dos juízes que ele marcou para que não tenham mais relevância na vida de uma nação. O Senhor, em seu poder soberano, sopra e esses poderosos murcham, marcando assim o fim do seu período de prosperidade. Tornam-se como palha por causa da rápida ação do julgamento divino. O mal vem e se alastra na terra. Esse pode vir com várias “caras”: por meio de um governo despótico, por corrução desenfreada, pela desigualdade social, pela pobreza extrema da população, por meio de epidemias, catástrofes naturais ou causadas pela má administração humana, enfim, o mal pode dominar a terra por várias razões. Alguns desses males parecem que não têm fim. Seus mentores dizem a si mesmos que o que eles criaram irá dominar a terra por um longo tempo. E, no entanto, o Deus que intervém em favor do humilde, do fraco, do injustiçado, entra em cena e com um sopro leva para longe a sua maldade.

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Ele se apresenta como “Santo”, sem artigo definido, como se fosse outro nome para o Senhor. Ele age não apenas pelo seu poder, pela sua sabedoria, dignidade, soberania e autoridade. O mais relevante de tudo é sua incontestável perfeição moral. Isaías mostra que ele, o Senhor, responde por todas as coisas, no sentido de nada fugir ao seu controle. Sua ação de condução da realidade não é apenas para os acontecimentos cósmicos, para a criação do céu e da terra, para o controle sobre os elementos da natureza, mas também para o individual. Isaías mostra que esse Deus, que criou um exército de estrelas, conhece pelo nome cada item em sua complexa criação. Desta forma, como pode ele, o Deus de Israel, ser acusado de esquecer seu povo? A última parte da perícope (27-31) procura levar a pessoa do desânimo à renovação. A solução para o problema é reaprender o que já sabem e abrir os ouvidos para o que lhes já foi dito. Significa dizer que o povo de Deus já possui a verdade. Ela foi dada por profetas enviados pelo Senhor. Nosso Deus é o Eterno, o Criador, aquele que não se cansa nem se abala diante das adversidades. Portanto nenhum deles devia duvidar de sua capacidade, pois sua sabedoria é infinita. Ele nunca abandona seus propósitos. Não há nada que seja irrealizável para ele, que compartilha a força e a sabedoria. Isaías termina dizendo que a força do ser humano, por mais forte que pareça ser, tem seu limite. Mesmo aqueles que são mais jovens, em plena força física, se cansam diante das agruras da vida. Mas os que esperam no Senhor renovam suas forças. Continuam lutando com uma força que não vem deles mesmos, uma força que os renova, os reanima e os leva a lugares altos, como se ganhassem asas, graças à renovação da vida que nos vem por intermédio do Deus que não nos desampara.

3 Meditação

Enquanto escrevo esta meditação, o mundo vive momentos de tensão, desespero e morte. A incerteza está às portas. O mundo está mais triste porque o ser humano, em toda parte, foi privado de sua liberdade. Os templos foram fechados por causa das leis de reclusão e distanciamento preventivo para se evitar o contágio pelo coronavírus. Nós, pastores, pastoras e igrejas, estamos passando por um momento que nunca imaginamos. Foi preciso que, em questão de dias, nos integrássemos a novas formas de comunicação. Os mais velhos precisaram gastar mais horas, aprendendo como lidar com a tecnologia da comunicação, YouTube, Facebook, Instagram, Skype e todo tipo de rede para comunicação da mensagem do Evangelho. Depois de mais de dois meses de confinamento e de perda de parentes, amigas, amigos e membros de nossas igrejas, estamos mais tristes, mais vulneráveis, mais sensíveis, precisando ouvir palavras de ânimo, de consolação, de alento, para crer que a tempestade vai passar, crer que essa situação já dura demais e que Deus há de intervir para por fim a essa calamidade. Quando hoje assumimos nossos púlpitos solitários, com a equipe técnica que nos ajuda na edição do culto transmitido, o que nos vem a mente é: o que dizer a tantas famílias sofridas, sem recursos financeiros, dependentes muitas vezes de uma pequena ajuda do governo, com os filhos e as filhas fora da escola, sem a

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merenda escolar tão importante para a alimentação da criança pobre desse imenso país? Que palavra devemos pregar para aquelas pessoas que, a essa altura, já perderam um ente querido e sofrem pela perda de ver alguém querido indo embora sem sequer ser possível uma despedida digna? É como diz o apóstolo Paulo em Romanos 8.31: Que diremos, pois, a vista dessas coisas? Falar ao coração de Jerusalém, como diz Isaías, é a maneira de dizer que se vai falar com ternura. É uma mensagem de consolo para dizer que é chegado o tempo em que sua iniquidade foi perdoada. O trabalho árduo, a servidão, agora acabou. A medida que Deus havia estabelecido para eles havia se enchido. A dívida foi paga. A miséria acabou. O profeta ouve uma voz e anuncia um novo tempo. Alguém clama que o caminho do Senhor precisa ser preparado no deserto. É a voz do arauto que precede o rei. Anuncia que o rei se aproxima. É necessário, pois, preparar o caminho para o Deus de Judá, porque a sua rota passa pelo deserto, pelo ermo. Essa ideia do mensageiro que preparará o caminho do Senhor está presente em profetas como Malaquias (3.1). No Novo Testamento, esse profeta é João Batista, aquele que prega uma mensagem contundente de arrependimento para a nação. A essência de sua mensagem é a necessidade de arrependimento e do batismo, que expressa o estado de espírito de cada um. A mensagem que precisamos anunciar hoje é que todo o orgulho deve ser deixado de lado. Os vales aterrados significam que as profundezas do desânimo e do desalento daqueles que estavam no exílio agora precisam ficar para trás. Assim, o Senhor se aproximará de seu povo e virá para curar suas feridas. Ele virá e se manifestará a toda pessoa. O Senhor sabe da fragilidade do ser humano. Somos fracos, somos pó, somos nada. Aqui se expressa a transitoriedade da vida. Tudo passa e tudo seca e morre. A única coisa que permanece e não passa é a palavra do Senhor. Somos chamados, nesses dias de pandemia, a assumir o lugar de mensageiros de Deus, de porta-voz daquele que anuncia, por meio de seus profetas, as boas novas de salvação. O que precisamos dizer é que nenhum de nós deve perder a esperança, porque o nosso Deus caminha conosco. Precisamos dizer que ele está próximo, que sabe das dificuldades pelas quais passamos, dos medos que nos assaltam, e que suas promessas nunca falham. Ele é o Todo-Poderoso, virá em seu poder real e trará recompensas para seu povo. Virá para apascentar suas ovelhas, para cuidar de cada uma delas. Vai pôr cada uma no seu colo para que elas estejam protegidas. O profeta Isaías exalta a majestade de Deus, seu poder triunfante. Ele é incomparável. Está acima de todas as coisas, mas também se faz presente na vida da mais humilde das criaturas. A mensagem de Isaías 40 termina com a descrição do Deus que é forte e, portanto, é aquele que torna forte o cansado. Até os mais jovens se cansam e ficam fatigados. A força humana é limitada. Nossa capacidade de reação é um nada diante de Deus. Mas aqueles que esperam no Senhor, esses serão revigorados pela força do seu poder. Esperar é uma forma de exercer fé. Essa disposição é solicitada a todos aqueles que querem ver as maravilhas de Deus em suas vidas.

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Esperem nele. O Senhor nos dá a promessa e precisamos esperar confiantemente que ela vai se cumprir. Os que confiam são como as águias que vão aos lugares mais altos da terra. Aqueles que esperam no Senhor superarão seus limites, porque o Senhor é aquele que sustenta seu povo e o prepara para uma vida vitoriosa!

4 Imagens para a prédica Podemos usar várias imagens para a prédica. Vem-me à mente a figura que nos avisa que, sem horizonte, a vida perde o rumo. Israel quase perdeu o rumo, apesar dos profetas enviados por Deus para sinalizar o caminho da salvação. É preciso ouvir os profetas de Deus, homens e mulheres que falam da parte dele, porque trazem mensagens de esperança. Os pastores do povo, aqueles que são enviados pelo Senhor, mesmo em meio às crises da vida, terão sempre uma palavra de ânimo, porque o Deus que servimos é aquele que vê o sofrimento e o desamparo da vida, mas põe sempre sua palavra nos lábios de mulheres e homens que levem adiante essa mensagem para animar os cansados. Os canais de televisão, salvo uma ou outra exceção, querem que nos percamos no medo. Por isso, não se prenda tanto a esse meio de comunicação. Ouça o Espírito que fala por meio de apóstolos e profetas. Leve o povo a buscar o Senhor cheio de esperança, porque os dias tristes que vivemos haverão de passar, porque o Senhor é o Deus da vida, e vida nele é alegria. Outra figura, que devo a Milton Schwantes, é a do milagre e das pragas. Na vida encontramo-nos com as pragas, pestes, doenças incuráveis. Quem viveu no início do século XX conviveu com a gripe espanhola, que matou milhares de pessoas no Brasil e no mundo. E um dia Deus fez com que ela parasse de matar. Deu-se o milagre. A vida é feita de pragas e milagres, de gemidos de dor e gritos de alegria. Sim, milagres aconteceram e acontecem. Deus é o mesmo. Ele se faz presente no cotidiano. Quando ele quer, levanta aquele que não tinha mais esperança alguma. Ele cura aquele de quem os médicos desistiram. Quantos de nós, pastores de ovelhas, já nos encontramos nessa situação, de ver bem de perto a intervenção de Deus na vida de uma ovelha querida, um ente amado, morto para o mundo, para a medicina, mas não uma causa perdida para Deus.

5 Subsídios litúrgicos

Aproveite esse espaço e fale você mesmo de experiências que você conhece, de casos vividos em sua paróquia, de situações tidas como perdidas e, de repente, a intervenção de Deus mudou tudo. Aqui a comunidade pode abrir o coração e falar de seus medos e apreensões. É oportunidade para se mostrar a riqueza do Evangelho, do Segundo Isaías, do Novo Testamento, que nos ensina sobre a esperança cristã. Fale que a igreja é a comunidade chamada a vencer o medo, porque Jesus, o nosso Pastor, é o Senhor da vida! A congregação pode consagrar alguns momentos para ouvir esses testemunhos, ao mesmo tempo em que se cantam louvores que exaltam o poder que há no

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nome de Jesus. Vêm-me a mente Johann e Christoph Blumhardt, pai e filho, que passaram por experiências incríveis em suas vidas ao se depararem com o poder do mal na vida de uma mulher de sua paróquia. Por meio da oração incessante, viram a libertação daquela vida e puderam exclamar: “Jesus ist Sieger!” (Jesus é vencedor!). O velho Blumhardt lidou com o caso da menina Gottliebin Dittus por dois anos, vivendo, nesse meio tempo, momentos de angústia e desânimo. Mas, por fim, a menina foi curada, e a pequena aldeia de Mötttlingen tornou-se conhecida pelo grito de vitória que ecoou por toda a Alemanha: Jesus é vencedor! Sim, precisamos acreditar nessa verdade! Precisamos cantar e orar sabendo que somos ouvidos por um Deus Todo-Poderoso que nos alcança em meio às crises da vida e nos leva para um lugar seguro.

Bibliografia MOTYER, J. Alec. O Comentário de Isaías. São Paulo: Shedd Publicações, 2016. SCHWANTES, Milton; SANTOS, Rosileny Alves dos. Figuras e Coisas; meditações e ensaios para viver. São Leopoldo: Oikos, 2011.

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PRÉDICA: MARCOS 9.2-9 2 REIS 2.1-12 2 CORÍNTIOS 4.3-6

ÚLTIMO DOMINGO APÓS EPIFANIA

14 FEV 2020

Eduardo Paulo Stauder

Uma conversa entre três...

1 Introdução O texto de 2 Reis 2.1-12 apresenta Elias caminhando ao lado do seu sucessor, Eliseu. Nessa caminhada, com a sua capa, Elias abre as águas do rio Jordão, numa clara referência à história da libertação, quando Moisés abriu as águas do mar Vermelho. Como profeta, Elias deu continuidade à presença libertadora de Deus junto ao povo. A caminhada termina quando Elias sobe aos céus num redemoinho, carregado por um carro puxado por cavalos de fogo. Eliseu viu esse acontecimento e recebe o poder para dar continuidade à missão de Elias. É uma cena que apresenta Eliseu como sucessor de Elias. A carta de 2 Coríntios 4.3-6 reafirma que é por meio de Jesus Cristo que conhecemos quem Deus realmente é. A luz do conhecimento da glória de Deus brilha no rosto de Jesus. O texto da pregação, Marcos 9.2-9, mostra Jesus no alto de um monte, onde acontece a transfiguração e o rosto de Jesus brilha. Em seguida aparecem Moisés e Elias, que passam a conversar com Jesus. As leituras de 2 Reis e 2 Coríntios complementam e ajudam a compreender o texto da pregação. As duas leituras nos conduzem para o evento da transfiguração, que se apresenta como o acontecimento central. O tempo litúrgico de Epifania chega ao fim apresentando Jesus como o Filho de Deus nessa epifania no alto de um monte. Ali a glória de Deus se revela, preparando a Quaresma, pois Jesus não quer armar acampamento no alto do monte. Ele desce do monte, para que a glória de Deus se torne presente na sua caminhada em direção à cruz.

2 Exegese O Evangelho de Marcos não é uma biografia histórica da vida de Jesus. Mas a partir da cruz e da ressurreição, ele faz uma releitura da história para dentro das realidades e dos desafios das comunidades da época de sua redação. Nessa releitura, busca corrigir uma espiritualidade triunfalista que punha em perigo a fé de sua comunidade. Só o caminho da cruz é o caminho do cristão (ALEGRE, 1988, p. 33). O chamado segredo messiânico, as ordens de silêncio dadas por Jesus (Mc 1.25; 1.34; 3.12; 5.43; 7.36; 8.30; 9.9) revelam uma intenção teológica: os milagres e outros acontecimentos que revelam a glória de Jesus devem ser compreen-

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didos a partir da morte e da ressurreição. É na perspectiva do Jesus crucificado que podemos reconhecer Jesus como Messias, como Filho de Deus. O texto de Marcos 9.2-9 está inserido no contexto da caminhada de Jesus rumo a Jerusalém (Mc 8.22 – 10.52). Cura, questionamentos e perguntas, anúncio da paixão, ensino para o discipulado, são acontecimentos que antecedem e preparam a subida de Jesus ao monte (9.2-9), onde acontece uma revelação que reafirma Jesus como Messias, como Filho de Deus. Essa revelação vem acompanhada de cenas, imagens, sons que transcendem a realidade, produzindo uma manifestação de Deus. A manifestação acontece em dois momentos. No primeiro, há uma metamorfose em Jesus. Aparecem Moisés e Elias, e entre os três se estabelece uma conversa. No segundo momento, uma nuvem vem sobre a montanha e se ouve a voz de Deus, fazendo um anúncio. No meio desses dois momentos, temos uma fala de Pedro, que revela a incompreensão dos discípulos diante do que está acontecendo. Quando a revelação termina, Jesus desce a montanha e solicita que os três discípulos, que ele levou junto, permaneçam em silêncio e não falem nada do que viram e ouviram no alto do monte. A narrativa dos acontecimentos em Marcos 9.2-9 é dirigida aos discípulos. Isso fica evidente por meio da voz que vem do céu e diz: escutem o que ele diz (v. 7). A voz está falando com e para os ouvintes. Ao falar com e para os discípulos, se está pensando nas comunidades. Esse texto busca definir para as comunidades quem é Jesus e, a partir da postura dos discípulos diante da revelação de Deus, apresenta a questão do discipulado. O v. 2 é uma introdução. Nele consta quando a cena acontece, quem participa, onde acontece e o que acontece. Quando? Seis dias depois que Jesus teve uma conversa dura com Pedro, após Jesus anunciar que iria a Jerusalém para morrer e Pedro rejeita o caminho da cruz. Esse período de seis dias pode indicar simplesmente um intervalo de tempo entre dois eventos relacionados. Alguns exegetas relacionam o período de seis dias a Êxodo 24.16, quando Moisés permanece seis dias no monte Sinai, que é coberto pela nuvem de Deus. No sétimo dia, Deus chama Moisés para entrar na nuvem. Seis dias também é o tempo que demora a purificação sacerdotal e o período de jejum antes dos festivais. Na festa das tendas, após seis dias se chega ao último dia, que é o mais importante (Jo 7.37). Nessa comparação, o último grande dia seria o dia da transfiguração (GRUNDMANN, 1977, p. 237). Na história da criação em Gênesis 1, no sexto dia Deus criou o homem e a mulher. Conforme Marcelo Barros, “Marcos retoma essa tradição como para dizer que a paixão de Jesus é a criação de uma nova humanidade”. Onde? No alto de um monte, que na tradição bíblica é o lugar da revelação de Deus. Na montanha revela-se em Jesus a glória escatológica. Quem? Jesus e os três discípulos, Pedro, Tiago e João. Jesus é quem leva junto os discípulos. O verbo levar junto pertence ao contexto do segredo messiânico (Mc 5.37; 9.2; 10.32; 14.33). Os discípulos acompanham todo acontecimento como testemunhas. Em outros momentos do Evangelho de Marcos (5.37) também são esses três discípulos que acompanham Jesus. No alto do monte, quando Jesus escolhe seus discípulos (3.13), os três receberam novos nomes (3.16).

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O que acontece? No alto da montanha Jesus passa por uma metamorfose. Ele muda. A transfiguração revela o exercício da releitura da pessoa de Jesus. Aquele que era compreendido como profeta, após a morte na cruz e a ressurreição, precisa ser compreendido de um jeito novo. Precisa de uma transfiguração. Aqui vai se moldando a imagem de Jesus como filho de Deus, como a voz que vem da nuvem anuncia. O v. 3 descreve a mudança pela qual Jesus passa. Seu rosto brilha e sua roupa fica branca. O rosto que brilha encontra referências no Antigo Testamento, quando Moisés aparece após ter falado com Deus (Êx 34.29-35). A roupa branca seria uma veste simbólica que representa a túnica branca dos mártires (MYERS, 1992, p. 304). De veste branca, com o rosto brilhando, Jesus conversa com Moisés e Elias (v. 4). A aparição desses dois profetas lembra que eles, em momentos cruciais de desânimo de sua missão, estiveram no alto de uma montanha, onde tiveram uma epifania (Êx 33.18s; 1Rs 19.11s) . Ao lado da lei e dos profetas é colocada a cruz, de modo que Jesus resume, agora, toda essa história. Diante da revelação que veem, Pedro se dirige a Jesus e pela primeira vez o chama de Rabi (v. 5), apresentando a proposta de construir três tendas, ou seja, gostaria que aquele evento perdurasse. Revela o desejo de ficar no alto da montanha. Essa atitude de Pedro ganha uma explicação (v. 6): os discípulos estavam tomados pelo medo. A proposta de Pedro apenas demonstra que ele não sabia o que dizer. Eles não compreendem o que está acontecendo, o que revela toda dificuldade e resistência em acompanhar Jesus no caminho da cruz. A epifania termina com uma nuvem que os cobre, de onde vem uma voz que anuncia Jesus como o filho amado de Deus, o qual deve ser escutado (v. 7). No batismo de Jesus também surge uma voz que o chama de “meu filho amado”, estabelecendo com Deus uma nova aliança. Essa filiação divina, que é conferida a Jesus pela voz celestial, não é reconhecida por nenhum dos discípulos, apenas pelo centurião que comanda a execução (Mc 15.39). Após a voz, a epifania termina e apenas Jesus permanece com os discípulos (v. 6). Eles descem a montanha e Jesus manda que fiquem em silêncio e não contem nada do que aconteceu até a sua ressurreição (v. 9).

3 Meditação A geografia marca a revelação de Deus relatada em Marcos 9.2-9. Ela não acontece na planície, mas no alto da montanha. Não se sabe qual é essa montanha. Mas qual seria o motivo para identificá-la? Construir no alto dela um lugar de peregrinações, onde fosse possível experimentar a glória de Deus? Armar no alto dela uma tenda? A montanha não quer ser identificada, mas o discipulado quer ser motivado e animado. A revelação foi algo extraordinário, que enche os olhos e impressiona, mas a glória de Deus ali revelada não é um ponto de chegada, e sim de partida, que nos impulsiona a descer a montanha e seguir no caminho da cruz. No relato do Evangelho de Marcos, a dificuldade dos discípulos em compreender diversos acontecimentos e ensinamentos de Jesus (Mc. 4.40; 5.31; 7.18; 8.4; 9.5; 14.3-9) também está relacionada à perspectiva teológica de que é a partir da cruz que entendemos e reconhecemos quem é Jesus. A relutância dos discípulos

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em seguir pelo caminho da fraqueza, do serviço, da cruz, faz com que eles não reconheçam quem é Jesus e tenham dificuldades em compreender seus ensinamentos. Ao mostrar os discípulos dessa forma confusa e insegura, Marcos busca abalar a autossegurança de sua comunidade. Assim como os discípulos fracassaram diversas vezes, isso também pode ocorrer com qualquer membro da comunidade cristã. Ao apresentar os discípulos dessa forma, reafirma-se que só se pode entender quem é Jesus se se estiver disposto a segui-lo no caminho da cruz (ALEGRE, 1988, p. 38). É a partir do Jesus crucificado que devemos buscar compreender os acontecimentos relatados no alto do monte, onde acontece a transfiguração (9.2-9). Quem é Jesus? Essa resposta não vem de forma filosófica, pelas ideias ou pela dedução. Essa resposta vem pela convivência com a vida humana de Jesus, que é a única imagem de Deus que nos é acessível neste mundo (COMBLIN, 1986, p. 42). Quando Jesus leva junto Pedro, Tiago e João para o alto da montanha, é para confrontá-los com a palavra de Deus. Nesse confronto, os discípulos apresentam seus sentimentos, sua compreensão de quem é o Messias. Esse confronto fá-los repensar suas opiniões, seu jeito de viver. Fá-los aprender o caminho da cruz. No alto da montanha, Jesus conversa com Moisés e Elias. O encontro desses profetas reafirma onde encontramos Deus. Ele não está numa tenda que é armada. Ele não está no alto de uma montanha sagrada. Ele está agindo na história, se fazendo presente na vida das pessoas, construindo uma relação que promove vida e esperança. Nos momentos de fraqueza, Deus foi ao encontro de Moisés e de Elias, sustentando-os e animando-os a darem continuidade à sua missão. Da mesma forma, Deus vai ao encontro de Jesus, o sustenta, anima e possibilita que ele possa se encontrar, conversar com os outros profetas. Nessa convivência com o passado, a glória de Deus se revela, não para construir tendas, mas para que as experiências do passado continuem sendo testemunho de fé e esperança. O testemunho fala do passado, da experiência vivida, mas nos impulsiona para frente, nos faz viver a fé. Jesus deu continuidade à tradição dos profetas. Ele dá continuidade ao caminho de Moisés e Elias. Mas Jesus não é somente profeta. Como a própria voz de Deus anuncia no alto do monte: Este é o meu filho amado. Escutem o que ele diz. Jesus é a presença de Deus junto às pessoas. Ele vem para nos conduzir à liberdade. Ele vem para que os mandamentos de Deus sejam obedecidos a partir do amor. Em Jesus se estabelece um novo critério de interpretação das Escrituras, pois é a ele a quem devemos escutar.

4 Imagens para a prédica O texto de Marcos 9.2-9 é marcado por uma grande riqueza de imagens: Jesus e os discípulos subindo a montanha; o rosto de Jesus brilhando; o encontro entre Jesus, Moisés e Elias; Pedro propondo que tendas sejam armadas; os discípulos tomados pelo medo; a nuvem sobre a montanha; a voz que vem da nuvem; Jesus ordenando o silêncio aos discípulos. Essas imagens despertam sentimentos, pensamentos e fazem a imaginação dançar, podendo ser exploradas na pregação e em diferentes momentos da liturgia.

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Quando penso no encontro entre Moisés, Elias e Jesus, lembro-me da imagem de uma equipe de barco a remo. No barco a remo, os remadores estão sentados olhando para trás e não para frente. A equipe olha para trás, mas rema avançando para frente. O encontro entre Jesus e esses dois profetas não foi para cultuar o passado, mas foi para revelar a glória de Deus que continua agindo na história, conduzindo o povo para a vida em liberdade. As experiências do passado são testemunhos que nos fazem viver a fé no presente e avançar para o futuro com esperança. A celebração acontecerá próxima do carnaval, o que possibilita uma comparação do texto com esse período de festas (isso se a pandemia do coronavírus permitir que aconteçam as festas de carnaval, o que não sabemos neste momento em que o texto é redigido). Muitas pessoas vivem em função da festa de carnaval. É um momento de glória, mas que preenche a vida dando ânimo para enfrentar as dificuldade do resto do ano. A transfiguração de Jesus no alto do monte apresenta a glória de Deus, para que ela nos preencha de fé, alegria e esperança para enfrentarmos os desafios da vida.

5 Subsídios litúrgicos A confissão de pecados pode ser elaborada pensando na atitude dos discípulos no alto do monte, quando querem armar tendas diante da revelação de Deus. Quantas vezes nós queremos armar tendas, construir, manter uma situação que nos garanta toda comodidade e beleza da vida. Negamos o caminho da cruz, procurando assegurar momentos de glória nas alturas. Fugimos das situações de dor e sofrimento. Esquecemos que é preciso descer o monte e voltar para a planície. No momento da bênção final e do envio, podemos lembrar que no alto do monte não foi somente Jesus que se transformou. Pedro, Tiago e João também se transformaram. A glória de Deus encheu os olhos deles e tomou conta de suas vidas. A glória de Deus também quer tomar conta de nossas vidas. Não para fugirmos ou nos escondermos das dificuldades e sofrimentos da vida, mas para que sejamos fortalecidos na fé e assim possamos, com esperança e perseverança, enfrentar toda dor, sofrimento e injustiça. A bênção de Deus quer nos preencher com essa glória para seguirmos como testemunhas do Cristo crucificado e ressurreto.

Bibliografia ALEGRE, Xavier. Marcos, a correção de uma ideologia triunfalista. São Leopoldo: CEBI, 1988. BARROS, Marcelo. Nossas transfigurações de cada dia. Disponível em: <http:// www.marcelobarros.com/blog/nossas-transfiguracoes-de-cada-dia/>. COMBLIN, José. Jesus Profeta. Estudos Bíblicos. Petrópolis: Vozes, 1986. v. 4, p. 41-59. GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Markus. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1977. (Theologischer Handkommentar zum NT). MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992.

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17 FEV 2021

PRÉDICA: 2 CORÍNTIOS 5.20b – 6.10 JOEL 2.1-2,12-17 MATEUS 6.1-6,16-21

Bianca Daiane Ücker Weber Eder Alan Ferreira Weber

Ser de “verdade”!

1 Introdução A perícope destinada à pregação de hoje está dentro do contexto do apelo do apóstolo Paulo à reconciliação com Deus. Os versículos em questão fazem uma comparação entre a honra e responsabilidade versus os sofrimentos e as dificuldades dessa tarefa. Fica claro na teologia de Paulo que a reconciliação é um processo de constante testemunho. A pessoa reconciliada precisa compreender-se responsável pela continuação da divulgação dessa graça. E, conforme Paulo, ela o faz na condição de embaixadora de Cristo, título que carrega grande responsabilidade, demonstra importância e relevância, e requer um zelo “diferenciado”. Pessoa cristã precisa ser de “verdade”, acertando, errando, pedindo perdão, recomeçando. Do Antigo Testamento, a perícope de Joel 2.1-2,12-17 está inserida no contexto da iminente chegada de um bando de gafanhotos. Nos v. 1-2, o profeta alerta para o perigo e o tamanho (quantidade) dos inimigos que se aproximam: Um povo grande e poderoso, como nunca houve igual desde os tempos antigos, nem haverá outro depois dele pelos anos seguintes, de geração em geração (v. 2b NAA). Na segunda parte da perícope, Joel exorta o povo a converter-se ao Senhor. Mesmo diante de tão grande perigo, Deus pode escutar sua oração e mudar seus planos com relação a eles. Joel enfatiza que a conversão deve acontecer no coração, e não superficialmente. Rasgar as vestes demonstrava tristeza e arrependimento, mas era um sinal externo. A verdadeira mudança precisa começar por dentro, pelo coração! Mateus 6.1-6,16-21 aponta para a necessidade da naturalidade da pessoa cristã nas suas obras em favor dos necessitados e diante de Deus. Obras de justiça, esmolas, orações e jejuns não devem ser utilizados para autopromoção. Sua realização deve ser discreta. Não é necessário (nem aconselhável!) fazer alarde, porque Deus as vê e nos recompensará por cada uma delas. Por fim, Mateus, assim como Joel, mostra a importância do nosso “coração”, daquilo que é verdadeiro para nossa vida de fé.

2 Exegese Os v. 20-21 de 2 Coríntios 5 encerram o último bloco deste capítulo apresentando um tema central: Paulo afirma a convicção cristã de que no “evento” Cristo um novo mundo havia nascido e uma nova era estava sobrevindo na his-

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tória deste mundo (MARTIN, 1986, p. 158). Assim, o ministério da reconciliação com Deus acontece a partir de uma nova possibilidade de vida e de mundo. Mesmo que ainda envoltos em pecado, Jesus nos abre as portas do amor de Deus e oferece uma nova chance de vida! No capítulo 6 Paulo continua expondo o tema do seu ministério apresentado em 5.20 (embaixadores em nome de Cristo). Os v. 1 e 2 são a continuação do final do capítulo 5. Para reforçar seu apelo, ele chama a comunidade de Corinto a uma verdadeira conversão (v. 1: não recebam em vão a graça de Deus). E ele acentua esse pedido citando as Escrituras Sagradas: No tempo aceitável escutei você e no dia da salvação eu o socorri (Is 49.8). Paulo indica que o presente é tanto “o tempo correto para o agir de Deus” como “o tempo correto para Deus agir”. Após o v. 2, contudo, percebemos uma quebra no seu raciocínio, pois Paulo sai do tema “reconciliação” e passa a recomendar-se aos coríntios como sendo alguém digno do seu ministério e do amor daquela comunidade. Acredita-se que Paulo tenha usado um texto preexistente (v. 4 a 10). O paralelo mais próximo que se encontra está no Apócrifo de Enoque 66.6 (7). É possível que Paulo tenha retrabalhado um texto conhecido, pois nota-se que alguns dos termos são polêmicos, provavelmente com a intenção de direcioná-los a alguns opositores. Contudo, também se percebem alguns traços autobiográficos de Paulo. Em resumo, Paulo provavelmente pegou um texto de natureza estoica e o editou de acordo com o seu propósito. A reconciliação com Deus torna-nos embaixadores da sua palavra e cooperadores com Cristo. O embaixador (a forma verbal prebeuomai é aqui usada, a qual significa “ser enviado como embaixador”, “trabalhar como embaixador”, “ir como representante”) (CHAMPLIN, 2014, p. 445) tem diversas atribuições, das quais destacamos: ser um “construtor de pontes” e “representar aquele que o envia”, sendo um reflexo do mesmo. Ele ou ela está investido de grande honra, pela qual deve zelar. Assim, não pode envolver-se em atos errados e diferentes do que aqueles pelos quais fora enviado, para não comprometer o padrão de conduta de quem o enviou. Além disso, precisa ser uma pessoa distinta, respeitosa, habilidosa para conciliar e portadora de um espírito diplomático. Já a pessoa cooperadora é aquela que trabalha em conformidade com a graça que está representando. Essa graça a prepara, inspira e anima para propagar a mensagem divina. Ela pode até não carregar o glamour do status de embaixador, mas o chamado à fé cristã é, em primeiro lugar, um chamado à cooperação. É interessante notar que as diferenças entre ser uma pessoa embaixadora e cooperadora não atrapalham aqui, pelo contrário, elas se somam para formar o caráter do testemunho cristão: uma grande responsabilidade em vários sentidos, mas que não nos joga à própria sorte. Quando embaixadores estão representando seus países, estão longe de sua gente e da sua terra. Contudo, os embaixadores/ cooperadores cristãos assumem uma parceria com o próprio Cristo, que caminha junto com eles por meio do Espírito Santo. O primeiro mandato concernente à cooperação pede que a graça de Deus não seja recebida em vão. No grego, kenos significa “sem conteúdo”, “sem base”, “sem poder”, “sem resultado”, “sem proveito”, “sem efeito”. No contexto de 2 Coríntios 6, essa exortação de Paulo pode significar que ele provavelmente estava

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se dirigindo a crentes fracos, pessoas susceptíveis a serem desviadas ao paganismo, possivelmente por tentarem inadequadamente atingir o padrão cristão de santidade. Paulo alertava ao erro de se receber essa graça de forma leviana e sem propósito. A graça de Deus é gratuita, mas não sem valor. Aceitá-la não nos é um custo, mas um compromisso: é necessária nossa resposta positiva, uma resposta que não nos deixe apenas contemplando, mas que nos leve à ação de viver essa graça. Outro ponto que pode ser explorado na pregação encontra-se no v. 3: não dar motivo de escândalo para não ser censurado. O termo “escândalo”, proskopē no texto original, utilizado apenas no grego bíblico, tem seu sentido e uso igual ao do vocábulo proskomma, “tropeço”, “ofensa” ou razão para um mau passo ou ofensa. “Escândalo”, então, assume o significado de “obstáculo”, onde alguém pode tropeçar. Se optar por trabalhar mais esse versículo, pode-se ressaltar a preocupação de Paulo com relação ao testemunho no todo do seu ministério. Paulo queria evitar o “façam o que eu falo, mas não o que eu faço”. Além de ser articulado com suas palavras, o apóstolo também demonstrava ser cuidadoso com o todo do seu ministério. Paulo deixa claro o alto preço que o sacerdócio cristão cobra, independentemente se somos ministros ou ministras ou se fazemos parte da comunidade cristã. As pessoas naturalmente se esforçam e buscam posições de honra na sociedade, trabalho e família, mas dificilmente irão competir para serem servos e servas da pessoa próxima. Ser cristão significa estar disposto a servir sempre, mesmo quando tudo for desfavorável. É nesse sentido que “funciona” a parceria de cooperação com Deus.

3 Meditação Na meditação, convide a comunidade a refletir sobre as aparências. Há um ditado, bastante conhecido, que diz: “As aparências enganam”. Certamente você já experimentou a concretude disso. Você já se encantou com a beleza de um doce, imaginou um sabor e, quando provou, teve uma profunda decepção? Ou então achou incrível o título de um livro, comprou, e quando leu, não achou tão interessante assim? Ou quem sabe, comprou um calçado imaginando grande conforto e durabilidade, mas na verdade apertou o pé e não durou? Sim, muitas coisas aparentam ser algo que não são. Mas quando se trata do mundo das “coisas”, tudo bem! O problema é quando se trata do mundo das “pessoas”: viver de aparência não cria relacionamentos saudáveis, verdadeiros, confiáveis. É só aparência. Falar de aparências no mundo da fé requer muito cuidado, pois não se trata apenas de “camuflar” a essência de uma pessoa, mas também de tomar cuidado para que a imagem de Deus seja vista na essência, como um Deus que ama, perdoa e acolhe todas as pessoas. A aparência no mundo da fé atrapalha, como bem apontam os textos bíblicos propostos para este culto. Tais textos sublinham a importância daquilo que é verdadeiro. O período da Quaresma convida a comunidade a exercitar a fé, deixando as amarras da aparência de lado, pois elas oprimem, afastam de Deus e do convívio saudável com as pessoas. O texto de 2 Coríntios mostra a “vida como ela é”, com

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altos e baixos, alegrias e tristezas, apontando sempre para a verdade e não para a aparência. O texto fala de não atrapalhar outras pessoas na jornada de fé, mas sim mostrar que Deus oferece graça e salvação a todas as pessoas e que ele estará ao lado de quem se alegra, sofre, trabalha, fala, é pobre ou rico. A fé convida a testemunhar este Deus que transforma o ser, que liberta e salva com a sua graça. A fé não convida as pessoas a serem “impostoras”, anunciando um Deus de aparência, mas sim um Deus encarnado em Jesus, que se sacrificou pela humanidade. Há outro ditado que diz: “Não basta apenas ser honesto, precisa parecer honesto”. Na lógica de Deus, não basta apenas parecer honesto, mas é necessária uma honestidade que brota do coração e que transforma todo o nosso ser. Uma honestidade que é capaz de reconhecer os próprios erros, pedir perdão e recomeçar. A pessoa cristã não precisa aparentar que não tem sofrimentos e dificuldades. Paulo mostrou com honestidade a realidade de ser servo de Deus. Isso está presente em todo o texto. Desafie a comunidade a pensar que é melhor se esforçar para ser verdadeiro, honesto, do que se esforçar para aparentar alguma coisa que não se é. Isso revelará humanidade e a necessidade da ação amorosa de Deus.

4 Imagens para a prédica Quaresma convida para a busca das coisas verdadeiras. Sugere-se que sejam espalhados, em algumas cadeiras, alguns objetos que aparentam ser algo, mas que não são. Por exemplo: garrafa de água com gás, substituindo a água com gás por água da torneira; lata de achocolatado, com açúcar; garrafa de guaraná, com chá; embalagem de MM com passas de uva etc. No início da pregação, solicitar que as pessoas descubram o que está no interior das embalagens próximas. Será um momento de surpresa e frustração. Reflita sobre a importância de ser verdadeiro, utilizando a frase de autoria desconhecida que diz: “Em um mundo feito de aparência, feliz é aquele que é feito de verdades”.

5 Subsídios litúrgicos Utilizar o texto de Joel 2.12-17 como motivação para a confissão de pecados. Sugestões do Livro de Canto da IECLB: 21 – Um grande anseio; 41 – Conforme a tua infinita graça; 43 – Das profundezas clamo a ti; 587 – Tal qual estou. Poema “As aparências enganam”, de Braulio Bessa. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rLPI9MSE7xY>.

Bibliografia CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2014. v. 4. CHANFIN, Kenneth L. The Communicator´s Commentary. Waco (Texas): Word Books, 1985. MARTIN, Ralph P. Word Biblical Commentary. Waco (Texas): Word Books, 1986. v. 40.

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21 FEV 2021

PRÉDICA: 1 PEDRO 3.18-22 GÊNESIS 9.8-17 MARCOS 1.9-15

Nilton Giese

Identidade cristã

1 Introdução A primeira leitura, Gênesis 9.8-17, contém a “aliança de Deus com Noé”. A aliança famosa, a mais importante, terá lugar mais tarde, a aliança com Abraão. A aliança com Noé garante que nunca mais haverá dilúvio para destruir a terra! É o que Deus assegura a Noé (Gn 9.11). E essa promessa vem acompanhada por um memorial: o arco-íris, sinal do novo pacto entre Deus e a humanidade. O medo do “dilúvio” foi quebrado! Agora temos uma nova aliança e uma alternativa de vida para todos os seres vivos. A arca transforma-se numa grande casa acolhedora da vida, onde o cuidado com os animais se destaca de uma maneira especial (Gn 9.1-7). É a casa da vida que coloca o ser humano em comunhão com a terra, a natureza e o cosmo. Marcos 1.12-15 reporta-se à cena em que Jesus foi tentado por Satanás, ao cabo do que os anjos passaram a servi-lo. O confronto com Satanás, como princípio do mal, está presente na vida de Jesus em sua proclamação do reino de Deus. O deserto deixa de ser lugar de prova e penitência, segundo a tradição judaica, para converter-se em lugar de aprendizagem no confronto. O Espírito de Deus leva Jesus até a memória fundacional de Israel, quando, vencendo Satanás, a vida torna-se fidelidade a Deus e ao humano. Marcos reescreve a história, levando-nos da água do batismo à reconstrução da humanidade, para dizer-nos que Jesus está aí apostando numa opção de vida, dignidade e felicidade humanas. Mas Jesus não assume o combate sozinho. Está junto com os animais e os anjos, como que evocando um novo paraíso. Ao retomar o “paraíso” para reiniciar o caminho do humano, Jesus conta com forças naturais e angelicais (a terra e o céu) favoráveis. Obviamente, os quarenta dias do deserto não desaparecem no ministério de Jesus. Eles permanecem e são paradigma da contradição e do desequilíbrio que permanentemente atravessam a história.

2 Exegese A Primeira Carta de Pedro foi redigida possivelmente no final do primeiro século (nos anos 90) na comunidade judaico-cristã de Roma. Ela não foi escrita pelo apóstolo Pedro (que morreu nos anos 50-60), mas a memória de Pedro havia se tornado uma figura de grande prestígio em toda a igreja. Como um dos primeiros apóstolos

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e como mártir de Roma, a palavra de Pedro tem credenciais. Entre os destinatários da carta estão cristãos da Ásia Menor, mais precisamente os eleitos na dispersão (1.1). Ao dizer que as pessoas cristãs foram “eleitas” por Deus, a carta diz que o batismo é um ato que acontece por iniciativa divina, mas que tem consequências na forma de vida das pessoas. Por isso o batismo é sempre ponto de partida. A partir daí as pessoas cristãs se distinguem por sua forma de vida. E três atitudes são fundamentais em toda pessoa/igreja cristã: são pessoas 1) que se apoiam umas as outras, 2) que partem o pão e 3) que praticam a espiritualidade e a oração. Mas como os recém-batizados ainda não estão suficientemente firmes para conviver com os conflitos e as adversidades, a carta tem o propósito de confirmar a identidade cristã e sensibilizar para a solidariedade e unidade da igreja (SCHMIDT, 2011, p. 116).

3 Meditação O apóstolo Pedro enfatiza que para ser uma pessoa cristã, para ser uma pessoa seguidora de Jesus Cristo e membro de uma comunidade/igreja cristã é preciso ser “assim como Cristo”. As pessoas a quem a Carta de Pedro se dirige são pessoas que recentemente entraram para a comunidade cristã e que não entendem por que não se pode ser cristão e adorar os deuses romanos, e até mesmo o imperador, ao mesmo tempo. Eles ainda não estão suficientemente firmes para conviver com os conflitos e as adversidades. Por isso a carta tem o propósito de confirmar a identidade cristã, animar as pessoas para a prática da solidariedade e fortalecer a unidade da igreja. Ao dizer que Jesus sofreu no corpo, o autor quer dizer que Jesus sofreu como ser humano. Jesus foi verdadeiramente humano, morreu como ser humano, mas o amor de Deus o vivificou pelo Espírito (pneuma). O apóstolo Pedro diz a esses novos cristãos que quando eles se mantêm fiéis a Jesus e seus ensinamentos, eles passam a ter o mesmo cuidado de Deus que Jesus teve. Também nós podemos estar certos da presença, do acompanhamento, do conforto e consolo de Deus e da promessa da ressurreição. Pois esse Jesus Cristo foi para o céu e agora está sentado à direita de Deus (v. 22), a quem estão submissos os anjos, as autoridades e os poderes do céu. Portanto adorar os deuses romanos é inútil, pois é Jesus que tem o poder sobre todas as coisas. Todas as situações da vida e da morte estão sob seu governo. Inspirados no exemplo e na autoridade de Jesus, os cristãos são chamados a resistir ao mal e manter a consciência limpa. Se há alguma justificativa para o sofrimento de um cristão, esse consiste em manter a consciência limpa (3.21). Aqui o apóstolo enfatiza o comportamento ético das pessoas cristãs. O apóstolo Pedro lembra que o único sofrimento digno de ser sofrido é aquele que se sofre em nome da justiça, da verdade e da fidelidade a Deus. Assumir o evangelho, testemunhar Cristo tem implicações concretas para a vida pessoal, familiar, comunitária e social. Exige rupturas, opções e renúncias. Há um preço que devemos pagar. Lembremos que a carta de 1 Pedro foi escrita no período mais duro da perseguição aos cristãos. A primeira perseguição (na qual foram executados também os apóstolos Pedro e Paulo) foi promovida pelo imperador Nero contra as

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comunidades cristãs em meados da década de 60. Mas no ano 94 aconteceu uma perseguição ainda maior, sob o imperador Domiciano. Os primeiros cristãos foram perseguidos majoritariamente pelo fato de não adorarem os deuses romanos ou por não participarem dos rituais cultuais em favor do imperador e do império. Adorar os deuses romanos significava demonstração de patriotismo, de respeito à pátria e às suas autoridades. Por isso muitas pessoas cristãs viviam na clandestinidade. Elas se reuniam com outras pessoas cristãs de forma escondida, seja na casa de alguém e até mesmo nas catacumbas. Nesses encontros elas contavam as histórias de Jesus, cantavam hinos e partiam o pão na celebração da Santa Ceia. Os primeiros cristãos eram muito solidários entre si. A perseguição romana deixou muitas crianças órfãs e muitos velhos sem o cuidado dos filhos e filhas. Mas na comunidade cristã não havia meninos e meninas de rua ou velhos abandonados. Entre eles não havia necessitados, nos diz Lucas em Atos 2.43-47. Diante da necessidade de alguma pessoa, sempre havia alguém disposto a vender suas propriedades e dividir o dinheiro com a pessoa necessitada. No entanto, negar-se a adorar os deuses romanos e o imperador como um deus foi considerado um crime político. A partir disso, muitas pessoas cristãs foram denunciadas por seus vizinhos. Existiam diversas formas de julgamento, mas a forma mais comum era assim: a pessoa cristã deveria publicamente sacrificar um animal aos deuses romanos e pronunciar uma maldição a Jesus Cristo. Fazendo isso, ela seria libertada. Se ela se negasse a fazer isso, então ela seria sentenciada por falta de patriotismo e condenada a trabalhos forçados e até à morte. Embora na hora H muitos cristãos apostatassem (esse era o termo para se referir às pessoas que fraquejaram, que não aguentaram a pressão, o sofrimento e abandonaram a fé cristã, adorando os deuses romanos e amaldiçoando Cristo), houve também aquelas pessoas que permaneceram firmes em sua fé em Cristo. Entre eles, segundo a tradição: Natanael ou São Bartolomeu (?-?): Era um dos 12 apóstolos. Nasceu em Caná, a cidade onde Jesus transformou água em vinho. Depois da morte do Mestre, alguns relatos dizem que ele foi para a Índia, outros que ele foi para a Armênia, onde converteu o rei. Em retaliação, ele teria sido preso por sacerdotes e torturado: sua pele inteira foi arrancada. Depois, teria sido morto (segundo tradições distintas) por espancamento, degola ou crucificação de ponta-cabeça. Santo Inácio de Antioquia (35-108): Nascido na Síria, Inácio se revelou um teólogo expressivo e um bispo de renome. Foi aluno do apóstolo João e o terceiro bispo da importante cidade de Antioquia. Preso na Síria e levado a Roma, tornou-se o primeiro cristão destroçado e devorado por leões no Coliseu, a mais importante arena do Império Romano. São Policarpo (69-155): Era conhecido dos primeiros apóstolos e se tornou bispo de Esmirna, na atual Turquia. Foi condenado à morte durante o governo de Marco Aurélio, que havia determinado que todo cidadão do império deveria louvar os deuses romanos. Policarpo foi preso a uma estaca para ser queimado. Mas, milagrosamente, ele parecia imune ao fogo. Sendo assim, acabou esfaqueado.

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Deus não deseja o sofrimento de ninguém, mas, a partir do batismo, os primeiros cristãos entendiam que há, sim, uma forma de vida em que ele deve e pode ser assumido: uma vida em fidelidade ao amor de Deus em Jesus, uma vida que se importa com o sofrimento das pessoas e com a destruição da boa criação de Deus. A partir do batismo, toda pessoa cristã é chamada a assumir as consequências e os desdobramentos do seu compromisso com o reino de Deus.

4 Subsídios litúrgicos Quando vejo a terra destruída e abandonada, quando vejo muitos lugares e muitas vidas arrasadas pela fúria do rio que arrasta tudo que encontra pela frente, quando vejo pessoas que ficam olhando a destruição provocada por uma enchente ou pelo fogo em que perderam tudo, quando vejo o agricultor carente de recursos e que olha com tristeza para a plantação destruída pelo granizo, eu me pergunto: Onde estão as tuas mãos, Senhor? Quando observo a injustiça, a corrupção, a justiça distorcida por interesse econômico ou político, quando vejo a pessoa que explora sair vitoriosa, a pessoa prepotente sempre se saindo bem, e quando vejo quem trabalha honestamente, seja no campo ou na cidade, sempre mais pobre e sem ter onde buscar justiça, eu me pergunto: Onde estão as tuas mãos, Senhor? Quando vejo a criança vendendo balas nos sinais de trânsito, quando vejo seu olhar sem esperança, reclamando um pouco de atenção, de aconchego, quando vejo que ainda existe um resto de amor em seu coração pelo pai ou pela mãe que a abandonou, eu me pergunto: Onde estão as tuas mãos, Senhor? Quando vejo moços e moças adolescentes com semblantes caídos, sem fantasias, mostrando uma face cansada, que ao cair da noite se pintam os lábios, colocam uma roupa provocativa e saem de casa para vender o seu corpo, eu me pergunto: Onde estão as tuas mãos, Senhor? Onde estão as tuas mãos, Senhor? Para lutar contra a injustiça, para dar calor, para estender uma mão a quem está desesperado, a quem está abandonado, para resgatar a infância e a juventude das drogas, dar amor e ternura aos esquecidos? Depois de um tempo de silêncio, escutei uma voz: Minhas mãos são as tuas mãos. Não foi apenas a maldade que aumentou no mundo. Também diminuíram os gestos de bondade. Tenha coragem de usar as tuas mãos para dar amor, para ser instrumento do meu Reino. Aí eu compreendi que as mãos de Deus são as minhas mãos, as tuas mãos, as nossas mãos.

Bibliografia SCHMITT, Flávio. 1º Domingo na Quaresma. Prédica 1 Pedro 3.18-22. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação 36. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2011. p. 116-120. Disponível em: <https://www.luteranos.com. br/conteudo/1-pedro-3-18-22>.

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28 FEV 2021

PRÉDICA: MARCOS 8.31-38 GÊNESIS 17.1-7,15-16 ROMANOS 4.13-25

Gerson Acker

Cristianismo da vergonha

1 Introdução Neste início de Quaresma, o texto da pregação convida-nos a refletir sobre o discipulado e seus sofrimentos – nada mais quaresmal! Na perícope, Jesus convida seus seguidores e seguidoras à autonegação, usando a fórmula esquecer seus próprios interesses (NTLH), tomar a cruz (ARA) ou morrer como eu vou morrer (NTLH) e segui-lo para salvar a vida/alma (ARA) ou ganhar a vida verdadeira (NTLH). Porém o texto encerra apresentando uma cláusula condicional: se porventura alguém se envergonhar de Cristo e de suas palavras, o Filho do Homem também se envergonhará dele quando vier na glória de Deus. O que inevitavelmente nos faz pensar: temos vergonha de testemunhar nossa fé? A vergonha por não ter terras e descendência era algo que afligia os patriarcas e matriarcas. No extrato de Gênesis 17, Deus faz uma aliança com Abrão e Sarai, mudando seus nomes para Abraão e Sara, prometendo-lhes terras e descendência. Temos aqui também uma cláusula condicional: Anda na minha presença e sê perfeito (ARA), viva uma vida de comunhão comigo e seja obediente a mim em tudo (NTLH) (Gn 17.1c). No texto de Romanos 4.13-25, o apóstolo Paulo relê Gênesis e aponta para a fé e a esperança de Abraão e Sara, que, mesmo avançados em idade, creram na promessa de Deus. Portanto a promessa se realiza não pelo cumprimento da Lei por parte de Abraão e Sara, mas sim por pura graça de Deus. Esta é a cláusula condicional para nós: somos aceitos pela nossa fé em Cristo.

2 Exegese O texto de Marcos 8.31-38 tem seus paralelos sinóticos em Mateus 16.21-28 e Lucas 9.22-27. A intencionalidade da narrativa do evangelista Marcos é focar no processo salvífico do Cristo rumo à cruz. Por isso não se delonga em detalhes sobre a infância de Jesus ou contando sobre curas, ditos e milagres em comparação com os outros evangelhos sinóticos. No bloco de Marcos 8.27 – 10.52, a trajetória de vida de Jesus chega num momento decisivo: as lideranças judaicas de Jerusalém começam a arquitetar um “castigo” exemplar para o rabi da Galileia. Jesus já está de sobreaviso dado o fim violento de João Batista (Mc 6.14-29), e nesse momento tem a firme intenção de qualificar o grupo discipular no seu projeto de Reino. Ao longo desses capítulos,

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Jesus fará três anúncios da sua morte e ressurreição: 8.31-33; 9.31-32; 10.32-34. Curiosamente, esses anúncios são formulados como uma confissão de fé segundo a linguagem usada pelas primeiras comunidades cristãs. É possível estruturar a perícope de Marcos 8.31-38 em três partes para facilitar a compreensão do conteúdo: 8.31 – Jesus anuncia sua morte e ressurreição A tônica desse versículo é catequética: Jesus está ensinando sobre o destino do “Filho do Homem”. Essa expressão é familiar ao livro de Daniel. Na tradição apocalíptica, o Filho do Homem é concebido como agente da libertação e do julgamento salvífico definitivo de Deus na história. Por exemplo, na visão de Daniel 7.13-14, o Filho do Homem obtém de Deus o poder e o reino definitivo em oposição às potências políticas representadas pelas quatro bestas. O destino do Filho do Homem, em alguns textos como o de Isaías 53, assume características do “servo sofredor”, que após muitas tribulações e humilhações é exaltado por Deus. A expressão apodokimasthēnai (fosse rejeitado) lembra o Salmo 118.22, que aponta para a pedra rejeitada pelos construtores e tornada angular pela ação divina. À luz dessas tradições bíblicas, é possível perceber que Jesus compreende que seu fim violento faz parte do projeto salvífico de Deus. É um fim necessário, “não por força de uma fatalidade histórica ou de uma cega vontade divina, mas para o cumprimento da libertação definitiva ou escatológica anunciada pelas Escrituras” (BARBAGLIO, 1990, p. 514). O julgamento e a morte de Jesus serão decididas pelo Sinédrio, composto pelas três correntes do poder judaico, a saber, a aristocracia leiga (anciãos), a aristocracia sacerdotal (principais sacerdotes) e os peritos teólogos-juristas (escribas). O partido político-religioso que tinha maior influência no Sinédrio era o dos escribas/ fariseus. Por serem altamente legalistas e severos no cumprimento da Lei e de preceitos de pureza/impureza, frequentemente estavam em atrito com Jesus. À luz da tradição bíblica, Jesus também anuncia a ressurreição – a vitória sobre o sofrimento e a morte graças à fidelidade a Deus. A fórmula “após três dias” é provavelmente uma expressão que indica tempo decisivo na intervenção salvífica de Deus, como respaldam passagens bíblicas como Gênesis 40.18-19, Êxodo 19.16, Josué 2.16 e Oseias 6.2. 8.32-33 – Escândalo e incompreensão por parte de Pedro A reação de Pedro às palavras de Jesus contrasta com sua precedente confissão de fé (Mc 8.27-30). Jesus apresenta aos discípulos a sua concepção de “messianidade”. Ele anuncia um paradoxo, pois um Messias que morre não é o Messias confessado por Pedro, representando o grupo dos discípulos. Comparado com os conceitos de Pedro, dos discípulos e do povo, refletidos na confissão, Jesus é o inverso do Messias. Não é um rei poderoso, mas um frágil e humilde servo de seu Pai. A meu ver, a reação negativa de Pedro e do grupo de discípulos não deriva tanto da incapacidade de compreender o destino sofredor do messias, quanto do

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medo de envolver-se no projeto de reino proposto por Jesus. Pedro e os discípulos queriam um líder que os libertasse do sofrimento, não que sofresse e morresse! O evangelista Marcos quer deixar claro que todo projeto de messianismo alternativo, ou seja, que não passe pelo binômio morte-ressurreição, só pode ser sugerido pelo poder adversário – Satanás. Portanto não há redenção sem a cruz. Não há na fé cristã espaço para uma “teologia da glória”, que insiste em negar o sofrimento, visto até como castigo ou obra de Satanás. O sofrimento é inerente à existência humana. A fé cristã afirma categoricamente que Deus está conosco no sofrimento. 8.34-38 – Consequências da morte-ressurreição para a vida dos discípulos O ensinamento de Jesus é dirigido ao grupo de discípulos, mas no pano de fundo percebe-se a multidão, portanto, tal conteúdo tem caráter público e universal. Jesus interpela seus ouvintes com um grande desafio: segui-lo significa tomar a sua cruz (ARA) ou morrer como eu vou morrer (NTLH). Três ações indicam as condições básicas de discipulado: negar-se, tomar a cruz e seguir. A maioria das traduções escreve “a si mesmo se negue”, apontando para uma atitude de total “descentramento”, autonegação e renúncia de interesses próprios. A expressão grega aparnēsasthō eauton poderia traduzir o vocábulo aramaico nekar, com o sentido de “renegar, desmentir, considerar estranho”. Logo, o sentido mais adequado da frase seria: “quem quer me seguir aceite ser considerado como renegado, estrangeiro ou estranho”. Jesus reconhecia sua missão como de outro mundo, a tal ponto de afirmar a seus seguidores e seguidoras que esses seriam vistos como “estranhos”. A expressão “tomar a cruz” não é necessariamente uma fórmula criada em conexão com a via-crucis, visto que a morte por crucificação era amplamente usada pelo Império Romano na Palestina. É preciso lembrar que, para os contemporâneos de Jesus, a palavra “cruz” soava tão repulsiva como para nós hoje é o termo “forca”. Sendo assim, podemos compreender essa expressão de três formas principais. Primeiramente, ela pode representar o linchamento social de quem decide seguir Jesus, apontando para a própria condenação à morte via martírio. Outra possibilidade é entender o “tomar a cruz” pelo viés teológico, “como o sinal no qual o homem [ser humano] reconhece o fracasso da tentativa de viver a partir de si mesmo, sinal pelo qual [...] abre espaço a Deus como Deus” (GOPPELT, 1983, p. 364). Por fim, pode-se entender essa expressão na ótica do discipulado como um rompimento total com a vida que se tinha até então (família, profissão etc.). Tal rompimento estaria sendo representado figurativamente como morte. Segundo Goppelt, nenhum rabi reuniu seus discípulos à maneira de Jesus com a ordem de siga-me (ARA) me acompanhe (NTLH). Esse processo somente pode ser comparado com a vocação dos profetas veterotestamentários, por exemplo, a vocação de Eliseu (1Rs 19.19-21). A vida plena e a realização do autêntico projeto de reino de Cristo é o valor supremo diante do qual nada valem todos os bens que podem ser representados pelo termo “mundo” (Fp 3.7-8). O termo grego psychē, que ocorre diversas vezes nesse bloco, traduzido às vezes por “vida”, às vezes por “alma”, deve ser entendido conforme a antropolo-

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gia bíblica. Psychē e pneuma não indicam uma separação de corpo e alma, como na antropologia platônica, mas sim o eu interior, profundo e identitário. Esse conceito está antes vinculado ao conceito bíblico de “coração” que ao conceito grego de “alma”. Por fim, temos uma sentença que evoca o horizonte escatológico da existência do discipulado. Os discípulos devem enfrentar as perseguições ou processos por causa de sua fidelidade a Jesus e ao evangelho (“perder a vida”, “perder a alma”). Paralelamente, a vinda certa do reino de Deus e de Cristo como juiz escatológico deve ser motivo de esperança e encorajamento. A conclusão de Marcos no v. 38 é ligeiramente distinta da de Mateus e Lucas. Ao falar da vergonha, Mateus e Lucas aplicam-na ao discipulado, ou seja, alguém deixa de ser discípulo por não querer seguir um Senhor crucificado, o que é muito coerente com o pensamento judaico e pagão. Marcos fala sobre pessoas se envergonharem de Cristo e do conteúdo da sua mensagem. Esses são caracterizados pela expressão geração adúltera e pecadora (Is 1.4,21; Jr 3.3; Os 2.2), frequentemente usada pelos profetas para caracterizar o povo infiel ao compromisso da aliança com Javé.

3 Meditação O que me inquieta mais neste momento é a conclusão da perícope: a vergonha de Cristo e do conteúdo da sua mensagem. É um processo complexo, porém bastante perceptível. Há pessoas ditas “cristãs” que conjugam os ensinamentos de Cristo a partir de suas “pós-verdades”. A palavra post-truth foi eleita a “Palavra do ano de 2016” pelo dicionário Oxford. Trata-se de uma “ideia de que um fato concreto tem menos significância ou influência do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Resumindo: uma “suposta verdade” se torna hegemônica para situações em que os fatos objetivos são ignorados na argumentação. Para exemplificar, é sabido de longa data que o ministério de Jesus foi altamente pacifista, que ele acolhia mulheres desprezadas, sentava-se à mesa com publicanos e pecadores. Logo, como pessoas cristãs podem defender a pena de morte ou o uso de armas de fogo? Como pessoas cristãs podem acomodar-se diante do machismo e do patriarcado que culmina tantas e tantas vezes na violência doméstica? Como pessoas cristãs podem ser tão preconceituosas e não empáticas? Não sei! Definitivamente não sei! É um “cristianismo” que me envergonha. Note-se que tenho usado muitas aspas ao longo do texto. Quando digo “cristianismo” e o coloco entre aspas é com a intenção de exprimir ironia, visto ser uma palavra empregada fora de seu contexto habitual. Os anos recentes em nosso país não se caracterizam por perseguições a pessoas cristãs por parte do Estado, como foi no período do Império Romano. Sinto que agora vivemos um retorno à era constantiniana: o Estado se alia à “igreja” (evangélica) para perseguir quaisquer pessoas que não respaldem seus interesses políticos. Jesus frequentemente questionou as lideranças político-religiosas de seu tempo, denunciando ilegalidades, tomando atitudes bem concretas de repúdio, como derrubar as mesas de câmbio dentro do Templo (Mt 21.12). Então, como pessoas cristãs podem ser coniventes com lideranças

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políticas que promovem sinais de morte? Como pessoas cristãs apoiam “igrejas” que perseguem pessoas? Como pessoas cristãs defendem ídolos-políticos como se fossem um time de futebol? Como pessoas cristãs defendem interesses políticos, sociais e econômicos que vão na contramão do projeto do reino de Deus? E no auge da pandemia da Covid-19, como pessoas cristãs burlaram o isolamento social e colocaram sua vida e a vida do próximo em risco? Não sei! Definitivamente não sei! É um “cristianismo” que me envergonha. A teóloga Márcia Blasi, ao desvelar o tema da “vergonha”, nos diz que é “impossível ‘curar’ a vergonha ou deixar de experimentá-la [...] o que podemos fazer é aprender a reconhecê-la e desenvolver nossa capacidade de resiliência. Resiliência é a capacidade de passar por momentos difíceis e desestabilizadores, superá-los e aprender com eles” (BLASI, 2017, p. 40). O processo do discipulado, o genuíno “tomar a cruz” passa pelo reconhecimento desse “cristianismo da vergonha” e da capacidade de superá-lo rumo ao cristianismo que verdadeiramente aponta para Jesus Cristo, sua vida-morte-ressurreição e seus ensinamentos.

4 Imagens para a prédica A perícope têm muitas linhas de desenvolvimento. Pode-se enveredar em uma reflexão a partir do discipulado e seus desafios, ou, também em consonância com o tempo da Quaresma, desvelar a expressão “tomar a cruz”, fazendo paralelos entre Jesus e o comportamento atual das pessoas cristãs de não querer carregar a cruz. Outra forma de abordar a temática seria apontando para a responsabilidade de carregar o conteúdo – a práxis – do próprio Cristo no nosso discipulado. Outra possibilidade de abordar o texto bíblico seria por meio da temática da vergonha. Poder-se-ia introduzir a prédica de uma maneira bem humorada, falando sobre o conceito de “vergonha alheia”. A vergonha alheia é um sentimento de constrangimento quando se presencia alguma situação embaraçosa feita por outro indivíduo que, normalmente, não percebe o quão ridículo, estúpido, ignorante ou vergonhoso foi o seu ato. Por exemplo: “sempre sinto vergonha alheia quando alguém conta uma piada machista” ou “sinto vergonha alheia quando alguém idolatra um político”. Depois, seguir a prédica apontando para o discipulado que denuncia esse tipo de vergonha alheia.

5 Subsídios litúrgicos Acolhida Saudamos a comunidade reunida neste culto com as palavras do apóstolo Paulo: Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16a). Irmãos e irmãs, seguir Jesus Cristo nos coloca diante de muitos dilemas: será que não nos envergonhamos do evangelho? Que o Santo Espírito guie nossa pensar e refletir nesta celebração. Amém.

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Confissão de pecados Querido Deus, temos vergonha de admitir nossas falhas como pessoas batizadas. Perdão por envergonhar-te, quando não defendemos os direitos das pessoas excluídas e oprimidas. Perdão por envergonhar-te, quando a igreja é conivente com o poder opressor. Perdão por envergonhar-te, quando não assumimos o compromisso do discipulado por medo e vergonha. Abrigamo-nos na tua misericórdia e pedimos o teu perdão resiliente. Por Cristo Jesus. Amém. Absolvição O dramaturgo russo Anton Tchekhov escreveu: “Uma pessoa boa sente vergonha até diante de um cão”. A vergonha muitas vezes brota da consciência do erro cometido. Se você, meu irmão e minha irmã, reconhece seus pecados, se envergonha deles e deseja restaurar a comunhão com Deus e a pessoa próxima, receba da imensa graça de Deus o perdão de seus pecados. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Oração do dia Deus de amor, por vezes somos como Pedro que nega Cristo em três momentos: temos vergonha de testemunhar que somos teus seguidores e seguidoras. Mas o galo canta e nos desperta, como despertou Pedro. Permite que tua Palavra lida e pregada nos desperte e nos encoraje a tomar a cruz. Por Cristo, que vive e reina contigo e o Santo Espírito hoje e sempre. Amém.

Bibliografia BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno (Orgs.). Os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1990. v. 1. BLASI, Márcia. Por uma vida sem vergonha: Vulnerabilidade e graça no cotidiano das mulheres a partir da teologia feminista. 2017. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Teologia, Faculdades EST, São Leopoldo, 2017. GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1983. v. 2. MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. Curitiba: CEPAD, 1992.

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07 MAR 2021

PRÉDICA: ÊXODO 20.1-17 JOÃO 2.13-22 1 CORÍNTIOS 1.18-25

Roger Marcel Wanke

Mandamentos: instruções de Deus para a promoção da vida

1 Introdução Se há um texto bíblico que influenciou, em vários aspectos, a cultura do Ocidente, esse é Êxodo 20.1-17, o conhecido texto dos dez mandamentos, ou Decálogo. Não apenas sistemas jurídicos de vários países se inspiraram nas instruções dadas a Israel, mas também vários conceitos teológicos, éticos, sociopolíticos, que ajudaram a construir a sociedade moderna, na qual vivemos, são frutos das reflexões dessas dez palavras dadas por Deus ao seu povo por ocasião da libertação da escravidão no Egito e de sua aliança no Sinai. Para auxiliar na reflexão sobre essa perícope, estão previstos no lecionário dois textos como leituras bíblicas. O primeiro deles é o da purificação do Templo, na versão do evangelista João (Jo 2.13-22), o qual, diferentemente dos evangelhos sinóticos, narra esse evento como tendo acontecido três anos antes da morte e ressurreição de Jesus. O foco do texto está na relação correta do culto a Deus. João destaca o comércio religioso na casa de Deus, que de forma errônea foi criado em virtude de uma prática religiosa correta, com a finalidade de obedecer e de agradar a Deus, cumprindo assim, rigorosamente, a lei. Contudo, o que Jesus vê acontecendo era o comércio em nome de Deus. A casa de Deus havia se transformado numa casa de negócios. O culto a Deus como resposta de fé se transformara em obra meritória e negócio fraudulento diante de Deus. Contudo, o texto deixa claro que Deus não se deixa vender nem comprar com os favores e méritos humanos. O perdão de Deus não se compra. Sacrifícios e boas obras humanas não trazem a salvação ao ser humano. O segundo texto previsto como leitura bíblica se encontra em 1 Coríntios 1.18-25, o famoso texto da mensagem da cruz. Para Paulo, o evangelho é loucura para os que se perdem. Mas para os que vivem com Deus é o poder de Deus para a salvação. Por isso a igreja não anuncia uma nova lei ou uma nova ideologia ou sabedoria humana. Pelo contrário, ela anuncia a obra redentora e libertadora de Deus em Jesus Cristo, que assumiu toda a culpa humana e que dissipou não só o pecado, mas toda forma de opressão e de méritos salvíficos, que o ser humano intenta poder cumprir para agradar a Deus. Os dois textos mostram claramente que o ser humano não é capaz de gerar e gerir sua salvação. Não é por obras que o ser humano é salvo, mas por meio do crucificado, do Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (Jo 1.29). Ter esse aspecto central do evangelho como apoio para a pregação da perícope de

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Êxodo 20.1-17 significa compreender que a obediência aos mandamentos, como vontade de Deus ao ser humano, não é mérito nem obra humana, mas é resposta de fé à graça salvadora e libertadora de Deus. A obediência aos mandamentos não é condição para viver diante de Deus e agradá-lo, mas consequência de uma vida de fé que se coloca diante de Deus em favor do mundo. Por isso o tempo da Quaresma, ou também chamado da Paixão, marca de forma clara essa centralidade do evangelho. Ele aponta para a obra redentora de Jesus Cristo por meio de seu sofrimento, morte e ressurreição. Além disso, esse período também acentua as implicações da salvação para a igreja de Jesus Cristo no mundo, ou seja, por meio da obra vicária e redentora de Jesus Cristo, a igreja é libertada de si mesma e do pecado e chamada a ser serva de Deus neste mundo. Ao pregarmos sobre os dez mandamentos no tempo da quaresma, testemunhamos, como igreja, que vivemos a partir do evangelho, que nos liberta e nos chama a obedecermos a Deus por amor a ele e por amor ao próximo. Em Proclamar Libertação, temos outras duas abordagens sobre essa perícope, que podem inspirar para a sua pregação: PL 22 (1996), p. 75-79 e PL 42 (2017), p. 101-106.

2 Análise exegética A perícope de Êxodo 20.1-17 faz parte do início da assim chamada Perícope do Sinai (Êxodo 19 até Números 10). Esse bloco literário é o centro do Pentateuco. Ele relata os acontecimentos do povo de Israel acampado ao pé do monte Sinai. Esse bloco extenso não é o centro literário do Pentateuco por acaso. Ele é a própria finalidade da libertação do Egito: [...] depois de haveres tirado o povo do Egito, servireis a Deus neste monte (Êx 3.12). A mesma finalidade aparece no argumento que Deus dá a Moisés, quando esse for pedir ao Faraó para deixá-los sair do Egito: O Senhor, o Deus dos hebreus nos encontrou. Agora, pois, deixa-nos ir caminho de três dias para o deserto, a fim de que sacrifiquemos ao Senhor, nosso Deus (Êx 3.18). Ao lermos os textos que fazem parte da Perícope do Sinai, não é difícil identificar que o culto é seu tema central, tendo em Levítico 16 (Yom Kipur – Dia da Reconciliação) o evento fundamental e fundante da fé israelita e da libertação da escravidão egípcia. Antes de entrar na terra prometida, Deus transforma seu povo liberto e escolhido para ser uma comunidade cultual. Para ser bênção a todas as famílias da terra, cumprindo assim com a bênção dada a Abraão e Sara (cf. Gn 12.3), Deus faz uma aliança, escolhendo, libertando, santificando e abençoando o seu povo, para então ser bênção na terra que prometera dar a seus descendentes. Dentro desse contexto maior, a dádiva dos mandamentos caracteriza o povo da aliança, que vive, enquanto comunidade cultual de Javé no mundo, a partir de outros fundamentos teológicos e éticos do que os que se achavam nos outros povos e culturas. Em suma, o primeiro mandamento determina não apenas o relacionamento de fé do povo de Israel, mas também sua forma de viver no mundo, para o qual foi chamado por Deus para ser bênção. Tirar esse aspecto do contexto literário, teológico e eclesiológico, é pregar uma fé sem compromisso, a graça barata (Dietrich Bonhoeffer), ou um culto totalmente desassociado da vida e da ética.

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Geralmente a perícope de Êxodo 20.1-17 é dividida em duas partes: os mandamentos relacionados com Deus e aqueles que se relacionam com o próximo. Quero, contudo, propor aqui uma divisão um pouco diferente, valorizando algo que muitas vezes tem sido esquecido na interpretação de Êxodo 20: 1) as palavras da aliança de Deus (Êx 20.1); 2) a apresentação do Deus da aliança (Êx 20.2a); 3) a declaração de libertação da escravidão (Êx 20.2b); 4) a resposta do povo liberto (Êx 20.3-17). Vejamos brevemente cada uma dessas quatro partes. 1. As palavras da aliança de Deus (Êxodo 20.1) A perícope inicia com um detalhe fundamental para entendermos o seu conteúdo: Então, falou Deus todas estas palavras (v. 1). Os v. 1-17 são palavras ditas por Deus diretamente ao povo, sem a mediação de Moisés. No livro de Êxodo isso é único e sui generis. O fato de serem palavras (hebraico: dabar) qualificam essas cláusulas jurídicas como palavra de Deus e as igualam à versão deuteronomista de Deuteronômio 5, que as entende como Torá e mandamentos. Por isso não há diferença de entendimento dessas cláusulas jurídicas entre as versões de Êxodo 20 e a de Deuteronômio 5. Ambas expressam a vontade de Deus, reveladas em sua Palavra ao povo de Israel, que ele libertou da escravidão egípcia, a fim de ser seu povo, de propriedade exclusiva, sua nação santa (cf. Êx 19.5-6). Os mandamentos de Êxodo 20 não são apenas as palavras de Deus, mas a própria voz de Deus, a própria aliança de Deus (Êx 19.5), que o povo deve diligentemente ouvir e guardar. Por isso não é possível retirar Êxodo 20 do contexto de Êxodo 19, pois esse texto é exatamente a expressão da identidade do povo da aliança. Eles serão reino de sacerdotes e nação santa, à medida que vivem e guardam os mandamentos de Deus. Além de serem uma comunidade cultual diante de Deus em favor do mundo, eles serão também a comunidade da ética do cuidado no mundo em amor a Deus. 2. A apresentação do Deus da aliança (Êxodo 20.2a) Os mandamentos não iniciam friamente com as ordens “tu deves” ou “tu não deves”, mas com a apresentação do próprio Deus da aliança. Deus se apresenta aqui como o Senhor, aquele que se revelou na sarça ardente para Moisés (Êx 3), revelando seu plano de salvação e santificação do povo, a fim de cumprir seu propósito salvador em favor do mundo. O êxodo não existe, portanto, como um fim em si mesmo. Ele também não aconteceu apenas por causa de Israel, que estava escravizado e sendo oprimido no Egito. O êxodo acontece para que a intencionalidade missionária de Deus no mundo possa se tornar realidade. O Senhor se apresenta aqui como um Deus pessoal: Eu sou o Senhor teu Deus. A dimensão coletiva (eclesiológica) do povo de Deus não existe sem a revelação do Deus vivo e verdadeiro, como “teu Deus” ao indivíduo, que é parte do povo. É o israelita que crê em Deus como seu Deus, que faz parte do povo de Deus. Esse Deus pessoal é o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, Deus dos antepassados (cf. Êx 3), é o Deus que ouviu o clamor, que viu o sofrimento do povo, que conhece

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sua tribulação e desce para livrá-lo da opressão e levá-lo para a terra prometida. Quem crê nesse Deus não precisa ter outro em quem confiar. 3. A declaração de libertação da escravidão (Êxodo 20.2b) Aqui o Senhor se apresenta como Deus libertador e salvador. Antes de fazer conhecida a sua vontade, revelada nos mandamentos, Deus faz seu povo se lembrar de sua obra salvífica em seu favor (cf. Êx 19.4). É isso que lhe dá autoridade para revelar sua vontade. Deus primeiro fala do que ele fez em favor do seu povo, ou seja, o salvou, o libertou, para então revelar que sua vontade deve ser cumprida a partir da motivação da salvação já concedida. Ênio Mueller é assertivo ao dizer que “O Deus que faz exigências éticas é o Deus que antes libertou o povo da escravidão” (MUELLER, 2005, p. 96). Com a declaração de libertação de Deus da escravidão, ou seja, da salvação, fica claro que os mandamentos não podem ser interpretados de forma legalista. A relação literária e teológica entre a libertação e os mandamentos é o ponto hermenêutico central para se entender a perícope. Nesse sentido, Ênio Mueller afirma: “Os Mandamentos foram dados para a preservação da liberdade recém conquistada. Portanto, seu tema é a liberdade e não um jugo ou uma nova escravidão” (MUELLER, 2005, p. 93). Os mandamentos são dádivas de um Deus libertador para um povo liberto. 4. A resposta do povo liberto (Êxodo 20.3-17) A partir do v. 3 inicia uma série de cláusulas jurídicas, conhecidas como leis incondicionais (direito apodítico), formadas por comandos e proibições. O principal objetivo é formar um povo, cuja estrutura comunitária e ética reflita a natureza do seu Senhor. Como já foi dito, esses mandamentos não são uma nova forma de escravidão, mas a expressão clara de um povo livre de si mesmo e da escravidão, para um povo livre para servir. Por isso esses mandamentos devem ser entendidos como a resposta do povo à aliança de Deus. Ou seja, o povo é livre de tudo o que o escraviza, a fim de ser livre para servir a Deus e ao próximo. Essa relação entre o livre de e o livre para auxilia a não cairmos no legalismo tão comum na interpretação dos dez mandamentos. Não vou me ater aqui em cada um dos mandamentos. A bibliografia indicada abaixo faz isso muito bem e, por isso, sugiro sua leitura como complemento ao preparo da pregação. Vou me concentrar aqui apenas ao primeiro mandamento e em alguns detalhes iniciais da sua formulação na perícope: Não terás outros deuses diante de mim (v. 3). A expressão “diante de mim” (hebraico: diante da minha face) é também decisiva para compreendermos todos os dez mandamentos. Eles são possíveis apenas diante de Deus. Ou o ser humano vive diante de Deus, ou está distante de Deus. Isso é muito mais do que um simples jogo de palavras com preposições em língua portuguesa. Essa é a condição sem a qual não há salvação e vida eterna. Viver diante de Deus é a chave para se compreender o que é fé na Bíblia, pois expressa a postura de rendição (adoração) do ser humano diante de Deus. O ser humano é chamado a ser servo de Deus, foi chamado a confiar e a

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entregar sua vida nas mãos de Deus. A forma concreta de viver diante de Deus é fazendo sua vontade, revelada nos dez mandamentos. Estar diante de Deus é a melhor resposta de fé que o ser humano pode dar ao agir de Deus em seu favor. Esse é também o lugar original do ser humano, que foi tragicamente deslocado por meio do pecado e da queda (compreensão de pecado e queda como afastamento do ser humano de Deus – cf. Gn 3.8-9). O primeiro mandamento, como fundamento e resposta ética do povo da aliança, é a cláusula mais absurda num mundo religiosamente plural do Antigo Oriente. Não havia religião na época sem a imagem e sem o nome dos vários deuses. Ser temente a Deus no contexto politeísta do Antigo Oriente, no qual Israel está inserido, significava render-se aos deuses, que de alguma forma satisfariam os desejos humanos e as necessidades mais fundamentais, ou seja, uma “antropocentralização” da fé. Israel é diferente. Aliás, totalmente diferente! Israel é chamado a temer ao Senhor. Israel tem que se render diante de um Deus que não tem imagem e não tem nome, o qual não consegue manipular. Ou Israel se entrega totalmente, sem enxergar nada, ou cai na idolatria. Não terás outros deuses diante de mim é a maior resposta de fé que o povo de Israel pode dar a Deus diante da salvação e da libertação experimentada no êxodo. Essa resposta pressupõe um relacionamento com esse Deus, que se revela como “Senhor, teu Deus”, isto é, como o Deus que não tem imagem nem nome, mas que se revela como Deus pessoal, como aquele que tira o povo da escravidão. Ao explicar o primeiro mandamento, Pablo Andiñach escreve: “A fidelidade constrói-se sobre a experiência de ter sido libertado da escravidão. Deus não pede uma adesão cega, mas uma resposta à sua graça libertadora” (ANDIÑACH, 2010, p. 268). Todos os mandamentos que seguem do v. 3 até o v. 17 são as orientações de vida de uma comunidade cultual que vive a partir da graça de Deus. Ou seja, obedecer aos dez mandamentos é parte do culto de Israel, é consequência de estar e viver diante de Deus. O culto de Israel segue a lógica da estrutura da perícope, que inicia com Deus, o Senhor teu Deus, que te tirou da escravidão, e leva até o próximo, de quem se deve cuidar. Por isso os mandamentos não têm um fim em si mesmo nem um benefício apenas para o israelita em si. Mas é expressão de seu amor a Deus e ao próximo. O culto israelita liberta o israelita de si mesmo, pois ele tem seu fundamento na libertação da escravidão e torna o israelita servo de Deus e do próximo. Todos os mandamentos precisam ser vistos a partir desse fundamento teológico. Antes de serem exortações negativas ou positivas de Deus (direito apodítico), são orientações para a vida, são diretrizes da aliança de um Deus libertador e salvador para um povo salvo e livre do pecado, de si mesmo, para viver e servir a Deus e ao próximo. Os mandamentos são, portanto, instruções de Deus de como podemos amar e servir a Deus e ao próximo. O culto a Deus e a ética do cuidado são inseparáveis e imprescindíveis para a existência e relevância da igreja neste mundo.

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3 Meditação A análise exegética teve por objetivo mostrar que um dos fatores centrais da perícope é a declaração de salvação de Deus (Êx 20.2b). Infelizmente, esse aspecto é em geral esquecido em abordagens sobre os dez mandamentos. Também Lutero não menciona explicitamente essa dimensão na sua explicação dos mandamentos em seus catecismos. É aqui, porém, que se encontra o evangelho em toda a perícope. Sem essa dimensão, os mandamentos se tornam leis a serem seguidas para agradar a Deus e conquistar, por mérito, a salvação. Essa declaração de Deus tira do povo de Israel toda e qualquer pretensão de garantir por suas próprias forças o cumprimento dos mandamentos. Parece-me que é, exatamente, o esquecimento de quem é o sujeito da obra salvífica que gera toda e qualquer má compreensão do que significam os mandamentos de Deus. Talvez essa seja a razão pela qual, no Novo Testamento, os religiosos tiveram tantos embates com Jesus por causa de sua compreensão de lei. O mesmo pode ser dito do apóstolo Paulo em relação aos judaizantes, principalmente, mencionados na Carta aos Gálatas. Não é raro encontrarmos pessoas em nossas comunidades que fazem dos mandamentos uma obra meritória, que ao tentarem cumpri-los, pensam estar assim agradando a Deus e alcançando a salvação. Mas também não é raro encontrarmos pessoas com a tendência de minimizar os mandamentos, considerando-os apenas meros conselhos para uma vida feliz, ou inclusive desconsiderando-os totalmente, como se fossem uma lei meramente judaica, que não tenha mais relevância para a nossa sociedade. Pelo contrário, os mandamentos são sinais da graça de Deus e do compromisso com o próximo. Eles são a resposta de amor a Deus e amor ao próximo (cf. Mt 22.34-40), retomados inteiramente por Jesus. Sugiro ainda, para auxiliar na meditação sobre essa perícope com vistas à pregação, de se fazer a leitura das explicações de Martim Lutero aos mandamentos no Catecismo Maior.

4 Imagens para a prédica Sempre que trabalhei o tema dos dez mandamentos no Ensino Confirmatório e em cursos de profissão de fé, eu os comparei a sinais de trânsito. Cada mandamento recebia uma placa específica, que caracterizasse o seu conteúdo. Por exemplo: placa de proibido buzinar para abordar o oitavo mandamento (de não dizer falso testemunho); placa de proibido estacionar para caracterizar o nono mandamento (não cobiçar); placa indicando a preferencial para abordar o terceiro mandamento (santifique o dia de descanso), entre outros. Sugiro duas formas de como fazer uso dessa imagem das placas de sinais de trânsito. Uma delas seria confeccionar com papel-cartão (vermelho, branco e preto) as placas correspondentes. A outra seria fazer uso do Power Point na pregação, mostrando as placas de forma individualizada, ou todas juntas. A ideia de comparar os mandamentos com sinais de trânsito está baseada na perspectiva de que sinais de trânsito possuem um caráter de lei, mas são cha-

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mados de sinais, ou seja, orientações claras, que promovem a vida no contexto do trânsito. A desobediência a esses sinais pode trazer consequências sérias para o ser humano. Mas sua intenção principal é a promoção da vida, do cuidado e exercício da liberdade, que faz ser servo das pessoas no trânsito. Assim são os mandamentos de Deus. Eles promovem vida e cuidado não apenas no relacionamento com Deus, mas também com a pessoa próxima. Tema da pregação: Os mandamentos – sinais de vida e cuidado 1. Eu sou o Senhor teu Deus: o Deus da aliança 2. Que te tirei da terra do Egito: a graça da aliança 3. Não terás outros deuses diante de mim: a resposta do povo da aliança

5 Subsídios litúrgicos Liturgia de entrada Para o início do culto, considerando o calendário litúrgico (Quaresma), pode ser cantado o hino Jesus em tua presença (LCI 20). No momento da confissão dos pecados, pode-se cantar com a comunidade um hino que expressa tanto o peso do pecado como a alegria do perdão e da libertação: Liberta-nos, fiel Senhor (LCI 42). Liturgia da palavra Antes da pregação, sugere-se cantar o cânone Meu mandamento é este (LCI 159). Após a pregação, sugere-se cantar o hino Há sinais de paz e de graça (LCI 582). Liturgia de despedida Ao final do culto, sugere-se cantar o hino de bênção A paz nos queiras conceder (LCI 302) ou ainda o hino Guia-nos, Jesus (LCI 604).

Bibliografia ANDIÑACH, Pablo R. O Livro do Êxodo: Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2010. BOECKER, Hans Jochen. Orientação para a vida. Direito e lei no Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2004. KOCKERT, Matthias. Die Zehn Gebote. München: C. H. Beck, 2007. MUELLER, Ênio R. Teologia cristã em poucas palavras. São Paulo: Teológica; São Leopoldo: EST, 2005.

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PRÉDICA: JOÃO 3.14-21 NÚMEROS 21.4-9 EFÉSIOS 2.1-10

4º DOMINGO NA QUARESMA

14 MAR 2021

Humberto Maiztegui Gonçalves

Compromisso de amor transformador

1 Introdução Estamos no tempo da Quaresma e, neste ano, a Campanha da Fraternidade é ecumênica, com o tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”, inspirada em Efésios 2.14 (que se encontra alguns versículos após um dos textos indicados para este 4º Domingo na Quaresma. O texto de Efésios nos lembra da quebra do diálogo com Deus, usando o conceito de filhos e filhas da “desobediência” (2.2; apeitheias; cf. Ef 5.6 e Cl 3.6). A filiação da desobediência se dá por meio da concordância com o eon deste mundo. Isso é o que a Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE) propõe por meio do diálogo e do compromisso de amor. A CFE convida a quebrar essa filiação com a violência, o ódio, a intolerância, o racismo, o machismo, a homo-lesbo-trans-fobia, a desigualdade social e econômica, o genocídio, a violação de direitos e toda forma de destruição do meio ambiente. Como alternativa à filiação desobediente está a graça em Cristo, capaz de nos transformar apesar de nosso pecado, e fazer do julgamento uma esperança. A leitura de Números, também citada no texto para a pregação (cf. Nm 21.9; Jo 3.14-15) traz essa mesma esperança em Cristo. Jesus na cruz é a visão da vida que neutraliza a morte, não pelos méritos de um povo desobediente, mas pelo amor que transforma morte em vida.

2 Exegese A primeira questão a ser resolvida neste texto é sua delimitação. Kümmel compreende 3.1-21 como um conjunto que ele denomina “o encontro com Nicodemos” (1982, p. 246). No entanto, algumas versões do Novo Testamento fazem uma subdivisão em duas partes (3.1-15 e 16-21). De fato, o versículo 15 parece concluir o diálogo com Nicodemos ao afirmar: para que todo aquele que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna (tradução do grego ina pas ho pisteuōn eis auton mē apolētai all’ echē zoēn aiōnion), sendo que todo o versículo 15 é exatamente igual a essa parte do versículo 16! Já a expressão ho pisteuōn eis auton aparece de novo na primeira parte de 3.18. Essa repetição é claramente proposital no quarto evangelho, revela o centro – ou coração – da perícope (3.15-18), que, de fato, seria 3.1-21. João 3.14,19-21 pode ser interpretado separadamente, mas como centro da perícope maior. Ao redor do centro encontramos 3.13-14 com o título filho do ser humano (huios tou anthrōpou), enquanto – do outro lado do

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centro – em 3.19 afirma-se que há seres humanos que amaram mais as trevas do que a luz. Assim, o tema do “humano” ou “humanidade”, que não aparece em nenhum versículo a não ser na apresentação de um homem chamado Nicodemos, em 3.1, pode ser entendido como o revestimento desse centro que proclama o surgimento de uma nova humanidade – de luz e não mais de trevas –, cujo modelo é o próprio Jesus crucificado-ressuscitado. O centro: inclusão, fé participativa e nova humanidade O núcleo, centro ou coração da perícope (3.15-18) pode ser resumido da seguinte forma: a) a vida eterna para todas as pessoas (uso da palavra grega pas; 3.15-16); b) o “crer” (que além de nos versículos 15 e 16, aparece três vezes em 3.18, duas como afirmação e uma como negação); c) o sentido do amor divino não apenas para a salvação da humanidade, mas para salvar o mundo (a palavra “mundo” aparece uma vez em 3.16 e duas em 3.17). O termo pas/todos é aplicado à inclusão no ser de Cristo por meio do crer. Essa teologia abre o evangelho e o chamado “Livro dos Sinais” (1.19 – 12.50), onde se encontra o texto para este domingo, dizendo: para que todos cressem por ele (1.7b, Almeida). Cothenet explica que “João evita o termo abstrato pistis e emprega constantemente o verbo pisteuein que realça melhor o caráter ativo do ‘crer’ [...] que indica também o movimento interior da pessoa que crê em direção a Cristo” (COTHENET, 1988, p. 92, grifos do autor). Assim, crer é participar – ser agente – da transformação eterna da humanidade e da salvação do mundo. O mundo (kosmos) é outro dos assuntos preferidos do quarto evangelho (tratado em nove versículos em Mateus, três em Marcos e Lucas e 58 em João). Da mesma forma que a humanidade, o mundo é paradoxal, tendo de um lado o mundo (ordem/ sistema) a ser superado, e o mundo (humanidade/criação) a ser salvo. Em 1.10 o paradoxo é desenhado: e ele estava no mundo, o mundo foi feito por meio dele, e o mundo não o conheceu (tradução direta do grego). Para esse evangelho, o mundo precisa refazer o caminho de reencontro com o Logos (Palavra criadora/criativa). A nova humanidade: agente de transformação do mundo por meio da fé Ao redor do centro temos a humanidade apresentada em Jesus mediante o título filho do ser humano (huios tou antrōpou) e, por outro lado, a humanidade perdida nas trevas. Esse título, que, segundo Cothenet, é usado 12 vezes nesse evangelho, tem como objetivo sustentar “a verdadeira humanidade de Jesus”. Aqui, no entanto, tem um sentido diferente do que nos sinóticos (Mt, Mc, Lc), onde o título é uma referência profética (Dn 7). Em João, a expressão evoca a comunhão total entre Jesus e a humanidade, revelada principalmente no ato sacrificial da cruz (COTHENET, 1988, p. 94, 96-97). Jesus não carrega a humanidade, Jesus é a nova humanidade gerada pela cruz/ressurreição por meio do “crer”. A citação de Números 21.9 tem esse sentido. A nova humanidade em Jesus não é apenas essência, mas é nova práxis. A nova pessoa humana em Cristo não é ape-

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nas um novo ser, mas recebe a vocação de transformar o mundo amado por Deus em Cristo (3.17-18 em direta relação com 3.19-21).

3 Meditação: diálogo e compromisso de amor para a transformação O texto da pregação desafia-nos a assumir o compromisso de amor (como afirma o lema da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021). No entanto, leva o diálogo a outro patamar. Geralmente pensamos “diálogo” como “conversa”, mas, olhando a perícope completa (3.1-21), vemos como um simples diálogo (na conversa entre Jesus e Nicodemos) se transforma em um desafio programático e prático! Do diálogo (3.1-13) emerge um manifesto de amor pelo mundo (Jo 3.15-18) e, a partir dele, todas as pessoas são chamadas/convidadas a crer e participar (3.19-21). A proposta transformadora de Jesus indica uma incompatibilidade insuperável entre o amor de Deus pelo mundo (3.16a) e uma humanidade mergulhada na lógica da opressão e da violência que ama mais as trevas do que a luz (3.20). O manifesto de amor pelo mundo contrapõe o amor da entrega ao amor do engano; o amor que dá a vida ao amor que mata, oprime e engana. Em ambos os casos se fala de “amor”, mas não pode ser, nem jamais será, o mesmo amor. Isso também lembra a leitura de Efésios 2.1-10, que desafia a fazer a desfiliação do sistema desobediente à vontade liberadora de Deus e se filiar ao amor que liberta e transforma. A nova filiação se dá a partir da fé – do crer – na cruz/ ressurreição desse “filho do ser humano” que se faz modelo de uma nova humanidade. Será que cremos o suficiente para nos irmanar com todas as pessoas que creem? Será que nossa fé está realmente direcionada para a transformação do mundo pela graça? Temos em Cristo a visão de que a missão é para o mundo e não apenas para nossa própria salvação? Da resposta que possamos dar a perguntas como essas é que surgirá uma nova práxis (agir a partir do ser) ou não. Esse compromisso de amor fará com que todas as pessoas possam ver a luz que vem de Cristo, e onde todas as pessoas possam se ver nessa luz.

4 Imagens para a prédica Sigamos trabalhando nos três eixos encontrados na exegese de João 3.14-21 e trabalhados na meditação: inclusividade, fé (crer) e transformação (nova humanidade). O conceito e a prática da inclusividade têm se destacado na luta das pessoas com deficiência, especialmente por acessibilidade, direitos iguais, reconhecimento, luta contra a rotulagem, estigmatização etc. Vejamos como lugares – antes inacessíveis para essas pessoas – antes tidas como incapazes ou excluídas – se tornaram acessíveis, permitindo que participassem da vida econômica, política, social e cultural. Será que nossas comunidades são acolhedoras e acessíveis para todas as pessoas ou ainda colocamos barreiras intransponíveis? Em relação à prática da fé, podemos mostrar imagens de expressões da fé cristã que condenam, rotulam e até promovem o ódio contra outras pessoas. Mas também mostrar expressões de fé que acolhem, que integram, que vivem a comunhão e constroem a comunidade inclusiva e missionária.

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A transformação de nossa humanidade nos questiona sobre que tipo de humanidade somos chamados a ser. Aquela que se aproveita, desvaloriza e destrói a criação de Deus, ou aquela que se integra, aprende e se interliga entre si e com a criação de forma amorosa e vital? Busquemos imagens que expressem uma e outra.

5 Subsídios litúrgicos Propomos um momento de confissão de pecados a partir de João 3.16 na perspectiva do amor divino pelo mundo em Jesus Cristo (D = Dirigente; C = Comunidade; T = Todos). D – Irmãs e irmãos em Cristo, “tanto amou Deus o mundo que enviou seu Filho Unigênito”. C – Permite-nos, ó Deus, por meio da fé, participar do teu amor pelo mundo e assim ser agentes de transformação. T – Perdoa, quando impedimos que a tua graça atue em nós para a salvação do mundo. D – Irmãs e irmãos em Cristo, Deus enviou seu Filho Unigênito, “para que toda pessoa que nele crê não pereça”. C – Concede-nos, ó Deus, uma fé transformadora, para que possamos ser instrumentos de cura e de vida para toda a criação. T – Perdoa, quando nos fechamos à tua graça, excluindo outras pessoas e agindo apenas em favor de interesses egoístas. D – Irmãs e irmãos em Cristo, Deus, pela fé, nos concedeu a vida eterna. C – Permite que ao viver a fé em Jesus Cristo, participando como agentes de transformação em favor do mundo amado, alcancemos a vida eterna. T – Perdoa, quando desvalorizamos e limitamos o amor, que é eterno e incondicional. D – Que Deus, que amou o mundo, perdoe nossos pecados, nos transforme pela sua graça e nos capacite como agentes de transformação amorosa do mundo. C – Por amor de Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, enviado ao mundo para que toda pessoa que crê não pereça, mas tenha a vida eterna. T – Amém.

Bibliografia COTHENET, Edouard. O Evangelho segundo São João. In: Os Escritos de São João e a Epístola aos Hebreus. São Paulo: Paulinas, 1988. KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.

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PRÉDICA: HEBREUS 5.5-10 JEREMIAS 31.31-34 JOÃO 12.20-33

5º DOMINGO NA QUARESMA

21 MAR 2021

Marcelo Jung

Identificação com Cristo: anúncio e convite

1 Introdução Estamos no tempo da Quaresma. Vale a pena lembrar sua origem no catecumenato da igreja primitiva, quando era um tempo de preparo dos novos fiéis para receber o batismo, que acontecia na celebração da Páscoa. Mais tarde, tornou-se também um tempo especial para os fiéis já batizados, como tempo de preparo para a celebração da Páscoa, marcado pela busca da palavra de Deus, pelo arrependimento, pela renovação da fé e consagração da vida, pela identificação com Jesus Cristo. É sob as luzes desse tempo que somos convidados e convidadas a fazer a leitura e o preparo do texto de Hebreus 5.5-10. Numa primeira leitura do texto já é perceptível que o tema principal de que trata é a nova relação com Deus, que é possível por meio de Jesus Cristo. Na tradição judaica, o sacerdócio tinha a função de mediar o relacionamento de Deus com o seu povo e do povo com Deus. O sumo sacerdote tinha como função principal chegar-se ao Santo dos Santos (no tabernáculo durante a peregrinação pelo deserto e depois no templo em Jerusalém) uma vez ao ano para oferecer o sacrifício no Dia da Expiação. Esse era um sacrifício especial, pois era oferecido para o perdão dos pecados dos sacerdotes, para que, pela expiação, fossem purificados e pudessem oferecer sacrifícios para o perdão dos pecados do povo. Ou seja, em termos espaciais, o sumo sacerdote era o único que podia adentrar no véu do Santo dos Santos e chegar-se à presença de Deus para oferecer sacrifício em favor dos demais sacerdotes e do povo como um todo. Hebreus apresenta Jesus Cristo como o supremo sumo sacerdote. Jesus Cristo é o sumo sacerdote que: não penetrou pelo véu no Santo dos Santos, mas penetrou nos céus e está na presença de Deus (4.14), e não apenas uma vez por ano, mas permanentemente e para sempre; não apenas representa o povo, mas se compadece / se identifica com o seu povo (4.16); além de ser escolhido para o sacerdócio, é o próprio Filho de Deus (5.5); não exerce o sacerdócio comparado ao levítico / araônico – com base na Lei –, mas comparado ao sacerdócio de Melquisedeque (7.1ss) – com base no relacionamento pessoal. Jesus Cristo é aquele que supera a antiga relação com Deus e estabelece uma nova relação com ele. A conexão com os textos previstos para a leitura bíblica se dá pela promessa de novidade no relacionamento com Deus – pessoal – na profecia de Jeremias (Jr 31.31-34), e pelo custo pago por Jesus Cristo – o sacrifício – para que fosse possível esse novo relacionamento com Deus (Jo 10.20-33).

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2 Exegese Numa visão geral, o texto selecionado para a pregação é a primeira parte do trecho em que o autor de Hebreus descreve Jesus Cristo como o supremo sumo sacerdote, o supremo tabernáculo e o supremo sacrifício (4.14 – 10.18). Jesus Cristo é a superação e o aperfeiçoamento da antiga aliança. Numa visão mais específica, Hebreus 5.5-10 elenca duas caraterísticas desse grande sumo sacerdote que penetrou os céus (4.14). Por isso será proveitoso observar o texto iniciando em 4.14. O tema principal do trecho é: Jesus Cristo é o sumo sacerdote que supera o sumo sacerdote / sacerdócio humano. Superior aos demais sumos sacerdotes e ao sacerdócio em si, Jesus Cristo penetrou os céus (v. 14), e não o véu que separava o Santo dos Santos no tabernáculo e depois no templo; ele não é um simples humano, mas é o Filho de Deus (v. 14), foi gerado pelo próprio Deus (v. 5), é claro, não se pode esquecer que encarnou – possui natureza divina e humana. Ele foi instituído na função de sumo sacerdote segundo a ordem de Melquiseque (v. 6,10). A expressão grega que é traduzida por ordem carrega o sentido de comparação, contrastante entre entidades semelhantes (LOUW; NIDA, 2013, p. 523) e é aqui usada para destacar a diferença entre o sacerdócio de Arão (v. 4) e o sacerdócio de Melquisedeque (v. 6,10), ambos sumos sacerdotes encarregados de intermediar o relacionamento entre Deus e os seres humanos. O autor de Hebreus afirma com ênfase e clareza que se tem alguém que pode intermediar o relacionamento dos seres humanos com Deus, esse é somente Jesus Cristo. Na apresentação de Jesus como supremo sumo sacerdote, Hebreus, neste trecho, destaca duas de suas características: Primeira característica (4.15-16): Jesus Cristo se identifica conosco. A descrição não é de difícil compreensão. Hebreus afirma que Jesus Cristo é o sumo sacerdote que se compadece de nossas fraquezas – uma tradução possível é: ele entende bem como nos sentimos em nossas fraquezas; ele compreende o que se passa em nosso coração em nossas fraquezas (LOUW; NIDA, 2013, p. 265). Fraquezas tanto pode descrever um estado de timidez, resultante da falta de confiança (LOUW; NIDA, 2013, p. 285) como um estado de incapacidade para fazer ou vivenciar algo (LOUW; NIDA, 2013, p. 604). O primeiro sentido parece encaixar melhor no contexto, visto que a comunidade para a qual Hebreus foi escrita vivia sob perseguição, a qual estava levando muitos a abandonarem a fé; e também por causa do convite no v. 16, acheguemo-nos, portanto, confiadamente, ou seja, com um estado de confiança ousada experimentada em circunstâncias assustadoras (LOUW; NIDA, 2013, p. 275). Como prova de que Jesus Cristo pode realmente se identificar conosco e nos compreender nas fraquezas, o autor de Hebreus lembra que ele foi tentado em todas as coisas, à nossa semelhança. A expressão foi ele tentado, descreve tanto o ter experimentado situações em que foi colocado à prova, em que foi, pela experiência verificado seu caráter (LOUW; NIDA, 2013, p. 297), como a experiência de ter sido tentado, de ter recebido uma carga que o convidava e induzia a pecar

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(LOUW; NIDA, 2013, p. 689). O advérbio todas as coisas indica totalidade, ou seja, não há nada na experiência humana em termos de provação e tentação que Jesus Cristo não tenha experimentado. A única experiência humana que ele não experimentou foi a prática do pecado (mas vale lembrar que tomou sobre si toda a consequência de todo o pecado para que pudéssemos ser feitos justiça de Deus – 2 Coríntios 5.21). Disso decorre o convite: acheguemo-nos, portanto, confiadamente (lit. com confiança ousada), junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna. É significativo que duas vezes é mencionada a graça e junto dela a misericórdia. Nenhuma pessoa cristã precisa enfrentar adversidades e tentações sozinha. Antes, pode recorrer a Jesus Cristo e encontrar nele o socorro – literalmente a ajuda em que Cristo provê aquilo de que se está necessitado para enfrentar a situação (LOUW; NIDA, 2013, p. 408). Segunda característica (5.7-10): Jesus Cristo chama a nos identificar com ele. O trecho continua descrevendo Jesus Cristo como supremo sumo sacerdote. Outra dimensão da existência humana com a qual ele se identificou com a humanidade pela sua experiência foi a angústia diante da morte. Sim, é verdade que Jesus venceu a morte; a morte não pode contê-lo sob seu poder. Mas isso não significa que Jesus não sentiu o que sentimos diante da morte. A descrição do v. 7 se refere ao que Jesus viveu no Getsêmani na noite em que foi traído e preso (Mt 26.36-46). Suas orações e súplicas carregam o sentido de urgência e necessidade (LOUW; NIDA, 2013, p. 365); seu clamor é custoso, envolve força e choro. É bastante evidente que o Pai tinha poder para salvá-lo e que se alguém merecia ser ouvido e atendido pelo Pai era Jesus, por causa da sua piedade – lit. reverente respeito (LOUW; NIDA, 2013, p. 474) –, e pelo fato de ser Filho. O v. 8 inicia com um marcador de concessão, traduzido (em ARA) por embora. Sua função é marcar um contraste inesperado. Quando se espera que Jesus Cristo fosse livrado da morte por sua natureza filial e pelo seu relacionamento com o Pai, Hebreus afirma que ele aprendeu pela experiência do que sofreu a obediência. A palavra que é traduzida pelo verbo sofreu tem a mesma raiz da palavra paixão. Nessa construção percebe-se que o destaque está na obediência de Jesus, uma obediência que abriu mão de sua segurança e de sua vontade para fazer a vontade do Pai – por três vezes ele pediu: Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice! E três vezes ele afirmou: Todavia, não seja como eu quero, e sim, com tu queres (Mt 26.39,42,44); três vezes ele se submeteu ao caminho da paixão. Essa experiência do relacionamento com o Pai se faz um chamado a toda pessoa salva. O chamado a aprender a obediência está na identificação entre Jesus Cristo e os que são salvos por ele, os que lhe obedecem (v. 9) e na exortação (após longa argumentação sobre a situação dos destinatários da carta) em 6.11-12: para que não vos torneis indolentes, mas imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as promessas. Nenhuma pessoa cristã deveria buscar viver outra vida que não a vida de obediência a Deus. O alvo da vida cristã é identificar-se com Jesus (Hb 13.19-21).

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3 Meditação O tempo de Quaresma e o texto selecionado para a pregação lembram uma realidade não muito atraente da vida cristã: a vida cristã não está livre de problemas externos nem de conflitos internos; a vida cristã não acontece sem luta. Os problemas externos alcançam a vida das pessoas cristãs porque neste mundo os discípulos e discípulas de Jesus não estão em casa (mundo aqui não é a criação em si, mas o sistema de vida regido pelo pecado). O mundo foi oposição para o Senhor Jesus e do mesmo modo foi, é e será oposição para as discípulas e discípulos de Jesus. Em semelhança ao Senhor Jesus, a vida cristã leva a marca da cruz e é ameaçada por perseguição, tribulação, tentações. A boa notícia é que Jesus anuncia que se identifica conosco e quer nos socorrer. Ele conhece perfeitamente o que é ser provado e tentado em todas as situações que um ser humano pode ser provado e tentado. E ele tem poder para nos socorrer, porque venceu toda tribulação e toda tentação. Em toda tribulação e tentação, Jesus Cristo “se coloca em nossa pele” e nos oferece a sua vitória por auxílio. E os problemas internos acompanham as pessoas cristãs nesta vida porque os discípulos e discípulas de Jesus vivem no Espírito, mas também, simultaneamente, na carne. Carne não no sentido material e corporal (porque isso não é um problema), mas no sentido daquela inclinação para o pecado; aquela inclinação de colocar a si mesmo e a si mesma no centro da vida e ocupar o lugar que é de Deus; aquela inclinação de colocar a si mesmo e a si mesma no controle da vida e buscar a sua vontade, os seus planos, os seus desejos e rejeitar a vontade, os planos e os desejos de Deus. A boa notícia é que Jesus convida a nos identificarmos com ele pela obediência. Ele convida seus discípulos e discípulas a buscar o reino de Deus em primeiro lugar, a negar a si mesmos e perder a própria vida em favor da causa de Deus, a fazer a vontade de Deus em lugar da própria vontade. Tendo, ele mesmo, passado por esse caminho, se faz prova de que é o caminho que leva à vida. Em toda tentação que convida e induz ao abandono da vontade de Deus, Jesus Cristo convida a “nos colocar na pele dele” e experimentar vitória pela obediência. A lembrança dessa dupla identificação, de Jesus conosco e de nós com Jesus, é importante e necessária para nossos dias. Vivemos tempos em se quer e se busca um Jesus que se identifique conosco: que entenda, ame e acolha todas as pessoas, que seja favorável às nossas causas, que incluía todas as pessoas no seu reino, que manifeste pura misericórdia e compaixão em todas as situações. Mas se rejeita o identificar-se com Jesus: o Jesus que aponta para a vontade de Deus e contraria estilos de vida, condena ideologias, não concorda com projetos e causas humanas. As pessoas querem um Jesus que as acolha, mas não um Jesus que, acolhendo, também mostra o que está fora dos seus planos e convida a negar a si mesmo, convida ao arrependimento e à mudança em conformidade com a vontade de Deus. Além da oposição à vontade de Deus, que faz parte do mundo caído, em nosso tempo temos a intensificação da oposição contra aquilo que é característico dos discípulos e discípulas de Jesus: o negar a si mesmo por causa de Jesus. Em nosso mundo/tempo, o maior pecado é o negar a si mesmo e se identificar com

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Jesus Cristo no Getsêmani. E o resultado disso é que muitas pessoas que usam o nome de cristãos têm (querem e buscam) um Jesus configurado, um Jesus personalizado. Eu quero um Jesus que se adapta a mim, me acolhe como sou, concorda comigo, não julga o meu pecado e não me transforma pela obediência. Aliás, é ele que tem que obedecer a mim. No tempo de Quaresma, lembrar a dupla identificação com Jesus – que ele se identifica conosco em nossa fraqueza e nos socorre, e que ele nos chama a nos identificar com ele pela obediência ao Pai e nos dá, por ela, vida nova –, é uma boa palavra de juízo e graça. É uma boa palavra de juízo porque nos dá a oportunidade de nos questionar e verificar se também nós não temos quisto e buscado um Jesus configurado; um Jesus domesticado a fazer nossas vontades; um Jesus feito à nossa imagem e semelhança. Se percebemos isso em nós mesmos, o Senhor nos chama ao arrependimento. E é uma boa palavra de graça porque nos anuncia que também nessa tentação Jesus nos compreende e nos socorre. Ele também foi tentado no Getsêmani e venceu ao se colocar sob a vontade do Pai. E pela obediência à vontade de Deus, Jesus Cristo nos liberta de nosso egoísmo que quer personalizá-lo conforme a nossa imagem e semelhança – o que nos faz perdê-lo e perder a nós mesmos. Pela obediência à vontade de Deus, Jesus Cristo nos liberta da escravidão de ideologias que formatam Jesus conforme as suas causas – o que nos fazem perdê-lo e fazem de nós massa de manobra em suas mãos. Pela obediência à vontade de Deus, Jesus nos liberta de ganhar o mundo inteiro e perder a alma. Se experimentamos isso em nossa vida, louvado seja o Senhor!

4 Imagens para a prédica Pode-se usar a imagem de um alvo. Num primeiro momento, lembrar que somos o alvo do amor de Deus. Deus nos ama ao ponto de dar seu filho por nós para morrer em nosso favor e nos dar a salvação; Jesus nos ama ao ponto de se identificar conosco em nossas fraquezas e nos socorrer. Num segundo momento, a salvação nos dá um alvo: imitar Jesus na obediência a Deus – a ponto de abrir mão de nossa vontade pela vontade dele; de abrir mão de nossos desejos, planos e sonhos pelos desejos, planos e sonhos dele. A vida vem de Jesus Cristo e a vida leva a Jesus Cristo. Deus, pela obediência de Jesus, nos deu a salvação e, pela salvação, Jesus nos leva à obediência a Deus.

5 Subsídios litúrgicos Liturgia de entrada Hino HPD 1, 43 (Livro de Canto da IECLB, 410). É um hino próprio do tempo de Paixão. Descreve o que Jesus Cristo fez por nós, sua identificação conosco, que o levou ao sofrimento e à morte em nosso lugar. As últimas estrofes nos querem lembrar a resposta de quem recebe pela fé o tremendo amor de Jesus. Só pode entregar-se a ele em amor.

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Liturgia da palavra Hino HPD 1, 54 (Livro de Canto da IECLB, não incluído). É um hino próprio do tempo de Paixão. Lembra a contemplação dos sofrimentos de Cristo por nós. Contemplação que também pode acontecer pelo ouvir o texto bíblico e a pregação da palavra de Deus. Liturgia de saída Hino HPD 1, 46 (Livro de Canto da IECLB, 448). É um hino próprio do tempo de Paixão. Manifesta gratidão pelo que Jesus Cristo fez por nós e nos roga para nos manter fiéis, que nos capacita a viver uma vida digna do que ele fez por nós.

Bibliografia BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo Almeida. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo NTLH. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012. LOUW, Johannes; NIDA, Eugene. Léxico grego-português do Novo Testamento baseado em domínios semânticos. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. PETERSON, Eugene H. A Mensagem: Bíblia em linguagem contemporânea. 5. ed. São Paulo: Vida, 2014.

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PRÉDICA: JOÃO 12.12-16

DOMINGO DE RAMOS

SALMO 118.1-2,19-29 HEBREUS 9.11-15

28 MAR 2021

Roberto N. Baptista

Jesus e o jumentinho!

1 Introdução Escrevo este texto, como muitos colegas, em pleno crescimento dos casos da Covid-19 no Brasil. Vivemos um isolamento social nunca experimentado nessas proporções em nosso mundo. Neste ano de 2020, deveríamos ter celebrado o Culto de Confirmação em nossa comunidade. Mas nosso Domingo de Ramos não pôde ser festejado como o fizemos por muitos anos, junto com os jovens confirmandos e as jovens confirmandas, seus familiares e amigos e amigas. Como será em 2021? Espero que possamos preparar uma bela celebração de Ramos. E que este pequeno texto possa ajudá-los nessa bela tarefa. Estamos numa das mais importantes datas do cristianismo. Sim! Domingo de Ramos tem uma beleza teatral e uma forte afirmação do tipo de rei que o evangelho nos apresenta. Por isso devemos aproveitar esse momento para realizar um culto especial junto com a comunidade. O texto-chave para este estudo encontra-se no Evangelho de João 12.12-16. Interessante observar que algo não muito comum acontece aqui. Não são muitas as perícopes de João que se encontram também nos evangelhos sinóticos. É o caso especial dessa porção. Você poderá encontrá-la também em Mateus 21.1-9, em Marcos 11.1-10 e em Lucas 19.28-38. E, claro, nesses três evangelhos elas estão espelhadas e com muito mais informações do que em João. Era de se esperar. As ênfases em João são sempre muito específicas. Podemos encontrar quatro comentários sobre o texto em Proclamar Libertação. No primeiro deles (PL XI, 1985), Dario Schaeffer faz uma boa análise do contexto na época de Jesus. Vale a pena vê-lo. O segundo estudo apareceu dez anos depois, no PL 20, com Eduardo Gross. Ele faz uma análise verso a verso e aponta para a ambiguidade do ser humano, fato que também abordarei mais adiante. O terceiro, no PL 36, de 2012, com a colaboração de Werner Wiese, também se destaca por sua exegese e as abordagens teológicas do texto. E, por fim, no PL 42, de 2018, Manoel Bernardino de Santana Filho faz uma exegese considerando os fatos presentes no texto de João e lembrando as outras narrativas dos evangelhos. As demais leituras para este ano não são as mesmas dos outros auxílios homiléticos que acabei de citar. Porém, o Salmo 118 aparece em dois deles. É fácil perceber sua relação com nosso texto de João 12. Ali vemos uma ode de louvor ao rei entrando pelas portas da cidade para restaurar a justiça de Deus. Nosso texto

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Domingo de Ramos

de Hebreus 9.11-15 nos fala do Jesus sumo sacerdote, que além de entrar pelas portas de Jerusalém como um rei diferente, também entrou no lugar mais sagrado do Templo como um sumo sacerdote diferente. Uma última consideração nesta introdução. Podemos ler os textos paralelos de João 12 nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. Vamos encontrar ali riquezas de detalhes. Portanto a pergunta que podemos fazer seria: qual o particular da narrativa de João? Nosso texto aqui está reduzido aos versos 12 a 16. No entanto, poderíamos ler um pouco antes e um pouco depois. Seria natural.

2 Exegese Contexto em torno da entrada de Jesus em Jerusalém O texto de João 12 encontra-se numa circunstância de muita tensão na vida de Jesus e seus discípulos. Domingo de Ramos abre uma semana intensa que todos sabemos onde irá culminar. Mas, antes, temos a narrativa que trata da ressurreição de Lázaro. E o Evangelho de João nos mostra como esse evento trouxe grande impacto ao povo e principalmente às autoridades religiosas. É fácil perceber. Lázaro e suas irmãs, Marta e Maria, amigo e amigas de Jesus, viviam em Betânia, um vilarejo muito próximo de Jerusalém. E eram pessoas conhecidas naqueles arredores. Ao ficar doente, pode-se imaginar que a notícia correu entre amigos e amigas. O evangelho nos diz que Jesus se atrasou propositalmente na sua ida até a casa de Marta e Maria. Elas haviam enviado mensagem a Jesus dizendo da gravidade da saúde de seu irmão. Sabemos que Jesus chegou a Betânia quando já fazia quatro dias desde o sepultamento de Lázaro. E diante do túmulo Jesus ordena: Tirem a pedra! O que veio a seguir foi motivo, como já disse, de grande impacto nas notícias. Ela se espalhou. E levou Jesus até Jerusalém. Outro ponto que gosto e considero importante é a escolha de um jumentinho. Aqui há algumas informações que não parecem coesas. Em Mateus 11, Jesus ordena a dois discípulos que vão adiante e tragam um jumentinho e sua mãe. Em Marcos 11, e Lucas 19, a narrativa é muito parecida, mas os discípulos deviam trazer apenas o jumentinho, o qual jamais houvera sido montado. Em João não há detalhes de como o jumentinho foi obtido. O importante aqui é a ênfase na citação de Zacarias 9.9, que diz: Alegre-se muito, povo de Sião! Moradores de Jerusalém, cantem de alegria, pois o seu rei está chegando. Ele vem triunfante e vitorioso; mas é humilde, e está montado num jumento, num jumentinho, filho de jumenta. Vamos aos detalhes do nosso texto principal. Detalhes em João 12.12-16 Esta parte inicia-se dizendo que as pessoas que estavam em Jerusalém para celebrar a Festa da Páscoa ouviram dizer que Jesus estava chegando na cidade. Antes, porém, aparece uma ligação com os textos anteriores: “no dia seguinte”. Que dia será esse? João 12.1 afirma que o que vem a seguir aconteceu no sexto dia antes da Páscoa. Após a ressurreição de Lázaro, Maria, sua irmã, aparece com

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um bálsamo e unge Jesus. Portanto o v. 12 continua, após esse fato, no dia seguinte. Provavelmente, estamos numa segunda-feira, cinco dias antes do Shabat da Páscoa. Devemos considerar que a Festa da Páscoa durava de um sábado ao outro, ou seja, oito dias. E a população da cidade quadruplicava nesses dias. No verso 13, lemos sobre a recepção a Jesus com folhas de palmeiras. Mateus nos fala de ramos de árvores e Marcos de ramos que haviam sido cortados dos campos; Lucas refere-se apenas a mantos. O termo “ramos” também pode se referir a um broto novo, um rebento, um renovo. É claro, lembramos os profetas como Isaías 11.11 (o tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo), de Jeremias 33.15 (naqueles dias e naquele tempo, farei brotar a Davi um Renovo de justiça) ou ainda Zacarias 6.12 (eis aqui o homem cujo nome é Renovo; ele brotará do seu lugar e edificará o templo do Senhor). Esses brotos são declarados como de palmeiras, uma alusão à vitória, ao triunfo, à glória. Todos nos lembramos dos ramos de palmeira concedidos aos atletas vitoriosos na Grécia antiga. De qualquer maneira e acima de tudo, o broto de palmeira é um símbolo da messianidade de Jesus. E estender mantos no chão para a passagem do rei também era uma prática comum. Vemos essa prática, por exemplo, em 2 Reis 9.13, na aclamação do rei Jeú: Então, se apressaram, e, tomando cada um o seu manto, os puseram debaixo dele, sobre os degraus, e tocaram a trombeta, e disseram: Jeú é rei! Mais forte ainda é o grito popular em João 12.13: Hosana a Deus! Que Deus abençoe aquele que vem em nome do Senhor! Que Deus abençoe o Rei de Israel! É uma clara alusão ao Salmo 118 (veja verso 26, principalmente). A palavra hosana, além de expressar alegria, continha um pedido de salvação no hebraico: hoshi’anna seria “salve-nos”. Não é uma palavra grega, mas hebraica e aramaica. E toda a expressão é claramente encontrada nos outros evangelhos. Portanto não podemos deixar de enfatizar o caráter messiânico dessa passagem. A pergunta que eu já fizera: com que tipo de rei estamos tratando? Os próximos versos nos ajudarão a responder a essa questão. Os versos 14 e 15 tratam rapidamente da montaria que Jesus utilizou em sua entrada em Jerusalém. Os outros evangelhos gastam mais energia na narrativa. Contudo, João vai direto ao ponto. A montaria tem a ver com o que nos diz o v.15: Povo de Jerusalém, não tenha medo! Veja! Aí vem o seu Rei, montado num jumentinho! Já citara acima a alusão direta a Zacarias 9.9. Mas, afinal, o que é jumentinho? E por que um jumentinho? O jumento (Equus asinus), asno ou jegue, é uma espécie de “parente” do cavalo (Equus caballus). Os reis ou generais romanos, por exemplo, entravam na cidade, após um retorno vitorioso de uma guerra, montados em potentes cavalos, símbolo do seu poder. Um cavalo é uma montaria, acima de tudo. Representava o poder e a força. O jumento está em outro patamar. Ele tem sido, durante séculos, em várias civilizações, um símbolo do trabalho. Ele é um operário. Trata-se basicamente de um forte e resistente animal de carga. Ele consegue inclusive se equilibrar em regiões montanhosas de difícil acesso. Temos vários exemplos do uso desse animal na história e na própria Bíblia. Algumas poucas vezes, usado como montaria, como, por exemplo, por Abraão (Gn 22.3) e por Balaão (Nm 22.21). Porém o mais importante de tudo é que o jumento era “parte da família” do povo

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humilde. Jesus, ao escolher esse tipo de montaria, diz claramente que sua escolha tem a ver com o tipo de rei que ele representa: um rei do povo, comprometido com a justiça e com o deleite. Além disso, sua escolha pelo jumentinho nos remete aos textos messiânicos do Primeiro Testamento, como já o vimos. O v. 16 aponta para a discrição do seu reino. Nem os próprios discípulos o entenderam. Aliás, essa concepção foi e tem sido uma “pedra de tropeço” na igreja cristã. Em tantos momentos de sua história, ela deixou de lado essa compreensão e preferiu adotar as características dos grandes impérios. Basta ver as coroações do papado. Que bom vivenciarmos a escolha de Francisco, que tem procurado minimizar muito essa pomposidade. Na verdade, essa crítica vale para “toda a igreja”. Muito mais ainda aos evangélicos de nossa época, que adoram “cantar” em bom som o reinado de Jesus e suas consequências – por meio da teologia da prosperidade – na vida das pessoas mais humildes. Não! Viva o Jesus do jumentinho!

3 Prédica Pensamos, então, na prédica. Baseado no que apontamos acima, por mim e outros colegas, precisamos valorizar alguns pontos: a) O contexto delimitado para este domingo, João 12.12-16, deve ser lido a partir de todo o entorno, antes e depois. Já vimos como foram importantes a ressurreição de Lázaro e a visita de Jesus a Betânia. Maria, irmã de Lázaro, também contribui ao lavar os pés de Jesus com um bálsamo custoso. Em relação à ressurreição de Lázaro: as impressões das pessoas que visitavam Jerusalém por ocasião da Festa da Páscoa e as reações opostas das autoridades religiosas também têm a ver diretamente com nossa perícope. E não esqueçamos: a entrada de Jesus o levará à cruz e ao sofrimento. Claro, não podemos tratar de todos esses fatores na prédica. Cabe a você escolher algo que gostaria de enfatizar no entorno do nosso texto de João. b) Um jumentinho faz diferença. Como enfatizamos acima, a escolha de Jesus diz coerentemente sobre o tipo de rei que ele é, e com tudo que viveu e ensinou junto aos seus discípulos. Baixar a bola e enfatizar esse rei simples seria muito adequado para o momento que vivemos. Não só pelo momento de dor e sofrimento que estamos passando devido à pandemia da Covid-19 e às duras consequências, principalmente pela nossa falta de estrutura e atenção à saúde em tantos e tantos anos de administração pública, mas também pela necessidade, que, ao meu ver, devemos retomar na figura de um autêntico rei que se identifica com seu povo mais humilde. Sei que não está na moda. Perdemos os conceitos essenciais para um novo momento em que conceitos não são fundamentais. Porém esse ponto é importante para evitarmos essa busca que sempre tivemos por salvadores messiânicos. Lembro uma fala do Dr. Drauzio Varela no programa Roda Viva, quando espectadores pediam sua candidatura à presidência. Ele rechaçou a ideia e enfatizou que devemos descartar essa ideia de um salvador da pátria. Nós devemos mudar a realidade. Com as bênçãos e a ajuda de Deus e do seu modesto rei!

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c) Toda vez que me deparo com esse texto, não posso também deixar de enfatizar as controvérsias da natureza humana. Glória e desgraça caminham muito próximas e uma linha tênue as separa. Jesus experimentou esse contraste ao extremo. Chamar a atenção a esse fator, na minha opinião, não deve ser uma opção. Deve ser uma “obrigação”. d) Finalmente, não podemos nos esquecer da esperança. O texto de João aponta para o sofrimento de Jesus a partir dos acontecimentos do capítulo 11 e 12. E João gasta muitos versos nos últimos discursos de Jesus e na sua despedida junto aos seus amigos. Porém vamos em direção à Páscoa. Esse Jesus montado em um jumentinho nos enche de esperança, mas, acima de tudo, nos chama como comunidade cristã a uma construção de um reino em que a justiça e a solidariedade devem imperar. O amor é o sinônimo do nosso Deus (1Jo 4.8). Não posso imaginar uma comunidade cristã de pessoas centradas em si mesmas e que buscam uma divindade apenas para seus próprios benefícios. Uma comunidade espelhada no rei do jumentinho é acima de tudo uma comunidade fraterna, solidária e que busca o bem comum. Viva o rei do jumentinho.

Bibliografia BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1983. ______. El Evangelio según Juan. Madri: Cristiandad, 1979. 2 v. GRÜN, Anselm. Jesus, porta para a vida: o Evangelho de João. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2011. KÜMMEL, Werner. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João: análise linguística e comentário exegético. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1999.

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QUINTA-FEIRA DA PAIXÃO

PRÉDICA: MARCOS 14.12-26

01 ABR 2021

ISAÍAS 42.1-4 (5-9) APOCALIPSE 19.6-10

Elke Doehl Claudir Burmann

A última ceia como a primeira

1 Introdução Na Quinta-Feira da Paixão iniciamos o auge da caminhada sacrificial e salvífica de Jesus Cristo. A última ceia com seus discípulos ecoa em nós e em nossas comunidades com intensidade. Cada participante do culto nessa ocasião, nesse dia ou nessa noite, sente como se fosse um dos doze daquela noite. O tom é um misto de alegria, apreensão, tristeza, expectativa e esperança. É a lembrança de uma partilha de despedida. E remete a outras ocasiões em que o momento compartilhado foi o último. No Evangelho de Marcos, Jesus orienta seus discípulos a fazerem os preparativos para o jantar pascal – que se tornou conhecido como a “última ceia”. Há a descrição de numerosos detalhes sobre onde e como esse jantar se daria. Há a indicação de que nem todas as pessoas presentes, de fato, são sinceras, verdadeiras e fiéis. Mesmo assim, estão juntas e partilham. Na partilha é expressa a esperança por um novo sabor, um vinho novo, no reino de Deus. O profeta Isaías havia alimentado o desejo do povo por um “novo sabor”. Haveria um rei que reinaria com justiça e governantes que seriam honestos. Os olhos e os ouvidos das pessoas se abririam. A compreensão e o entendimento levariam a falar tudo com clareza e inteligência. Na mesma medida em que Jesus concretiza essa profecia, também indica sua realização plena no futuro. Ao que o anjo do Apocalipse diz: Bem-aventuradas as pessoas que são chamadas à ceia das bodas do Cordeiro (19.9). Enfim, o último momento não é o último momento. É a indicação para algo além do alcance dos olhos.

2 Observações exegéticas O texto de Marcos 14.12-26 já foi abordado em diversas edições de Proclamar Libertação: PL 26, 1991, p. 134-139; PL 22, 1997, p. 104-108; PL 28, 2003, p. 144152; PL 36, 2012, p. 140-147. As diversas abordagens confluem na compreensão da estrutura do conjunto textual que o próprio evangelho apresenta: a) preparação da ceia pascal; b) a indicação de quem o trairá; e c) bênção, partilha e louvor. Até os dias atuais, a celebração da Páscoa integra a tradição religiosa do judaísmo, sendo rememoração da saída do Egito. Logo no v. 12 há a indicação evidente de que assim já era nos “tempos de Jesus”. Ao mencionar a “Festa dos

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Pães sem Fermento”, é trazido à memória o que em Deuteronômio 16.3 é dito: Na Páscoa, vocês não devem comer pão fermentado. Durante sete dias, comam pães sem fermento, o pão da aflição – porque às pressas vocês saíram do Egito –, para que todos os dias da vida vocês se lembrem do dia em que saíram da terra do Egito. Jesus e seus discípulos conheciam e eram parte dessa tradição. Sabiam bem do que se tratava. Era uma celebração especial e precisava ser preparada. No caso, foi preparada numa casa, num “espaçoso cenáculo”, local apropriado para o jantar ou a ceia (no latim, cena) e acolher um bom número de pessoas – por isso “espaçoso”. É um indicativo de que essa “última ceia” de Jesus com seus discípulos não foi mais uma das muitas comunhões de mesa que Jesus teve ao longo de seu ministério. Essa ceia se reveste de especial importância pelo “evento litúrgico” que representa, por se situar no contexto religioso judaico e pascal da época. Como tal, tem preparo e local apropriados para acontecer. Maior descrição de detalhes desse local o texto bíblico não apresenta, embora estudos arqueológicos (especulativos) façam essa tentativa. Na sequência, Jesus menciona que alguém que está ceando junto naquele momento o trairia (v. 18). Permanece algum suspense até afirmar que tal pessoa é a que com ele põe a mão no prato. E uma palavra de juízo é expressa: Ai [...] Melhor seria para ele se nunca tivesse nascido (v. 21). Simbolicamente, é possível compreender que nem todas as pessoas participantes do evento pascal chegam ou chegarão à “terra prometida”. Sobreviver à opressão ou resistir ao pecado, por si só, não tornam a pessoa perfeita. Pessoas justas e pecadoras até mesmo se nutrem da mesma fonte – põem suas mãos juntas no mesmo prato. Depois, Jesus ainda fala do cálice e diz que todos beberam dele (v. 23). Dentre os doze discípulos há diversidade de origem e de entendimento acerca da tarefa que lhes cabe. Com aqueles doze (v. 17), muito diferentes entre si, Jesus reparte o pão e o vinho. Ao pegar o pão, o abençoa. Ao pegar o vinho, dá graças a Deus. Se o pão remete ao alimento da saída da escravidão, o vinho, além de ser bebida produzida e consumida naquele tempo e naquela região, simboliza o sangue do cordeiro pascal sacrificado. São alimentos reais, que alimentam de fato, mas, ao mesmo tempo, são elementos litúrgicos do rito pascal judaico. Em Êxodo 12.21 é mencionado ainda acerca da origem da inclusão do cordeiro na celebração da Páscoa. Essa ceia, pois, mantém fidelidade às tradições religiosas herdadas por Jesus e pelos doze. É um comer e beber de quem está integrado a uma linhagem de fé. Ao mesmo tempo, naquela ceia, emerge a grande novidade e que impacta o futuro: a ressignificação da Páscoa judaica. Junto à partilha do pão, Jesus diz: Isto é meu corpo. Na distribuição do vinho diz: Isto é meu sangue. Transposto a um “futuro passado”, aponta que é o sangue da aliança, do qual Êxodo 24.6-8 fala. Em Jeremias 31.31-34 fala-se da “nova aliança” que Deus faria com seu povo e que as palavras de Jesus indicam assumir. Há um mistério que surge naquela ceia e, por ser mistério, só pode ser apreendido mediante a fé, nem sempre presente da forma esperada entre aqueles doze – nem nas comunidades cristãs subsequentes até a atualidade. E, assim, surge um dos sacramentos – “meio sagrado” da ação divina. Jesus torna-se o alimento e a bebida – corpo e sangue unidos para uma nova libertação. É o ponto de partida para intensa produção teológico-dogmática ao

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longo do cristianismo. Divergências, dissidências e divisões entre as pessoas cristãs se originaram a partir do que deveria ser “pura graça”, estendida em direção ao ser humano. Ponto atual de debate é acerca da “presença real” por meios virtuais. O uso de tecnologias de comunicação e de telepresença tem aberto um novo debate em relação a novas possibilidades de celebração desse “meio sagrado”. A dificuldade de sempre é conseguir “ser contemporâneo ao tempo que se vive” e celebrar de modo correspondente a pura graça divina. Em si, a “presença real” de Cristo, após sua ascensão aos céus, sempre foi “presença virtual”, embora compreendida e celebrada como real. Os v. 22 a 26 e seus paralelos, em transcrições similares em outros livros bíblicos, tornaram-se a base da teologia eucarística. Mesmo que a historicidade seja posta em dúvida por pessoas estudiosas do assunto, o impacto prático na experiência e vivência da fé cristã é inestimável. O sacramento da Ceia do Senhor é capaz de produzir efeitos de “cura e restauração”, ou então, perdão dos pecados, vida nova e salvação. É isso que é experienciado a cada vez que esse sacramento é celebrado. Esse texto do evangelho inserido no contexto da celebração pascal atual rememora com profundidade aspectos-chaves da doutrina cristã comum às diferentes tradições internas ao cristianismo. Apesar das diferenças entre denominações, a rememoração ritual dessas palavras persiste.

3 Meditação Compartilhar em conjunto: quanta satisfação está presente numa ocasião como essa! Experimentamos isso em incontáveis ocasiões em nossa vida – também no exercício ministerial. Após uma reunião ou encontro, ou na visita a alguém, há uma alegria singular e, muitas vezes, expectativa pelo momento da partilha de alimentos, num almoço, café da tarde ou janta. Ora é mais sofisticado, ora é mais simples. A sensação de agradabilidade é a mesma: estar lado a lado, sem preocupação de reflexão mais profunda, sem precisar decidir algo, para cada qual falar ao mesmo tempo... Isso é parte dessas ocasiões especiais. É claro que há muita gente que não tem ocasião para um compartilhar como esse. Há quem nunca o terá. Suas condições de vida e existência, seu modo cultural, sua realidade econômica e financeira estão distantes dessas possibilidades. A “vida” não deu condições para tal. Os relacionamentos nunca se tornaram sólidos o suficiente para integrar uma “roda”. Há quem está só e distante do compartilhar de uma “ceia”, seja última ou primeira. Sequer faz ideia dessa possibilidade. Nossa realidade tem dessas coisas, que constrangem e doem no coração ao pensar que isso, de fato, é real. Em seu tempo, Jesus esteve em muitas casas. Partilhou refeição com muitas pessoas. Adentrou no íntimo de muita gente nessas oportunidades. Na casa de Mateus, tomou refeição junto com publicanos e pecadores. Jantou na casa de um fariseu, onde uma mulher ungiu seus pés com perfume. Hospedou-se na casa de Zaqueu, levando salvação para sua casa. Entrou para ficar na casa dos discípulos de Emaús, abrindo-lhes os olhos no partir do pão. Partilhou com muitas pessoas o alimento, o perdão, a restauração da dignidade.

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A presença de Jesus, na casa e nas refeições, ocasionava um impacto peculiar. A situação, a realidade, resultava transformada. O contato com Jesus deixava marcas. Não se saía dali ileso. Seu alimento ou o alimento partilhado em sua presença se traduzia em mudança. Era a passagem de uma vivência para outra. A visita a uma casa era restauradora. O sentar-se à mesa, ou numa “roda”, satisfazia mais do que necessidades físicas. Mesmo assim, dizia para que não fosse muito divulgado o que ocorria. Contrariava o impulso humano de falar adiante alguma novidade. A refeição que Jesus pede que seus discípulos preparem tem todos esses ingredientes. Não são pessoas perfeitas, sem máculas e sem pecado que com ele vão cear. A perfeição de vida não é pressuposto para estar nessa ceia. Os evangelhos nos falam de diversas falhas graves que alguns discípulos demonstraram em seu seguimento. Alguns queriam ser melhores que outros. Outro não acreditava que Jesus, de fato, era o Messias, o Salvador. Houve quem o traiu. Outro, depois, ainda duvidou de sua ressurreição. Gente falha, como toda pessoa, estava ali a participar da ceia preparada. Os preparativos para um jantar especial são feitos com cuidado. O jantar da Páscoa era a lembrança de um tempo de dor e de vitória. Era a rememoração da ação poderosa de Deus, libertando seu povo de amarras opressoras. A preparação dessa ceia pascal seguia tradições herdadas e repassadas de geração em geração. Jesus e seus discípulos integravam e conheciam bem essa tradição. E tal qual o Mestre orientou, os discípulos o fizeram. Pode-se subentender que estava tudo em seu lugar e havia uma alegria ardente nos corações – muito próprio por um momento aguardado. A celebração da Páscoa era algo verdadeiramente sagrado. Há partilhas de mesa que trazem surpresas. Nessa hora em que se está reunido ao redor de uma mesa, muitas revelações podem ser feitas. Jesus surpreende os que ali estão com ele. Ele diz: Tomem, isto é o meu corpo. E depois complementa: Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos. Jesus diz que o pão é mais que pão. E que o fruto da videira é mais que fruto da videira. Nasce, dessas palavras, o sacramento da reconciliação, do perdão, da vida nova e da salvação. É uma nova transformação que emerge nesse encontro, nessa partilha, nessa ceia. Mais uma vez percebe-se que a presença de Jesus transforma vidas, realidades e contextos. Uma nova aliança é afirmada: uma aliança que, definitivamente, quer incluir as diferentes situações de vida: tanto quem está “quebrado” como quem está “ainda mais quebrado”. Bem saciados, na esperança pelo vinho novo, no reino de Deus, a ceia termina. Há louvor e se caminha para o monte das Oliveiras. Cantar hinos após um momento especial é gratidão pelo encontro, pela partilha, pelas dádivas recebidas de presente. A ida ao monte das Oliveiras é prenúncio de que, além da força visível, há uma força invisível ainda mais potente. Mesmo que se queimasse ou cortasse a oliveira, ainda assim ela tinha capacidade de brotar outra vez a partir de suas raízes. Era a partilha que precisava ainda acontecer naquela noite. Aquela última ceia foi a primeira ceia da perseverança, da fé que não se abate, mesmo na repressão, na poda, no corte, no fogo... enquanto se espera a ceia do vinho novo no reino de Deus.

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4 Imagens para a prédica Questões a considerar na construção da prédica: a) A comunhão da Ceia do Senhor faz diferença na vida de alguém? b) Como foi a questão da Ceia do Senhor durante a pandemia no ano que passou? c) Já recusamos alguma comunhão de mesa na casa de alguém? Já recusamos a comunhão oferecida pela Ceia do Senhor? d) Comunhão é mais do que um simples partilhar de alimento. É uma convivência, uma troca no sentido mais profundo da palavra. É um repartir em comum de sentimentos e convivência, muito além da materialidade dos alimentos e elementos visíveis. e) A comunhão não acontece apenas no momento e ato da partilha. Já acontece na preparação, no modo com que preparamos uma refeição para quem dela vier a ser parte. f) Pode ser preparada uma breve encenação de uma comunhão de mesa: pessoas sentadas ao redor de uma mesa conversando e partilhando alimentos. g) Dependendo da situação, pode-se convidar pessoas da comunidade para se sentar por um momento ao redor dessa mesa.

5 Subsídios litúrgicos No momento do anúncio da Palavra, em que se ressalta a importância da última ceia, assim como Jesus envolveu seus discípulos para preparar a comunhão, também algumas pessoas podem estar preparando a mesa de comunhão. Detalhes que, geralmente, são cuidados na sacristia podem estar sendo preparados perante a comunidade. Sugestão de hinos: LCI 271, LCI 275. A liturgia da Ceia pode ser mais abreviada, considerando o preparativo anterior, ao longo de toda a reflexão. Tornar o momento da partilha um “momento leve” pelo fato de cada qual ter e ser parte da comunhão de pessoas justificadas, perdoadas e santificadas pela fé em Cristo Jesus.

Bibliografia BULL, Klaus-Michael. Panorama do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2009. ROLOFF, Jürgen. A Igreja no Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2005.

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PRÉDICA: HEBREUS 10.16-25 ISAÍAS 52.13 – 53.12 JOÃO 19.16-30(31-37)

SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO

02 ABR 2021

Júlio Cézar Adam

A cruz, a amizade com Deus e a beleza da vida

1 Introdução A Sexta-Feira da Paixão é uma das datas mais marcantes no calendário litúrgico das comunidades cristãs. Estamos no coração dos acontecimentos centrais da fé cristã, a Páscoa de Cristo. Estamos no coração das Escrituras e do Evangelho: a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Certa vez, li que tudo que cada um dos quatro evangelhos descreve antes do relato da cruz é apenas o prólogo, a introdução ao assunto principal, a Páscoa. Tudo isso faz esse dia ser o que ele é. Aprendi ainda quando criança que esse é um dia diferente, um dia de silêncio, jejum, de não comer carne vermelha, nem subir em árvore, maltratar os animais ou cavar a terra. É um dia de ir ao culto e celebrar a Santa Ceia. É o dia do ano em que mais diretamente refletimos sobre a morte de Jesus Cristo na cruz. Nas celebrações do Tríduo Pascal, a celebração de Sexta-Feira da Paixão é parte de uma celebração maior, que inicia já na Quinta-Feira da Paixão e encerra no Domingo da Páscoa. A celebração do Tríduo Pascal possibilita, assim, acompanhar os últimos momentos de Cristo. A comunidade sofre, morre e ressuscita com ele no domingo. A celebração da Sexta-Feira da Paixão é um momento marcante, de profundo silêncio, de escuta dos relatos da crucificação e da morte de Cristo, de contemplação da cruz, de lamento. As celebrações do Tríduo não possuem pregação. Liturgicamente falando, a Sexta-Feira da Paixão é considerada um dia alitúrgico, porque o Cristo está morto. Por isso esse seria o único dia em que não deveríamos celebrar a Santa Ceia. Ou seja, na proposta do Tríduo, celebramos a Sexta-Feira da Paixão com outros recursos, ou melhor, com a privação de recursos litúrgicos e homiléticos comuns aos outros cultos. Este subsídio homilético, portanto, destina-se às comunidades que não celebram o Tríduo Pascal e que realizam um culto normal na Sexta-Feira Santa. Os textos previstos no lecionário, os mesmos textos usados na celebração do Tríduo, são muito adequados para este culto, pois são textos que falam do sacrifício de Cristo na cruz. O texto para a pregação é o de Hebreus 10.16-25, texto que fala especialmente sobre o significado do sacrifício definitivo para a libertação do pecado. O texto tem muita densidade dramática e teológica, dialogando muito de perto com a ideia bíblica do sacrifício. Hebreus procura diferenciar muito claramente que o sacrifício de Cristo supera os sacrifícios praticados no templo e que esse único, voluntário e definitivo sacrifício concede algo novo à pessoa que crê. O texto auxilia muito, assim como a celebração da Sexta-Feira Santa no contexto

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Sexta-Feira da Paixão

do Tríduo Pascal, a refletir, contemplar e tomar parte no grande sofrimento de Cristo e seu benefício para a vida de fé. Os textos bíblicos contribuem muito para esse espírito de compenetração e reflexão. Do Antigo Testamento temos o texto de Isaías 52.13 – 53.12. Trata-se do texto sobre o servo sofredor, rico em detalhes sobre os sofrimentos do servo, sua submissão à vontade de Deus e sobre o benefício desse sacrifício para nós, pessoas pecadoras. Por meio do sacrifício, o servo de Deus toma para si nossas dores, enfermidades e transgressões. Por meio de tamanha dor assumida, fomos sarados. Se em Isaías há total submissão do servo, o Salmo 22 é um grande lamento do próprio Deus diante do que o ser humano é capaz, sua renúncia aos benefícios da vida dada. Aqui temos muitas expressões que também remetem à crucificação de Cristo. O texto do evangelho, por sua vez, João 19.16-30(31-37) é o relato da crucificação e da morte de Cristo. Vemos, assim, que os textos contribuem muito para a reflexão sobre o sacrifício e o sofrimento de Cristo. O culto da Sexta-Feira da Paixão é, portanto, um momento propício para refletirmos, na liturgia e na pregação, sobre o sacrifício e o sofrimento de Cristo como acesso à redenção de toda a criação. O sofrimento e o sacrifício de Cristo como meios de libertação é a mensagem da Sexta-Feira Santa. Essa mensagem conclama a comunidade e a pessoa cristã não ao conformismo diante do sofrimento ou, até mesmo, à satisfação e ao masoquismo diante do sofrimento alheio, mas grita pela superação de toda forma de sacrifício e sofrimento, ao mesmo tempo em que liberta para uma vida digna e boa, para a fé, a esperança e o amor neste mundo. Essa é a mensagem do texto de Hebreus 10.16-25.

2 Exegese Não se conhece a autoria da Carta aos Hebreus. Discutia-se na igreja antiga se ela teria sido escrita por Paulo, algo que é refutado nos dias de hoje. A carta é um discurso de exortação, escrita a uma comunidade que passa por um período de desalento e desesperança. A carta quer dar novo vigor à comunidade, usando exortações e informações teológicas. No seu conteúdo há uma relação muito estreita com a história da salvação iniciada no Antigo Testamento e completada agora com o evento de Jesus Cristo. Ele é a etapa final do processo de salvação (1.1-4). O autor tem grande conhecimento das Escrituras e apresenta, por assim dizer, uma exegese delas. Quer com isso que a comunidade de Hebreus se dê conta do papel decisivo que lhe corresponde no plano de Deus (11.39,40), se reanime e enfrente as dificuldades. O autor parece saber muito bem para quem está escrevendo. A comunidade recebeu a verdade fundamental a respeito de Cristo e foi eficiente no seguimento dessa verdade. A geração seguinte, porém, da qual o autor parece fazer parte, demonstra estar imobilizada, vulnerável a falsas doutrinas. O propósito do autor é, então, ajudar a comunidade a reencontrar o rumo. Neste sentido, podemos dizer que o autor é um verdadeiro pastor de almas, pregando para animar e edificar a comunidade na fé.

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A carta é muito orgânica, chegando a ser difícil separá-la em partes. Mesmo assim, há temas e ideias chaves no texto. Poder-se-ia estruturá-la em três grandes partes: a primeira parte (1.1 – 4.13) trata de apresentar o tema central da carta e fazer uma retomada exegética da história da salvação enraizada no Antigo Testamento, como forma de exortar para a grandeza da vocação cristã. Com uma segunda exortação, inicia a segunda parte (4.14 – 10.18), que é a parte central da carta com a ideia cristológica central do autor, seu ensino sobre o sumo sacerdote da nova aliança. Essa é a base sobre a qual a comunidade pode e deve se orgulhar, amadurecer e se deixar reavivar, recuperar a confiança. A terceira parte (10.19 – 13.25) é também assinalada com uma nova exortação, que aponta para a seriedade da situação, apelando às qualidades pastorais da comunidade, reforçando a relação entre a antiga e a nova aliança e fazendo vários apelos para a vida comum e a ordem na comunidade e o encerramento da carta (KUSS; MICHL, 1977, p. 19-20). Vemos, assim, que toda a carta tem um caráter homilético. Trata-se de uma prédica exortativa, de caráter pastoral. A exegese da carta mostra que o autor tem uma intenção clara. Ele tem um plano fixo e minucioso na organização de cada uma das partes (KUSS; MICHL, 1977, p. 21). Mesmo faltando elementos típicos do gênero epistolário, não há dúvida de que se trata de uma carta. O escrito originário foi em grego, grego muito correto, elaborado por quem domina muito bem o idioma. A perícope de Hebreus 10.16-25 está entre a segunda e a terceira parte da carta, ou seja, entre o núcleo central da carta e seu desfecho exortativo. E, nessa parte, o autor está interessado em fazer uma contraposição entre os sacrifícios da antiga aliança, repetidos incessantemente, e o sacrifício único e incomparavelmente eficaz de Cristo, que agora se assenta à destra de Deus. 16. Esta é a aliança que farei com eles, depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei no seu coração as minhas leis e sobre a sua mente as inscreverei, 17. acrescenta: Também de nenhum modo me lembrarei dos seus pecados e das suas iniquidades, para sempre. O texto inicia com uma referência a Jeremias 31.33-44 sobre o Espírito Santo (v. 15), reforçando a relação da mensagem com o Antigo Testamento, marca de toda a carta. Aqui está expressa a esperança de Deus, de que os seres humanos tenham no coração e na mente sua vontade (suas leis) e que os pecados e iniquidades sejam esquecidos. 18. Ora, onde há remissão destes, já não há oferta pelo pecado. Aqui o autor introduz o tema específico da perícope. Se o perdão foi concedido, nenhum novo sacrifício por causa do pecado precisa ser feito. Na perícope anterior (10.1ss), o autor escreve com detalhes sobre os sacrifícios diários no templo como forma de alcançar o perdão. 19. Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus,

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Agora, por causa do sacrífico definitivo de Cristo, não mais apenas o sumo sacerdote tem acesso ao Santo dos Santos, mas os irmãos e as irmãs em Cristo. O acesso está liberado e se pode fazer parte do sagrado com confiança, determinação e coragem. 20. pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, Jesus é o véu. Por meio dele, de sua carne, de seu sacrifício, o novo e vivo caminho para Deus está garantido. 21. e tendo grande sacerdote sobre a casa de Deus, Jesus não é apenas o véu, mas ele também é o grande sacerdote, aquele que realiza o único e definitivo sacrifício que nos liberta para viver. 22. aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura. Aqui está o anúncio da graça concedida. Essa graça é experimentada pela fé. Ela nos purifica o coração da má consciência. O corpo lavado, aqui, é uma referência ao batismo. Ou seja, experimentar a libertação concedida por meio do sacrifício de Cristo é algo que se dá na fé, na transformação do coração e na vida comunitária, cujo batismo é o meio de acesso a essa nova vivência. 23. Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel. Depois de referir-se à fé, o autor conclama também à esperança como forma de superar a dúvida e a insegurança que a comunidade está enfrentando. O autor lembra que a base para tal confissão e certeza é o próprio Deus e sua fidelidade. Além disso, se a comunidade vacila, Deus continua fiel. 24. Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras. Se a fé é o meio para tal experiência de libertação, a esperança é o estímulo para não vacilar. Esse processo, porém, tem como fim último a prática do amor, o cuidado de uns para com os outros, a boa convivência entre irmãos e irmãs, bem como o serviço e as boas obras. 25. Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima. Então, o sacrifício de Cristo não tem apenas uma finalidade individual, mas também comunitária, como espaço da vivência do amor. Aqui fica evidente a admoestação para viver a fé, a esperança e o amor como comunidade congregada. A esperança escatológica, o Dia, a plenitude do Reino, está no horizonte da vida cristã.

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3 Meditação A Carta aos Hebreus, assim como o texto de Hebreus 10.16-25 especialmente, tem um caráter exortativo. Chama a atenção de pessoas e da comunidade para aquilo que Cristo voluntariamente e por meio de grande sofrimento conquista para o ser humano: a libertação do pecado, a possibilidade de viver pela fé, na esperança e por meio do amor. Se para a comunidade de Hebreus essa compreensão estava esmorecendo, quanto mais para pessoas de hoje, séculos depois em um mundo complexo e em crise. A paixão de Cristo, como acesso a Deus e à libertação plena, tem perdido seu significado na vida das pessoas. Como exortar para algo que as pessoas não percebem como relevante? Parece-me importante meditar a partir do texto de Hebreus sobre o significado de ter acesso ao Santo dos Santos, acesso a Deus, e a viver livres do peso do pecado, que é o significado mais profundo da própria Páscoa. Todos esses termos fazem parte do vocabulário litúrgico e teológico da Sexta-Feira da Paixão. São termos importantes, mas talvez para muitas pessoas e comunidades sejam termos gastos pelo uso. Por isso arrisco meditar sobre essa mensagem abstendo-me do uso de tais termos. Entendo que nossa vida humana, mesmo quando abastecida de recursos materiais, sociais e emocionais, satisfação física e relacional, é uma vida marcada pela crise, a angústia e a insegurança. O sofrimento faz parte da vida ou está à espreita. Se não vivemos na pele tal sofrimento, nada garante que não venhamos a experimentá-lo. Pessoas ao nosso redor, conhecidas e desconhecidas, sofrem dores muito concretas ou padecem com falta de sentido para viver. Arrisco a dizer que grande parte das pessoas, senão a maioria, vive em situações de crise. Um exemplo muito concreto dessa situação de crise e sofrimento é a pandemia da Covid-19, que abalou profundamente o mundo inteiro. Em 2020, todos fomos inesperadamente arrastados para uma crise e para uma situação de permanente sofrimento e grande insegurança. Diante de tais situações, viver na presença de Deus é uma forma de experimentar um sentido maior, uma razão para trabalhar e lutar por dignidade, leveza e beleza (J. Maraschin). A vida humana encontra sentido em Deus, o criador da vida, porque carecemos de um sentido transcendente para viver, algo maior, mais profundo, mais verdadeiro, mais abrangente que nós mesmos. Humanamente uma relação com Deus não é possível, devido a uma separação profunda entre o ser humano e Deus. Não é possível estabelecer uma relação com Deus por nossos meios e nossos recursos, por melhor e mais eficientes que sejam. Não conseguimos chegar até Deus, fonte do sentido da existência. Jesus, por meio do seu sacrifício, cria esse acesso. Jesus, de forma voluntária, radical e única permite que a relação seja estabelecida. Ou seja, a relação com a fonte de sentido é agora possível. A passagem para o sentido mais profundo da vida está assegurada por Cristo. Segundo nosso texto, essa relação garantida por Cristo não é uma aquisição automática ou algo que eu acesso como pesquisando um assunto no Google. É uma relação vivencial, concreta, que nos afeta, como uma amizade profunda e verdadeira. É algo que nos transforma, nos modifica, nos faz perceber a vida

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com outros olhos. Isso o texto de Hebreus expressa com os termos fé, esperança e amor. Ou seja, viver o livre acesso ao Santo dos Santos, viver em relação com Deus, possibilita viver diferente. É como viver e curtir uma amizade bonita. Sacrifícios já não são necessários, a gente simplesmente crê, a gente se joga na relação. Isso nos permite criar esperança não só na amizade, mas ter esperança na vida, nas possibilidades de dias melhores, com mais sentido. Além disso, por causa da fé e da esperança, o amor transformador passa ser uma realidade. Outro tema que o texto leva a meditar, principalmente se considerarmos todo o capítulo 10 da carta, é o tema do sacrifício. O acesso a Deus precisou de um sacrifício. Entender a lógica teológica do sacrifício não é algo fácil para pessoas do século XXI. Há certa tendência, inclusive na igreja, a desviar de temas como sofrimento e sacrifício. As pessoas preferem pensar suas vidas mais a partir de conceitos como vitória, sucesso, satisfação e prazer. Ao mesmo tempo, há também um interesse exacerbado no sofrimento dos outros, quase uma satisfação masoquista, o que se percebe no consumo de notícias violentas nas mídias. Percebe-se nessa tendência, inclusive, certa banalização da violência e de sacrifícios, algo que se percebe, por exemplo, em filmes e jogos eletrônicos. Por outro lado, nesta sociedade em que o tema do sofrimento e do sacrifício não são pessoalmente assumidos com uma forma de entender a própria vida e a relação com Deus, pessoas se sacrificam a si mesmas para corresponder a determinados padrões, comportamentos e status. Para outras tantas pessoas, sofrimento e sacrifício não são apenas chave de reflexão sobre a vida, mas a realidade diária em forma de abuso, abandono, descaso e crueldade. Ou seja, a violência e os sacrifícios estão mais presentes na realidade do que talvez conseguimos num primeiro momento imaginar.

4 Imagens para a prédica De certa forma, as imagens para a prédica já aparecem no ponto anterior. A Sexta-Feira Santa, por ser um dia com densidade teológica e tradicional, já traz em si um tema. O texto bíblico de Hebreus reforça essa densidade. Por isso sugiro evitar uma pregação que simplesmente reforce essa densidade teológica e tradicional, e procure aprofundar o que é o próprio do texto bíblico de Hebreus 10.16-25: o significado da paixão de Cristo, seu sofrimento e seu sacrifício, para nossa vida individual e em comunidade hoje. Minha sugestão é encontrar uma terminologia mais contextualizada. Poder-se-ia refletir sobre o significado de uma vida baseada na relação com Deus. A relação com Deus dá sentido à vida, um sentido profundo, vivencial, empolgante e transformador. Essa relação com Deus, base para uma vida de sentido e com beleza, não é algo que nós conseguimos construir, por mais que a gente se esforce ou por mais recursos materiais ou tecnológicos que tenhamos. É uma relação humanamente impossível! Essa relação foi engendrada na Sexta-Feira Santa por meio do que Jesus Cristo de forma definitiva se dispôs a fazer. A Sexta-Feira da Paixão é o dia de se dar conta disso e receber de forma compenetrada e extasiada essa grande dádiva. Agora podemos viver com sentido, com inteireza,

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com leveza e com beleza. Nossa vida passa a ser mais do que apenas os anos que vivemos, as pessoas com quem convivemos ou o mundo que desfrutamos. Há uma razão maior para tudo que somos e temos. Esse sentido está tão somente em Deus, o criador da vida. Para receber esse grande benefício de Cristo, nada precisamos fazer. Apenas crer e viver! A fé nos abre para uma vida de esperança e de prática voluntária do amor. A experiência da amizade pode ajudar muito como uma figura. Na amizade, vivemos um relacionamento que nos faz bem e nos desafia a crescer, a compartilhar, rir e chorar. Amizade faz sentido e dá sentido à vida. É pura dádiva, sem sacrifício, apenas confiança, troca, relação. A cruz nos dá acesso a uma amizade livre e boa com Deus e, como consequência, a uma amizade gratificante e bonita com as pessoas ao redor. A Sexta-Feira da Paixão é o dia para se dar conta disso. Arrisco ainda outra figura. Meu filho, quando pequeno, brincava muito com bonecos de super-heróis. Quando os bonecos quebravam, ele nos procurava para consertar. Muita fita adesiva foi usada para deixar os bonecos inteiros novamente. Bonecos consertados, a brincadeira continuava com o mesmo entusiasmo e envolvimento. O sacrifício de Cristo reata a relação com Deus, de forma que podemos brincar com entusiasmo e inteireza, podemos viver de forma digna, leve, bela e livre, apesar do sofrimento e das crises que nos acompanham na jornada. Ou, como diz a Carta aos Hebreus, podemos viver com fé, esperança e amor, mesmo quando a vida quebra. Cristo conserta a vida sempre de novo.

5 Recursos litúrgicos Porque aquilo que não foi anunciado verão, aquilo que não ouvirão entenderão. Is 52 – 53 Ele era ser humano, filho de pai e mãe. Ele era ser humano, com irmãos e irmãs. Ele era ser humano, abandonado, aflito. Ele foi tratado com desprezo e desfigurado. Ele era ser humano e foi rejeitado. Ele era ser humano e foi ferido. Ele era ser humano e foi oprimido. Ele foi transpassado por nossas transgressões. Ele era ser humano, o Servo de Sofredor. Ele era ser humano, o cordeiro de Deus. Ele era ser humano, Deus na terra e no céu. Ele era ser humano, o ressurreto. Júlio Cézar Adam Éder Beling

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Clamo de dia e de noite, por que não me amparas ó Deus? Salmo 22 Clamo de dia e de noite, por que não me amparas, ó Deus? Ouço sobre teu Filho e eu não o sigo; a morte a ele foi causada e eu não me importo; com coroas de espinhos maltratado e eu buscando status e poder; com pregos machucado, e eu buscando satisfação pessoal; cansado e fatigado por ter que carregar a cruz, e eu cansado de mim mesmo; zombado e ridicularizado, e eu excluindo e discriminando o diferente; despedaçado como comida na boca do leão, e eu resignado e sem esperança; com os ossos desconjuntados, e eu insatisfeito com meu corpo; seco e sem vigor, e eu farto e entediado; por cães cercado, e eu não indo ao socorro das ameaçadas. Clamo de dia e de noite, por que não me amparas, ó Deus? Do fundo do meu ser confio que tu não te afastas de mim, que és a minha força e que vens em meu socorro. Júlio Cézar Adam Éder Beling

Bibliografia FILHO, José Adriano. Peregrinos neste mundo: simbologia religiosa na Epístola aos Hebreus. São Paulo: Loyola; São Bernardo do Campo: Umesp, 2001. KUSS, Otto; MICHL, Johann. Carta a los Hebreos/Cartas Católicas. Barcelona: Herder, 1977.

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PRÉDICA: MARCOS 16.1-8 ISAÍAS 25.6-9 1 CORÍNTIOS 15.1-11

DOMINGO DA PÁSCOA

04 ABR 2021

Rodolfo Gaede Neto

Páscoa – novo chamado e envio para a missão

1 Introdução Estou escrevendo esta contribuição em meio à realidade de uma pandemia. Estamos completando três meses de isolamento ou distanciamento social desde que o mundo foi surpreendido pela rápida proliferação do vírus da Covid-19, amedrontando e apavorando a comunidade humana. As fronteiras entre os países são fechadas, a economia é drasticamente abalada, pessoas infectadas ocupam os leitos dos hospitais, cemitérios são ampliados, grandes máquinas são usadas para cavar sepulturas em grande número, vidas são ceifadas aos milhares em todo o mundo, sendo que as vítimas são majoritariamente as pessoas mais fragilizadas pela idade ou por comorbidades. O cenário inevitavelmente nos coloca diante de questões existenciais. Como pode um vírus, em tão curto espaço de tempo, causar tamanhos abalos a paradigmas, conceitos, convenções, costumes, certezas, comportamentos, tradições e estruturas? As coisas fixas, sedimentadas, consolidadas e consagradas por séculos de experiências, estudos e pesquisas, de repente, são colocadas em xeque. É necessário repensar tudo: a economia, a comunicação, as relações humanas, os sistemas de saúde e educação, o tráfego de pessoas, as atividades religiosas, os hábitos de higiene etc. Especialmente, porém, é necessário repensar a vida. Por meio da pandemia somos severamente alertados e alertadas em relação à vulnerabilidade da vida humana. A certeza da finitude da vida é colocada muito próxima de cada pessoa e cada família. Talvez em poucas ocasiões na história a humanidade tenha sido confrontada com uma ameaça tão explícita à vida da coletividade. Para ameaçar a existência da raça humana não é necessário o choque de um meteoro gigante com o nosso planeta, nem uma terceira guerra mundial com a utilização das poderosas armas nucleares disponíveis; basta o surgimento repentino de um vírus ou a mutação de um vírus existente há séculos. Enfim, o fenômeno da pandemia nos força a fazer da morte um tema muito real e muito próximo do nosso dia a dia. Ela pode afetar alguém do nosso círculo de convivência. As famílias têm seus membros vulneráveis, que estão sob a ameaça da contaminação. Caso aconteça a morte de uma pessoa próxima, o velório será proibido ou restringido, de modo que nem a despedida poderá ocorrer. Tudo isso traz muita insegurança e angústia.

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O conjunto dessas situações nos coloca diante das perguntas: esta vida é isto? A humanidade é isto? Tudo pode terminar assim? Qual é o sentido da existência humana? Estamos sendo confrontados e confrontadas com esse tipo de perguntas justamente no contexto da Páscoa. Vejamos que aí está uma questão central para nossa reflexão: não é possível separar a Páscoa da cruz. Ou seja, não é possível falar da vida sem falar da morte. Essa realidade está presente no texto de Marcos 16.1-8. A realidade dada na narrativa, antes da notícia da ressurreição, é a morte. A morte no seu sentido mais real, cruel e violento.

2 Exegese 2.1 Jesus, o nazareno crucificado Não é por acaso que o mensageiro encontrado pelas mulheres no túmulo se refere, no primeiro momento, a Jesus como sendo o nazareno crucificado. Na Páscoa não é possível ignorar que o ressuscitado é o homem de Nazaré crucificado. A realidade nua e crua da cruz e da morte é o tema que ocupa a metade do nosso texto. Fala daquele que José de Arimateia baixou da cruz e depositou num túmulo (15.46). Fala daquele que as mulheres viram morrer na cruz (15.47) e pretendiam embalsamar naquele túmulo (16.1). Essa primeira parte do texto nos conecta diretamente com a realidade da morte, com a qual nos confrontamos em todos os tempos, enquanto humanos, porém ainda mais assustadoramente em situações como uma pandemia. A vulnerabilidade e a finitude da vida humana são expostas. Não só do ser humano individual, mas de todo o gênero humano. Essa mesma morte alcança Jesus, ou seja, o próprio Deus é afetado pela morte na medida em que seu próprio Filho a sofre. Daí a importância teológica de não separar a cruz e a Páscoa. Na Páscoa, não estamos falando de outro Deus que não seja o Deus da cruz. 2.2 O ressurreto Após o mensageiro do túmulo fazer referência ao nazareno e ao crucificado, cuja existência a ciência histórica não coloca em dúvida, ele fala do ressuscitado. O fato de a ressurreição não poder ser comprovada historicamente coloca esse tema num outro lugar. Ele não cabe no nosso conceito restrito de história. O relato da ressurreição não é uma reportagem que descreve um acontecimento histórico. Quem recorrer ao relato do túmulo vazio para exibir uma prova histórica da ressurreição não convencerá ninguém. No relato de Marcos não se percebe nenhum interesse em descrever o modo como a ressurreição aconteceu. O texto se limita a narrar o que já havia acontecido. O que havia acontecido é obra de Deus e como tal deve ser compreendido. Portanto a ressurreição de Jesus nos coloca num outro lugar, que é o lugar de Deus. Para nós humanos é difícil falar desse lugar, porque extrapola a realidade histórica que conhecemos. O texto de Marcos procura apontar para essa nova

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realidade de Deus recorrendo a uma linguagem figurada: a) o mensageiro do túmulo é um jovem; em 2 Macabeus 3.26 e 33, numa aparição, Deus é comparado a um jovem extraordinariamente forte e muito belo, com roupas magníficas); b) o jovem está vestido de roupa branca (16.5), o que também lembra as roupas alvas da transfiguração de Jesus, que eram sobremodo brancas, como nenhum lavandeiro na terra as poderia alvejar (Mc 9. 2-8), e aponta para o mundo de Deus; c) a pedra que haviam colocado à frente do túmulo é descrita como muito grande e que só uma força excepcional poderia revolvê-la (16.3s); o que se quer expressar é que estava acontecendo algo extraordinário; d) as mulheres que entraram no túmulo ficaram atemorizadas (16.5), o que lembra outras cenas de temor em que o humano se encontra com o divino (Is 6.5; Lc 2.9). Portanto Marcos se vale do recurso da linguagem apocalíptica para afirmar que o tema ressurreição nos transporta para o mundo de Deus, que deve ser olhado com os olhos da fé. Jesus está agora neste mundo de Deus, por isso não está aqui no túmulo. O anúncio do mensageiro do túmulo de que ele não está aqui, impressionou Lutero. Ele percebeu nessa proclamação um sentido teológico importante, chegando a afirmar que a partir daí o nome de Jesus passa a ser non est hic (WEINGÄRTNER, 1979). Ou seja, Jesus não se encontra mais na condição de pessoa humana mortal. Ele agora está num outro “lugar”, o lugar onde Deus o colocou. Daí a importância da afirmação: ele foi ressuscitado (o verbo usado é ēgerthē). Ou seja, na Páscoa, quem age é Deus. O evangelista Marcos coloca a ação de Deus no centro da narrativa de Páscoa. Na ressurreição de Jesus, trata-se de um milagre realizado por Deus. É uma intervenção de Deus na história humana, história essa de pura vulnerabilidade. Com isso podemos afirmar que nosso conceito de história sofre um julgamento. Agora ele deve incluir a possibilidade de Deus agir para além de nossa realidade conhecida. Isso “abre espaço para a esperança que vai além do nosso campo de visão demarcado pelos túmulos em nossos cemitérios” (MALSCHITZKY, 1985). 2.3 As mulheres O protagonismo das mulheres na narrativa da ressurreição tem claramente um objetivo de contestação diante da realidade de sua discriminação na sociedade e na religião conhecida por Marcos. A tradição farisaica não reconhecia o testemunho de mulheres. No entanto, todos os evangelistas as incluem na história da Páscoa. João só cita uma mulher: Maria Madalena. Mateus cita duas: Maria Madalena e a outra Maria. Marcos cita três: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e Salomé. Lucas cita um grupo não delimitado de mulheres. Essas mulheres, que já haviam colaborado na sustentação do ministério de Jesus na Galileia, literalmente praticando diaconia (15.40s); que corajosamente haviam testemunhado a morte e o sepultamento de Jesus (15.40,47); que planejavam realizar um último serviço ao Jesus morto; agora recebem uma missão extraordinariamente relevante: são transformadas pelo próprio Cristo vivo em mensageiras da ressurreição (16.7). Esse dado não pode passar despercebido. Aliás, além das mulheres, outro grupo desacreditado como testemunhas também exerce

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um papel preponderante na história da Páscoa: os pescadores. Conhecemos algo semelhante da história do Natal (Lc 2.8ss). A mensagem de contestação consiste em que o evangelista promove a visibilização e a dignificação das mulheres, escolhendo-as como personagens importantes no enredo da narrativa fundante da igreja de Cristo, que é a ressurreição. Ou seja, na visão de Marcos, as mulheres têm, na igreja cristã, posição de liderança e protagonismo. 2.4 Os discípulos De acordo com o Evangelho de Marcos, os discípulos são enviados à Galileia para lá encontrarem o ressurreto. Assim também Mateus. Ora, esse dado surpreende, porque, conforme Lucas e João, Jesus aparece a seus discípulos em Jerusalém. Essa discrepância percebida no estudo comparativo dos evangelhos não tem importância geográfica, mas teológica. Para Marcos e Mateus, as regiões da Judeia e da Galileia designam mais do que pontos no mapa: a Galileia é o lugar dos pagãos, dos gentios. Por isso ela é desprezada pelas elites religiosas de Jerusalém. Eis mais uma mensagem contestatória de Marcos: Jesus não aparece no centro oficial do culto judaico, em Jerusalém, mas entre as pessoas desprezadas. Junto a essa gente se manifesta a salvação, ou seja, a irrupção de uma nova realidade, a realidade de Deus, que contesta a realidade presente de discriminação, ódio e exclusão. O evangelho vai além dos limites de uma etnia, de um povo, de uma raça, de uma religião. Aliás, para Marcos, Jesus iniciou seu ministério precisamente na Galileia (1.14), o que já é uma referência à atenção dada a essa população desprezada. Decorre daí que, para Marcos, as aparições do ressurreto têm também o significado de envio: seus seguidores e suas seguidoras são enviados e enviadas ao lugar onde estão as pessoas desprezadas para aí encontrarem o Cristo ressuscitado (cf. Mt 25.31-46). Surpreendentemente, a história da Páscoa é a história da missão. E nesse envio à “Galileia”, o próprio Cristo vai à frente: Ele vai adiante de vós (16.7). Essa afirmação tem importante significado teológico para a compreensão de missão: quando pensamos que levaremos Cristo a algum lugar, saibamos que ele lá estará antes de nós. Nós o seguimos e não o transportamos. No envio dos discípulos, quando Marcos faz referência especial a Pedro, provavelmente está trazendo à lembrança sua atitude de negação no processo de condenação e crucificação de Jesus. Quando Marcos redigiu seu texto, Pedro já era considerado liderança na igreja iniciante. Como poderia ocupar esse posto sendo aquele que negou Jesus? Por isso teria de haver um novo chamado (recall?), tanto a ele, como aos demais, que fugiram da cruz, deixando Jesus sozinho. Esse chamado acontece quando o texto afirma que o ressurreto irá à frente e que eles devem segui-lo. Portanto Páscoa é chamado para o seguimento ao Cristo ressuscitado. A Páscoa fundamenta teologicamente o chamado e o envio para a missão da igreja de Cristo.

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3 Meditação As primeiras comunidades cristãs confessavam sua fé em Cristo usando a fórmula do “nazareno crucificado e ressurreto”. Esse testemunho desautoriza desconectar a ressurreição da cruz. Portanto o Deus a ser celebrado na Páscoa é aquele que conhece a dor e a morte. A cruz nos mostra um Deus vulnerável. Ele foi afetado pela morte. E isso não deve ser entendido como um momento no passado de Deus, mas como fato que marca sua própria essência. É por isso que falamos e falaremos em teologia da cruz em todos os tempos. Só essa teologia pode anunciar um Deus que conhece a vulnerabilidade e a finitude humanas. No momento em que escrevo, nossa vulnerabilidade é exposta aos olhos da comunidade humana pela pandemia da Covid-19. Mas ela existe o tempo todo na forma de doenças, acidentes, desemprego, pobreza etc. Após a Páscoa, olhamos para Jesus como sendo o nazareno crucificado que foi ressuscitado. Com a ressurreição, foi criado outro lugar para o nazareno crucificado, o lugar de Deus. Esse lugar extrapola tudo o que nos é dado a conhecer na história e na realidade humanas. A história é julgada como um conhecimento humano incapaz de abranger a realidade de Deus. A certeza que a fé nos dá referente à existência desse lugar abre a possibilidade da esperança. Esperança ne superação de todas as realidades que limitam esta vida, enfim, na superação da vulnerabilidade humana. Jürgen Moltmann (2005, p. 33) o expressa assim: A contradição, em meio à qual a esperança coloca o ser humano frente à realidade de si mesmo e do mundo, é a contradição entre a Ressurreição e a Cruz. A esperança cristã é uma esperança de ressurreição e demonstra a sua verdade pela contradição entre o presente e o futuro por ela visualizado, futuro de justiça contra o pecado, de vida contra a morte, de glória contra o sofrimento, de paz contra a divisão.

A Páscoa expõe a contradição entre a esperança e a realidade vigente, entre a vida e a morte, entre o futuro e o presente. A partir da Páscoa o futuro ilumina o presente, questiona o presente, julga o presente, transforma o presente. Isso equivale a dizer que, na Páscoa, somos chamados e chamadas a seguir o Cristo ressuscitado que vai adiante, e somos enviados e enviadas para a missão que anuncia o novo lugar criado por Deus, a nova realidade, o novo tempo, a nova criação, a nova história, o novo céu e a nova terra nos quais habita justiça (2Pe 3.13). Moltmann cita o pensamento de Agostinho, que diz: aquilo de que não temos desejo não pode ser objeto de nossa esperança. As pessoas seguidoras do Cristo ressurreto têm desejo pela nova realidade de Deus; por isso têm esperança. E a esperança as mobiliza para contestar a exclusão das mulheres, dos pescadores, das outras etnias, raças e religiões e de contestar o “centro oficial do culto de Jerusalém”, que representa o velho sistema de dominação. A Páscoa nos abre o horizonte para crer nas infinitas possibilidades de Deus, na possibilidade de ele criar o novo a partir do qual se pode contestar o velho mundo das vulnerabilidades, do sofrimento, das carências, do ódio, da discriminação e exclusão.

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4 Imagens para a prédica A) O ressuscitado é o crucificado Apresentar a fórmula de confissão de fé da igreja cristã nascente, que tem como fundamento o “nazareno crucificado que foi ressuscitado”, e apontar para o fato de que o ressuscitado é o mesmo que foi crucificado. Portanto não se pode separar a Páscoa do evento da cruz. A teologia da Páscoa não anula a teologia da cruz. B) Deus vulnerável Deus foi afetado pela morte porque seu próprio filho a sofreu. Isso nos oferece a certeza de que Deus conhece nossa vulnerabilidade, nossa finitude, nossas limitações, nossas dores e angústias. Seja em tempos de pandemia ou não, a realidade é que vivemos em situação de vulnerabilidade, enquanto humanos. Crer num Deus que conhece em profundidade nossa condição humana é respirar o ar da esperança. C) O ressuscitado O nazareno crucificado é aquele que Deus ressuscitou. Em meio à realidade de vulnerabilidades, Deus realiza a obra de sua superação, criando um novo lugar para o nazareno. Esse é o lugar de Deus. A ressurreição de Jesus abre as portas para esse novo lugar para toda a humanidade. Esse é o lugar a partir do qual a velha realidade é contestada e superada. D) O chamado e o envio para a missão O ressurreto vai à frente para os lugares de vulnerabilidade humana e convoca suas seguidoras e seus seguidores a segui-lo, mesmo aqueles e aquelas que andaram negando-o, como Pedro, ou quem andou fugindo da cruz como o grupo de discípulos. Hoje, o batismo nos oferece também a possibilidade de diário arrependimento e renovada chance de seguir Jesus. Quem crê no Cristo ressuscitado é enviado às “galileias” da vida para lá encontrá-lo em meio às pessoas desprezadas por conta de sua etnia, raça, condição social, sexo, idade, religião ou outro motivo.

5 Subsídios litúrgicos Explorar a relação de uma saudável tensão entre o Kyrie eleison e o Glória. O Kyrie tem seu lugar na liturgia por causa da vulnerabilidade humana, e desafia a igreja a clamar a Deus por misericórdia. O Glória anuncia a realidade de Deus, em que as vulnerabilidades são superadas. A igreja de Cristo tem desejo por essa realidade; por isso a esperança a move em direção a um novo céu e uma nova terra nos quais habita justiça. A oração da igreja pode colocar ênfase na intercessão em favor das pessoas que exercem seu discipulado, engajadas na missão de Deus, seguindo Jesus para as “galileias”.

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Bibliografia MALSCHITZKY, Harald. Domingo da Páscoa. Prédica: Marcos 16.1-8. In: KIRST, Nelson (Coord.). Proclamar Libertação X. São Leopoldo: Sinodal, 1985. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/conteudo_organizacao/ governanca-rede-de-recursos/proclamar-libertacao-volume-x-1984-1985>. MOLTMANN, Jürgen. Teologia da esperança: estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma escatologia cristã. 3. ed. revista e atualizada. São Paulo: Teológica; Loyola, 2005. SCHWEITZER, Eduard. Das Evangelium nach Markus. 12. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1968. (NTD 1). WEINGÄRTNER, Lindolfo. Domingo da Páscoa. Prédica: Marcos 16.1-8. In: KAICK, Baldur van (Coord.). Proclamar Libertação IV. São Leopoldo: Sinodal, 1979. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/textos/ proclamar-libertacao-volume-iv-1979>.

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PRÉDICA: ATOS 4.32-35 SALMO 133 MARCOS 16.12-18

Leonídio Gaede

Criar sistemas de cooperação

1 Os três textos têm tudo a ver Oh! Como é bom e agradável quando irmãos moram juntos, diz a primeira frase do Salmo 133. Seria mesmo bom e agradável se os irmãos e as irmãs habitassem uma área comum onde fosse possível usufruir em conjunto dos bens naturais e daqueles constituídos culturalmente. Se assim fosse, organizar cooperativas, sindicatos e associações seria atividade gratificante. Se de fato “a união faz a força”, a cooperação, a sindicalização e a associação impulsionariam essa força e dariam vida melhorada a muitas pessoas que ganham “cada um por si” o “pão de cada dia” com “o suor do seu rosto”. Marcos 16.12-18 apresenta Jesus censurando a incredulidade e a dureza de coração dos onze discípulos, que duvidaram do testemunho de dois agricultores a respeito da vida nova que vem da fé na ressurreição. Se não fosse a incredulidade e a dureza de coração, a “multidão dos crentes” teria “um só coração e uma só alma” e ninguém consideraria sua nenhuma das coisas que possuísse e tudo ser-lhes-ia comum, como diz Atos 4.32.

2 A solução se chama cooperação, Teófilo Não sei se a primeira comunidade cristã em Jerusalém realmente arrebanhou uma multidão (At 4.32) para viver a comunhão de bens. Lutero traduziu o grego plēthos como “Menge”, o que pode significar “o conjunto”, “o ajuntamento”, sem necessariamente referir-se a um número extraordinariamente grande de pessoas. Discutir o número não pode, porém, pretender minimizar o significado do relato de Atos 4.32-35 e muito menos a teologia dos livros do médico Lucas. Falando no final do primeiro século, o autor talvez esteja respondendo à pergunta se vale a pena seguir com a criação de igrejas. Por isso responde dizendo que, lá no início, o próprio Cristo aprovou essa ideia pela ação dos apóstolos. Assim, a mensagem de Lucas é que Cristo quer sim a criação de igrejas pelo mundo todo (At 1.8). A informação de que em um só dia foram batizadas “quase três mil pessoas” (At 2.41) não deixa dúvida de que o trabalho iniciado por Paulo, Pedro e outros deve seguir “agora”, no final do primeiro século, diz Lucas ao Amigo de Deus (Teófilo). Se levarmos em conta que discípulos seguiram Jesus a partir da Galileia e, depois da morte do mestre, estavam em Jerusalém, precisamos considerar que a comunhão de bens se fazia necessária para manter o movimento de Jesus com essas pessoas, que deixaram tudo e o seguiram (Lc 18.28). De que viveria lá na

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capital essa gente fora de casa? As pessoas adeptas ao movimento e que eram donas de ktēmata e hyparxeis (At 2.45) – isto é, terrenos com ou sem benfeitorias e outras posses – vendiam algo disso e traziam o resultado aos apóstolos, que o administravam. Isso quer dizer que distribuíam à medida que alguém chegava a ter necessidade. Barnabé foi um dos que vendeu algo (v. 36). E é bom lembrar que já na companhia de Jesus os discípulos mantinham um caixa comum, que era “alimentado” por doações (Lc 8.3) e que um fundo coletivo de recursos não existia sem discussões (Jo 12.6; 13.29). A vida em grupo com caixa único não foi, portanto, uma prática iniciada com a igreja pós-Ascensão e Pentecostes. Os apóstolos já traziam consigo a experiência dessa prática desde o tempo do discipulado no movimento de Jesus. Também não se tratava de experiência exclusiva do grupo de Jesus. O relato de Lucas mostra uma comunidade agindo de acordo com a Lei, de que não deve haver pobres (Dt 15.4), e também no contexto da ideia difundida no mundo grego de que a “amizade elimina a propriedade”. Aristóteles, por exemplo, ensinava que aos amigos tudo é comum. Platão dizia que a propriedade é fonte de todo o mal. A filosofia cínica, contemporânea do Novo Testamento, dizia que Deus criou todas as coisas para o aproveitamento comum (BRAKEMEIER, 1985, p. 13). Pesquisas perguntam pela historicidade do relato de Lucas. Estaria ele projetando uma comunidade ideal a partir de alguns casos? Estaria anunciando a concretização do reino de Deus com a volta de Cristo em breve? Estaria valorizando os primórdios para incentivar a missão na segunda geração? Outra questão é que, numa leitura rápida, pode parecer que, para participar da comunidade, o pretendente devia se desfazer das posses, doar o resultado aos apóstolos e passar a viver da “poupança” comum. Isso foi mais ou menos o que aconteceu na experiência de Qumran, onde os futuros monges entregavam os bens à instituição e passavam a viver na pobreza. O caso de Ananias e Safira (At 5) poderia provar que esse também era o modelo citado por Lucas? A pergunta que Pedro faz a Ananias (v. 4) diz que não. As versões da NTLH e da ARA não são claras como a de Lutero: “Hättest du den Acker nicht behalten können [...]?” (Tu não poderias ter ficado com o terreno?). A venda de bens acontecia “à medida que alguém tinha necessidade”. A tragédia de Ananias foi a mentira. Os apóstolos não administravam uma “poupança gorda” com a soma do dinheiro resultante da venda de propriedades dos admitidos à comunidade. Porém, à medida que aparecia a necessidade, alguém vendia algo e doava o resultado aos apóstolos, que passavam a ter a responsabilidade de aplicar o recurso seguindo a lei de que não deve haver pobre (Dt 15.4).

3 Tem graça cooperar, Bruno? Bruno Engel Justin, 25 anos, filho de agricultores em Três Forquilhas/RS, um dos fundadores da JECI (Juventude Evangélica da Comunidade de Itati/RS), recém-formado em Administração de Empresas, é presidente da COMAFITT (Cooperativa Mista de Agricultores Familiares de Itati, Três Forquilhas e Terra de Areia). Ele responde à pergunta: qual é a graça de trabalhar num sistema cooperativado?

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Entendo que é um paradigma que a gente vive, de um lado, temos a cooperação e, do outro, a competição. A competição tem uma lógica muito perversa. Ela divide a sociedade entre ganhadores e perdedores. O problema disso é que quem ganha acumula vantagem e por isso ganha de novo. Por outro lado, quem perde acumula desvantagens. Quem precisa de emprego e é reprovado numa entrevista, provavelmente vai ter maior dificuldade de ser aprovado numa próxima. Este é o problema da lógica da competição: ela prega que precisamos vencer os outros. E isso não se autorregula. A distância entre ganhador e perdedor aumenta cada vez mais. O cooperativismo – quando de fato adota o sistema de cooperação e não de empresa competitiva – é uma ferramenta de transformação social. As pessoas envolvidas podem chegar mais longe alcançando objetivos juntos. A COMAFITT se comprometeu com o papel de fazer as pessoas cooperarem entre si. Todos temos objetivos, temos sonhos. Isso pode ser pessoal, mas quando a gente constitui família, passa a ter sonhos como família. Da mesma forma, quando a gente se junta numa organização, passa a ter objetivos comuns nessa organização. Aí nasce a cooperação. A COMAFITT tem uma organização por famílias, os grupos de produção das bananas, das hortaliças, do açúcar mascavo, da produção orgânica. Cada grupo se reúne e discute com as pessoas que estão, digamos, no mesmo ramo. Isso facilita a discussão. Outra coisa importante é a questão da participação, do protagonismo e do empoderamento das pessoas. Assim, fazendo uso da ferramenta da cooperação, as pessoas agricultoras assumiram um papel social. Trata-se de um avanço em relação ao sistema individual de negociação com um atravessador. Esse dizia “tu plantas e o resto deixa comigo”. Nesse resto está todo o processo da constituição do preço, no qual o valor pago ao produtor não se vincula ao custo de produção, mas à conveniência do intermediário. Quando, na cooperativa, essas pessoas assumem o papel de discutir o mercado para a sua produção, isso as coloca em outro nível de valorização e participação. E isso é possível porque estão juntas. Um gargalo importante sempre é a logística. E hoje a COMAFITT, com 270 associados, pode dizer que o agricultor de uma pequena localidade está entregando a sua produção semanalmente em mais de 700 pontos de entrega. O alimento que ele plantou e colheu está chegando a muitas escolas pelo Estado afora. Isso só é possível porque essas famílias se organizaram e maximizaram essa ação. E essa cooperação não termina na cooperativa local. Na continuidade dessa está uma central de cooperativas e a organização em rede. A COMAFITT tem um dispositivo no seu estatuto que delimita o seu território aos municípios de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas. Ela foi pensada para não crescer em termos de território, mas, enquanto organização, justamente fomentar os processos localmente. Ela precisa se dispor a resolver os problemas dos agricultores desses três municípios. Ela pode ajudar agricultores de outros municípios a constituírem a sua própria ferramenta, mas não pode aumentar o seu território. Então o cooperativismo proporciona isso. Ele é uma ferramenta para reduzir desigualdades e distribuir renda. No nosso caso, cada associado é diferente e isso é muito legal porque a cooperativa tem a missão de vender a produção, mas, além disso, tem a missão de enxergar as pessoas. Por trás da produção vendida tem um homem, uma mulher, um jovem, uma criança. Como

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a gente vai pensar a permanência desse jovem no meio rural? Como a gente vai ajudar na alimentação dessa criança na escola? Tudo isso precisa ser visto. E na questão da diferença entra também a capacidade produtiva de cada família: vamos imaginar que uma família produz 100 caixas de bananas; outra, dez. E nós não temos colocação no mercado para toda essa produção. Então a gente pega 50 caixas daquele que tem 100 e pega toda a produção daquela família que tem dez. Quem vendeu toda a produção ficará contente com a cooperativa e ajudará na discussão de como encaminhar a questão das 50 caixas que sobraram. A questão da cooperativa em rede é pertinente, porque a COMAFITT, por exemplo, não pode se organizar e sair estado afora atropelando os processos locais. Se tem uma venda de beterraba e cenoura, por exemplo, em Santa Maria, o ideal é a cooperativa local fomentar a produção e a comercialização desse produto numa cadeia curta. Se em Santa Maria não se produzem bananas e aqui no litoral se produz com sobra, então é preciso levar cargas de bananas para lá. Assim uma região complementa outra e quando a cooperativa de Santa Maria sai para entregar seus produtos nas escolas, ela tem agregado mais um produto à sua cesta, que é a banana vinda de mais longe, por meio do transporte de uma cooperativa em rede. Assim acontece a economia de recursos na logística partilhada. Essa é uma prática importante das cooperativas em rede: o transporte de uma cooperativa atravessa o território de outras, coleta produção excedente e a leva para onde está faltando.

4 Imagens para a prédica: possibilidades e limites Facilmente encontramos na internet imagens conhecidas sobre o valor da união. Se existir o recurso da projeção de imagens, o pregador e a pregadora podem escolher uma dessas imagens como ilustração, eventualmente acompanhada de perguntas como: que possibilidades e limites essa figura expressa? Pelo link abaixo pode ser acessada uma curta história, que pode introduzir a prédica, quando não há o recurso da projeção: <https://www.luteranos.com.br/textos/a-uniao-faz-a-forca>. Imagem conhecida no mundo do cooperativismo. Um dos seus limites é evidentemente a figura do burro. A imagem desse animal, que poderia ser exemplo em uma fala sobre sabedoria, é usada costumeiramente para xingamento de quem é considerado bobo. O termo “burrice” vem à mente quando queremos falar da falta de compreensão de alguém. Os ouvidos podem se trancar pela ideia “está me chamando de burro”. Imagem conhecida no mundo dos movimentos sociais de caráter reivindicatório. Bastante usada em conexão com a conhecida expressão “povo unido jamais será vencido”. Os pequenos peixes, em regra, vítimas do peixe grande, podem vencer seu predador em um sistema de organização. Pode fechar os ouvidos de quem é antipático ao discurso que compara o peixe grande ao dono dos meios de produção e os peixes pequenos aos operários. Para não trancar ouvidos, pode-se, quem sabe, abordar a dimensão familiar. Nas famílias ainda temos exemplos entre irmãos, irmãs, pais e mães que, quando um ou uma enfrenta uma necessidade financeira, os outros e outras se organizam e

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ajudam. Existem casos de alguém se desfazer de uma posse importante para tirar outrem de uma dívida. Entre irmãos e irmãs existe. Entre primos e primas é mais difícil de existir. É possível imaginar algo assim no âmbito da comunidade cristã? Uma família pode ser composta de pai, mãe, filho e filha. A filha, uma miudinha que a mãe vive forçando a comer algo. O filho, um adolescente insaciável que não para de assaltar a geladeira. Como essa família fará justiça na distribuição dos gastos com o rancho do mês? A família simplesmente vai deixar por isso mesmo. É possível imaginar algo assim no âmbito da comunidade cristã? Na pregação sobre a vida em comum na comunidade cristã primitiva, sugiro evitar a polarização entre capitalismo e comunismo. Vamos, como o Bruno fez, procurar resposta para a pergunta: onde está a graça de trabalhar num sistema de cooperação? Na comunidade em que você congrega existe alguma forma de cooperação? Outro tema fascinante, porém, talvez amplo demais para uma pregação, são experiências, no decorrer da história, de organização comunitária com partilha de bens. O leque é amplo, desde Qumran, comunidade de Herrnhut, movimentos messiânicos no Brasil, comunidades alternativas, como Piracanga na Bahia ou as Ecovilas espalhadas pelo Brasil. O link abaixo leva a um texto replicado pelo IHU-Instituto Humanitas UNISINOS, no contexto da pandemia da Covid-19: <http://www.ihu.unisinos.br/78noticias/598464-holandeses-avancam-no-cenario-pos-pandemia-e-propoem-ummodelo-economico-baseado-no-decrescimento>. “Nesse contexto, 170 acadêmicos holandeses escreveram um manifesto em cinco pontos para a mudança econômica pós-crise da Covid-19, baseado nos princípios do decrescimento”, inicia o artigo. Achei que pode, eventualmente, servir de inspiração para a atualização do texto da pregação. Lembre-se dos hinos: LCI 13: “Corações em fé unidos” LCI 563: “Barnabé”

Bibliografia BRAKEMEIER, Gottfried. O “Socialismo” da Primeira Cristandade. São Leopoldo: Sinodal. 1985. 58 p. NEUE CALWER PREDIGTHILFEN. Hrsg. Hans Bornhäuser et alli. Exaudi bis Ende des Kirchenjahres. Calwer Verlag Stuttgart, 1980. Zweiter Jahrgang, Band B, p. 99ss. 3º DOMINGO DA PÁSCOA PRÉDICA: LUCAS 24.36b-48 SALMO 4 1 JOÃO 3.17 Pesquise: Proclamar Libertação, ,v. 42, p. 148ss www.luteranos.com.br (busca por Lucas 24.36b-48)

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PRÉDICA: 1 JOÃO 3.16-24 SALMO 23 JOÃO 10.11-18

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25 ABR 2021

Odair Airton Braun

O amor de Deus liberta e compromete

1 Introdução Os textos indicados para este domingo apontam para Jesus Cristo como o bom pastor. Ele age com amor em favor das pessoas que se confiam aos seus cuidados. Os temas que perpassam os textos indicados são: fé, amor, cuidado e compromisso. São, portanto, temas atuais e pertinentes aos dias em que vivemos. O Salmo 23, um dos textos mais conhecidos do Antigo Testamento, é reconhecido pela forma singela e por sua beleza de descrição de um lugar calmo, tranquilo e repleto de paz. Nele, percebe-se que somos rebanho de Deus, que zela e cuida de cada qual com esmero, amor e cuidado. Tal serenidade, tal ambiente de paz e tranquilidade precisam permear o ambiente de culto e especialmente a pregação deste domingo. João 10.11-18, igualmente uma passagem bem conhecida, apresenta Jesus como o bom pastor em contraposição ao mercenário. O bom pastor cuida, zela e se preocupa verdadeiramente. O mercenário abandona e foge sem se importar quando diante do perigo e da ameaça. Portanto percebem-se duas posturas antagônicas: uma busca a vida e o bem-estar; a outra tem a perspectiva de autoproteção, tendo como preocupação aquilo que lhe convém e beneficia. No ano de 2020, quando a mensagem foi elaborada, vimos de autoridades públicas brasileiras postura de desconsideração com o próximo, com o mais frágil, fazendo de conta que a pandemia não era tão perigosa e letal como de fato foi. Isso pode servir de analogia entre ser o bom pastor, que age com cuidado e zelo, ou aquele que segue seu entendimento e sua ideologia sem considerar outros fatores. 1 João 3.16-24 apresenta o anúncio de que a vida é dada por Cristo/Deus. Diante de Cristo/Deus, o coração alcança a paz. A passagem enfatiza que Deus conhece, guia e conduz. De seus seguidores e suas seguidoras se requerem confiança, entrega e compromisso. Conclui-se que o amor de Deus por sua criação é imenso, exigente e libertador. Portanto a fé deve levar a agir a partir do amor.

2 Exegese A passagem de 1 João 3.16-24 foi trabalhada no PL III por M. Siegle (p. 159ss), no PL 22 por R. Rieth (p. 130ss), e no PL 42 por J. Kowalska (p. 153ss). Nas abordagens podem ser encontrados aportes exegéticos. Recomendo sua leitura e consulta no processo de construção da reflexão da pregação deste domingo.

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O contexto maior de 1 João 3.16-24 é formado por 1 João 2.18 a 3.24. A passagem tem como pano de fundo as dificuldades observadas nas comunidades. Essas dificuldades advinham da atuação de pessoas que traziam e propagavam falsos ensinamentos. Isso pode ser observado ao analisar a passagem de 1 João 2.18ss. O tema central de 1 João 3.16-24 é fé e amor como indicativos para a confiança em Deus e suas promessas. 1 João é escrita em forma de pregação, como carta de fortalecimento para as pequenas comunidades da Ásia Menor. Essas comunidades estavam em contexto de pluralismo religioso, que afetava, conforme acima indicado, a unidade da igreja. O cristianismo não pode ser convertido em algo solitário e de isolamento. Seria sua morte. O povo necessita de apoio e sustento em seu caminhar na fé. Neste sentido, Deus chama, desafia e espera apoio e sustento na caminhada. Deus chama, espera e convida a comunidade para uma vida e ações de serviço frente ao contexto e ao mundo. Por isso 1 João 3.23 afirma: [...] que creiamos no nome de seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros. Resumidamente podemos entender que a passagem em tela proporciona dois ensinamentos essenciais: a) admoestar para que falsos ensinamentos não tenham espaço na comunidade cristã; b) fazer a comunidade perceber a necessidade de viver sua fé, preferencialmente em comunidade. A fé abre caminho ao amor. O amor cristão é fundamentado em Cristo. Nessa perspectiva, amor é fé vivida na concretude de cada dia e contexto. Podemos entender que 1 João faz conexão entre o amor ao próximo e o amor de Cristo por sua criação. Cristo ama de modo incondicional, entregando-se à morte na cruz. Ele espera de nós amor incondicional pelo próximo e pela criação de Deus. Por isso devemos deixar a misericórdia de Deus conduzir em direção ao encontro com o próximo, levando-nos a abraçá-lo assim como a auxiliá-lo em suas dores e necessidades. 1 João 3.16-24 relata sobre o amor incondicional de Deus pela humanidade. Esse amor é tal que ele deu a vida de seu Filho por nós. Cristo requer e espera confiança nele, assim como espera que guardemos seu maior mandamento: amar incondicionalmente. A carta em estudo foi organizada tendo como intuito auxiliar os membros das comunidades de então e de hoje, para que tivessem clareza daquilo que é essencial e que é pilar central da fé no cristianismo. Esse pilar, a unidade/comunhão e o amor estavam sendo desagregados. O resumo desse pilar fica evidente no Evangelho de João 3.16: Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Ou seja, o amor move e renova, perdoa e reconcilia. Os versículos 16-17 são contundentes. Cristo deu a vida por nós. Isso requer compromisso de quem o segue. O v. 17 ressalta a centralidade de olhar para o próximo e para o meio no qual estamos inseridos. Aponta para a diaconia e a disposição de servir. Isso não pode ser mera retórica. Tem que ser prática de quem se abraça com Deus e com Cristo.

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O v. 18 sugere que o amor requer ações, mais do que discursos. Aponta para o cotidiano e os desafios. Isso é atual e deve ser norteador da vida, assim como da vida das comunidades. O v. 19 aponta para Deus (diante dele). Perante Deus respondemos pelos atos, ações e omissões. Da mesma forma, o v. 19 aponta para o tranquilizar, que equivale a recompor a paz, a serenidade aos que estão angustiados e angustiadas. O v. 20 indica que Deus conhece o íntimo do coração. Ele conhece planos e intenções. Observa-se uma contraposição entre Deus rigoroso e Deus misericordioso. Apresenta-se a ideia de um Deus que julga. Deus traz à luz erros e descaminhos. Por isso precisamos agir e atuar para ter tranquilidade, que pode ser alcançada quando estamos ancorados na fé. O v. 21 evidencia que o perdão vem da disposição de Deus de perdoar e renovar a aliança. Nisso reside o bálsamo para a vida. O v. 22 tem como ponto central a confiança e o ato de fazer aquilo que é agradável a Deus. Os v. 23-24 demonstram que o amor precisa derivar da fé. Esse amor deve promover e impulsionar na direção do próximo. Guardar o mandamento do amor equivale a permanecer em Deus. Fé e amor não são concorrentes. A fé é o pano de fundo para o amor ao próximo. A fé cresce quando vivida a partir da experiência do amor recebido de Deus.

3 Meditação 1 João 3.16-24 surge em um contexto de desinformação e confusão causadas por práticas de ensinamentos deturpados, promovidos e alardeados por falsos ensinadores. Isso gerava descaminhos, equívocos e confusão no meio das jovens comunidades cristãs. Essa realidade é bastante comum também nos tempos atuais. Isso requer vigilância. Requer estudo da palavra de Deus, para sempre estar alinhado com seus ensinamentos que promovem vida plena digna e abundante (Jo 10.10). Conforme referido, o pano de fundo da passagem são as falsas doutrinas propagadas por falsos ensinadores. O autor da carta pretende, com este escrito, fortalecer a comunidade a permanecer na verdadeira fé (1Jo 2.2; 3.23). Viver a fé equivale a praticar o amor. Esse amor deve ser primeiramente vivido em comunidade (1Jo 3.17ss). Essa realidade requer testemunho, observância e comprometimento para que mais pessoas tenham coragem e desejo de se espelhar em nosso agir e nas ações de nossas comunidades. Isso equivale a ser sal da terra e luz do mundo. João afirma que sabemos, como cristãos, o que é o amor e as consequências dele decorrentes. A base do amor cristão é Jesus Cristo e sua entrega na cruz. A consequência é seguimento e requer ação de quem segue. Ouvir, dar atenção, ser solidário, colocar dons a serviço, repartir... são atitudes decorrentes do amor. A prática e a ação de Jesus são o exemplo a ser imitado. Jesus se deu a conhecer por meio de atos de amor. O maior desses atos foi a entrega para ser crucificado em favor da redenção da humanidade. Isso é presente ao alcance das nossas mãos e precisa ser testemunhado, pois dali provêm vida e esperança.

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O amor é exigência de Deus para com aquele que o segue. Deve, portanto, ser uma das principais caraterísticas da pessoa cristã. Por fim, o amor é elemento fundamental para que a comunidade permaneça viva, unida e em paz. Porém sempre fica o questionamento: o que efetivamente é o amor? Como vivê-lo plenamente? Quais exemplos poderiam ser destacados de seu meio? A exigência do amor é intensa. Às vezes pode parecer que não temos força suficiente para atender a tudo o que é decorrente desse amor. Quando esse sentimento sobrevier, deve ser recordado que Deus é maior do que as exigências, voltando seu olhar para nós com compaixão e misericórdia. Ter fé, viver e seguir em amor requer estar disposto a amar aqueles que ainda hoje são “crucificados”: quando não recebem oportunidades, quando lhes são negadas a justiça e a solidariedade, quando não têm oportunidades iguais, quando não são ouvidos e sofrem preconceitos. Como amamos o próximo? A quem fechamos os braços? A quem deixamos de acolher em nossas comunidades? Essa contextualização é importante. Não podem mais haver espaços e situações de falta de amor, lugares de ódio e racismo. Isso contraria a vontade de Deus, seus mandamentos. Mas, possivelmente, surge a pergunta: quem pode cumprir isso? Num primeiro momento pode parecer impossível. 1 João 3.24 dá uma resposta: quem guarda os seus mandamentos permanece em Deus, e Deus permanece nele. E nisto conheceremos que ele permanece em nós, pelo Espírito que nos deu.

4 Imagens para a prédica Os textos têm como elemento visual o pastor de ovelhas e o amor. São imagens conhecidas, singelas e compreensíveis. Pode ser oportuno, para a fixação da pregação, ter presente, por meio de projeção ou lembrança do culto, a imagem do pastor de ovelhas no exercício de sua função, que em resumo demonstra amor e cuidado. Se possível, cada participante da celebração deveria sair do culto com uma lembrança desse bom pastor que age com amor e cuidado. A imagem do bom pastor que age com amor deveria ser explorada ao longo da celebração, ressaltando que Deus, o nosso Bom Pastor, cuida, guarda e zela por nós, assim como a mãe e o pai guardam, zelam e cuidam de seus filhos e filhas. Se Deus age desse modo conosco, como retribuímos? Na elaboração da pregação não deveria faltar a imagem da comunidade como o “bom pastor”, que age com amor no contexto em que se encontra. O pastor de ovelhas em contexto bíblico tem, basicamente, quatro funções: vigiar, guiar, providenciar bom pasto (sustento) e sentir-se responsável pelo rebanho. Neste sentido, quando 1 João 3.16-24 fala do amor, fruto do espírito de Deus, precisa ser evidenciado que esse amor não sobrevive quando sufocado. O amor necessita do próximo. Chama o outro e convida para seguir na direção do irmão e da irmã. Nesse ato o amor se torna fé posta em prática.

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A pregação poderia ser desenvolvida nos seguintes pontos: a) O amor requer vigilância. b) O amor requer disposição de testemunhar. c) O amor compromete com a transformação.

5 Subsídios litúrgicos Saudação Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (João 3.16). Sejam bem-vindos e bem-vindas a este encontro com Deus. Que nesta celebração possamos nos sentir na casa, no berço de Deus, permeados de amor e cuidado. Que ele derrame sua graça e bondade sobre nós e sobre toda a humanidade. Aqui nos reunimos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém. Louvemos a Deus entoando o hino... Confissão de pecados Misericordioso Deus! Inclinamo-nos na tua presença. Reconhecemos que tu és nosso Bom Pastor, reconhecemos que te ocupas e zelas por nosso caminhar e viver. Ao nos inclinar em tua presença, reconhecemos que falhamos e desviamos do caminho, que trilhamos afastados de teus ensinamentos. Clamamos: perdoa, orienta, aponta o caminho. Renova tua graça sobre nosso viver. Amém. Bênção do amor Que Deus derrame sobre ti o seu amor. Que ele desça suavemente sobre a tua cabeça e penetre em teu coração. Que, inspirado e capacitado pelo Vento Santo, tuas palavras tenham gosto de compaixão; teus sorrisos, o perfume da paz; teus braços, a força da solidariedade. Que sejas um próximo para quem está perdido e o ajudes a encontrar o caminho da salvação. Seja como for, que nunca te falte o amor de Deus, que vem como vento, vem como chuva santa, como o sol que alumia e aquenta, trazendo nova esperança. Amém. (Pastor Telmo Noé Emerich – Página Salmos para a Vida)

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5º DOMINGO DA PÁSCOA

02 MAIO 2021

PRÉDICA: JOÃO 15.1-8 SALMO 22.25-31 1 JOÃO 4.7-21

Ricardo Brosowski O Pai é o agricultor

1 Introdução Quem sou eu? Essa pergunta é frequente entre os humanos. Em verdade, essa pergunta é caraterística da humanidade. Não vemos nenhum cachorro questionando sua cachorrice. Mas os humanos se questionam. E isso é bom! Quando nos questionamos, falamos sobre nossas alegrias e dores e sobre louvor gerado pelo vencer dessas dores (como no Salmo 22.25-31. Quais os motivos que nos levam a Deus?). Questionamos nossos conceitos, definições e qual nossa tarefa diante deles (1 João 4.7-21 – Deus é amor! O que é o amor? Como amamos os outros?). Também podemos nos perguntar sobre nosso pertencimento – sobre os grupos, clubes, sociedades que temos, e com isso os compromissos que assumimos ao participar de determinados agrupamentos. Também devemos analisar quais pessoas “nos têm” e quais “temos”, sobre os relacionamentos que efetivamos – e, também, deixamos de efetivar – no cotidiano. É essa pergunta que Jesus responde no texto de João 15.1-8. Eu sou a videira, vocês são os ramos e meu Pai é o agricultor. Para nós, pessoas cristãs, isso está bem claro: nós somos os ramos. Cantamos isso em dias de celebração batismal: “Seja um membro teu, Senhor, ramo, unido a ti, videira” (HPD 1 – 134, 3). Bem verdade que isso é uníssono. Contudo existem muitas discussões sobre quais os frutos gerados. Talvez não cheguemos a uma conclusão, e talvez essa não deva ser nossa intenção. Nossas conclusões humanas são pecadoras, falhas, provisórias, parciais e excludentes, até quando achamos que estamos incluindo.

2 Exegese Jesus sai do local da última ceia e utiliza-se de uma metáfora para falar sobre o trabalho dos apóstolos no mundo depois de sua partida. É muito comum Jesus usar imagens do cotidiano das pessoas para fazer-se entender. Naquela região, todos conheciam a figura do pastor de ovelhas, todos sabiam o que significava o caminho, assim como também conhecem a imagem da videira. V. 1 – Muito interessante notar neste texto que mais uma vez Jesus se apresenta como “eu sou” (egō eimi). Essa autoapresentação de Jesus remete-nos ao texto de Êxodo 3.14, onde Deus responde para Moisés a pergunta sobre o seu nome: “Eu sou o que sou” ou “Eu serei o que serei”.

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– Eu sou a videira verdadeira – isso nos leva a crer que existam videiras não verdadeiras. Não há uma explicação de quais seriam as outras vides, mas Jesus é a verdadeira, a confiável. – Vocês são os ramos – com isso Jesus mostra que ele é o caminho natural para a nutrição e produção da planta. Não há ramos sem que exista um caule de sustento e, ao mesmo tempo, uma raiz que suga o líquido e os sais minerais necessários para a nutrição da planta. Desse modo, Jesus mostra que seus discípulos são parte dele mesmo. Os discípulos não estão alheios, soltos e perdidos, pelo contrário, estão presos no próprio Cristo. E nele recebem nutrição e sustento. – Meu pai é o agricultor (geōrgos – e não ampelourgos, como usado em Lucas 13.7, que pode ser traduzido como vinhateiro). Com isso mostra-se que por trás da obra de Jesus está o próprio Pai, que é quem salvaguarda a obra do Filho. Como nos lembra BOOR (2002, p. 101), devemos lembrar que quem está no começo da ação e no seu final é o Pai, como o agricultor. É o Pai quem planta (envia Jesus), quem cuida (arrancando ou purificando) e quem, no fim de tudo, será glorificado. V. 2 – É interessante notar que os termos arrancar, podar ou tirar possuem ações muito parecidas. Mas Jesus usa termos diferentes: aqueles que não dão frutos ele tira (airei) e os que dão frutos ele poda ou purifica (kathairei). O termo kathairei pode ser traduzido como “poda”, embora o mais apropriado é que seja traduzido como “limpa”, ou ainda “purifica”. O Léxico do Novo Testamento coloca em destaque a palavra catarses. Em seu dicionário de filosofia, ABBAGNANO (2018, p. 137-138) explica a palavra catarse como sendo a “libertação do que é estranho à essência ou à natureza de uma coisa e que, por isso, a perturba ou corrompe”. Já Platão usava o termo no sentido de conservar o que é melhor e descartar o pior. Também Aristóteles usava o termo como forma de expurgo. Tanto airei quanto kathairei são obras exclusivas do Pai. É o Pai que tira e atira ao monte para o fogo. E é o Pai quem limpa, purifica para que mais frutos possam aparecer. V. 3 – Os discípulos já estão puros por causa da palavra – é a palavra de Cristo que purifica. O termo lelalēka, no perfeito, mostra que essa purificação pela palavra é algo completado. Devemos ter em mente que a purificação acontece pela palavra. Lembremos que, no primeiro capítulo do evangelho, João apresenta Jesus como sendo “a Palavra”, “o Verbo”. Assim, os discípulos são limpos por causa da palavra, ou por causa do próprio Cristo. V. 4-6 – Um ramo fora da videira não dá fruto e um discípulo sem Jesus também não. A comunhão com Jesus é fundamental. E é justamente essa comunhão com Cristo que gera fruto. BOOR (2002, p. 102) afirma que a frase de Jesus neste versículo é extremamente consoladora: “Não se espera deles que gerem qualquer fruto de si mesmos”. O ato de permanecer ligado à videira é que faz com que os ramos deem frutos. Os frutos não são dos ramos, e sim da videira. Vemos, assim, um caráter passivo dos discípulos. Os que não permanecem unidos à videira são jogados fora, secam e, juntados, vão ao fogo. Mesmo o ato de ser lançado fora é passivo. É o Pai quem corta e lança fora, ao fogo.

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V. 7 – Aqui, para o termo palavra não é mais usado o termo grego logos, mas rēmata. A continuação também é interessante: aquilo que quiserem, peçam, que acontecerá para vocês. Devemos ver esse texto com os olhos da terceira petição do Pai-Nosso: Seja feita a tua vontade. Aparentemente pode parecer uma contradição. Contudo, aquele que está ligado verdadeiramente à videira saberá aquilo que deve pedir. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. Que significa isto: A boa e misericordiosa vontade de Deus é feita sem a nossa oração. Mas pedimos nesta oração que ela seja feita também entre nós. Como acontece isso? Quando Deus desfaz e impede todo o mau plano e vontade que não querem nos deixar santificar o nome de Deus e não querem que seu reino venha. Vontades assim são a do diabo, do mundo e de nós mesmos. E, por outro lado, isto acontece quando Deus nos fortalece e mantem firmemente na sua palavra e na fé, até o fim. Esta é a sua vontade misericordiosa (Martim Lutero, Catecismo Menor).

V. 8 – Por meio dos frutos da videira, que surgem nos ramos, o Pai é glorificado. Esses frutos são, conforme a explicação dada na Bíblia de Jerusalém (2004, p. 1.881, nota i), a santidade de uma vida fiel aos mandamentos, especialmente ao do amor. Impossível não lembrar as palavras de Jesus em João 13.35: Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se amor (agapē) tiverdes uns aos outros. Esse amor é a mais sublime virtude cristã. E talvez a que mais falte às pessoas cristãs da atualidade.

3 Meditação Escrevi esta meditação em dias conturbados para a humanidade. Hoje, ao ligar o telejornal, deparei-me com números assustadores da pandemia do coronavírus que assola o mundo desde dezembro de 2019. As notícias assustam, preocupam, geram insegurança. Ao mesmo tempo, quando busco um período de entretenimento nas redes sociais, deparo-me com a partidarização de um grave problema de saúde mundial; deparo-me com receitas mágicas para curar uma doença, sem tratamento científico comprovado, e mais disseminação de ódio e medo. O texto de nossa perícope mostra-nos nossa incapacidade de entendermos algo bem básico e importante para nossa fé: sem Cristo nada podemos fazer. Esse é um alerta, mas, antes de tudo, um enorme consolo e motivo de esperança. Os discípulos vão se espalhar pelo mundo, sofrerão perseguição e morte, mas estão presos ao próprio Cristo. Não existe nada que os ramos sofram que a videira como um todo não sofra junto. Hoje (março de 2020), as comunidades sofrem. Orientações da IECLB, decretos governamentais e bom senso impedem o encontro físico entre as pessoas. Cultos, encontros de grupos e até sepultamentos sofrem suspensões e restrições (ainda não sabemos até quando isso irá ocorrer). A impossibilidade de comunhão faz com que o corpo de Cristo (os ramos) sofra, e sabemos que a videira também sofre com isso.

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Contudo sabemos que não estamos abandonados em nosso sofrimento. Aquele que cuida da videira e de seus ramos permanece ao nosso lado. Talvez possamos até dizer que o Agricultor é o mais preocupado – e o mais afetado – com toda essa situação de afastamento social (que é importante e necessário para a ocasião). Esse é o primeiro ponto que sustenta a esperança cristã: o Agricultor continua cuidando (arrancando e podando) de sua videira e de seus ramos. Afinal de contas, essa videira e tudo que nela existe é parte do seu Reino. Esse consolo surge como alerta quando vemos que permanecer em Cristo é o que nos faz permanecer ligados ao Reino. A própria Confessio Augustana nos lembra disso, em seu artigo IV: Ensina-se também que não podemos alcançar remissão do pecado e justiça diante de Deus por mérito, obra ou satisfação nossos, porém, que recebemos remissão dos pecados e nos tornamos justos diante de Deus pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé, quando cremos que Cristo padeceu por nós e que, por sua causa, os pecados nos são perdoados e nos são dadas justiça e vida eterna.

E nisso mostra-se nossa incapacidade. Não é a doçura ou a beleza do que fazemos que nos fixa a Cristo. A lógica é diferente: é o estar em Cristo que nos faz dar frutos, mesmo que com sinais de imperfeição, marcados que somos pelo pecado. E por estarmos ligados a Cristo, mesmo em meio às nossas falhas, temos a tarefa de dar frutos. Os frutos que ele mesmo gera. Temos a tendência a considerar como frutos da obra de Deus apenas aquilo que confere com a nossa visão de reino de Deus. Em tempos de polarização doentia, temos dificuldade de considerar aquilo que os outros fazem igualmente como frutos de amor. Se não concordamos com alguém, seja politica ou teologicamente, de forma arrogante tendemos a taxar sua posição ou atitude como equivocada. Quando nos damos conta que é Deus quem concede os frutos, deveríamos reconhecer igualmente os frutos que outros ramos produzem, pois estão ligados ao mesmo caule e à mesma videira, cultivada pelo mesmo Agricultor. Demonstrar esse amor significa amar e orar também por aquele que pensa e age diferente de nós. Essa unidade é escassa na igreja! O discurso do amor está sempre presente entre nós. Mas sua prática muitas vezes deixa a desejar. É claro que isso pode ser um exagero. Afinal, vemos muitos sinais de amor ao nosso redor: comunidades que, sem os cultos presenciais, continuam vivendo a fé de forma virtual; pessoas e comunidade que oferecem comida e teto aos desalentados; pessoas que fabricam e distribuem EPI’s para profissionais da saúde, entre outros sinais. Também nessas pequenas coisas experimentamos o amor de Deus expresso pelos frutos. Que eles sejam abundantes em nosso meio, para a glória de Deus.

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4 Subsídios litúrgicos A oração seguinte de Martim Lutero pode ser usada antes da meditação: Vê, Senhor, que sou um vaso Vê, Senhor, que sou um vaso que carece muito de ser preenchido. Meu Senhor, enche meu vaso, pois sou fraco na fé. Fortalece-me, pois sou frio no amor. Aquece-me e torna-me quente, para que meu amor transborde para o próximo. Não tenho fé robusta e forte, acontece que sou acometido de dúvidas, não podendo confiar em ti inteiramente. Ó Senhor, ajuda-me a fazer crescer minha fé e confiança. Tudo o que tenho se encerra em ti. Eu sou pobre, tu és rico e vieste para receber em misericórdia os pobres. Eu sou pecador, tu és justo. Comigo está a doença do pecado, em ti a plenitude da justiça. Por isso quero ficar contigo, não preciso dar de mim para ti: de ti posso receber. Amém. (VOIGT (Org.), 2016, p. 50.) Sugestões de hino Eu sou a videira e vocês são os ramos: <www.luteranos.com.br>. Busca por: Eu sou a videira.

Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2018. BOOR, Werner de. Evangelho de João II. Curitiba: Esperança, 2002. (Comentário Esperança). VOIGT, Emílio (Org.). Quem é a IECLB? São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: IECLB, 2016.

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PRÉDICA: ATOS 10.44-48 SALMO 98 JOÃO 15.9-17

6º DOMINGO DA PÁSCOA

09 MAIO 2021

Luiz Carlos Ramos

Não somos tão desprezíveis, afinal

1 Introdução No tempo da Páscoa, as leituras da Bíblia hebraica dão espaço para a leitura do livro de Atos dos Apóstolos, que narra a vida das primeiras comunidades pascais, isto é, a vida comunitária daqueles grupos que se comprometeram a continuar a ser o corpo vivo de Cristo no mundo. Podemos dizer, assim, que pelas narrativas de Atos continuamos a ver o Cristo ressuscitado agindo no mundo por meio dos seus discípulos e discípulas, que estão plenos e tomados pelo mesmo Espírito Santo de Jesus Cristo. A perícope indicada para a prédica neste que é o 6º Domingo da Páscoa se encontra em Atos 10.44-48. Essa passagem já foi abordada de maneira muito apropriada por Eldo Krüger no PL 42, leitura que recomendamos para uma perspectiva complementar e mais alargada do mesmo texto. As demais leituras do dia são o Salmo 98 e João 15.9-17. Em perfeito alinhamento com o escopo do livro de Atos, o Salmo, entre expressões de exaltação e louvor, destaca a universalidade da salvação estendida a todos as nações, até os confins da terra: O SENHOR fez notória a sua salvação; manifestou a sua justiça perante os olhos das nações. [...] todos os confins da terra viram a salvação do nosso Deus (v. 3-4). O texto do evangelho apresenta o grande (único!) mandamento: O meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei (Jo 15.12). O modelo do amor a ser praticado por quem abraça o cristianismo é o amor do próprio Jesus, que não conhece fronteiras, porque é “amor sem idade, amor sem limites, amor por toda a humanidade”, como cantava o poeta Charles Wesley. O fio que perpassa as leituras do dia, portanto, é aquele que costura numa unidade indissociável a universalidade, a inclusividade e a solidariedade do novo mundo de Deus inaugurado pelo Cristo ressurreto.

2 Exegese O Evangelho de Lucas e o livro de Atos dos Apóstolos formam uma composição, um conjunto literário, que, segundo evidência intratextual, tem como destinatário um certo e excelentíssimo Teófilo (cf. Lc 1.3 e At 1.1). Quanto à autoria, não temos a mesma evidência explícita, pois o autor não se apresenta. Contudo a tradição consagrou como autor de ambos os textos

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um certo Lucas, discípulo do apóstolo Paulo (cf. Cl 4.14). Tal suposição se fundamenta especialmente no fato de que o autor, que geralmente está narrando na terceira pessoa, em algumas passagens se inclui como parte da comitiva de Paulo. Trata-se, portanto, de alguém que redige ambas as obras com base em relatos de terceiros, isto é, testemunhas oculares e ministros da palavra (cf. Lc 1.2), mas que, em certos momentos da narrativa, passa a narrar na primeira pessoa do plural, usando o pronome nós (cf. At 16.8-10; 20.5-15; 21.1-18 e 27.1 – 28.16), sendo assim, eventualmente, ele próprio uma dessas testemunhas oculares. A perícope que é objeto do nosso estudo aqui não está entre aquelas experiências nas quais o autor está presente. Não cabe, agora, aprofundar a questão da autoria e do destinatário, mas importa sublinhar que tanto Lucas como Teófilo são nomes gregos. Isso importa, porquanto seus escritos têm a preocupação de tornar a mensagem cristã sensível aos gentios, isto é, aos não judeus. Com frequência, o autor elege como protagonistas de suas narrativas personagens estrangeiras. Podemos inferir, portanto, que os escritos atribuídos a Lucas têm como pano de fundo o dilema judeu/puro – gentio/impuro. E seu esforço vai todo na direção da busca da superação dessa dicotomia. Sobre a estrutura do livro de Atos dos Apóstolos, chama a atenção os paralelismos nas narrativas, praticamente duplicando as experiências protagonizadas por Pedro, o apóstolo dos judeus, e Paulo, o apóstolo dos gentios. A construção literária acaba demonstrando, por fim, que ambos foram apóstolos tanto para os judeus como para os gentios. A presente perícope inscreve-se no contexto amplo dessa tensão entre os mundos judaico e gentílico e, em contexto próximo, o do capítulo 10, que narra a experiência de Pedro (judeu/cristão) com um centurião romano (gentio) chamado Cornélio, sua conversão e a de toda a sua “casa”. Pedro chega à casa de Cornélio não sem relutância. Sucedeu com Pedro, assim como sucedera com Paulo, que para ser convencido a levar o evangelho a um grupo de mulheres no continente europeu, teve que passar pela experiência mística de uma visão enigmática de um “homem” que lhe rogava: Passa à Macedônia e ajuda-nos (At 16.9). No caso de Pedro, também em um momento de êxtase místico, aparecia-lhe um mensageiro dizendo-lhe que comesse comida não kosher, isto é, comida considerada impura pela cultura judaica. Só depois de muita resistência e acirrada discussão é que Pedro, finalmente, e ainda um tanto contrariado, se decide a ir até Cesareia, onde Cornélio residia. Essa experiência mística de Pedro se dera quando estava hospedado em Jope, na casa de um certo Simão, o curtidor. Pouco antes da visão Pedro havia ressuscitado uma mulher piedosa, exímia costureira, cujo nome aramaico era Tabita – Lucas faz questão de mencionar a versão grega do nome, Dorcas, que significa “gazela”. Essa mulher vivia na cidade vizinha de Lida e, pelo que se pode depreender, ali havia uma comunidade de viúvas, outro paralelo com a história de Lídia, a vendedora de púrpura, na Macedônia, e que dirigia uma sinagoga composta de mulheres piedosas que se reuniam à beira de um rio.

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Chegando em Cesareia – que fora edificada por Herodes e recebera esse nome em homenagem a Cesar Augusto –, é recebido na casa de Cornélio, centurião romano. Isso implicava vários problemas para um judeu: primeiro, Cornélio era um gentio, impuro por definição; segundo, era um romano, portanto representante do poder opressor que mantinha os judeus subjugados pela força bruta; terceiro, era um militar, por meio de quem a face mais violenta do Império Romano se manifestava. Podemos presumir a temeridade com que Pedro se aproxima da residência daquele homem. Vale lembrar que, em algumas passagens do Evangelho de Lucas, oficiais romanos são apresentados com certo protagonismo simpático à proposta do Reino. Menciono brevemente aqui duas passagens: no capítulo 7 de Lucas é mencionado um centurião que, segundo testemunho de muitos, tratava os judeus com elevada consideração (v. 5). Esse intercede junto a Jesus por um servo que estava à morte, gravemente enfermo, e Jesus atende seu pedido e cura o servo. E em Lucas 23.47 é mencionado que um centurião, ao pé da cruz, professa sua fé dizendo: Verdadeiramente, esse homem era justo. O autor, evidentemente, procura estabelecer uma relação no mínimo diplomática entre judeus, cristãos e romanos. É verdade que Pedro, diferentemente de Paulo no Areópago, não começa muito bem seu primeiro ato missionário entre os gentios. Sua antipática saudação foi: Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se a alguém de outra raça (At 10.28). Em seguida, tenta emendar de um jeito meio atravessado: Mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo. A universalidade do evangelho então passa a ser o tema do “sermão” que se segue: Reconheço, por verdade, que Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável. Esta é a palavra que Deus enviou aos filhos de Israel, anunciando-lhes o evangelho da paz, por meio de Jesus Cristo. Este é o Senhor de todos [...] (At 10.34-36). O discurso se alonga, mas é súbita e inesperadamente interrompido pelo próprio Espírito Santo. Aqui começa nossa perícope: (Obs.: As expressões destacadas entre parentes referem-se aos termos originais gregos transliterados e a versão utilizada foi a Almeida Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil.) Ainda Pedro falava (laleō = emitir voz ou som) estas coisas (rhēma = palavra proferida por viva voz) quando caiu (epipiptō = tomar posse de) o Espírito Santo sobre todos (pas = todo, tudo, qualquer um) os que ouviam a palavra (logos = palavra que expressa uma ideia) (v. 44) – Esse texto coloca em xeque a propalada doutrina do batismo do Espírito Santo como sendo uma segunda, ou terceira, bênção. Era de se esperar que primeiro alguém passasse pelo batismo com água, para então experimentar o batismo do Espírito. Aqui, entretanto, o Espírito é derramado sem qualquer pré-requisito ou formalidade. A quantidade variada de termos do campo semântico relacionado à “palavra” empregados nesse breve versículo chama a atenção. A palavra como som, discurso, ideia é interrompida pela “ação” do Espírito Santo, que se apossa de todos, sem exceção.

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E os fiéis que eram da circuncisão, que vieram com Pedro, admiraram-se (existēmi = tirar da posição, deslocar), porque também sobre os gentios (ethnos = tribo, nação, grupo) foi derramado (ekcheō = despejar, distribuir amplamente) o dom (dōrea = dádiva, presente) do Espírito Santo (v. 45) – “Admirar-se” (em gr. existemi) denota a noção de que os fiéis, isto é, os cristãos judeus – circuncidados, portanto – ficaram desestabilizados com o ocorrido entre os incircuncisos. É parte do contexto a convicção dos judeus de então de terem a primazia, senão a exclusividade, na economia sagrada. Outro aspecto a ser destacado é que o Espírito é presenteado (dōrea), isto é, ofertado gratuitamente a todas as etnias. Não foi preciso circuncisão, nem batismo, nem conversão, nem qualquer outro pré-requisito para que isso acontecesse. [...] pois os ouviam falando em línguas (glōssa = idioma ou dialeto) e engrandecendo (megalynō = tornar grande, magnificar) a Deus (v. 46) – O texto não oferece base para se supor que se tratasse de línguas místicas. Pode ter sido simplesmente uma referência ao fato de que aqueles não judeus estavam glorificando a Deus nos seus próprios idiomas ou nos idiomas que eram empregados na época naquela região. Podemos citar o grego e o latim, além do aramaico. Como a casa toda de Cornélio estava ali incluída, bem pode ser que servos e servas, oriundos ainda de outros grupos étnicos, o que era muito comum de acontecer, tenham se expressado nos seus próprios idiomas ou dialetos. Então, perguntou (apokrinomai = responder a uma questão) Pedro: Porventura, pode alguém recusar a água, para que não sejam batizados estes que, assim como nós, receberam o Espírito Santo? (v. 46-47) – Na versão de Almeida, preferiu-se traduzir apokrinomai por “perguntar”, em lugar de “responder”, provavelmente por questão de coerência semântica. Contudo, podemos, sim, perceber que a “pergunta” de Pedro é, na verdade, sua resposta a uma discussão, provavelmente muito tensa e acalorada, a respeito da questão se aqueles estrangeiros poderiam ser ou não inseridos na comunidade dos seguidores de Cristo. A lógica empregada por Pedro foi a de que se Deus deu aos gentios o “maior”, como eles poderiam negar-lhe o “menor”. Deus deu a eles o Espírito Santo, que confirma a inclusão dos gentios no Reino, então não seria coerente negar àquelas pessoas o menor: o sacramento do Batismo, que marca a inserção na comunidade de fé, a igreja. [...] estes que, assim como nós [...], eis a razão da admiração dos discípulos, que Deus trate os outros da mesma maneira que trata a nós. Vale lembrar aqui discussão semelhante que tiveram Filipe e o Eunuco, no deserto a caminho de Gaza (At 8.36-38). John Wesley comenta o versículo 47 dizendo: “Ele [Pedro] não afirmou que, por eles terem recebido o batismo do Espírito, eles não precisariam do batismo nas águas. mas ocorreu exatamente o contrário: se eles receberam o Espírito, logo, devem ser batizados nas águas”. E completa seu raciocínio dizendo: “Os homens, ou receberam ou não receberam o Espírito Santo. Se não receberam, que se arrependam, disse Deus, e sejam batizados e recebam o dom do Espírito Santo. Se já receberam, se já foram batizados com o Espírito Santo, então quem pode proibir o batismo nas águas?”. E ordenou (prostassō = mandar, ordenar, prescrever, comandar) que fossem batizados em nome de Jesus Cristo” (v. 48) – Talvez o emprego do termo “orde-

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nou” seja apenas retórico, mas talvez não. Talvez denote que a aceitação do parecer de Pedro não foi recebido tão voluntária e deliberadamente, de modo que teria sido necessária uma atitude mais enfática de Pedro, determinando que assim se fizesse. Podemos supor que não tenha havido unanimidade, tanto é assim que o assunto continuará a ser debatido no capítulo seguinte, pois a notícia chegou à comunidade de Jerusalém: Quando Pedro subiu a Jerusalém, os que eram da circuncisão o arguiram (diakrinō = separar-se em um espírito hostil, opor-se, lutar com disputa, contender), dizendo: Entraste em casa de homens incircuncisos e comeste com eles (At 11.2-3). Pedro, então, teve que se explicar longa e detalhadamente. Então, lhe pediram que permanecesse com eles por alguns dias (v. 48). Também aqui há um evidente paralelo com a história de Paulo e Lídia, que o constrangera a ficar hospedado na casa dela. Tal como Paulo, Pedro se vê diante de um impasse. Ele começara dizendo que, como judeu, não poderia sequer entrar na casa de um gentio, muito menos comer com eles. Agora se vê na situação de ter de hospedar-se por vários dias com esses estrangeiros e, por suposto, ter de comer a comida impura deles. A missão de evangelizar é abrir-se para o outro e a outra, o diferente e a diferença, e não se limita à realização de discursos. Implica ainda quebrar barreiras, superar preconceitos, adotar uma atitude de inclusão e uma postura de acolhimento. E mais do que coexistir, é estar disposto a conviver, sentando-se à mesma mesa, é partir e repartir o pão em ação de graças (eucaristia), e singeleza de coração, que é o que Jesus faria. É reconhecer que o amor sem limites de Deus torna puras todas as coisas e todas as pessoas, por meio da solidariedade humana. Talvez a intenção original do pedido para que Pedro e os discípulos permanecessem por mais tempo com eles fosse que os novos convertidos pudessem aprender mais e aprofundar o conhecimento a respeito do evangelho, mas temos razões mais que suficientes para supor que quem mais aprendeu com essa estadia foi o próprio Pedro e os demais discípulos missionários que o acompanhavam.

3 Meditação: Ninguém é tão desprezível, afinal! [...] estes que, assim como nós [...] (At 10.47). Filipe, eleito juntamente com Estêvão e outros cinco ao diaconato (cf. At 6.1-7), já havia pregado o evangelho aos samaritanos (cf. At 8.4-8), com grande adesão daqueles, e batizado o prosélito etíope, mais conhecido como o eunuco. O itinerário proposto pelo autor de Atos enunciado no capítulo 1 está em pleno curso: [...] recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra (v. 8). A história de Pedro e Cornélio, como bem observa Theodor Ferris, é a respeito da primeira vez que um gentio foi pública e oficialmente recebido na comunidade cristã, sem a necessidade da conformação às exigências da lei judaica – isto é, sem a necessidade de que fosse circuncidado primeiro. Cornélio foi, portanto, o primeiro caso de batismo de um não judeu (incircunciso) na história da igreja de Cristo. O episódio marca, assim, o ponto no qual o cristianismo, dra-

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mática e decisivamente, declara sua independência do judaísmo (cf. BUTTRICK, 1951-57, p. 132). Quanto ao tema da abertura do evangelho para as nações estrangeiras, Paulo é considerado o apóstolo dos gentios, mas Pedro é quem tem a primazia de ter sido o primeiro a levar o evangelho a um incircunciso. Contudo, tal abertura não se deu sem resistência. Para que Pedro se convencesse (bem como os leitores do livro de Atos), a narrativa se reveste de colorido místico, mítico até, fazendo menção a momentos de êxtase, visões e vozes misteriosas. A necessidade que temos de passar por experiências extraordinárias para, só então, nos convencermos de que temos que mudar nosso jeito de ver e fazer as coisas é no mínimo curiosa. Não é verdade que ainda ficamos admirados quando nos damos conta de que Deus trata os outros da mesma maneira que trata a nós? Com evidente constrangimento, Pedro dirige-se à casa de Cornélio. Não faz lá o mais simpático dos discursos. Mas a Palavra de Deus é maior que as palavras de Pedro, pois enquanto esse ainda pronunciava suas sentenças, o Espírito Santo se encarregou de fazer com que os presentes ouvissem, em meio às provisórias palavras de Pedro, a Palavra definitiva de Deus. E, independente da vontade de Pedro ou de quem quer que fosse, todos ali foram tomados pelo Espírito Santo. A expressão “todos” nos permite supor que tanto adultos como crianças tenham recebido essa dádiva, e também os escravos e as demais pessoas que para ali tenham se dirigido na ocasião. Gente de diferentes origens, línguas, costumes, credos... Todos, de repente, são “aunados” por um mesmo Espírito. Conquanto todos tenham tido sua identidade preservada, pois continuavam a falar seus próprios idiomas, estavam agora unidos no propósito comum de engrandecer o nome de Deus, porque o evangelho reúne as pessoas separadas, aproxima as diferentes, inclui as excluídas. Nada poderia ser mais improvável do que uma aproximação entre Pedro e Cornélio, especialmente se levarmos em conta o imenso fosso cultural que havia entre eles. Cornélio era gentio (incircunciso), cosmopolita, integrava a elite, ilustre oficial militar, pertencia ao topo da pirâmide social do seu tempo, e, não nos esqueçamos, representava o governo opressor e inimigo, e era aliado da odiosa nobreza herodiana, com quem haviam sido corresponsáveis pela condenação e execução de Jesus, a quem Pedro seguia. Por outro lado, Pedro era judeu, galileu provinciano, sem patentes ou honras, operário pobre relegado a subsistir precariamente na extremidade mais inferior da pirâmide social, e um seguidor do crucificado Jesus, declarado inimigo público do sistema. Isso para não falar das amarras legais que mantinham cada um deles atados aos seus mundos e cosmovisões. No caso de Cornélio, o Direito Romano, implacável e impiedoso. No caso de Pedro, a lei cerimonial excludente do judaísmo do seu tempo. É nesse contexto que emerge o evangelho com a lei inexorável e invencível do amor.

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Para finalizar, apontamos para a dinâmica da perícope que nos apresenta o tema da universalidade, inclusividade e solidariedade do evangelho: 1. Universalidade: o Espírito Santo desce sobre o estrangeiro e todos da sua casa, sem distinção de etnia, idade, sexo, língua ou condição social – o Espírito Santo não pode ser contido pelos nossos preconceitos, nem ser confinado às quaisquer fronteiras que queiramos erigir. 2. Inclusividade: todos são batizados: o evangelho, a despeito de ser uma experiência que transcende instituições, dogmas e rituais, não nega aos seus o direito aos sinais sacramentais, visíveis, portanto, que tornam evidente e pública a inclusão no seio da família da fé daqueles e daquelas que outrora eram excluídos, marginalizados e proscritos. 3. Solidariedade: permanecendo na casa de Cornélio alguns dias, Pedro e seus acompanhantes repetiram o que Jesus tantas vezes havia feito: partiu e repartiu com eles o pão em ação de graças, celebrando a verdadeira eucaristia, não a do reino de Herodes, nem a do império de César, mas a do novo mundo de Deus, cujo fundamento é o grande mandamento do “amor sem limites, amor sem idade, amor por toda a humanidade”. Não raro, tentamos racionalizar e justificar nossos preconceitos alegando que a igreja ainda não está preparada para a quebra de certas barreiras com vistas à inclusão do diferente e da diferença: refugiadas/os, sofredoras/es de rua, dependentes químicos, LGBTQ+, e tantas outras pessoas de grupos étnicos marginalizados, de condições socioeconômicas desfavorecidas, ou mesmo de certas convicções político-ideológicas questionadoras. “Temos que ter paciência histórica”, costumamos repetir. Mas o Espírito Santo tem pressa! Ele não pode esperar. Por essa razão, enquanto ainda discursamos e tentamos justificar nossos preconceitos, o Espírito está tomando a dianteira e, com ou sem a anuência das autoridades institucionalizadas, está atuando de maneira muito concreta para incluir as pessoas excluídas, acolher as proscritas e restaurar a dignidade daqueles e daquelas que outrora eram considerados desprezíveis. Em suma, para o evangelho ninguém é desprezível.

4 Imagens para a prédica O crescimento, muitas vezes, é doloroso. Assim comenta esta passagem Theodor P. Ferris: O cristianismo foi uma criança que cresceu num lar judaico. E nunca será capaz de reparar seu débito de gratidão a esse lar. [...] mas como todo rebento, ele teve que deixar sua casa materna. A amplitude das implicações do cristianismo não permitia que este ficasse confinado ao judaísmo. O judaísmo era a religião de uma nação, o cristianismo, a religião de todas as nações. As roupas apertadas tinham que ser desvestidas; o exclusivismo do judaísmo tinha que ser substituído; seu provincianismo teria que ser trocado pelo universalismo. A ruptura tinha que ser feita, e foi feita (BUTTRICK, 1951-57, p. 132).

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A imagem de um corpo que cresce, no qual as roupas velhas já não se ajustam, pode ser desenvolvida tanto no sentido de que é preciso compreender e assumir o caminho natural do crescimento, quanto no sentido de que insistir em tentar preservar antigos hábitos e roupagens se torna um contrassenso. O caminho do cristianismo para a universalidade e a inclusão plena é imperativo e inexorável. Forçá-lo no sentido inverso é apequenar o evangelho.

5 Subsídios litúrgicos Hino: Amor sem limites Amor sem limites Amor sem idade Amor por toda a eternidade (Poema composto por Charles Wesley, irmão de John Wesley, ambos fundadores do Metodismo. Música: Dadid Junker. Áudio disponível em: <https:// youtu.be/Ge1BeZID2No>.) Coleta Oramos hoje, Senhor, pela unidade de todos os humanos, num mesmo espírito de solidariedade e respeito mútuos. Oramos por todas as pessoas que creem e também pelas que não creem, para que a dignidade humana seja respeitada e a vida esteja acima de tudo. Oramos em nome daquele em quem todos os nomes se encontram. Amém. Intercessão Deus, que alimentas as pessoas famintas, como mãe amorosa, tu desejas nutrir teus filhos e tuas filhas até que estejam saciados e satisfeitos. Direciona-nos para ti somente, para que, aliviados das nossas mais profundas ansiedades, nós possamos lograr com Cristo alimentar todos com o milagre do teu amor. (Apresentação dos motivos de súplicas e intercessões.) Redentor das nossas almas e sustentador das nossas vidas, visita teu povo com tuas bênçãos e derrama sobre nós tua força e coragem, para que possamos, em teu nome, servir à humanidade, generosa e fielmente, hoje e sempre. Amém. Oração final Senhor Jesus, é teu desejo que sejamos um, como tu és com o Pai, e por isso esse também é o nosso desejo. A despeito de todas as forças contrárias, de todas as ameaças de dispersão, de toda pressão e repressão desintegradoras… Apesar de tanta maldade, de tanto egoísmo, de tanta intolerância… Nós nos dispomos a fazer a tua vontade. E, no que depender de nós,

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nos comprometemos a construir a paz para toda a família humana. Cumpre em nós a tua palavra, ó Cristo, de tal maneira que o mundo creia que tu nos enviaste em missão de paz e em comunhão fraterna. Amém.

Bibliografia BÍBLIA DE ESTUDO JOHN WESLEY. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2020. BUTTRICK, George Arthur. The Interpreter’s Bible: The Holy Scriptures in the King James and Revised standard versions with general articles and introduction, exegesis, exposition for each book of the Bible. New York: Abingdon; Cokesbury, [1951-57]. 12 v. ESPÍNDOLA, Liséte; RAMOS, Luiz Carlos (Orgs.). Mil vozes para celebrar: hinos de Charles Wesley. Edição de Helmut Renders, Lucia H. C. Oliveira Lopes. São Bernardo do Campo: Editeo, 2007. 1 CD-ROM. ISBN 85-88410-73-2.

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ASCENSÃO DO SENHOR

13 MAIO 2021

PRÉDICA: JOÃO 14.1-12 ISAÍAS 33.13-17,22 COLOSSENSES 3.1-11

Eldo Krüger

Uma profunda conversa entre Jesus e os discípulos

1 Introdução Quem deseja obter mais informações sobre Ascensão, o Evangelho de João e as comunidades joaninas, e o estudo sobre o texto indicado para pregação, encontra subsídios nos auxílios do Proclamar Libertação, v. II, p. 63; v. 21, p. 139; v. 27, p. 124; v. 35, p. 192; v. 39, p. 170; v. 42, p. 169; v. 44, p. 168. Os dois textos de leitura bíblica sugerida falam sobre como devemos viver como filhos e filhas de Deus. Em Isaías 33.13-17,22, o profeta anuncia a vinda de um rei (Messias) e instrui o povo de Israel a ser fiel à aliança feita entre Deus e o povo, a obedecer a Deus e fazer a sua vontade, agindo com amor e justiça com seu próximo. No texto de Colossenses 3.1-11, o apóstolo Paulo aponta para o evento da ascensão (Pensai e buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus, v. 1-2) e diz que, a partir do batismo e da fé, estamos unidos com Cristo e nos tornamos “novas criaturas” (2Co 5.17) e isso nos compromete a seguir Cristo e seus ensinamentos, a procurar construir um caráter e uma conduta de vida íntegra e ética que reflitam nossa relação de comunhão com Cristo. O texto de João 14.1-12 relata a conversa de despedida que Jesus teve com os discípulos um pouco antes de enfrentar sua morte, ressurreição e ascensão. Jesus consola e anima seus discípulos, convoca e incentiva a crer nele e em Deus, que são um só, e pede para que na sua ausência deem continuidade ao seu ministério, fazendo e multiplicando suas obras de amor e misericórdia (Mt 4.23). Uma relação que podemos estabelecer entre os três textos é que a ascensão de Jesus, a promessa da sua volta e de um dia estarmos com ele e com o Pai no reino dos céus requerem de nós cristãos que creiamos nele e vivamos neste mundo como verdadeiros filhos e filhas de Deus, praticando seus ensinamentos e colocando nossa vida a serviço dele, da sua missão e do reino de Deus.

2 Exegese 1. Do capítulo 13 ao 17, encontramos os discursos de despedida de Jesus. Jesus diz aos discípulos que seria traído por um deles, que Pedro iria negá-lo, que estava na iminência de ser morto e de voltar para o Pai e os discípulos não poderiam acompanhá-lo de imediato (Jo 13.33,36). Ouvir isso mexeu profundamente com os sentimentos e a fé dos discípulos, pois tinham fortes laços de afeto e amizade com Jesus. Ficaram apreensivos, inseguros e com medo de

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serem abandonados e se tornarem órfãos (Jo 14.18). A ideia de ruptura e distanciamento deixou-os interiormente muito abalados e tristes, aflitos e angustiados (Jo 16.6,19-22). Eles não estavam preparados, ainda estavam com os olhos fixos nas coisas deste mundo. Jesus, que é um observador atento e conhece o que se passa na mente e no coração humano, percebe e revela o estado de espírito abatido dos discípulos. Com voz de amigo, conforta-os dizendo para não ficarem turbados (agitados e abalados na fé), pois ele não iria abandoná-los e deixá-los sozinhos e desamparados. Eles continuariam em comunhão, não de forma presencial, mas por meio da fé. Por isso Jesus os convoca a crer e confiar (imperativo) em Deus e nele. A fé era vital para permanecerem em comunhão com Jesus e para não sucumbirem e fraquejarem nas difíceis provações que iram enfrentar. 2. Jesus diz que vai até a casa do Pai preparar um lugar para os discípulos. Como Jesus conheceu a casa (lar) do Pai na sua preexistência (Jo 1.1-2; Fp 2.6), ele revela que a casa é espaçosa e ampla (os judeus acreditavam na existência de várias habitações celestiais) e tem lugar para todos (Lc 14.15-24). Jesus seria o precursor (Hb 6.20) e os discípulos e todos que creem nele teriam a honra e o privilégio de terem acesso e serem recebidos por ele na casa do Pai para viver na sua companhia. Ao anunciar essa promessa, Jesus dá a entender que a vida não se limita a este mundo e não termina com a morte. Haverá vitória sobre a morte e vida eterna (Jo 3.16; 2Tm 1.10; 1Co 15.20-28). 3. Conforme Jesus, herdeiro universal do Pai (Mt 21.38; Hb 1.2), sua ida junto ao Pai iria beneficiar a ele e aos discípulos. Não apenas Jesus tinha o direito de viver junto com o Pai na sua casa celestial. Jesus prometeu que sua despedida seria temporária, pois voltaria para buscar os discípulos para habitar em sua companhia. Jesus não deixa claro se estava se referindo à sua vinda por meio do Espírito Santo em Pentecostes (Jo 14.16) ou no final dos tempos (Mt 25.31-46). Penso que Jesus estava dizendo as duas coisas. No Pentecostes, ele voltaria para fazer morada em seus corações (Jo 14.23) e, no final dos tempos, iria recebê-los na casa do Pai (1Ts 4.13 – 5.3) para viverem eternamente no seu reino celestial (Fp 3.20; Sl 23.6). Lá iriam compartilhar de forma plena da sua natureza e dos seus atributos. Viveriam a salvação de forma plena e definitiva. Essa é a esperança escatológica dos cristãos (1Pe 1.3-5; 2Pe 3.13; Ap 21.1-7). 4-5. Jesus diz aos discípulos que eles sabem o caminho para onde ele vai. Tomé, que tem o hábito de buscar intensamente a verdade, é transparente e sincero e fala em nome dos discípulos, dizendo que tem dúvidas e perguntas. Diz que não sabem como Jesus iria conseguir voltar ao Pai e como ele pode ser o caminho que conduz ao Pai. Esse “não saber” revela que as conversas que Jesus teve com os discípulos sobre sua morte e ressurreição (Jo 7.33,34; 13.3,33,36) não foram compreendidas. A prova disso foi a reação de decepção e dispersão que tiveram quando Jesus morreu e de incredulidade quando ressuscitou. 6. Como Tomé diz que não sabe o lugar nem o caminho que Jesus iria seguir para chegar à casa do Pai, Jesus esclarece o que disse fazendo uma importante revelação. Ele diz: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. Uma afirmação autêntica que contém um grande conteúdo

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teológico: revela quem é Jesus, qual é sua relação com Deus (Pai) e qual é sua missão no mundo. Para o evangelista João, os três substantivos estão interligados (caminho, verdade e vida). Jesus, certo de ter total unidade com o Pai, afirma que é o (e não um) caminho, o acesso e a meta (Deus) ao mesmo tempo. Diz que ele é a verdade de Deus, a vida de Deus e o único caminho (inclusivo) vital pelo qual as pessoas podem chegar ao Pai. É o único caminho (meio e fim) confiável e verdadeiro que dá acesso e conduz a Deus, aqui no mundo e depois na sua habitação celestial. Jesus afirma que é a verdade. Não apenas diz a verdade, mas é a verdade de Deus encarnada na sua pessoa, é a perfeita e suprema revelação de Deus e de sua verdade (Jo 1.14,17). Além de ser o caminho e a verdade, Jesus também declara ser a vida, a essência, substância e fonte da vida (Jo 1.3-4; 3.15; 11.25). É a vida encarnada do próprio Deus, a vida eterna e imortal, a vida “abundante” que ele prometeu dar aos que creem nele (Jo 3.3-6; 10.10; 1Jo 5.11-12; 2Co 5.17). Nele e com ele, que é o caminho, é possível encontrar e conhecer Deus, a verdade e a vida. Conforme Jesus, o caminho que conduz a Deus, a verdade e a vida não podem prescindir dele. Ele diz: Ninguém vem ao Pai senão por mim. Jesus é o caminho para chegar a Deus (ou o caminho pelo qual Deus chega até nós). É o mediador entre nós e Deus (1Tm 2.5; Hb 9.15). Sem Jesus nenhuma pessoa consegue chegar ao Pai e se relacionar com o Pai. E por que não? Porque o Pai está em Jesus, que o revelou, e porque, sendo nós pecadores, é impossível nos relacionarmos e vivermos em comunhão com o Pai sem Jesus. Para isso ser possível, precisamos ser redimidos por Jesus por meio de sua morte e ressurreição. 7. Jesus diz aos discípulos que tiveram a oportunidade de conhecê-lo e por meio dele conhecer o Pai, mas infelizmente não reconheceram a divindade de Jesus, não tiveram discernimento espiritual (Mt 16.13-17) para reconhecer que Jesus refletia a imagem viva e celestial do Deus invisível, no qual eles acreditavam. Conforme Jesus, enquanto conversava com eles, os discípulos mais uma vez estavam podendo conhecer e ver (com os olhos da fé) o seu Pai nele. E com as “obras e revelações” que fez e ainda estavam por acontecer (na cruz, na ressurreição e ascensão), os discípulos poderiam conhecer mais ainda a Jesus e o seu Pai e comprovar que eles têm plena unidade divina, que ele e o Pai são um só (Jo 10.30). 8. O discípulo Filipe não entendeu o que Jesus disse e pediu para Jesus mostrar o Pai. Filipe não conseguia perceber que o Pai estava diante dele presente em Jesus e que ele era o caminho para o Pai. Filipe era parecido com Tomé. Tomé queria saber o caminho e Filipe queria ver o Pai. Os dois só se davam por convencidos quando conseguiam ver e confirmar a fé com seus próprios olhos. Só então se sentiam satisfeitos (“isso nos basta”). Jesus mostra para eles que o mais importante não é saber ou ver, mas crer. O “ver para crer” geralmente é interpretado de forma negativa, como incredulidade. Mas também pode ser entendido como expressão de uma fé inteligente, de alguém responsável e zeloso que leva as coisas de Deus a sério e que não quer ser enganado. É isso que vejo em Tomé e Filipe.

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9. A pergunta de Filipe deixou Jesus um tanto decepcionado com ele, porque depois de três anos convivendo, Filipe ainda não o tinha conhecido verdadeiramente. Ainda não tinha percebido que quem “vê Jesus vê o Pai”, que é na relação e experiência concreta com Jesus que é possível ver o Pai encarnado em Jesus (Jo 1.14); que Jesus é a imagem do Deus invisível, em quem habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade (Cl 1.15 e 2.9); que Jesus é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser (Hb 1.3); que Jesus não é apenas o Messias prometido, mas é o Emanuel (Mt 1.23), a presença do próprio Deus no mundo. Jesus confronta e questiona Filipe e dá a entender que o seu desejo de ver o Pai não fazia sentido, pois na realidade o Pai já estava na frente dos seus olhos e ele não o reconhecia. O que mais Jesus poderia fazer para convencer Filipe que o Pai estava nele? A dificuldade de crer por parte de Filipe mostra que ver o Pai envolve muito mais do que ter uma imagem visual direta e imediata de Deus. Quando essa imagem não corresponde e não confirma a imagem que construímos sobre Deus, vamos ter dificuldade de reconhecer Deus, de “ver” Deus diferente da concepção e imagem que temos. 10. Os versículos 10 a 12 são um desdobramento do versículo um, onde Jesus diz aos discípulos para crer em Deus e crer nele. Jesus pergunta a Filipe: Você não crê que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu digo a vocês não as digo por mim mesmo. Ao contrário, o Pai, que vive em mim, está realizando a sua obra (Bíblia tradução ecumênica e tradução NVI). Jesus diz a Filipe que todos os ensinamentos e obras que fez manifestaram o poder divino de Deus, que estava único com ele. Tudo que fez foi em nome de Deus, foi divinamente inspirado e movido por Deus (Jo 6.38 e 8.28). Todas as obras que fez na verdade foi o próprio Deus quem as fez. Assim sendo, Jesus questiona Filipe por não conseguir perceber e acreditar que Deus estava presente, se manifestando e agindo em e por meio dele. 11. Jesus afirma que está no Pai e o Pai está nele. Existe perfeita e plena unidade divina entre Jesus e Deus. Jesus desafia Felipe a crer. Mas crer nesse “mistério de fé” não é algo fácil (Mt 16.17). Conforme Jesus, um importante critério e argumento que ajuda a crer é que ele faz exatamente as obras que o Pai faz. Jesus não faz nada sem a aprovação e de forma independente de Deus (Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz – Jo 5.19; 12.49). Conforme Jesus, as obras que ele faz e ainda iria fazer, e que são visíveis e concretas, são evidência e provam a sua divindade, revelam e confirmam que ele está (vive) unido ao Pai e o Pai está unido a ele (Jo 10.15,30,38). 12. A expressão em verdade, em verdade vos digo revela a importância, a autoridade e a certeza do que Jesus diz a Filipe: Aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará. Jesus diz que assim como ele realizou as obras do Pai, os discípulos e todas as pessoas que creem nele unem-se a ele e recebem dele a “autoridade e ordenação” para continuar fazendo as mesmas (parâmetro) obras que ele fez (Mt 4.23), até mesmo maiores, isto é, com mais intensidade e

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abrangência (Mt 28.18-20; At 1.8). Agora, isso só seria possível com e por meio de Jesus e do Espírito Santo que ele prometeu enviar (Jo 15.5).

3 Meditação No texto indicado para pregação, Jesus anuncia aos discípulos sua ascensão. Diz que irá para a casa celestial do Pai preparar um lugar e promete voltar para levá-los para viver na companhia dele e do Pai. Os discípulos não entenderam o sentido desse anúncio que Jesus faz e isso desencadeou entre eles uma conversa com uma profunda reflexão teológica. Nessa conversa, Jesus confortou os discípulos que estavam turbados com a ideia de ficarem sem sua companhia presencial, esclareceu as dúvidas deles e nossas e fez importantes revelações sobre Deus, sua pessoa e a missão que Deus lhe confiou. Os discípulos queriam saber de Jesus como iria acontecer a sua volta à casa do Pai. Jesus respondeu dizendo: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim. Essa declaração de Jesus gerou nos discípulos uma segunda questão: como Jesus pode ser o caminho que dá acesso e conduz ao Pai, aqui no mundo e na sua habitação celestial? Jesus responde essas dúvidas dizendo que ele é a presença e a manifestação viva e real de Deus no mundo. Que por meio da relação e experiência concreta com ele é possível “ver” o Pai. Um está plenamente no outro. Ele é o único caminho (meio e fim) que, por meio do Espírito Santo, possibilita a todos conhecer e encontrar o Pai, conhecer e desfrutar da verdade e da vida de Deus que ele revelou. Jesus convoca e desafia os discípulos e a nós também a crer e confiar nele e na presença do Pai nele, a em seu nome dar testemunho dele como o caminho que revela e que conduz a Deus, a dar continuidade e multiplicar suas obras de amor, misericórdia e justiça em favor das pessoas e de sua salvação. Dessa forma, pessoas que estão confusas por causa dos muitos “caminhos” que são anunciados, que têm as mesmas dificuldades de crer que Tomé e Filipe tiveram, podem conhecer e ver (encontrar) Deus em e com Jesus e pela fé também se tornarem seguidores e seguidoras de Jesus e assim desfrutar da companhia de Deus e da salvação eterna, neste mundo e além dele, na eternidade. Jesus confiou e contou com os discípulos e também conosco. Depois da Ascensão e de Pentecostes, os discípulos fielmente fizeram o que Jesus lhes ordenou, mesmo em meio às dificuldades e aos desafios que tiveram que enfrentar. O mesmo aconteceu com os cristãos das comunidades para as quais João escreveu seu livro. Deram bom testemunho de Cristo, com sua vida, palavras e ações. Que seja assim também conosco. Amém!

4 Imagens para a prédica – Texto sobre Ascensão e seu significado para Jesus e para nós – PL 42, p. 169-174 (Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/conteudo/joao-14-112-50166>).

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Ascensão do Senhor

– A importância de ajudar as pessoas que passam por situações de perdas e de dúvidas em relação à fé. – Os muitos caminhos e imagens que são apresentados como sendo de Deus. – A dificuldade que as pessoas têm de compreender e crer em Jesus como o caminho que dá acesso e conduz a Deus, à verdade e à vida de Deus. – A necessidade e importância da continuidade da missão de Jesus por meio da igreja, que é chamada a ser cristocêntrica, comprometida com a verdade e a vida de Deus revelada em Jesus.

5 Subsídios litúrgicos Ver em Pl 42, p. 173-174.

Bibliografia BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1987. CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2002. v. 2. JUNG, Jaime. Prédica João 14.1-12. Ascensão do Senhor. In: Proclamar libertação 42. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2017. p. 169-174. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/conteudo/joao-14-1-12-50166>.

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7º DOMINGO DA PÁSCOA

16 MAIO 2021

PRÉDICA: 1 JOÃO 5.9-13 SALMO 1 JOÃO 17.1a,6-19

Renato Küntzer

A fé leva ao amor

1 Introdução João 17.1a,6-19 é parte de uma oração de intercessão feita por Jesus ao “Pai”, na qual Jesus reconhece que “chegou a hora” da revelação da natureza divina do Filho e de sua relação com o Pai. A oração de Jesus é, ao mesmo tempo, a síntese mais completa e elevada da cristologia e eclesiologia joanina. E a minha natureza divina se revela por meio daqueles que me deste [...]. Eles continuam no mundo [...] guardo-os para que sejam um, assim como tu e eu somos um. Jesus se entrega completamente ao Pai e pede que “eles” também sejam completamente do Pai, pois foram enviados ao mundo. Eles são os discípulos, aqueles que me deste, que continuam no mundo, dos que tomei conta e nenhum se perdeu, que tem o coração cheio de alegria e o mundo ficou com ódio deles. O Salmo 1 é a porta de entrada e o convite à leitura da coletânea de salmos que segue. Afirma quem é feliz, onde está o prazer, a água da vida, os frutos no tempo certo, onde tudo é bem-sucedido por considerar o projeto de Deus. Enquanto isso os injustos e a injustiça não têm consistência.

2 Observações exegéticas 2.1 Informações prévias da Primeira Carta de João Há um aspecto que faz com que a Primeira Carta de João seja diferente das cartas de Paulo. Ela é escrita não para uma comunidade ou leitores específicos e com problemas pontuais, mas a um público mais amplo e genérico. Sua origem provavelmente deve ser buscada em Éfeso, na província da Ásia, atual Turquia, por volta do ano 100. Seu objetivo é auxiliar as comunidades joaninas a retomarem o testemunho da afirmação de fé que Deus se fez humano em Jesus Cristo (1Jo 1.1-3). Em meio a essas comunidades pequenas e fragilizadas surge um conflito, que estava provocando divisões internas. Havia controvérsias entre membros das comunidades quanto ao testemunho de como viver a comunhão com Deus e com Jesus. Começava-se a colocar em dúvida a historicidade da vida, paixão e morte de Jesus e a importância disso para a vivência da fé. Havia uma corrente que afirmava que o corpo de Cristo era uma ilusão e que sua crucificação teria sido só aparente. Não conseguiam aceitar um Deus encarnado e muito menos crucificado. Afirmavam que a revelação de Deus e a salvação viriam pelo conhecimento e

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especulação intelectual e revelações espirituais elevadas. Assim é necessário que o autor afirme às comunidades que o verdadeiro conhecimento de Deus se dá por meio da encarnação de Jesus Cristo e da prática do amor aos irmãos e irmãs de maneira concreta com gestos e ações de amor (1Jo 3.17-18). 2.2 A perícope em questão – 1 João 5.9-13 v. 9a – Se aceitamos o testemunho dos homens, com maior razão aceitamos o testemunho de Deus v. 9b – E o testemunho de que falamos é de Deus; ele nos deixou um testemunho do seu Filho v. 10a – Quem acredita no Filho de Deus tem esse testemunho dentro de si mesmo. v. 10b – Quem não acredita em Deus, faz dele um mentiroso, porque não acredita no testemunho que ele deu em favor do seu Filho. v. 11 – E o testemunho é este: Deus nos deu a vida eterna e esta vida está em seu Filho v. 12 – Quem tem o Filho, tem a vida, quem não tem o Filho, não tem a vida. v. 13 – Escrevo tudo isso para que vocês que acreditam no nome do Filho de Deus estejam certos de que têm a vida. A partir desse pequeno arranjo do texto dá para começar a perceber algumas informações. O tema é dar testemunho. No v. 9 aparecem as expressões “testemunho dos homens” e “testemunho de Deus”. Aponta-se para um conflito com um grupo de oposição. Um grupo tinha o testemunho dos homens, e outro, o testemunho de Deus. Diante do conflito, a comunidade próxima ao autor da carta se identifica como quem tem o testemunho de Deus. Por isso se recorre ao uso de um genitivo, que vem de Deus ou desde Deus. O outro grupo, dos adversários, que estava rompendo com a comunidade ou estava em oposição a ela, tinha o testemunho dos homens. O uso novamente de um genitivo, denotando origem, procedência, mostra que o testemunho tinha origem nos homens. O v. 9 termina a primeira parte afirmando que o testemunho de Deus é maior que o dos homens. O autor afirma que o seu testemunho, ao qual a comunidade é fiel, é de Deus. Por isso é de mais valor. Essa afirmação sobre a importância, o valor e a verdade do testemunho está baseada no fato de que “ele nos deixou um testemunho de seu Filho”. Diz que esse é o testemunho de Deus testemunhado a respeito de seu filho. O v. 10 começa dizendo que aquele que crê no filho de Deus tem o testemunho em si mesmo. Depois diz que aquele que não crê faz de Deus um mentiroso. Para ter o testemunho de Deus, é necessário crer no filho de Deus. O tema central é o verbo crer, crer no Filho de Deus e crer no testemunho. O termo crer ocorre

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três vezes nesse versículo. Aquele que não crê em Deus nem no testemunho que vem de Deus a respeito de seu filho faz de Deus um mentiroso. Quem não aceita esse testemunho que vem de Deus e não acredita no testemunho que Deus deu em favor de seu Filho, torna-se mentiroso. Há na comunidade quem ensine e tenha um testemunho mentiroso e falso. Há, em razão de um testemunho envolto na mentira, um conflito. O autor acusa seus adversários de estarem propondo para a comunidade uma cristologia e uma ética totalmente distorcidas. A dificuldade residia na cristologia, pois os dissidentes, preocupados em mostrar a divindade de Jesus, acabaram por menosprezar a sua humanidade. As raízes gnósticas dessa tendência terminam por acentuar uma feição de Jesus exclusivamente espiritual, que por consequência não se interessa mais pelas questões terrenas. Os adversários são acusados de não testemunharem que Deus dá a conhecer o Cristo. O testemunho de Jesus Cristo é o testemunho de que Deus nos deu a vida eterna. Essa confissão e esse testemunho têm consequências que resultam em uma ética e prática de vida comunitária. Mas o que é de fato esse testemunho? O v. 11 responde a essa pergunta. Aqui está o cerne do testemunho: O testemunho é este: Deus nos deu a vida eterna. Não há nada especulativo ou de uma revelação espiritual elevada em relação ao que seja a vida eterna. É bem simples a afirmação: Esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho, tem a vida e quem não tem o Filho, não tem a vida. A discussão é acerca de quem tem a vida eterna e de quem não a tem. O testemunho é que essa vida é dádiva de Deus, o que ocorre com o uso do pronome “nos”, “nos deu”, mostrando que a vida eterna foi dada por Deus para o grupo que permaneceu na comunidade. Essa vida está no Filho de Deus. No v. 12 temos a continuação desse discurso, na afirmação de que quem tem o Filho, tem a vida. Desta forma, quem não tem o Filho de Deus, não tem a vida. O grupo que ficou na comunidade é aquele que tem o Filho e, portanto, tem a vida. Os adversários são aqueles que não têm a vida, porque não têm o Filho e não creram no testemunho de Deus, mas no testemunho de homens. Esse testemunho claro e sem rodeio já se encontra no Evangelho de João 17.3, onde se diz: Ora, a vida eterna é esta: que eles conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo. Vida eterna é o conhecimento de Deus e esse conhecimento é comunicado por um evento e um gesto na história: o envio e a presença viva e real de Jesus Cristo. A vida pública de Jesus é o verdadeiro testemunho que dá conhecimento de Deus. E a aceitação de que Jesus é o Messias e o Filho de Deus permite a experiência da vida eterna no presente. Já aqui e agora! Estar em comunhão com Deus, testemunhar Jesus Cristo como Filho de Deus e amar os irmãos e as irmãs com gestos e ações de partilha é ter parte na vida eterna. Em Jesus Cristo está o conhecimento de Deus, porque ele cumpre a missão de Deus e obediência à Palavra com seu agir profético. O amor concreto de Deus manifestado nas ações concretas de Jesus se dá neste mundo. As pessoas cristãs seguidoras de Jesus, a seu exemplo, buscam transformar a realidade histórica. O agir de Deus acontece no concreto da história de seu povo, em particular das pes-

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soas pobres e marginalizadas. O agir solidário de Deus em favor das pessoas mais fracas tem continuidade no agir da comunidade joanina e entre seus discípulos.

2 Meditação Assim como o texto, nossa meditação vai se guiar por dois temas: a urgência da prática do amor como consequência da fé e o enfrentamento do testemunho da mentira. O amor e a fé se unem numa perspectiva singular e única, em que o amor se baseia na fé (4.7-21) e a fé se baseia no amor (5.1-13), evidenciando sinais de que a pessoa nasceu de Deus. Ter nascido de Deus pela fé em Jesus Cristo é manter-se firme na confissão de que o Filho de Deus veio para conhecermos o Deus verdadeiro e a vida eterna. A necessidade dessa afirmação de fé e desse testemunho revela a situação de uma comunidade que se achava ameaçada por falsos ensinamentos. A seriedade do momento (pois a última hora já chegou – 2.18) pede que a comunidade permaneça na verdade. A verdade não está naqueles que ostentam o conhecimento de Deus, que alegam possuir experiências espirituais elevadas, tornando-as isentas do pecado. A verdade não está naqueles que como falsos profetas e anticristos negam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, tal como a comunidade confessa e testemunha. A verdade não está naqueles que rejeitam a plena humanidade de Jesus, que ele veio na carne e que sua obra é indispensável para a fé cristã e salvação. Percebe-se aqui uma hostilidade à fé cristã, no sentido de desfazer o vínculo indissociável entre fé e amor. Essa hostilidade está presente na falta de compromisso com a prática da justiça (3.7,10), com o amor incondicional a outra pessoa (2.9,11; 3.10ss; 4.20), com a ajuda concreta aos pobres (3.17). Por isso é urgente e necessário reafirmar perante a comunidade que: – o testemunho de Deus é verdadeiro; – o testemunho de Deus é Jesus Cristo; – quem testemunha Jesus Cristo testemunha a verdade; – Deus nos deu a vida eterna e essa vida está em seu Filho; – quem tem o Filho tem a vida, quem não tem o Filho não tem a vida; – quem acredita no Filho de Deus, esteja certo de que tem a vida. O testemunho da verdade é urgente e determinante para a existência da comunidade. É uma exortação necessária também para os nossos tempos, quando se fala até em “pós-verdade”. Estamos vivendo em um ambiente no qual se revelam as palavras de falsos profetas e pessoas movidas por “espíritos elevados” de variados conhecimentos. E o testemunho da verdade precisa expor e visibilizar as questões práticas que envolvem o compromisso da fé com o amor: Ora, aquele que possuir recursos deste mundo, e vir a seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus? (3.17). Isso não é mera retórica. Põe o dedo em uma ferida séria da comunidade. Aqui estão sua responsabilidade e sua identidade, quando afirma ser testemunha da verdade. Todas as pessoas necessitam da radical solidariedade e misericórdia de

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Deus. Todas as pessoas são, em sua condição humana, receptoras indignas da misericórdia de Deus. Não há aqui privilégio, vantagem nem mérito pessoal. Para Deus não há quem tenha mais valor, razão pela qual a outra pessoa possa estar na condição de um objeto do qual se possa dispor ou descartar. É testemunho da verdade que o amor de Deus enxerga necessidades. O amor necessariamente se solidariza com as pessoas injustiçadas, ajuda as mais fracas, defende as excluídas da vida digna. O amor dá prioridade a quem está em perigo e sofre prejuízo na sua dignidade. O amor de Deus exige como resposta o amor das pessoas entre si. Isso é um alto padrão de conduta humana. Ainda que a pessoa seja justificada pela fé e não por suas boas obras, é inimaginável uma fé que não se torne ativa no amor.

3 Imagem para a prédica Acrescento a esse subsídio uma citação de Martim Lutero, de sua obra “Da liberdade cristã” (p. 39-40). É uma contribuição ao tema da pregação e contribui com uma perspectiva confessional: Pois o ser humano não vive somente em função de seu próprio corpo, mas também em relação com as demais pessoas sobre a terra. Essa é a razão pela qual o ser humano não pode prescindir das obras no trato com seus semelhantes; antes, há de falar e agir com eles, ainda que nenhuma dessas obras lhe seja necessária para tornar-se agradável a Deus e ser bem-aventurado. Logo, ao realizar todas essas obras, terá sua mira posta tão somente em servir e ser útil aos demais, sem pensar em outra coisa do que nas necessidades daqueles a cujo serviço deseja colocar-se. Isso, então, se chama de uma vida verdadeiramente cristã; aí a fé porá mãos à obra com prazer e amor, como ensina S. Paulo aos Gálatas [5.6]. Assim ensina também aos Filipenses [2.1ss], os quais tinha instruído que mediante a fé em Cristo já possuíam toda graça e suficiência, acrescentando ainda: “Exorto-vos por toda consolação que tendes em Cristo e por toda consolação que tendes por nosso amor para convosco e ainda por toda comunhão que tendes com todos os cristãos espirituais e que são agradáveis a Deus: alegrai meu coração por completo, em que de agora em diante sejais todos de um mesmo entendimento, evidenciando amor uns para com os outros, servindo-vos mutuamente, e ninguém atentando para si mesmo e para o que é seu, mas para o outro e para o que é a necessidade dele”.

4 Auxílios litúrgicos Oração Deus, há algo que chamamos de amor, mas quando usamos essa palavra, tu sabes que se trata de algo mesquinho e banal; é só um egoísmo refinado. Não nos entregamos; somente cobramos e esperamos um retorno vantajoso. Por isso, Senhor, repetidamente te buscamos em vão. Tu não vives nessa compreensão limitada, porque és o amor. Esse teu amor é mais forte que nossa dureza, e ao nos tocar, rompes com a nossa condição.

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Jesus Cristo, ensina-nos a amar de uma forma desinteressada. Não por sentir necessidade da retribuição de algum afeto, mas porque as outras pessoas necessitam de amor. Tu és o amor, e por meio de nós queres que esse amor alcance irmãos e irmãs. Não te pedimos nada exorbitante, somente queremos ser tuas discípulas e teus discípulos, cumprindo teu único mandamento de amar as demais pessoas. Amém.

Bibliografia KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 571-585. LUTERO, Martim. Da liberdade cristã. 9. ed. rev. Trad. Walter Altmann. São Leopoldo: Sinodal, 2016. MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. O amor em defesa da vida, a 1ª Carta de João. São Leopoldo: CEBI, 2018.

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DOMINGO DE PENTECOSTES

23 MAIO 2021

PRÉDICA: JOÃO 15.26-27; 16.4-15 EZEQUIEL 37.1-14 ROMANOS 8.22-27

Hans Alfred Trein

Vem, Espírito de Deus!

1 Introdução Em Jesus, Deus esteve presente na história. Na despedida, ele promete o Paracleto, que continua a revelação. Revitaliza-se, num estágio mais avançado da espiral da história1, o significado do nome de Javé em Êxodo 3.14: Eu sou o que está aí e estarei aí. É o paraklētos, o ad vocatus, o que está chamado para ficar junto, nas angústias e perseguições, já que o egō emi 2 volta à origem, vai em direção ao Pai. Aqui transparece o pano de fundo da teologia joanina: do Cristo preexistente que cumpriu sua missão na terra (17.4), pois Deus amou o mundo de tal maneira [...] (3.16), e retorna ao Pai em glória. “O Espírito (Santo) está como que chaveado dentro da carne de Cristo sobre a terra; Ele só ganhará a plena liberdade de ação, pela glorificação de Jesus” (LOISY apud BULTMANN, 1968, p. 431). Jesus tem de se ausentar, caso contrário, o Paracleto não virá (v. 7)3. Os discípulos estão tristes, sentem-se órfãos. Jesus esperava que se alegrassem, afinal, o paraklētos seria o elo de ligação entre eles. Ainda não haviam feito a experiência de que Jesus, ausentando-se fisicamente, iria para dentro deles, como experimentado pelos jovens de Emaús, e como, desde os primórdios, Deus nos presenteia no sacramento da Ceia do Senhor. É a missão do Consolador e Espírito Verdade. O testemunho dos discípulos não será um mero relato histórico do que aconteceu. Continuarão a obra de Jesus, auxiliados pelo Espírito Santo (20.23).

2 Exegese A revelação ocorrida por meio da atuação de Jesus Cristo, de fato, só é revelação absoluta se ele permanecer sendo o Revelador. Jesus só permanece sendo o Revelador se ele enviar o Espírito. Ele só pode enviar o Espírito quando tiver ido. Por meio do Paracleto a revelação continua se concretizando. 16.8-114 Agora acrescido do eixo semântico do evento cristológico; antes, vigorava a lei de Moisés. Para os judeus, o egō emi (eu sou) de Jesus era uma blasfêmia, equivalente a dizer: eu sou Deus (18.6). 3 Essa afirmação inequívoca coincide com 20.17, mas contraria de certa maneira 20.22s. João não relata a ascensão, nem o envio do Espírito Santo em Pentecostes. 4 Quanto aos versículos 8-11, Lutero fez o seguinte comentário (OSel 11, p. 358): “Depois que Cristo deu a seus discípulos a promessa e o consolo em relação à sua despedida, dizendo que 1 2

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desenvolve como essa atuação permanente vai acontecer. “Objetivamente, essa afirmação significa o mesmo que aquela outra: Jesus teve de ser glorificado através da morte, para ser Aquele que Ele na verdade é” (BULTMANN, 1968, p. 430). Teve de se ausentar, para que seus discípulos não tivessem a ilusão de terem se apossado da revelação. Ele só pode continuar sendo o Revelador, como Aquele que constantemente quebra o que está dado, destrói a certeza, que irrompe do além e que chama para dentro do futuro. Só assim, o crente será protegido de voltar-se a si mesmo e ali permanecer, ao invés de deixar-se desamarrar de si mesmo e remeter-se constantemente ao futuro. O sentido da revelação é libertar o crente; a segurança que ela dá não é a consistência do presente – na verdade sempre já passado – mas, sim, a eternidade do futuro. Por isso também o discípulo das gerações posteriores nunca poderá segurar a revelação que o encontrou, seja a experiência da alma, seja o reconhecimento ou a cultura cristã. Também para esses Jesus é aquele que está sempre se despedindo; e se ele não conhece a λύπη (luto, tristeza) do abandono, também não experimentará a χαρά (alegria, júbilo) da conexão (BULTMANN, 1968, p. 431-432; tradução própria).

Isso significa que está apodrecendo de maduro o tempo em que temos que deixar o estático “ser cristãos” para um dinâmico “tornarmo-nos cristãos”. Igrejas cada vez mais vazias são um sinal dos tempos: o rosto do cristianismo não pode ficar preso aos templos. Temos de voltar a descobrir-nos como sendo “os do caminho” (At 9.2; 16.17; 18.26; 22.4), fazer uma viagem ao âmago do evangelho. Jesus está à porta e bate. Talvez esteja batendo do lado de dentro das igrejas e queira sair! Ou talvez até o crucificado e ressurreto “Jesus da gente” já tenha saído para as periferias do mundo e a gente nem notou, pois ele pode atravessar portas fechadas! “Convencerá o mundo do pecado, porque não creem em mim.” Elenxei, acusar com uma prova contundente, substantiva, demonstrar (BAUER, 1971, p. 494), pois o juízo humano sobre o estado do mundo é cego, deixa-se confundir por ideologias mentirosas e o poder do Mammon, em suma, é incapaz do conhecimento de Deus (17.25) e da verdade que liberta (8.32). Constata-se o pecado no sentido de 15.21-25: não crer na revelação (1.8) e permanecer nas trevas (12.46; 9.41; 3.36). “Convencerá o mundo da justiça, porque vou para o Pai e não me vereis mais”. Jesus experimentou todo potencial de perseguição da fonte difusora

lhes enviará o Consolador, o qual não pode vir antes de sua partida, poderiam perguntar agora: ‘Que o Consolador deve fazer junto a nós e através de nós?’. A isso, ele responde, definindo claramente o ofício e a obra do Espírito Santo, afirmando que este deve repreender o mundo inteiro por causa do pecado através das palavras dos apóstolos. Ele diz do seu Reino que ele o estabelecerá na terra depois da sua ascensão ao céu e que se expandirá vigorosamente pelo mundo inteiro mediante o poder do Espírito Santo e sujeitará tudo a ele. Mas não será um governo secular. Ele não distribuirá golpes de espada, deporá ou investirá reis e senhores, ou estabelecerá uma nova ordem ou lei. Tal governo se regerá unicamente pela Palavra ou pelo ministério da pregação dos apóstolos”.

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do ódio, onde se alinharam autoridades civis, jurídicas e religiosas, inclusive os piedosos fariseus, até a morte na cruz. O mundo não apenas julgou mal um ser humano nobre (1.10), há dois mil anos, mas descartou a revelação e continua fechando-se a ela. A ressurreição de Jesus foi um ato de justiça de Deus diante de seus detratores e assassinos. É liberdade plena do julgamento e do poder do mundo. Ele não pertence mais ao mundo; tornou-se indisponível para o mundo. “Convencerá o mundo do juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado.” Essa afirmação certamente é a mais difícil de absorver em nossa racionalidade, pois sempre aparece a pergunta obstacular: “Por que existe, ou melhor, persiste o mal no mundo?”. Se o príncipe do mal já está julgado (Jo 16.11), por que ainda não estamos no reino de Deus, onde reinam a justiça e o amor? Seria o tempo da igreja regido por aquele anúncio de Jesus em 14.30b: [...] porque aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim? O mundo em João merece um estudo mais aprofundado, pois é tão central no seu pensamento teológico, como em nenhum outro escrito neotestamentário.5 É o kósmos6 e tudo que lhe é característico como mundo caído, inimigo de Deus, pervertido pelo pecado, em contradição total com a essência divina, condenado à desgraça e perdição. Não se refere à boa criação de Deus. Refere-se àquilo que os seres humanos com suas leis, estruturas e ideologias, com suas confusões entre bem e mal, com suas estruturas produtoras de injustiça e morte dela fizeram! Essas sim têm de ser convencidas do pecado, pois [...] o mundo inteiro jaz no maligno (1Jo 5.19). Por não ter se adequado, é que Jesus foi odiado (15.25b) por todos aqueles que se arranjaram com este mundo; e os discípulos também serão odiados (15.18ss). Estão no mundo, mas não são do mundo. Indispõem-se com os reinos deste mundo, pois a ação do Paracleto não é mágica; dá-se dentro da história pelo empenho autônomo dos cristãos. Por isso o mundo é capaz de lhes fazer mal e Jesus pede que o Pai os livre do mal (17.15). E promete: no mundo passais por aflição, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo (16.33). Kósmos é o palco sobre o qual se desenrola a vida humana, mas também a história salvífica; esse é o acento do Novo Testamento. O cosmos redimido por Jesus Cristo deixa de ser kósmos e passa a ser reino de Deus, éon vindouro, novo céu e nova terra, o outro mundo possível proclamado e inaugurado por Jesus Cristo. Esse horizonte a igreja cristã em grande parte perdeu, desde a virada constantiniana7, no século IV e, apesar de muitas tentativas e movimentos dentro dela, nunca mais recuperou inteiramente.

κόσμος aparece intensamente entre os capítulos 13-17. Em João ocorre 78 vezes; em 1 João 22 vezes; em 2 João uma vez; em Apocalipse três vezes; nas cartas de Paulo 46 vezes. Theologisches Wörterbuch, p. 882-896, analisa o significado do conceito κόσμος no grego filosófico e extrabíblico, sua relação com o conceito hebraico “Olam” ou aramaico “Olma” e as diferenças entre a compreensão judaica/veterotestamentária e a neotestamentária. 6 Cf. o 7º significado na coluna 883 do dicionário Bauer. 7 Sob o Imperador Constantino, o cristianismo deixou de ser perseguido e tornou-se religião oficial do império, aliado e legitimador do poder estatal. 5

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Em João 18.36, Jesus diz que o seu Reino não é deste mundo. Seu Reino – e com essa palavra Jesus não deixa de mencionar uma grandeza política! – não se guia pelas razões de Estado e pelos interesses de todos os reinos deste mundo (Mt 4.8). Seu propósito não foi assumir o poder em Jerusalém, restaurar o reino de Davi, como tantos esperavam. Seu propósito não é penúltimo, mas último, escatológico! Todavia não deixa de ser também político, no sentido de constituir a ordem da justiça e do amor que promove a vida plena precisamente neste mundo em desordem que resulta em morte e perdição! Cristãos empenham-se em melhorar o penúltimo, sem perder de vista o último. Caso contrário, seríamos como as jovens negligentes (Mt 25.1-13) e não se precisaria esperar por uma segunda vinda de Cristo, como expresso em Apocalipse 11.15.

3 Meditação E como está o mundo hoje? Escrevo este auxílio na Semana da Paixão 2020 e em meio à pandemia do novo coronavírus. Gaia está com febre. As epidemias vêm, uma atrás da outra, em cada vez menos intervalos e mais devastadoras8, escancarando a baixa imunidade e a fraca humanidade no mundo. A cruz de Cristo e sua sensação de abandono se atualizam tragicamente no sofrimento e nas mortes solitárias de milhares de pessoas em todo o mundo. Há um potencial evangelizador nessa pandemia? O Paracleto está agindo? Não há como negar: precisou de um vírus mortal para escancarar irrefutavelmente a desigualdade no mundo, capaz de convencer até mesmo algumas pessoas obstruídas pela ideologia neoliberal! A pandemia tirou o véu, desvelou a fragilidade de nossa civilização! Já estávamos num curso de diminuir as políticas públicas de cunho social, de legitimar a escandalosa concentração de riqueza e de boicotar medidas eficazes para impedir a iminente catástrofe ecológica. Em termos bíblicos é um sinal dos tempos. Com medo de serem atingidos pela pandemia, os defensores do neoliberalismo encolheram-se covardemente. O ídolo “mercado”, pelo menos temporariamente, deixou de comandar o espetáculo deprimente da destruição planetária, virou uma estatueta desacreditada e comida de cupim. Onde foi parar a ideologia do Estado mínimo? As elites substituíram a meritocracia, sem o menor pudor, por um discurso hipócrita de solidariedade? Moradores de rua e de favela, sempre suspeitos e discriminados, passaram a ser chamados de vulneráveis, por causa do seu potencial de disseminação do vírus. Algumas corporações aproveitaram para fazer caridade, inversamente proporcional às milionárias quantias sonegadas. De repente, os setores influentes da sociedade exigiam a ação do Estado; sem pestanejar concordaram que se endividasse, elogiavam o Bolsa Família, queriam que o SUS e as pesquisas científicas em processo de sucateamento – assentido por esses mesmos setores – num golpe de magia, resolvessem a pandemia, queriam que

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HIV desde os anos 1980, SARS em 2003, H1N1 em 2009, MERS em 2011, Ebola em 20142016, sem contar as epidemias nacionais de dengue e sarampo.

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fosse instituída uma renda mínima... Alôo! Por que, de repente, essa mudança de postura? Afinal, a massa de empobrecidos já não vive em crise permanente dentro desse sistema perverso? Explico. Na pandemia, as classes média e alta também estavam correndo riscos com o rastilho de disseminação do vírus no solo da desigualdade, nas aglomerações das periferias miseráveis, que não têm nenhuma chance para um “distanciamento controlado”. Por isso é provável que essas reações se restringirão ao período ameaçador da pandemia. Restou uma parcela perversa que insistia em jogar a “economia” contra as demandas sanitárias; perversa, pois exigia de dentro de seus escritórios e automóveis em carreata que apenas os/as trabalhadores/as se expusessem. No fundo dessa postura provavelmente está a ideia de que seria benéfica uma certa dose de darwinismo social ou eugenia: deixe que o vírus mate um tanto de pobres, que não representam nada para o mercado e cada vez menos como trabalhadores/as num mundo robotizado; morrendo aposentados, a Previdência Social poupa reservas. Ao fim da pandemia, a produção legal da desigualdade voltará “ao normal”! Afinal, não se pode subestimar o príncipe deste mundo e o espírito-manada que dissemina! E agora, quando você lê? Passou a pandemia? Voltou a lógica que baixa a humanidade e enfraquece a imunidade? O mundo não sairá igual dessa pandemia. Para a normalidade de antes não haverá retorno! Não há nenhuma garantia de que será melhor! A crise é um momento de despedida da normalidade superada e a abertura para uma nova normalidade. Os ricos terão entendido um pouco mais que seus acúmulos não lhes dão controle, apenas privam os empobrecidos e que, espoliando legalmente os “agora” vulneráveis sociais, no final das contas, essa fragilização recairá sobre eles próprios, e isso não apenas em tempos de pandemia? Haverá o reconhecimento público de que as grandes desigualdades sociais, a destruição ambiental e seu consequente enfraquecimento sanitário são o solo fértil para a disseminação de agentes patológicos, tanto para doenças físicas como também para doenças sociais e propostas políticas odiosas. O SUS finalmente será reconhecido como uma política pública imprescindível numa sociedade tão desigual como a nossa e que não tê-lo conduz à barbárie? Vamos solidificar a descoberta na crise de que, cruzando as classes, dependemos e precisamos uns dos outros? De qualquer forma, o Deus de Amor, o Espírito Santo da Consolação esteve atuando de forma humilde e discreta em milhares de cuidadoras sanitárias e servidores essenciais, arriscando-se para que outros pudessem ficar em reclusão mais protegida. E as igrejas? A redescoberta do Espírito Santo resgatou o equilíbrio da Trindade superando uma cristologia que declarava a encarnação de Deus como revelação suficiente e encerrada. De outro lado, trouxe uma enorme confusão no meio religioso dentro de um contexto em que o “mercado” foi erguido a balizador da vida e está sendo sustentado como bezerro de ouro. “Em nome de Jesus!” – essa fórmula já completamente banalizada – transformou-se no bordão sacralizador de mercadorias travestidas de bens religiosos. Além de seus líderes enriquecerem às custas de um povo empobrecido e indefeso por não ter saber, que frutos estão dando com sua teologia primitiva de fazer negócios com a divindade? O fato de a Palavra ter se encarnado em Jesus Cristo é mal compreendido

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quando se interpreta que Deus tornou-se disponível, que podemos usá-lo para os nossos projetos e desejos. Não me segures [...], diz o ressurreto à Maria Madalena (20.17). Deus é indisponível! O Espírito Santo também! Sopra onde quer! Nosso tempo está marcado por um sério problema de hermenêutica, tanto na sociedade civil como no campo religioso, uma verdadeira guerra semiótica.9 Além disso, as pessoas não distinguem mais entre informação, argumento e opinião. Opiniões absurdas e totalmente descabidas são veiculadas como informações ou argumentos e replicadas sem exame; basta que coincidam com o que a pessoa já pensava antes, legitimado com “o Espírito me disse”. A moda é “lacrar” temas complexos com poucas frases rasas! Qualquer autodeclarado “cheio do espírito” se apropria da pobre Bíblia – que não pode se defender sozinha e por isso também a ciência bíblica é desprezada –, interpretando-a de qualquer jeito e para seus interesses, sem escrúpulos em difundir suas baboseiras pelos programas televisivos e pelas assim chamadas mídias sociais. E o diabólico – o que provoca confusão – é que se misturam fragmentos aceitáveis como verdade com outros fragmentos absolutamente falsos. Será que já estamos vivendo naquele tempo apocalíptico de confusão total, quando o amor quase esfriará de todos (Mt 24.12)? Aumenta o número de pessoas exauridas espiritualmente. É deveras como andar naquele vale de ossos secos, descrito na visão de Ezequiel. Estamos falando com gente manipulada por interesses midiáticos e pela famosa rede social produtora de fake news, gente que, com justa razão, não sabe mais em que confiar. Estamos falando a um povo recolonizado e espoliado pelos interesses financeiros dos grandes impérios e que nem se dá conta do que está acontecendo. Estamos falando de toda a criação que a um só tempo geme e suporta angústias até agora (Rm 8.22). Onde está a palavra que é revelação, que consola e que traz a verdade que liberta? Não é nossa a tarefa de convencer as pessoas da verdade. Essa é a tarefa do Espírito Santo. Ele assiste aqueles que buscam o mesmo olhar de Cristo para a criação e não se deixam enganar pelo poder do Mammon. Nossa tarefa é anunciar a vitória de Cristo sobre o príncipe do mal e animar ao esperançar: à esperança que não espera passivamente, mas é ativa na busca de sua realização, e a busca com paciência e perseverança. Até mesmo o Espírito intercede por nós, com gemidos inexprimíveis (Rm 8.27) e nos assiste em nossa fraqueza (Rm 8.26).

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Semiótica é o estudo dos signos, que consistem em todos os elementos que representam algum significado e sentido para o ser humano, abrangendo as linguagens verbais e não verbais.

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4 Ideias para a prédica As três ações do Paracleto O Espírito Santo continua a revelação ocorrida em Cristo Jesus. Ele nos ensina a verdade sobre o pecado do mundo e sobre a justiça de Deus e nos consola para resistirmos ao mal, pois Jesus já venceu o mundo. • Desde tempos imemoriais, o poder econômico, político e militar serviu para garantir uma vida nababesca para alguns poucos e uma vida miserável para a grande maioria: escravidão, feudalismo, capitalismo, comunismo. Um sistema foi passando o bastão para o outro. Não é possível viver sem Estado, mas as sociedades de Estado consolidam as desigualdades, injustiças e guerras. Por isso Jesus disse: Meu reino não é deste mundo! Assim também cristãos estão no mundo, mas não são mais do mundo! • Jesus é Deus encarnado que veio trazer a luz, a justiça e a paz ao mundo, porque Deus amou o mundo. Mas o mundo não o quis receber. Antes, perseguiu o supremo bem e o fez, julgando, com isso, prestar culto a Deus. Por isso, muita atenção! É possível levar o nome de Deus na boca e produzir legalmente injustiça e morte. Por meio da ressurreição de Jesus, Deus fez justiça. A vida triunfou sobre a morte. O Jesus encarnado cumpriu sua missão. O Espírito Santo continuará a missão conosco. • O príncipe deste mundo já está julgado. Mas ele ainda se debate raivoso e, com esperteza, agrega desavisados à sobrevivência do seu projeto de perdição. Induz à guerra, provoca o embate das grandes nações entre si, semeia o ódio entre as pessoas, argumenta com a fome para destruir o planeta com o agronegócio e seus venenos, incita ao consumo com o argumento da vida feliz, transforma até mesmo pessoas em mercadoria. Afirma o direito dos poderosos à opressão, xingando a compaixão e a solidariedade de “comunismo”. Precisamos rever nosso modelo de vida no planeta Terra para evitar que não sejamos mais admitidos a viver nele. O Espírito Santo nos guiará a toda verdade e nos consolará em nossas angústias. Deus deu seu Filho para redimir o mundo. Pessoas cristãs empenham-se para que toda a vida prevaleça e a espécie humana sobreviva.

5 Subsídios litúrgicos Hino inicial LCI 461: Espírito Verdade, em nós vem habitar. Kyrie

Para não ficar no genérico, recomendo selecionar um motivo no âmbito mundial, outro no âmbito nacional/estadual/regional e outro no âmbito local e pedir que o Senhor tenha piedade.

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Oração de coleta Deus Todo-Amoroso, que na visão do profeta Ezequiel podes revitalizar ossos secos para uma nova vida e esperança e que ouves o gemido e as angústias de toda a criação, olha também para nós que em nosso íntimo gememos, aguardando a adoção de filhos e a redenção de nosso corpo, porque esperamos por tua salvação. Isso te pedimos por meio de Jesus Cristo que contigo e com o Espírito Santo reina de eternidade a eternidade. Hino antes da prédica LCI 462: Vem, Espírito divino. Hino depois da prédica LCI 250: Envia teu Espírito Senhor. Confissão de fé Em lugar da confissão de fé, ler a explicação ao 3º artigo do Catecismo Menor. Intercessão Que o Espírito assista com a verdade e com o seu consolo as pessoas que estão sofrendo por causa de seu testemunho neste mundo.

Bibliografia BAUER, Walter. Wörterbuch zum Neuen Testament. Griechisch-Deutsches Wörterbuch zu den Schriften des Neuen Testaments und der übrigen urchristlichen Literatur. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1971. BULTMANN, Rudolf. Das Evangelium des Johannes. Kritisch Exegetischer Kommentar über das Neue Testament. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1968. KITTEL, Gerhard. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Stuttgart: Verlag von W. Kohlhammer, 1967. Dritter Band.

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1º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

30 MAIO 2021

(TRINDADE)

PRÉDICA: ISAÍAS 6.1-131 JOÃO 3.1-17 ROMANOS 8.12-17

Carlos A. Dreher

Semente santa

1 Introdução Os três textos indicados para este domingo já foram abordados nessa constelação, embora variando a indicação para a pregação, em Proclamar Libertação 36, 39 e 42. Isaías 6 também já foi abordado em PL VI e XII; João 13.1-17 já foi comentado também em PL 28, 39 e 41; Romanos 8.12-17 já recebeu atenção em PL V e 36. Com uma exceção – a de João 3.1-17, indicada uma vez para o 2º Domingo na Quaresma, os comentários sempre se referiram ao domingo da Santíssima Trindade. Nas três vezes em que foi comentado, o texto de Isaías 6 compreendeu os v. 1-13. O recorte proposto, que termina no v. 8, causa certa estranheza, uma vez que a perícope realmente só termina no v. 13. Os v. 10-13 conformam a parte mais dura de todo o texto, anunciando um castigo terrível. Terá sido esta a razão para um novo recorte: evitar a dureza da palavra de Deus? Prefiro considerar aqui Isaías 6.1-13. Quanto à relação entre os três textos, assumo o que Erni Drehmer nos deixou registrado em seu auxílio homilético para o Domingo da Trindade em PL 36: – Todos falam de transformação: em Isaías, o processo dá-se pelo gesto simbólico da brasa, que purifica os lábios do profeta e prepara-o para a missão; em João, a transformação dá-se por intermédio do ensino a respeito da ação do Espírito Santo na vida de Nicodemos; em Romanos, a transformação dá-se pela ação do Espírito. – Os três falam de ação, não de passividade. Em Isaías, a resposta do profeta é a disposição à ação (“eis-me aqui, envia-me a mim”); em João, a ação vem antes, já que Nicodemos se coloca a caminho e busca Jesus para dirimir suas dúvidas; em Romanos, há o imperativo que leva a atitudes que são consequência da ação do Espírito Santo, que transforma vidas de pessoas que deixam de orientar suas ações pelos desejos humanos e permitem ser orientados pela vontade de Deus.

No que diz respeito ao tema do domingo, temos em Isaías 6 a pessoa de Deus Pai, numa impressionante teofania e no comissionamento do profeta; João 3 nos apresenta Jesus, o Filho, ensinando acerca do Espírito Santo; e, finalmente,

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A perícope prevista no Lecionário Comum Revisado da IECLB, Ano B, é Isaías 6.1-8.

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em Romanos 8, Paulo nos apresenta a terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo. Pai, Filho, Espírito Santo, eis aí a Trindade.

2 Estudando o texto de Isaías 6.1-13 A passagem apresenta uma estrutura em três partes: v. 1-5 compreendem a visão que Isaías tem de Javé dos Exércitos, no interior do templo; v. 6-8 apresentam a purificação e o envio do profeta; v. 9-13 ocupam-se da tarefa dada a Isaías. V. 1-5 – Começam por nos situar no tempo. Estamos no ano da morte do rei Uzias (v. 1a), o que nos coloca em 736 a. C., numa época de tranquilidade para Judá. Os assírios ainda estão distantes e não representam qualquer ameaça. Também somos situados no espaço. Estamos no interior do templo de Jerusalém (v. 1b), provavelmente por ocasião de um culto. Isaías talvez esteja fazendo alguma oferta no interior do santuário. Isaías vê Javé assentado sobre um alto e sublime trono, com as abas de suas vestes enchendo o templo. Cito Milton Schwantes de PL VI: Na visão dos vv. 1-5 ocorre como que uma transformação de templo e culto. Ora, sabemos que a arca da aliança era tida no AT, por vezes, como trono de Deus. Sabemos que seres como serafins pousavam sobre a arca e que tais seres ornamentavam as paredes do templo. Sabemos que o cântico dos serafins (v. 3) era também um refrão litúrgico do culto (Sl 99.3,5,9). Sabemos que algumas oferendas eram feitas dentro do templo, de sorte que nele havia fumaça (v. 4). Sabemos também que a espevitadeira (v. 6) pertencia ao instrumentário sacerdotal. Pode-se, pois, dizer que a visão de Isaías é um tipo de transfiguração; coisas e acontecimentos do templo tornam-se transparentes em uma dimensão bem nova. (p. 203)

Importante salientar que o refrão litúrgico “Santo, Santo, Santo” se refere a Javé Zebaote, o “Senhor dos exércitos”, uma antiga alusão à liderança e à condução do exército das tribos no período anterior à monarquia por parte de YHWH (Javé). Não se trata, pois, de uma antecipação da doutrina da Trindade, embora o refrão seja utilizado para essa ocasião. Serafins são seres alados com corpo de serpente e cabeça humana. Têm três pares de asas: um par para voar, outro para cobrir o rosto na presença de YHWH, e um último para cobrir a genitália, aqui eufemisticamente chamada de “pés”. O termo serafim é derivado do verbo saraf, cujo significado é “queimar”, o que indica uma possível relação com as serpentes abrasadoras de Números 21. Talvez esteja já aqui uma antecipação da purificação de Isaías, cujos lábios são tocados por uma brasa retirada do incensório. Os serafins, enquanto seres mitológicos, parecem fazer parte da corte celestial de YHWH. Outra referência a essa corte encontra-se em 1 Reis 22.19ss, da qual sai um espírito que se oferece para enganar o rei Acabe. Essa ideia do espírito enganador também parece estar presente aqui, na missão que Isaías irá receber. O v. 5 encerra essa primeira parte do texto com o grito horrorizado de Isaías: Ai de mim! Estou perdido! Porque sou um homem de lábios impuros, habi-

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to no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos! Isaías teme a morte! Sua condição de pecador – de ser um homem de lábios impuros – não suporta estar na presença da santidade de Deus. Curioso é que não é o pecado em si que mata o pecador, mas é a santidade que é aniquiladora! V. 6-8 – Esses versículos nos apresentam a cena da purificação de Isaías. Um dos serafins, com uma tenaz, toma uma brasa viva de cima do altar e voa em direção a Isaías. Toca-lhe os lábios com a brasa e lhe anuncia que seu pecado lhe foi tirado. A purificação dá-se com fogo! É com o fogo que se derrete o metal para retirar dele qualquer impureza. Essa parece ser a ideia que está por trás da purificação. Mais tarde, essa ideia será substituída pela purificação com água: lava-se com água o pecado do pecador. Purificado pelo fogo do altar, Isaías pode manter-se de pé diante de Deus e participar de seu conselho, colocando-se à disposição do Senhor. A quem enviarei, e quem há de ir por nós?, é a pergunta de YHWH. Eis-me aqui. Envia-me a mim – exclama Isaías. Não há como não notar mais uma vez a semelhança com a passagem de 1 Reis 22.19ss. Também lá ocorre a pergunta “Quem irá...”. E também lá alguém do conselho divino – naquele caso um espírito – se prontifica. V. 9-13 – Esses versículos apresentam o envio de Isaías e detalham sua tarefa. Novamente percebe-se semelhança com 1 Reis 22. Lá, o espírito é enviado para enganar o rei Acabe. O espírito dispõe-se a ser um “espírito mentiroso” na boca dos profetas do rei, a fim de enganar a esse. Aqui, a tarefa de Isaías é falar de maneira que “eles” não entendam, convidá-“los” a ver de maneira que não percebam. O v. 10 acirra ainda mais a mensagem: o profeta deve tornar insensível o coração “deste povo”, endurecer seus ouvidos, fechar-lhe os olhos, para que não vejam, não ouçam e não entendam com o coração, pois, do contrário, “este povo” pode se arrepender, converter-se e ser salvo! É terrível: Deus não quer (!) que “este povo” seja salvo! O grito de Isaías ecoa lancinante: Até quando, Senhor? A tarefa apavora o profeta! É demais! Tem que ter um fim! E terá: quando as cidades estiverem desoladas, sem habitantes, e a terra seja de todo assolada! O termo hebraico utilizado para “habitantes”, yoshebim, não poucas vezes é utilizado para “governantes”. São aqueles que estão “sentados (sobre tronos)”. Essa hipótese nos permite entender quem são as pessoas que perfazem “este povo” que deve ter um coração insensível, ouvidos endurecidos e olhos fechados, para que não se arrependam, se convertam e sejam salvos. São as pessoas que detêm o poder e que, com ele, oprimem os camponeses e os trabalhadores das cidades. São o “espinheiro” que se impõe às árvores que produzem fruto (Jz 9). A hipótese se confirma com a afirmação final da perícope: Como terebinto e como carvalho, dos quais, depois de derribados, ainda fica o toco (cf. Is 11!), assim a santa semente é o seu toco.

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3 Pensando na prédica Embora tenha apresentado acima alguns traços de aproximação entre os três textos propostos para este domingo e sua associação com a Trindade, não vejo como reuni-los na pregação. O evangelho e a epístola abrandam demais a dura mensagem de Isaías 6. Opto por refletir sobre a pregação de apenas Isaías 6. O texto apresenta uma variedade de temas. Quase todos permitiriam um sermão inteiro: – a teofania; – a purificação do pecador, que não subsiste diante da santidade de Deus; – a vocação do profeta; – a dura missão do vocacionado; – o extermínio dos maus e a salvação da semente santa. Tento ater-me, ainda que brevemente em alguns casos, a todos esses temas. 1) A teofania: no Antigo Testamento temos diversas passagens que descrevem a aparição de Deus em meio a seu povo. Lembro algumas: os três homens que visitam Abraão, lhe prometem um filho e anunciam a destruição de Sodoma e Gomorra e a salvação de Ló (Gn 18); Deus se manifesta no monte Sinai com relâmpagos e trovões e entrega a Moisés as tábuas com os dez mandamentos (Êx 19 – 20); Elias encontra Deus na brisa leve, no monte Horebe, e não no vendaval, no terremoto e no fogo. Recebe a ordem de voltar e prosseguir em sua missão (1Rs 19). Em nenhuma das vezes a teofania é apenas algo espetaculoso. A ela sempre se segue um comissionamento: de Abraão, de Moisés, de Elias e, aqui, de Isaías. 2) O tema da purificação do pecador, que não subsiste diante da santidade de Deus, apresenta dois aspectos: a) O sagrado é perigoso para o ser humano imperfeito. Na verdade, não é o pecado que mata, mas a santidade. Ela é aniquiladora. b) A purificação se dá pelo fogo. Semelhante também é em Isaías 1.25: [...] purificar-te-ei como com potassa das tuas escórias e tirarei de ti todo o metal impuro. Ao tocar os lábios de Isaías com a brasa tirada do altar, o serafim o purifica. 3) A vocação de Isaías dá-se na resposta à pergunta de YHWH: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Sem saber a tarefa que o aguarda, Isaías prontamente responde: Eis-me aqui, envia-me a mim. Ele se prontifica. Nem sequer é chamado. Isso lembra a disponibilidade ingênua de candidatas e candidatos ao ministério na igreja, que apenas imaginam tarefas bonitas e agradáveis na sua futura missão. Porém, que fazer depois quando há situações conflitivas a enfrentar, quando palavras desagradáveis precisam ser anunciadas para pessoas ou instituições que cometem erros pesados? 4) Essa pode ser a dura missão do vocacionado. Escrevo em tempos de pandemia do coronavírus – queira Deus que, por ocasião da pregação sobre este texto, ela já tenha passado –, e me assusto com o descaso de nossas autoridades

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em relação às quase cem mil mortes já ocorridas em consequência da contaminação. Como levantar a voz nessa situação sem temer represálias da parte de defensores incondicionais das autoridades? 5) Essa dura missão, porém, levanta a esperança da eliminação das estruturas de poder injustas, para que a “semente santa” possa restar e respirar aliviada. A última questão que fica é identificar essa “semente santa”. Está na comunidade? Ou em parte dela? Está entre as pessoas pobres e deserdadas da sociedade? Está entre aquelas que sofrem as consequências de pandemias e desmandos? Na verdade, a “semente santa” está em muitos lugares. Importa identificá-la e ajudá-la a viver uma nova esperança, purificada com as brasas do altar. Identifiquei uma variedade de temas. De fato, é impossível querer abordá-los todos em uma única prédica. Há que fazer escolhas. Caberá a cada pregador e pregadora fazê-las. Talvez seja interessante trabalhar os temas restantes em reuniões de estudos bíblicos. Como não proponho um tema específico, mas escolhas, também não proponho subsídios litúrgicos, pois dependerão da opção tomada pela pregadora ou pelo pregador.

Bibliografia No início deste estudo mencionei vários auxílios homiléticos publicados em diversos volumes de Proclamar Libertação. Ative-me principalmente aos auxílios de Erni Drehmer, em PL 36, e de Milton Schwantes, em PL VI. Recomendo, porém, a leitura dos demais, especialmente o de Hans Trein, em PL 42.

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PRÉDICA: MARCOS 3.20-35 GÊNESIS 3.8-15 2 CORÍNTIOS 4.13 – 5.1

2º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

06 JUN 2021

Adélcio Kronbauer

Jesus: insano e amigo de Belzebu?

1 Introdução

Michel Clévenot escreve em Enfoques Materialistas da Bíblia: “Por que ler hoje em dia o evangelho? Por meu lado, eu diria: porque o texto produz em mim um certo efeito. Mais efeito, eu confesso, do que qualquer outro texto no mundo” (CLÉVENOT, 1979, p. 93). Que efeitos serão suscitados em quem deve produzir uma mensagem? Que efeitos surgirão na vida de quem estiver na condição de ouvinte? O evangelista “lança mão”, segundo o mesmo autor, de meios. Quais os meios que serão usados para causar efeitos na vida das pessoas? Causar efeitos é o trabalho da produção textual. Assim como o evangelista intencionalmente causa efeitos na vida das pessoas que leem o seu relato, também quem vai interpretá-lo para uma comunidade terá o trabalho de produzir efeitos em seus ouvintes. Quais e como são tarefas intencionais. O texto do Evangelho de Marcos é impressionante. É intenso. Possui todos os elementos de um bom roteiro, em especial, a tensão, o conflito. Não há uma linearidade temática entre as leituras sugeridas. Marcos e Gênesis abordam o juízo sobre determinado pecado. A Segunda Carta aos Coríntios enuncia a esperança última, a superação de todo o sofrimento. Neste caso, seria possível fazer uma ponte entre as leituras no sentido de traçar relações entre pecado e sofrimento e ainda como superá-los. Marcos sugere o perdão e a prática da vontade de Deus. O texto da carta anuncia um reino eterno como forma definitiva de superação, enquanto que no texto de Gênesis o castigo é preponderante.

2 Exegese Parto da tese de que o Evangelho de Marcos é um texto produzido no início da década de 70. Não é prudente negligenciar os acontecimentos catastróficos ocorridos nesse período histórico, sobretudo a guerra judaica (66-73), que culminou com a destruição do Estado judaico (para mais detalhes, cf. MONTEIRO, [s.d.], on-line). Clévenot descreve o autor do evangelho como segue: Em suma, tem-se um pouco a impressão, ao ler o texto grego de Marcos, que estamos ouvindo um judeu que tem dificuldades de falar grego e que tem que levar em consideração o fato de que seus leitores sejam romanos. É como se ouvíssemos

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hoje um resistente palestino falando francês com trabalhadores emigrados portugueses, senegaleses, turcos, explicando-lhes o significado das palavras, dando as coordenadas dos lugares, etc. (CLÉVENOT, 1979, p. 80).

Nesse tempo, o cristianismo sofre pesada repressão em Roma. As reuniões não contam com estrutura estabelecida, mas de acolhimento improvisado em casas ou em locais onde não poderiam facilmente ser localizados. A prática é clandestina aos olhos das autoridades do Império Romano. O cristianismo é considerado um crime. O historiador Tácito, que relata as torturas que eles sofriam, denomina o cristianismo de “detestável superstição”.1 Clévenot afirma que metade da população de Roma constituía-se de escravos e que o uso de sua mão de obra era a base da economia romana. Isso, segundo ele, prejudica avanços tecnológicos e arruína os pequenos produtores. Roma é uma cidade insalubre, acometida de vez em quando por incêndios de grandes proporções (12 em seis anos). A cidade é realmente o símbolo do Império: Palácio com um luxo inesquecível e bairros miseráveis, população cosmopolita vinda dos quatro cantos do mundo; ela é parasita chupando as riquezas do universo sem poder dar trabalho a seus filhos. Nela se concentram todas as contradições do imperialismo escravagista (CLÉVENOT, 1979, p. 74).

O autor ilustra essa frase citando Apocalipse 18, onde se anuncia a esperança de que um dia ocorrerá a ruína da grande cidade (nesse texto Roma é chamada de Babilônia). A comunidade cristã em Roma é formada por pessoas de diferentes origens étnicas. Os nomes citados em Romanos 16 e em outras cartas nos dão uma ideia dessa diversidade. Há entre elas gente de classes sociais distintas, porém a maioria era das classes mais pobres. Existe a história de que o neto do imperador Vespasiano, Flavio Clemente, e sua esposa Flavia Domitila tivessem sido cristãos. Flavio foi executado por Domiciano, e a mulher, exilada. Nesse tempo os cristãos em Roma já eram identificados como um grupo distinto do judaísmo, apesar de permanecer uma certa confusão a respeito. Na tradição católica, Flavia Domitila é considerada uma santa, uma mártir. O texto de Marcos inaugura uma nova forma literária no meio cristão: a narrativa. Não se trata de um discurso, mas de um relato. Relatos têm maior poder de atração do que ensinamentos por meio de discursos. O relato tem a capacidade de manter viva a memória de fatos já ocorridos, mas que imprimem uma determinada forma de entender o presente dentro do qual ocorre o relato ou a leitura do mesmo. O evangelho é uma forma literária, um relato, cuja intensão é elucidar quem é Jesus. O relato tem o poder de propagar, de se propagar.

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Sobre esse historiador e seus relatos, veja: <https://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert2003_ ANGELOZZI_Gilberto_Aparecido-S.pdf>.

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Os dois episódios incluídos na perícope estão bem alinhados ao objetivo geral do relato. Jesus é acusado pelos parentes de estar fora de si e pelos fariseus de expulsar demônios em nome de Belzebu. O conflito está bem estabelecido: eis o poder do relato de propagar-se. Relatos sem conflitos, sem problemática bem definidas perdem essa força. Um bom relato também aponta para soluções do conflito. O conflito estabelecido em um relato é o mecanismo de compreensão da realidade passada e presente e a possibilidade de apontar para soluções. No conflito com os parentes e com os fariseus, Jesus é revelado, a identidade de Jesus está sendo revelada. Mãe, irmãos e irmãs de Jesus são as pessoas que fazem a vontade de Deus. Jesus resgata as pessoas, cura e liberta em nome de Deus, não em nome de forças malignas, dúbias. Não crer nisso é um erro e um pecado fatal. Quando se fala em Jesus, a pessoa cristã se define em conhecê-lo como Filho de Deus. Três temas para pensar: fazer a vontade de Deus, pecar contra o Espírito Santo e expulsar demônios. Se a ideia for ressaltar a questão da expulsão de demônios, recomendo ler, de Paul Tillich, o artigo Curai Enfermos; Expulsai Demônios2 e o artigo de Uwe Wegner, Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos3.

3 Meditação Fazer a vontade de Deus. É uma utopia imaginar que a vontade de Deus seja realizada no mundo de forma plena. Transformações profundas deveriam ocorrer nas relações de produção, distribuição de bens necessários para a vida. Como nos relacionamos uns com os outros e com a criação, estamos mais próximos do maligno do que da vontade de Deus. A humanidade está impregnada com vontades e desejos de espíritos enganadores, que iludem e absorvem a pessoa, roubando-lhe a condição do ser, “coisificando-a”. A plenitude da vontade de Deus, a justiça de seu Reino pode ser realizada em parte e de forma precária no mundo. Mas não devemos perder a oportunidade de criar situações em meio aos conflitos da vida que se revertam em relatos de experiências que tenham o poder de propagar o fato de sermos “mães, irmãos e irmãs de Jesus”. Pecado sem perdão. Tentar confundir Jesus, atribuindo-lhe o título de aliado do mal é o pecado para o qual não está previsto o perdão, a restauração. Jesus é Deus, ele realiza a obra em nome do Espírito de Deus. Jesus quer curar o ser, tem o poder de curar, mas existe um conflito estabelecido no sentido de determinar onde está o mal. O evangelho é um relato que localiza o mal a ser curado. O evangelho originalmente foi escrito para que uma comunidade pudesse ver com clareza o mal, para identificar o mal. Ao lermos o evangelho hoje, vemos o mal

Disponível em: <http://www.koinonia.org.br/protestantes/uploads/novidades/Suplemento-CEI_05. pdf>, p. 23-27. 3 Disponível em: <http://www3.est.edu.br/publicacoes/estudos_teologicos/vol4302_2003/et20032uweg.pdf> . 2

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que nos afeta? A leitura do evangelho tem sido uma luz para dentro dos conflitos atuais no sentido de encaminhar cura e libertação? Tenho a impressão de que há forças trazendo distorções e, mesmo que sejam relatadas libertações e curas, cada vez mais vemos doenças e escravidão. Vejo muitas pessoas “fora de si”, com uma espiritualidade que apresenta traços patológicos. Urge fazermos relatos de curas e libertação que ocorrem em nossas vidas, a partir de uma postura de transparência e lealdade com a justiça do reino de Deus. Expulsar demônios. Há uma lacuna em relação a esse tema na maioria das comunidades evangélicas de confissão luterana. Praticamente não se fala a respeito. Existe um tabu sobre isso. Paul Tillich inicia seu artigo, antes citado, dizendo: A primeira dificuldade que experimentamos quando Jesus nos envia adiante dele e nos dá o poder de curar é que muitos vão dizer que não necessitam de cura. E se nos chegamos a eles com a pretensão de expulsar os demônios que lhes governam as vidas, riem-se de nós e logo dizem que nós é que temos demônios, tal qual disseram a Jesus (TILLICH, 1973, p. 23).

É necessário dizer que não se trata de questões mágicas: O ministro não possui poderes mágicos de curar. Nem mesmo a administração da liturgia e dos sacramentos lhe confere tal poder. Um poder assim está incluso na vocação da Igreja que possui o poder dado a ela, a Igreja, para libertar e expulsar demônios (TILLICH, 1973, p. 24).

E Tillich alerta: Abusa-se do nome de Cristo quando é empregado em fórmulas mágicas. No entanto, as palavras de nosso texto mantêm a sua validade. Pertencem à mensagem de Cristo e nos falam de algo que é de Cristo, o poder de vencer as forças demoníacas que controlam as nossas vidas, corpo e mente. E creio que, de todos os meios para comunicar o Evangelho, este é o mais adequado para os homens de nossa época. Compreende-se isto, porque, em todos os países do mundo, inclusive o nosso (EUA), há um conhecimento dos poderes do mal como jamais houve em séculos anteriores (TILLICH, 1973, p. 24).

Voltamos à questão já mencionada antes: O evangelho (relato) nos faz ver o mal da nossa época, os demônios do nosso tempo? Lutero usava com frequência o termo Diabo. Ele se sentia com frequência tentado. Já Bultmann realizou uma obra teológica no sentido de demitologização do Novo Testamento, que influenciou profundamente o pensamento teológico luterano, imprimindo um pensamento racional, construído sobre a corrente filosófica do idealismo. O pensamento de Bultmann inibiu a abordagem desse assunto. Precisamos recuperar a temática na igreja, pois faz parte de nossa missão: Tendo Jesus convocado os doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios, e para efetuarem curas (Lc 9.1). Evidentemente devemos estar baseados em conhecimen-

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tos mais profundos sobre o que são os demônios, Diabo, Satanás, Belzebu, besta, espíritos maus, como isso é apresentado nas Sagradas Escrituras e na história.

4 Imagens para a prédica Uma fábula de Esopo4 (“O gato, o Galo e o Ratinho”) permite perceber como um julgamento equivocado da realidade pode resultar em soluções catastróficas. O ratinho foi salvo pela visão apurada da mãe, porque ela o ajudou a perceber onde estava o verdadeiro perigo. Com a leitura bíblica pode acontecer algo semelhante. Em que sentido o conflito apresentado no texto sugerido nos ajuda a entender nossa realidade? O que o texto mostra sobre nossa realidade? Há algo a ser curado, sanado? A vontade de Deus é realizada? Como poderia ser realizada? Onde estão os verdadeiros perigos do nosso tempo que são trazidos à tona com o relato do evangelho? Esses caminhos levam a que situação? Qual o caminho a ser trilhado para a cura do ser, para que o ser seja libertado do mal que o aflige?

5 Subsídios litúrgicos Oração do dia Bondoso, misericordioso Deus, criador da vida! Capacita-nos com teu Santo Espírito para vivermos segundo a tua vontade, tornando-nos mãe, irmãos e irmãs de Jesus, assim como já tens feito muitas vezes no passado e no presente. Liberta-nos do mal, cura o nosso ser. Dá-nos olhos para ver as aflições que existem ao nosso redor e ouvidos para ouvir as lamentações, assim como tu o fazes. Concede-nos o dom de curar, pois cremos em ti. Amém.

Bibliografia CLÉVENOT, Michel. Enfoques Materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MONTEIRO, João Gouveia. Flávio Josefo e o cerco romano a Jotapata (67 d.C.). Disponível em: <https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/34759/1/ SaberesePoderesvol.II_artigo9.pdf>.

4

Disponível em: <https://metaforas.com.br/infantis/2004-08-31/o-gato-o-galo-e-o-ratinho.htm>.

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3º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

13 JUN 2021

PRÉDICA: MARCOS 4.26-34 EZEQUIEL 17.22-24 2 CORÍNTIOS 5.6-10

Marcia Blasi Marli Brun Juliana Hoelscher Silveira

O mistério do reino de Deus

1 Introdução Neste 3º Domingo após Pentecostes, 13 de junho, dia em que lembramos o casamento de Katharina von Bora e Martim Lutero, o texto da prédica nos leva a refletir sobre o reino de Deus no meio de nós. O mistério do reino de Deus é diverso, como é a vida em cada tempo, em cada lugar, em cada situação, em cada contexto e em cada coração. O texto de Ezequiel 17.22-24 faz referência ao período de dominação babilônica sobre o antigo Israel. O profeta Ezequiel anuncia a esperança ao dizer que Deus mesmo “vai tirar a ponta de um cedro alto e plantar o broto no monte mais elevado de Israel. O broto vai crescer e transformar-se em uma árvore grande, sob cuja sombra pássaros de todos os tipos acharão abrigo” (BRAKEMEIER, 2008, p. 239s). Em 2 Coríntios 5.6-10, Paulo ajuda a comunidade a compreender que a vida, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo não eliminarão o sofrimento, a tristeza e a dor com que nos defrontamos no dia a dia. Morrer com Cristo é ter Cristo presente em nossa vida, manter o ânimo e confiar que algum dia nós estaremos plenamente junto dele, em seu Reino. Para que não nos percamos, focando só no tempo presente ou só no futuro, confiando só na ação de Deus ou só na nossa ação, Jesus nos fala sobre o reino de Deus de diferentes formas. Numa época em que fariseus diziam que a chegada do reino de Deus estava associada ao cumprimento da lei, que zelotes afirmavam que seria pela revolução armada, que para essênios seria por meio do zelo pela pureza ritual, Jesus conta parábolas como as que encontramos em Marcos 4.26-34. Nelas, o mistério do Reino se revela nas pequenas coisas do cotidiano.

2 Exegese O Evangelho de Marcos foi o primeiro evangelho a ser escrito, no final da década de 60 ou logo após o ano 70. Provavelmente foi destinado à comunidade de Roma, mas outros locais foram propostos, como, por exemplo, Jerusalém e Alexandria (há uma tradição que diz que Marcos foi bispo de Alexandria). As pessoas destinatárias falavam grego e não conheciam o aramaico. Residiam num local onde o latim era usado e tinha influenciado o grego. Em termos teológicos,

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a comunidade enfatizava a iminência da volta de Jesus, talvez por causa de perseguição. Se Roma for o local, a perseguição pode ter sido a de Nero em 64-68. O texto pode ser dividido em três partes: V. 26-29 – Jesus compara o reino de Deus com o trabalho de quem semeia. A semente, após ser colocada na terra, cresce e se desenvolve, dá frutos sem que a pessoa que plantou compreenda completamente como isso acontece. A ação humana vai até certo ponto. Quem plantou não consegue acompanhar, pode até dormir ou fazer vigília (v. 27), mas isso não determina o crescimento. A parábola diz que a terra por si mesma frutifica: primeiro a erva, depois a espiga, por último o grão cheio na espiga. A ação humana entra novamente no momento da colheita (v. 28). “Deus faz com que os trigais cresçam como que por milagre, sem que as pessoas necessitem ou possam produzir esse crescimento [...] Nos versos que perfazem o núcleo do texto, é retratado, quase entoado, o milagre da criação” (SCHOTTROFF, 2017, p. 142). V. 30-32 – A segunda parábola compara o reino de Deus a um pequeno grão de mostarda. Uma pequena semente pode tornar-se uma grande hortaliça ou uma árvore com grandes ramos nos quais “as aves do céu podem aninhar-se debaixo da sua sombra” (Mc 4.32; ver também Ez 17.23). Como Joaquim Jeremias afirma: “Do grãozinho faz-se o fruto, do começo faz-se o fim. No mais minúsculo já está operando o maior. O evento já se faz presente agora, ainda que escondido”. Ele acrescenta: “Aqueles, aos quais foi dado entender o mistério do reino de Deus (Mc 4.11), já enxergam, nos inícios insignificantes e ocultos, o reino de Deus a vir” (JEREMIAS, 1983, p. 155). Schottroff afirma sobre essa parábola e a anterior: “As duas parábolas narram a respeito de experiências agrícolas com plantas que servem à alimentação humana: cereal e mostarda” (SCHOTTROFF, 2007, p. 141). Nessas parábolas acontece o processo natural de desenvolvimento da planta e, ao mesmo tempo, outras relações estão implicadas, entre elas, as relações sociais. Tudo isso e muito mais faz parte do mistério do reino de Deus. V. 33-34 – Estes versículos elucidam o propósito das parábolas: explicar para o povo como o reino de Deus cresce em seu meio. As parábolas utilizavam linguagem do cotidiano das pessoas para que ele pudesse entender a mensagem (v. 33). Segundo Schottroff, “[...] mulheres e homens da Bíblia caminham por um campo cultivado e veem o agir criador de Deus nas plantas e nos frutos dos quais eles vivem, um milagre de Deus após outro. As plantas tornam transparentes para eles o maior dos milagres de Deus: o início do reino de Deus no momento mesmo que estão vivendo” (2007, p. 144). Discípulas e discípulos recebiam explicações no diálogo com o Mestre. As parábolas do Reino revelam a relação intrínseca entre a ação de Deus e a ação humana no contexto de vida. Não é à toa que Jesus curou, ensinou a multiplicar os pães, denunciou as ações erradas que estavam acontecendo no templo, jejuou, orou. Em todas as ações, Jesus está conectado a Deus.

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3 Meditação As parábolas previstas para a pregação são bastante conhecidas. As crianças as experimentam quando plantam feijão no copinho com algodão. As pessoas adultas as entendem. As pessoas idosas lembram com saudade e, muitas, procuram testemunhar, deixando seus ensinamentos na memória histórico-afetiva da família. Por isso mesmo essas parábolas continuam nos fazendo esperançar. Nos tempos em que estamos vivendo (este auxílio foi escrito em meio à pandemia da Covid-19), é preciso afirmar com confiança: o reino de Deus está presente entre nós como uma pequena semente colocada na terra – uma semente que cresce sem que tenhamos compreendido todo o milagre do seu desenvolvimento. Jesus falava do reino de Deus por meio de parábolas para que as pessoas pudessem entender e compreender que a vida como um todo faz parte do anúncio do reino: ovelha reintegrada no grupo, fermento que faz crescer o pão, moeda encontrada, o filho que volta para casa, sementes jogadas na terra. O anúncio da proximidade do Reino significa concretização da esperança, dos sonhos, a materialização das necessidades, a vida plena e abundante (Jo 10.10). Vida aqui e na eternidade. O mistério do Reino não é compreendido por nós completamente. Para que pudéssemos ter uma dimensão maior do mistério que o envolve, Jesus contou parábolas e explicou mais detidamente aos seus discípulos e discípulas. Nas parábolas, Jesus aponta para um equilíbrio entre a ação humana e o processo natural de desenvolvimento de uma planta. Há um momento de plantio, de desenvolvimento da planta e seus frutos e um momento de colheita. No ambiente urbano em que muitas pessoas vivem, praticamente não mais acompanham o desenvolvimento das plantas e muito menos conhecem tamanhos de sementes. Mesmo assim, todas as pessoas dependem de sementes plantadas no solo para sua alimentação. Passados dois mil anos do tempo de Jesus, o mundo passou por muitas transformações, sendo uma delas a privatização das sementes por grandes companhias. O ser humano que cultiva a terra já não guarda sementes, mas as compra. Não paga apenas as sementes, mas também sua fórmula, geneticamente modificada. A quem essas empresas deveriam pagar pelo uso da patente original? Preservar a biodiversidade é preservar a vida. Jesus, de diferentes modos, ajudou a preservar a vida. As parábolas indicam que devemos continuar espalhando sementes na terra. Com elas continuamos aprendendo a reconhecer sinais do reino de Deus. Deus, em sua graça, fará as sementes crescerem no tempo certo. O calendário litúrgico da igreja nos ajuda a pensar que o tempo é cíclico, e não linear, e que, em todos os momentos e em qualquer lugar, estamos nas mãos de Deus. Em tempos de polarizações e ódio, o povo de Deus, e cada pessoa individualmente, recebe um chamado para espalhar sementes de amor, respeito, confiança, cuidado. É preciso prestar muita atenção nas vozes que buscam confundir e dominar, naquelas que prometem ter as informações privilegiadas de como e quando o reino de Deus irá chegar. Essa informação não nos pertence. A nós cabe a tarefa de continuar jogando boas sementes. Segundo Schottroff, “Deve ser dito claramente que, nesta passagem, não se fala de uma futura igreja, mas tão somente de Deus

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e do futuro de Deus. Esse futuro constitui a força da esperança para aquelas pessoas que aprendem a olhar a criação com um olhar renovado” (2007, p. 149). Em nosso tempo, o reino de Deus pode ser comparado a um banco de sementes em que todas as espécies são preservadas com integridade, disponibilizadas comunitariamente, assegurando a continuidade da vida no universo.

4 Imagens para a prédica

O mistério do reino de Deus nos compromete a olhar ao nosso redor e perceber os sinais do Reino que cresce. Ao olhar os sinais, não vemos apenas os sinais, mas também sentimos a presença graciosa e amorosa de Deus. Sugerimos que a pessoa pregadora enfatize a responsabilidade humana de semear boas sementes. Como filhas e filhos de Deus, salvas pela sua graça, somos pessoas chamadas a semear sementes de amor, cuidado, inclusão, justiça. Da mesma forma, somos chamadas a cuidar das sementes que produzem os alimentos para os seres humanos e os animais no planeta. Para preservar a vida é necessário preservar a biodiversidade. O maior e mais completo banco de sementes do mundo está localizado na Noruega. Sua missão é conservar sementes de cada espécie vegetal do planeta. Iniciativas de educação e preservação ambiental fazem parte da história de comunidades, instituições diaconais e educacionais na IECLB. Verifique, na sua região, quais as iniciativas para a preservação de sementes que existem. Segue, abaixo, o depoimento da professora Sueli Presser, coordenadora do Programa Herbário Vivo do Instituto Ivoti. O Programa Herbário Vivo faz parte do processo de formação curricular no Instituto Ivoti, abrangendo a educação infantil até o 5º ano do ensino fundamental. Este programa compõe-se de 14 projetos, entre eles, o Banco de Sementes, cuja criação ocorreu devido a uma geada que matou várias de nossas plantas e ficamos sem sementes. Neste contexto, as crianças disseram: O que vamos fazer sem as sementes? Devido a essa situação, construímos o Banco de Sementes, que é, na verdade, uma proposta milenar de conservação das sementes crioulas. Com a revolução verde, com ênfase na monocultura, as famílias agricultoras foram perdendo suas sementes e dependendo, sempre mais, das sementes híbridas e transgênicas, monopolizadas por grandes empresas. A preservação das sementes crioulas paz parte de uma campanha mundial de soberania dos povos e é uma estratégia de segurança alimentar e de segurança nacional da preservação da biodiversidade. Na escola, as crianças cultivam as plantas, fazem a colheita, identificam as sementes, registram a origem da semente no processo troca-troca, observam a forma como elas germinam, tempo que leva para a produção. No sistema “troca-troca”, que realizamos com as famílias e instituições parceiras, procuramos nos assegurar de que as sementes recebidas tenham sido produzidas de forma orgânica. Nós não temos somente sementes de milho, feijão, hortaliças. Nós também preservamos muitas sementes que são da Mata Atlântida, entre elas, as plantas silvestres comestíveis, cujo pomar está em fase de implementação. O espaço Herbário Vivo pode ser visitado por pessoas que trabalham na agricultura, por escolas, grupos comunitários, universidades. Nós distribuímos milhares de sementes e nosso espaço no Herbário

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não é grande. Mas se a gente planta de tudo um pouquinho, nós vamos ter sempre o nosso banco de sementes. Cada ano uma turma é guardiã das sementes, mas todas as turmas estudam e contribuem na manutenção do Banco de Sementes. Informações: contato@institutoivoti.com.br

Bibliografia BRAKEMEIER, Gottfried. 2º Domingo após Pentecostes. Prédica: Ezequiel 17.22-24. In: HOEFELMAN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação 33. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008. JEREMIAS, Joachim. As parábolas de Jesus. 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1983. SCHOTTROFF, Luise. As Parábolas de Jesus: uma nova hermenêutica. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

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PRÉDICA: 2 CORÍNTIOS 6.1-13 JÓ 38.1-11 MARCOS 4.35-41

4º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

20 JUN 2021

Erní Walter Seibert

A graça de Deus e o ministério da reconciliação

1 Introdução Este período do Ano Eclesiástico é dedicado ao ensino das verdades bíblicas não ligadas de forma particular a nenhum dos acontecimentos da história da salvação. É o longo período do ano comum, o qual é apenas interrompido por algumas festividades, como dias dedicados a personagens importantes (santos) e festas particulares do ano civil ou eclesiástico. A leitura da epístola, nesta parte do Ano Eclesiástico, nem sempre está colocada para fazer harmonia com as leituras do evangelho e do Antigo Testamento. Esse é o caso do 4º Domingo após Pentecostes. A leitura é da Segunda Carta de Paulo aos Coríntios e ela faz parte de uma sequência de seis leituras, desde o começo até o final da carta. Quando uma sequência de leituras de uma epístola é colocada entre as perícopes, visa-se dar ao ouvinte uma visão panorâmica daquele livro bíblico. A ideia de ver a conexão entre os textos para extrair uma mensagem unificada fica em segundo plano. Isso não significa que não possa haver ligações entre as leituras. Se não foi feita uma exposição do pano de fundo dessa carta quando começaram as pregações sobre 2 Coríntios, é bom fazer uma breve exposição no começo da prédica. Isso ajudará o ouvinte a contextualizar o texto da pregação.

2 Exegese A Segunda Carta aos Coríntios é uma carta escrita em estilo bem pessoal. Na igreja de Corinto tinha surgido forte oposição ao ministério do apóstolo Paulo. A atuação dos judaizantes causou conflito e divisão na igreja. Os judaizantes queriam que os convertidos à fé cristã se submetessem a todas as leis cerimoniais judaicas. Atacavam o ministério de Paulo, dizendo que ele fazia muitas concessões aos convertidos, de forma a descaracterizar a verdadeira fé. Essa controvérsia, que foi muito grande na igreja primitiva, está como pano de fundo dessa carta. O período mais duro dessa crise, aparentemente, já tinha sido superado, mas ainda havia muita coisa para ser esclarecida. Paulo escreve como um pai, pedindo que todos voltem ao entendimento comum da fé. O ministério da reconciliação é o assunto que Paulo está tratando no final do capítulo 5 (v. 18-21). Os primeiros dois versículos do capítulo 6 estão em conexão com o que vinha sendo dito. Deus nos reconciliou consigo em Cristo.

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Ele nos deu o ministério da reconciliação. Quando os embaixadores de Deus falam em seu nome é como se Deus falasse por intermédio deles. O ponto-chave da argumentação é que a reconciliação se dá completamente em Cristo. Não há necessidade de fazer nada ou de completar alguma coisa. Se alguém introduz alguma obra humana no ministério da reconciliação, ele faz com que as pessoas recebam a graça de Deus em vão. Esse ministério da reconciliação Paulo exerceu junto aos coríntios. Ele anunciou a salvação conquistada por Jesus Cristo. E essa salvação é por graça. O apóstolo Paulo fez isso com toda a dedicação. Ele não poupou esforços para que esse anúncio fosse feito. Ele não poderia ser acusado de adulterar ou baratear a graça de Deus. Os versículos 3 a 10 do capítulo 6 mostram como o apóstolo Paulo exerceu o ministério da reconciliação de forma dedicada. Cada item mencionado pelo apóstolo se refere a uma passagem de seu ministério. Podemos conferir: • Nos recomendamos a nós mesmos como ministros de Cristo – 1Co 3.5; 2Co 11.23. • [...] na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões – Rm 12.9; Gl 5.22. • [...] nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns – 2Co 11.27. • [...] na pureza, no saber, na paciência, na bondade, no Espírito Santo, no amor não fingido – Rm 12.9; Gl 5.22. • [...] na palavra da verdade, no poder de Deus; pelas armas da justiça – Rm 13.12; 2Co 10.4. • [...] tanto para atacar como para defender; por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama; como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos e sendo bem-conhecidos; como se estivéssemos morrendo, mas eis que vivemos – 2Co 4.10. • [...] como castigados, porém não mortos; como entristecidos, porém sempre alegres; como pobres, mas enriquecendo a muitos; como nada tendo, mas possuindo tudo – 1Co 4.11-13. O apóstolo Paulo, como podemos ver, utiliza uma linguagem poética de contrastes. Não havia nenhum mérito no que fazia, mesmo quando estava sob o mais cruel sofrimento. Tudo era devido à graça de Deus. E se ele tinha a graça de Deus, ele tinha tudo. Em várias passagens de suas epístolas, o apóstolo se vale de recurso semelhante. A intenção era deixar claro que em seu ministério a ênfase estava na graça de Deus e não nas suas obras ou na sua pessoa. É nesse ponto que podemos fazer uma conexão com as leituras do dia. A leitura do Antigo Testamento, de Jó, está no final do livro. Os amigos de Jó, inútil e insensatamente, tentaram convencê-lo de que as dificuldades da vida que ele estava enfrentando eram castigo de Deus. Jó deveria reconhecer que havia feito algo contra Deus. Ele não havia vivido a vida de forma tão consagrada a de modo a merecer a graça de Deus. Depois de toda essa argumentação anterior, entra o texto de Jó 38. Deus fala a Jó de sua soberania e do seu poder. A graça de Deus também faz parte da soberania e do poder de Deus. Não entendemos a graça.

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Ela nos é dada por Deus na sabedoria dele. Não podemos acrescentar nada. Não podemos ter outra atitude diante de Deus que crer nele, confiar nele, saber que ele é Deus. Essa lição também vem do evangelho, que conta como Jesus acalmou a tempestade. Os discípulos sentiram-se impotentes diante do fenômeno da natureza. Mas Jesus podia ajudá-los e ajudou. Assim também o apóstolo Paulo. Ele esteve em muitas dificuldades e nem por isso achou que tinha méritos. A graça de Deus bastava. Essa é a beleza do ministério da reconciliação. O apelo final do texto da perícope, os versículos 11 a 13, tem um tom bem pessoal. Paulo abre seu coração. A situação naquela igreja já estava mais tranquila, porém ainda havia os que contestavam o ministério do apóstolo. Ele, com benevolência, chama a todos de filhos e apela para um gesto de boa vontade dos que estão em oposição a ele.

3 Meditação O texto da epístola tem uma palavra muito útil para igrejas que têm problemas de divisões e grupos. Essa é uma característica humana verificada não apenas dentro da igreja, mas em toda a sociedade. No Brasil, nos últimos anos, vive-se uma radicalização política. Quem é de um lado tem dificuldades de reconhecer alguma virtude do lado oposto, seja qual for o lado oposto. As conversas para encontrar convergência, em muitos casos, levam a uma radicalização ainda maior. Em muitas famílias, o debate de problemas sociais foi eliminado para que não se crie uma situação de divisão familiar. O mesmo acontece também nas igrejas. Se isso é um problema na igreja em que vamos pregar, o que o texto pode nos ensinar com a ênfase no ministério da reconciliação? Deus reconciliou o mundo consigo mesmo. Deus foi amoroso. Ele entregou até seu filho à morte. Ele quer seus filhos de volta, unidos. Se Deus estende o ministério da reconciliação, não deveríamos nós também praticar isso no nosso dia a dia entre os irmãos e as irmãs? As convicções políticas não são verdades eternas. São importantes, mas elas não substituem nem acrescentam nada ao amor de Deus em Cristo Jesus. Por outro lado, o texto também nos ensina a ser humildes. O apóstolo Paulo, com toda a sua biografia, não achava que tinha algum mérito especial para receber a graça de Deus. Sempre que pensamos que Deus é gracioso conosco por algum mérito nosso, desmerecemos sua graça. Por outro lado, com a biografia do apóstolo Paulo, podemos ver o que a graça faz quando muda uma pessoa. Ela se dedica integralmente ao serviço daquele que lhe estende o manto da sua graça, a saber, Deus, nosso Pai celestial. O texto da epístola também oferece oportunidade para a igreja examinar seu trabalho. A atividade desenvolvida pela igreja é uma atividade de cooperadores de Deus. Servimos a Deus. Não servimos a nós mesmos. Assim como Deus foi gracioso para conosco, transmitimos a graça para o nosso semelhante. O apóstolo sofreu na pele uma cobrança injusta dos membros da igreja para com o seu ministério. Eles queriam que Paulo, em sua pregação, não salientasse apenas a graça de

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Deus. Eles queriam que Paulo salientasse que os membros tinham algo a fazer para alcançar a graça de Deus. Sempre que as pessoas confiam em suas obras, ou elas desenvolvem uma falsa segurança ou hipocrisia. E é muito fácil cair nisso. Uma tentação muito comum é criar pequenos rituais e acreditar que, se os cumprimos, Deus é gracioso conosco. Ajoelhar para orar é algo muito bonito. É uma atitude de humildade e submissão a Deus. Mas, se pensamos que por nos ajoelharmos vamos ser atendidos, estamos enganados. Desmerecemos a graça de Deus. Deus não é gracioso para conosco nem porque ajoelhamos, nem porque não ajoelhamos. Deus é gracioso para conosco porque ele é bom. Ele mostrou sua graça dando seu Filho Jesus para nos salvar. Outros podem acreditar que Deus será gracioso para com as pessoas se elas fizerem uma grande oferta para a igreja. Fazer ofertas para a igreja é importante e necessário para o bom andamento do trabalho da igreja. Mas se pensamos que por causa das nossas ofertas Deus será gracioso conosco, desonramos o que Cristo fez na cruz. É na prática que começamos a entender o que Paulo queria dizer com expressões como “nada tendo” mas “possuindo tudo”, “pobres” e “enriquecendo a muitos”. Se olhamos para nós, não temos nada. Mas se olhamos para o que a graça de Deus faz por nós, nada nos falta. O foco está na graça de Deus. Se temos isso, temos tudo. Uma outra palavra importante a salientar é a palavra “ministério”. No grego, essa palavra transliterada é diaconia. Diaconia é serviço. O que fazemos é serviço aos outros, não para nossa honra e glória. Não nos servimos, mas servimos a Deus e ao próximo. Quando a igreja vive a diaconia, o serviço, forma-se um novo ambiente, livre das divisões e disputas.

4 Imagens para a prédica Dietrich Bonhoeffer, em seu livro “Discipulado”, usa a expressão graça barata em contraste ao que chama de graça preciosa. A graça de Deus manifesta em Cristo Jesus é uma graça preciosa. Podemos torná-la graça barata quando ela serve para que nós vivamos uma vida cristã relaxada, indiferente à vontade de Deus. Talvez esse problema que Bonhoeffer apontou na primeira metade do século passado continua existindo na igreja. Bonhoeffer, ao escrever o livro, tinha uma preocupação pastoral. Ele pensava nas pessoas que não vinham aos cultos, não participavam da ceia, viviam sua vida sem nenhuma preocupação aparente com a fé, e se justificavam dizendo que a salvação era por graça e que elas criam nisso. A salvação não era por obras. Será que esse problema continua existindo em nossos dias? Como o ministério da reconciliação, a partir do nosso texto, pode tratar disso. Por outro lado, temos na igreja de nossos dias uma ênfase muito grande em obras que dizem movimentar a graça de Deus. Orações, ofertas, procissões e muitas outras atividades são apontadas como importantes para que Deus seja gracioso conosco. O que o ministério da reconciliação tem a ensinar para a igreja, para que ela aprenda a não receber em vão a graça de Deus? Finalmente temos o problema das divisões e partidarismos dentro da igreja. As divisões se manifestam de muitas maneiras e por muitos motivos. Igrejas

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se dividem, líderes da igreja se acusam mutuamente, tudo isso, muitas vezes, deslustrando o ministério da reconciliação. O que esse ensino da perícope pode ajudar nessas situações?

5 Subsídios litúrgicos Nas atividades de culto de nossas igrejas, sempre há um momento de confissão e absolvição. Na confissão, as pessoas e a igreja reconhecem o que fizeram contrário à santa vontade de Deus. O remédio para o pecado foi dado por Jesus Cristo com sua morte na cruz. A vitória sobre o pecado ficou evidente com a ressurreição. Não precisamos nem conseguimos pagar pelas nossas culpas. A graça de Deus em Cristo cobre multidão de pecados. Esse momento da liturgia resume de forma bem expressiva o ministério da reconciliação. Não há pena a ser paga por nós. Deus nos salva em Cristo. E essa graça impulsiona para uma nova vida de consagração. Pessoas que experimentaram essa graça em sua vida passaram a servir ao Senhor. O próprio apóstolo Paulo é um exemplo disso. Ele confiava nas obras da lei até ter o encontro com Cristo, que modificou sua vida. Ao descobrir a maravilhosa graça de Deus, dedicou com ainda maior intensidade sua vida a serviço do Senhor. Não temeu dificuldades, fez tudo o que pode para divulgar a boa notícia da reconciliação. Jó é outro exemplo clássico do que a graça de Deus faz na vida de uma pessoa. Ele não entendeu seu sofrimento. Mas ele continuou com Deus. E Deus o fez compreender que, mesmo perdendo tudo o que é material, não significa que perdemos a graça de Deus. Existem em nossos hinários e livros de louvor muitos hinos sobre o tema da graça de Deus que podem ser explorados na liturgia do dia. As ofertas que são recolhidas no culto passam a ter um novo sentido a partir do entendimento do ministério da reconciliação. Como a graça de Deus se revela no ministério da reconciliação? 1. Enfatizando a obra salvadora de Cristo 2. Dando novo sentido ao nosso viver consagrado 3. Ajudando-nos a viver unidos

Bibliografia BÍBLIA DE ESTUDO NAA – Nova Almeida Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018. BONHOFFER, Dietrich. Discipulado. 13. ed. São Leopoldo: Sinodal; EST. HAUBECK, Wilfrid; SIEBENTHAL, Heinrich von. Nova Chave Linguística do Novo Testamento. São Paulo: Traguimim; Hagnos, 2009.

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5º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

27 JUN 2021

PRÉDICA: MARCOS 5.21-43 LAMENTAÇÕES 3.22-33 2 CORÍNTIOS 8.7-15

Carolina Bezerra de Souza Eriksson Mateus Tomaselli

A vida restituída

1 Introdução Nos textos designados para este domingo há uma preocupação comum: a vida. Ao lado da vida está a morte, a proximidade da morte como povo ou como pessoa doente ou faminta, e a ação humana e de Deus em favor da continuidade da vida. O texto de Lamentações trata da confissão de culpa e da esperança no cuidado do Senhor para com os seus, fala do clamor do povo ao Deus diante do domínio estrangeiro sobre a terra deles, da destruição de seu centro cultual e da deportação das lideranças para o exílio. O povo busca em Deus a força para seguir a vida. Já o texto de 2 Coríntios fala da graça superabundante de Deus, que se realiza por meio das ofertas que foram recolhidas por essa comunidade para os cristãos de Jerusalém. Paulo chama a comunidade a se espelhar em Cristo para que deseje dividir o que sobra. As ofertas deram vida à fé de quem recolheu e que levaram também vida a quem as recebeu. O texto do Evangelho de Marcos fala da fé que restaura a vida de mulheres por meio de Jesus e fala também da vida religiosa e social de Israel restaurada.

2 Exegese O texto utiliza um arranjo estrutural em que uma sequência narrativa é interrompida por outra e depois retomada, trazendo interdependência a elas. Como outras edições de Proclamar Libertação já analisaram o texto, focaremos em semelhanças ou oposições que colaborem na compreensão do conjunto. Este trecho está numa seção do evangelho cujo tema é a aceitação ou não de Jesus e a expansão do reino de Deus. A passagem anterior deu-se em território gentio. Tratou da não aceitação de Jesus, mesmo com o exorcismo da legião, e terminou com as pessoas impressionadas pelo testemunho do homem curado. Agora, o cenário é novamente o território judeu e a temática se mostra no motivo da fé, comum às duas histórias e referida como motivadora da salvação. A fé aparece com personagens que creem (a multidão, Jairo e a mulher com hemorragia) ou não (discípulos e as pessoas na casa de Jairo), e nas palavras de Jesus com a exortação a Jairo e a acolhida da mulher curada da hemorragia. O primeiro personagem mostrado é Jairo, chefe da sinagoga, uma liderança comunitária leiga relacionada à instituição religiosa oficial, um pai deses-

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perado que abandonou a religião institucional para pedir que Jesus salvasse sua filha. Porém a narrativa trata de milagres sobre as vidas de duas mulheres e suas capacidades de ação. Elas são anônimas, estão em grande sofrimento, e tiveram suas vidas restauradas pela fé em Jesus. Apesar do que as une, elas são opostos arquetípicos: uma estava em ambiente privado, tinha família e casa, a outra estava em ambiente público, veio só da multidão e era empobrecida; uma estava inserida na dinâmica sociorreligiosa, a outra não podia pelo sangramento; uma era jovem e a outra sofria há anos; uma estava passiva, a outra resistentemente ativa. A impureza ritual que o toque em ambas as mulheres poderia trazer é um tema que muitos comentaristas tratam quando abordam essa passagem, mas não é diretamente citado no texto, é oriundo da interpretação. A apresentação da mulher com hemorragia discorre sobre seu sofrimento e empobrecimento, mas não especifica a exclusão social ou religiosa, ao contrário da descrição do endemoninhado gadareno na passagem anterior. Jairo também não apresenta constrangimento com a possibilidade de Jesus tocar sua filha morta. Muitas coisas corriqueiras causavam impureza ritual, ou seja, não era incomum ficar impuro, e, especialmente na área rural, não havia uma rigidez tão grande com esse tema como nas proximidades de Jerusalém. Porém não há como negar que o tema é facilmente lembrado pela conjunção hemorragia, morte e território de Israel. Assim a passagem seria uma crítica direta ao sistema ritual excludente do judaísmo, pois era normal se entender que a mulher era socialmente marginalizada pela condição de constante impureza, que a incapacitava para o exercício da sua fé. Um tema interpretativo importante para as mulheres é a (in)capacidade das personagens de gerar descendência. A narrativa conta que uma tinha um sangramento há 12 anos, o que certamente a impedia de ter filhos, e a outra estava morta com 12 anos, no início da vida fértil. A não geração de vida era um estigma difícil de carregar para as mulheres, eram como se lhes faltasse a própria vida. Há muitos aspectos comuns às histórias: duas mulheres, a fé, a cura, a salvação, a corporeidade dos toques em (e de) Jesus, a multidão, 12 anos. A multidão que atrapalha o caminho para a casa de Jairo é ambiente para a cura da mulher, que retarda a ação, aumentando a tensão da cena com a morte da menina, dando espaço para elogio e exortação de fé. A oposição também marca as histórias. A narrativa da filha de Jairo é direta, usa frases curtas; a da mulher doente usa frases longas e elaboradas e retorna no tempo para apresentação da personagem. A cura da filha de Jairo inicia pública e termina privada; a da mulher começa privada e termina pública. A publicidade da confissão da mulher em meio à multidão contrasta com o silêncio pedido por Jesus sobre a vida restaurada para a moça. O papel de Jesus também é contrastante. A filha de Jairo é ressuscitada por Jesus por meio do toque proposital. Jesus vence o maior desafio, a morte, antecipando sua própria ressurreição, onde o texto faz uso da mesma terminologia. A passagem está conectada com o messianismo de Jesus, narrativamente reforçado pela seleção dos três discípulos que estavam com ele na transfiguração e no jardim do Getsêmani.

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Já a mulher é curada por seus próprios atos: um toque, planejado e executado às escondidas, nas bordas das roupas de Jesus. A cura se dá sem a anuência de Jesus, que não sabe o que houve e procura a responsável pelo fluxo de poder que sentira. Jesus torna-se um veículo para a salvação da mulher pela própria fé. Ele a acolhe, e não a repreende pela atitude inusitada, com um elogio e desejo de vida plena restaurada. A repetição do número 12 não é coincidência. Ele informa que a filha de Jairo era uma moça e não uma criança e que a mulher sofrera longamente. Trata-se ainda de uma representação das 12 tribos, pois traz à memória a esperança escatológica de restauração de Israel. As duas mulheres representam Israel (incapaz de gerar descendência): por um lado, conectado à religião oficial, sem ação e infantilizado (o pai chama a jovem de filhinha, dando a impressão que é uma criança pequena) e à beira da morte, por outro lado, um povo resiliente, mas adoecido, empobrecido e vivendo em marginalidade. Nessa simbologia, a lição é que o judaísmo precisa abraçar a fé do reino de Deus com uma nova ordem social igualitária, para ser salvo e ter a vida restituída.

3 Meditação Esses textos bíblicos são riquíssimos de lições e atingem vários aspectos cotidianos. É o desejo pela vida na situação extrema e a fé que movem dois personagens dessa passagem. Ambos tinham fé que Jesus era a fonte da vida plena que desejavam. Jairo é movido pelo amor por sua filha, e deseja que seja salva e viva. A mulher doente há 12 anos deseja ter sua vida restaurada, ela já perdera tudo que tinha nessa busca e não queria seguir naquele tormento. Importa pensar um pouco sobre como se dá essa restituição das vidas. Por causa da sua fé, na busca desesperada pela vida de quem amava, Jairo teve a coragem de deixar o que lhe dava amparo social e religioso, o ambiente da sinagoga, lugar da religião oficial, e apelar para Jesus, que enfrentava a estrutura religiosa e social. Jairo queria levar à sua casa esse curador popular que falava do reino de Deus. Apesar dessa grande demonstração de fé diante da morte, Jairo ainda é exortado à fé por Jesus, pois a morte não era impedimento, como parecia. No momento da cura, Jesus entende que a família completa é o quadro que importa, não é aquela aglomeração que lamenta a menina, mas não crê nele. Ele leva consigo seu grupo seleto, o pai e a mãe da criança. A vida é para todas as pessoas da casa, envolve a família, em que nenhuma pessoa é menos importante, ou seja, as mulheres e homens importam igualmente. Jairo entendia sua filha ainda como uma criança, mas ela era uma jovem começando a independência. Jesus deixa essa condição bem clara quando a chama de moça (algumas traduções usam virgem, outras utilizam menina, o que dá uma ideia equivocada da condição dela). Ele fala dessa forma como parte do restaurar a vida, pois infantilizar a jovem também é lhe tirar parte da existência. As palavras de Jesus completam a restauração da vida ao corpo, infundindo possibilidades de atuação e escolhas.

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A mulher buscara incessantemente por sua cura durante 12 anos e terminara pior e empobrecida, mas não desistia. Porém, parece que depois de tamanho sofrimento e degradação, não tem forças para pedir; ela tenta ficar curada sem que Jesus perceba, ela não consegue mais se expor. A dor e a humilhação desumanizam, fazem com que as pessoas se sintam inferiores, queiram se esconder, sejam furtivas. É uma humanidade que demora a se recuperar, por melhor que sejam as oportunidades que possamos entregar a essas pessoas, quando decidimos ajudar. Ela consegue a cura sem que Jesus conceda, mas não consegue passar despercebida. Em momento algum ela é repreendida, mas é acolhida por Jesus, elogiada e enviada à sua vida cheia de paz e liberta do que a atormentava. Esse acolhimento faz parte do processo integral de cura, pois aprova o comportamento ao reconhecer a gravidade da situação anterior e a luta para revertê-la. Algumas perguntas nos cabem: estamos prontos a abandonar aquilo que parece seguro e que sustenta nosso edifício social e religioso quando se percebe que a solução, o bem, a fonte da vida não estão ali? Estamos dispostos a acolher a fé que age diferente do que se espera? Estamos dispostos a fazer como Jesus, que acolhe sem acusar, que ouve e entende ao invés de julgar? Ser como Jesus, que exorta a fé sem deixar de agir, que confronta a falta de fé, que ajunta todos da família em igual importância, que entende os problemas dos jovens e fala em favor de resolvê-los?

4 Imagens para a prédica Penso que se pode usar imagens de ipês e cactos como representativos dessa resistência da vida. O ipê parece seco e morto e no tempo certo explode em flores e cor. Cacto permanece vivo resistindo no ambiente inóspito e na falta do elemento básico da vida que é a água. Também a Rosa de Jericó, conhecida como Flor da Ressurreição, é uma imagem interessante. Quando seca, em contato com a água volta a “viver”. Pode ser uma imagem para a fé em Cristo, que dá (nova) vida.

5 Subsídios litúrgicos Hinos

LCI 175: Salvação

Saudação Igreja de Jesus aqui reunida, celebramos este culto em nome de Deus Pai e Mãe, que nos criou e deseja que ouçamos a sua Palavra; em nome do Filho Jesus, que andou entre nós e tocou várias pessoas; e em nome do Espírito Santo, que nos dá entendimento da palavra de Deus e nos ensina a crer nela e em seu Filho Jesus. Assim nos reunimos em nome do Trino Deus, (+) Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.

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Kyrie

Mateus 25.31-46 (RedCrearte) Erli Mansk e Júlio Cézar Adam Até que venha o teu reino, o vazio da noite nos invade com o medo. Até que venha o teu reino, a secura das fontes murcha a esperança. Até que venha o teu reino, cercas e fronteiras impedem relações. Até que venha o teu reino, nudez e descaso mancham a dignidade. Até que venha o teu reino, ódio e agressão ferem a dignidade. Até que venha o teu reino, solidão e doença deixam a vida escassa. Até que venha o teu reino, compadece-te de nós e em ti seremos povo bendito. Kyrie Eleison! Amém.

Bibliografia MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992. OBERMAN, Gerardo; RAMOS, Luiz Carlos (Orgs.). Sólo por tu gracia: recursos celebrativos para acompañar la conmemoración de los 500 años de la Reforma. (RedCrearte) Campinas: Texto & Textura, 2016. RICHTER REIMER, Ivoni. Compaixão, cruz e esperança: teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 2012.

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PRÉDICA: EZEQUIEL 2.1-5 [6-7]1 MARCOS 6.1-13 2 CORÍNTIOS 12.2-10

6º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

04 JUL 2021

Nelson Kilpp

O testemunho autêntico não vive de aplausos

1 O contexto litúrgico O tema do domingo é dado pelo evangelho, Marcos 6.1-13: Jesus é rejeitado em sua própria terra, onde vive sua família e onde é conhecido desde pequeno. Em Nazaré não consegue realizar nenhum milagre senão algumas curas (v. 5). O texto do Antigo Testamento (Ez 2.1-5[7]) foi escolhido para corroborar o tema do insucesso do mensageiro de Deus: Ezequiel é enviado a um povo de “duro semblante e obstinado de coração” (v. 4), que dificilmente dará ouvidos à mensagem do profeta. A epístola (2Co 12.2-10) se insere no tema na medida em que Paulo precisa defender seu apostolado diante daquelas pessoas que, em Corinto, apreciam revelações fantásticas. Mas é na fraqueza do mensageiro – exemplificada no “espinho na carne” – que Jesus se torna forte. O recorte homilético previsto (Ez 2.1-5) é possível, mas a estrutura do relato de vocação e envio do profeta (Ez 1.4 – 3.15) pede a inclusão dos v. 6-7 e a consideração do pano de fundo da unidade literária maior. O trecho foi tratado, com outro recorte, em Proclamar Libertação II, p. 96ss (Nelson Kirst: Ez 2.3-8a; 3.17-19) e Proclamar Libertação 25, p. 231ss (Ervino Schmidt: 2.1-8a) e, no recorte previsto, em Proclamar Libertação 36, p. 226ss, por Olmiro Ribeiro Junior. O trecho se enquadra bem no tempo após Pentecostes, em que a comunidade cristã cresce e amadurece pela atuação nem sempre visível do Espírito Santo.

2 O contexto literário e histórico 2.1. Ez 2.1-5[6-7] deve ser visto dentro da unidade literária formada pelo relato de visão, vocação e envio do profeta Ezequiel, que abarca Ezequiel 1.4 – 3.15. É importante ter em mente esse contexto literário, pois ele dá parâmetros importantes para a compreensão da mensagem. 1) O relato inicia com a complexa visão do “carro” que leva o trono e a glória de Deus do templo de Jerusalém até a Babilônia, onde se encontra o profeta junto a um grupo de exilados judaítas (1.4-28). A visão evidencia uma mudança de mentalidade do profeta. No imaginário sacerdotal de Ezequiel, Deus tem sua morada terrena no Santo dos Santos do templo de Jerusalém. Esse imaginário é desconstruído quando, em visão, Deus A perícope prevista pelo Lecionário Comum Revisado da IECLB, Ano B, é Ezequiel 2.1-5.

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se torna “móvel” e se desloca para onde está seu povo. Essa mudança na forma de conceber Deus é essencial na vocação profética de Ezequiel. 2) Ao relato de vocação segue nosso recorte (2.1-5[6-7]), que trata do envio do profeta à “casa rebelde”. Nesse trecho ainda não se fala do conteúdo da mensagem. 3) Esse aparece no relato do gesto simbólico visionário que segue (2.8 – 3.3): o profeta deve comer o rolo de um livro repleto de “lamentações, ais e suspiros”. A palavra de Deus deve necessariamente passar pelo “estômago” de Ezequiel antes de ser proferida ao povo. O profeta não é um autômato que transmite a palavra sem emoção ou envolvimento pessoal. 4) O trecho 3.4-11 desenvolve ideias mencionadas em 2.1-5[6-7] e conclui o momento do envio. 5) O relato termina mencionando que a glória de Deus se afasta e o profeta volta a Tel-Abibe, no canal Quebar (nahar kabari = “canal grande”), para junto das pessoas exiladas (3.12-15). 6) O restante do capítulo vai desenvolver a ideia do profeta-sentinela (3.16ss). 2.2. Não há necessidade de entrar em detalhes sobre época e lugar do texto. Apresento apenas os mais importantes. O sacerdote (ou filho de sacerdote) Ezequiel (“Deus te queira tornar forte”) fez parte do grupo de judaítas deportado à Babilônia, em 597, juntamente com a família real e parte da elite política e intelectual de Judá e Jerusalém. Sua vocação se deu no quinto ano do cativeiro, portanto em 593 (1.1s), às margens do “rio” Quebar, um canal do rio Eufrates que passava pela antiga cidade de Nipur. Documentos extrabíblicos atestam a existência de uma colônia de judaítas nessa região. A localidade de Tel-Abibe (“ruínas antigas”; 3.15) pode dar a entender que os exilados foram encarregados de reconstruir cidades em ruínas ou repovoar localidades desabitadas. O grupo de judaítas exilados tinha oportunidade de reunir-se para celebrações junto às águas (Sl 137; cf. At 16.13) ou na casa de Ezequiel (8.1; 14.1; 20.1).

3 Aspectos exegético-meditativos 1.28b) Então ouvi a voz de alguém que falava 2.1) e ele me disse: “Filho do homem, põe-te sobre os teus pés para que possa falar contigo!” 2.2) Então o espírito entrou em mim e me ergueu sobre os meus pés e ouvi aquele que falava para mim. Após a visão da glória de Deus, o profeta cai sobre sua face. Nesse momento de fraqueza, a palavra de Deus alcança seus ouvidos. Não se menciona o nome de Deus, mas simplesmente “alguém que fala”. Nem sempre é possível perceber de imediato que a palavra ouvida tem origem divina. A palavra não o interpela pelo nome nem pela posição, mas por “filho do homem”, ou seja, representante da espécie humana. Não é um título especial como em Daniel 7.13 ou no Novo Testamento (cf. Mt 8.20), mas expressa, como no Salmo 8.5, a humildade e a pequenez do ser humano diante da majestade do Criador. Esse pequeno ser humano precisa erguer-se do chão em que está deitado e assumir a postura de um mensageiro digno diante daquele que lhe fala. Mas a fragilidade do ser humano necessita da ajuda do Espírito para colocar-se de pé. Aqui vislumbramos o mistério que sustenta o ministério: a ordem de Deus sempre vem acompanhada da força vital que capacita o vocacionado a realizar o que lhe é ordenado.

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2.3) Ele me disse: “Filho do homem, eu te envio aos filhos de Israel, os rebeldes que se rebelaram contra mim, eles e seus pais romperam comigo até o dia de hoje, 2.4) A estes filhos de duro semblante e coração obstinado é que te envio. Tu lhes dirás: ‘Assim disse o Senhor!’, 2.5) quer eles escutem ou não – pois são casa rebelde – a fim de que reconheçam que houve um profeta entre eles.” A estrutura do trecho é clara: eu te envio – tu dirás – eles reconhecerão! O que dá legitimidade à atuação profética não são capacidades retóricas nem habilidades mânticas, nem peculiaridades físicas ou psíquicas de uma pessoa, mas o envio. Quando o profeta precisa defender seu ministério, ele recorre à sua experiência visionária e a seu envio. A fórmula do mensageiro (“Assim diz o Senhor”) acentua que a mensagem que o profeta transmite não é dele, mas de quem o envia. Os destinatários da mensagem são os “filhos de Israel”. Os judaítas deportados recebem o título de honra “Israel” e, com isso, a dignidade de “povo de Deus”. Mas esses “filhos” são rebeldes, são “casa rebelde”. O termo “rebeldia” é ambíguo. Rebeldia pode ser algo positivo. O Jó rebelde, p. ex., consegue romper com a ditadura da ideologia da retribuição e, assim, experimentar Deus de maneira bem nova, um Deus que se coloca ao lado da pessoa sofredora. Nos profetas clássicos, a “rebeldia” tornou-se uma chave de leitura de toda a história do povo de Israel com seu Deus (cf. Os 7.13; 8.1; Jr 2.8; 3.13; Ez 16; 20; 23). O termo vem da área da política internacional: rebeldia é a ruptura unilateral e consciente de um acordo entre duas nações. Toda a história de Israel é entendida como “rebeldia” por ter sido, de acordo com os profetas, marcada por uma obstinada oposição ao projeto de Deus. O povo tem um “duro semblante”, um “coração empedernido ou obstinado”, uma “dura cerviz”. Essa dureza revela falta de emoção, incapacidade de sentir empatia e solidariedade. Na situação de pessoas exiladas, a “obstinação” recebe dupla conotação: de um lado, conscientiza as pessoas de que o exílio não foi mera casualidade, mas provocado pela própria conduta; de outro lado, a obstinação em não querer ouvir o profeta significa não mais acreditar na possibilidade de que Deus possa vir ao encontro de seu povo e mudar a situação de miséria dos exilados. “Casa rebelde” e “casa de Israel” se contrapõem: os escolhidos para serem povo de Deus rejeitam obstinadamente essa oferta. Mas a rejeição da mensagem não é critério para a validade da atuação profética. Mais cedo ou mais tarde, as pessoas reconhecerão sua validade. Os frutos podem demorar. 2.6) Mas tu, filho do homem, não temas diante deles, quando espinhos te cercarem e estiveres sentado sobre escorpiões, não tenhas medo de suas palavras e não te assustes de seu rosto, pois são casa rebelde. 2.7) Mas dirás a eles minhas palavras quer escutem quer não, pois são casa rebelde!” O profeta é estimulado a não se deixar desanimar diante da oposição que receberá (cf. Jr 1.8). As metáforas para as dificuldades que o aguardam e os inimigos que o cercarão são fortes (“espinhos”, “escorpiões”). Palavras acusadoras e rostos desaprovadores acompanharão a mensagem do profeta. Sem receber nenhuma promessa explícita de ajuda por parte de Deus, o profeta é deixado com a exortação: “Não temas!”

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4 Temas e imagens para a prédica 4.1. Pelo fato de as comunidades terem pouco conhecimento do profeta Ezequiel, julgo oportuno aproveitar as imagens do relato de vocação (Ez 1 – 3) para exemplificar a função de um profeta. A visão do carro da glória do Senhor recebe um significado importante na situação de exilados e na própria compreensão de vocação. O estilo barroco dessa visão mostra como a experiência com Deus transforma mentes. O sacerdote Ezequiel conhecia um Deus que mora no céu, mas se manifesta em sua glória no templo de Jerusalém. Em sua vocação profética, teve que desconstruir seu imaginário teológico para perceber que seu Deus não se prende a nenhum santuário, mas peregrina com sua gente. O sacerdote revive a experiência teológica dos pais e mães de Israel: o Deus dos patriarcas e matriarcas não está preso a um santuário, mas acompanha seu povo em suas migrações e lhes abre perspectivas de um novo futuro. Vocação profética é uma mudança radical de perspectiva. 4.2. Mas, afinal, o que é ser profeta? Temos poucos indivíduos profetas nos tempos atuais. A função profética talvez seja assumida mais por igrejas, grupos ou movimentos. São comunidades, movimentos e pessoas que têm a incômoda tarefa de apontar erros e responsabilidades. São pessoas ou grupos que acentuam o imperativo mais do que o indicativo, que apontam para o Deus da justiça mais do que para o Deus da misericórdia. Por isso os profetas ou movimentos proféticos são geralmente incômodos, mal recebidos, rejeitados e até perseguidos – não só em sua própria casa. Sua mensagem soa, às vezes, demasiadamente parcial, já que não busca acomodar os opostos. Por isso são recebidos com “rebeldia” e obstinação; com indiferença e desprezo. Mas são necessários para que uma sociedade não resvale para o individualismo, a indiferença, a falta de compromisso, a ilusão e a insanidade. É uma rebeldia que não quer ouvir. A rebeldia não é aquela legítima briga com Deus por causa das dores e dos males do mundo. Rebeldia é antes a indiferença “obstinada” de não querer saber de um Deus livre em suas decisões e justo em seu agir. Rebeldia é preferir a versão light de Deus, um Deus domesticado, que afaga o meu ego, mas não se intromete em meus negócios. 4.3. A outra imagem forte é a do rolo engolido pelo profeta. Também ela pode clarear a função do profeta. O rolo repleto de “lamentações, ais e suspiros” é algo marcante. O livro contém as lágrimas de Deus por seu povo rebelde. Deus chora por causa do sofrimento do povo e também por sua indiferença e rebeldia. O fato de o profeta ter que engolir o livro significa que também o profeta compartilha as lágrimas de Deus, também ele sofre pelo povo e com o povo. Não basta que o profeta leia o que está escrito no rolo; a mensagem tem que passar pelos seus intestinos. O amargor da mensagem deve ser sentido nas entranhas do mensageiro de Deus. Diante de Deus, o profeta também carrega a culpa do povo que ele denuncia. Durante 390 dias, ele dorme sobre o lado esquerdo para “carregar” a culpa do Reino do Norte, e 40 dias sobre o lado direito pela culpa do Reino do

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Sul (Ez 4.4ss). O profeta denuncia, mas, ao mesmo tempo, sofre sob sua denúncia juntamente com a comunidade. A pessoa vocacionada defende Deus diante da comunidade, mas também defende sua comunidade diante de Deus. Essa paixão de Deus que verte lágrimas por nós recebeu, afinal, um nome: Jesus de Nazaré. Esse Jesus teve que comer todos os rolos amargos na cruz para que pudéssemos sentir a doçura de seu perdão. 4.4. Depois de Pentecostes, todas as pessoas cristãs têm a tarefa de profetizar e testemunhar. Não há como furtar-se dessa tarefa. Por isso, muitas vezes, os verdadeiros profetas e as verdadeiras profetisas não são reconhecidos de imediato. Mas a indiferença obstinada com que são recebidos é a mesma. Verdade é que Deus não elimina as adversidades que surgem no caminho das pessoas que ele envia, mas ele as ampara em meio à adversidade. Os espinhos e os escorpiões não vão sumir. Mas a força vital do Espírito fará com que não prevaleçam contra as testemunhas do reino de Deus.

5 Subsídios litúrgicos Sugestões de hinos LCI 606; 610; 613 Confissão de pecados L: Senhor, perdoa nossa indiferença, comodidade e falta de compromisso com tua Palavra, com o chamado que nos diriges de sermos testemunhas de teu amor em meio a ódio, discriminação e egoísmo. Perdoa, quando por teimosia, medo, vergonha ou comodismo, nos afastamos de ti e te negamos como Pedro te negou. Perdoa, Senhor, quando nos omitimos e nos esquivamos de falar a verdade por temor de represálias, e quando não te anunciamos com firmeza e convicção a vinda de teu Reino. C.: Amém Leitura alternada do Salmo 126 Intercessões Intercedemos pelas comunidades, sua liderança, seus ministros e ministras, obreiros e obreiras, a fim de que testemunhem com ousadia tua vontade e tua promessa. Dá-lhes perseverança na tarefa de semear e concede-lhes a alegria da colheita. Intercedemos pelas pessoas que são desprezadas e perseguidas por assumirem a tarefa profética de anunciar um reino de justiça e paz. Anima-as para que não esmoreçam, conforta-as com teu santo Espírito.

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Bênção Que a paz do Senhor te acompanhe no caminho da vida, que te dê forças nas lutas diárias que terás, que essa mesma paz te dê um sono restaurador e que possas ver em cada amanhecer um sinal do amor de Deus. Amém.

Bibliografia ZIMMERLI, Walther. Ezechiel. 2. ed. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1979. (BKAT XIII/1).

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PRÉDICA: MARCOS 6.14-29 AMÓS 7.7-15 EFÉSIOS 1.3-14

7º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

11 JUL 2021

Paulo Roberto Garcia

Missão, desafios e violência: paradigmas para a prática cristã

1 Introdução Os agrupamentos humanos organizam-se em torno de valores que determinam o que é aceitável, o que é inaceitável, o que se deve buscar e o que se deve rejeitar. Uma forma de caracterizar esses valores é o conceito de honra e vergonha. O que é honrado? O que se deve buscar alcançar? O que se deve rejeitar? Em torno desses conceitos as sociedades se organizam. É certo que esses valores são diferentes e produzem sociedades diferentes. Nosso texto transita no choque de valores de honra. Não apenas denuncia critérios inaceitáveis de honra, como também desafia a comunidade de fé a se posicionar diante deles. A perícope de Marcos 6.14-29, o relato sobre a morte de João Batista, se entrelaça com os relatos sobre o envio dos discípulos para a missão, a notoriedade de Jesus, de João Batista e também de Herodes, Herodias e Salomé. Tudo se transforma em um grande relato para orientar os cristãos e as cristãs sobre o compromisso da missão e sobre a violência exercida pelos poderosos para defender sua honra. Esse é o caminho de interpretação da perícope da morte de João Batista.

2 Exegese A narrativa sobre a morte violenta de João Batista aparece no Evangelho de Marcos com as características redacionais clássicas desse evangelho. A história aparece envolta em outra história. Nessa maneira de construir o relato, as histórias se completam e formam um discurso maior. A fala sobre a reação violenta de Herodes ao receber informações de que Jesus era visto pelo povo como João Batista que voltou à vida, serve de oportunidade para se introduzir a história da morte de João Batista. A morte de João Batista interrompe a narrativa do envio missionário (Mc 6.7-13) e a da volta dos doze (Mc 6.30-32). Esse estilo de interromper uma história com outra história é característica do Evangelho de Marcos. Na verdade, essas histórias se completam. Ou seja, a morte de João Batista se relaciona diretamente com a reação violenta do império contra Jesus e, consequentemente, contra seus seguidores e seguidoras. Mais do que apontar a reação, o texto, ao descrever com uma riqueza de detalhes a morte de João Batista, aponta também as características que marcavam o Império Romano e os critérios que norteavam

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a honra daqueles que exerciam o poder. Para perceber isso, é importante analisar esse texto em seus detalhes. A morte de João Batista acontece no contexto de um banquete. Não podemos nos prender a uma percepção do banquete apenas como uma festa gloriosa. No mundo greco-romano a refeição tinha um papel importante no estabelecimento das relações de poder e nas configurações de padrões de honra e de vergonha. O Império Romano organizava-se em torno do patronato. Nesse sistema, a honra do patrono era ter muitos clientes e isso era confirmado ao ter muitos convidados no banquete. Por outro lado, para o cliente ser convidado pelo patrono, denotava honra também. Era um sistema de troca de favores. O patrono oferecia benesses para seus clientes. O cliente oferecia fidelidade a seu patrono. O banquete oferecido por Herodes se inseria na demonstração de poder e de honra do patrono. Herodes, ao convidar pessoas, demonstrava seu poder e sua autoridade, e ao conceder favores, deixava claras as vantagens dos clientes por terem tal patrono. Por isso, diante da satisfação de Herodes com a dança de Salomé, Herodes demonstra seu poder de patrono, oferecendo a ela tudo o que ela quisesse, até mesmo a metade de sua fortuna: uma típica relação patrono-cliente. Como ofertar metade da fortuna tornaria nesse mundo alguém mais importante? Aqui está o elemento diferenciador dessa sociedade em que a história se insere. No Império Romano, o que tornava alguém mais importante do que outro não era ter uma fortuna maior, e sim ter um número maior de clientes. Era comum patronos abrirem mão de uma parte de seus bens para obter mais clientes. Herodes, ao oferecer a Salomé o que ela quisesse, mesmo que fosse metade de suas posses, demonstraria para seus clientes presentes no banquete sua generosidade para com aqueles que o agradassem. Então, quando Salomé, instruída pela mãe, pede a cabeça de João Batista, instaura uma crise na autoridade patronal de Herodes. Não atender ao pedido apontaria para os clientes presentes que o patrono não tinha palavra e não cumpria suas promessas. Ele não seria um bom patrono. O atendimento ao pedido o levaria não só a matar alguém a quem ele temia, como também poderia incitar alguma revolta pública. Outra peça nessa trama é a esposa de Herodes, Herodias. Descrever o conluio entre Herodias e sua filha Salomé descreve também os códigos de honra e vergonha dessa sociedade e os estreitos limites em que as mulheres poderiam transitar. No jogo de poder, mãe e filha se organizam para alcançar seu objetivo maior: eliminar João Batista. O motivo que as leva a tomar essa atitude era a acusação pública que João Batista fazia da relação conjugal inaceitável de Herodes e Herodias: ela, sendo mulher do irmão de Herodes, não poderia ter sido tomada como esposa por ele. Aqui, como se vê, se desenha a honra de uma mulher nesse sistema, a qual se concretizava no casamento. Uma relação marital indigna, como denunciava João Batista, colocava Herodias em uma situação de vergonha pública. Na luta para estabelecer honra, essas mulheres transitam em um jogo de sedução em que a dança da filha proporciona à mãe alcançar a honra do seu status de esposa de Herodes. Deste modo, as figuras femininas, nesse texto, denunciam não só os conceitos de honra e vergonha do mundo greco-romano, como também o papel que era reservado à mulher nessa sociedade: gerar filhos; agradar o ma-

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rido; honrá-lo publicamente. Ou seja, tanto a figura masculina (Herodes) quanto as figuras femininas (Herodias e Salomé) que aparecem nesse relato retratam a estruturação da sociedade e apontam critérios de honra e vergonha que geram submissão e limitação do papel das mulheres a troca de favores e demonstrações de poder dos homens. Nessa estrutura, a vida de profetas e profetizas são eliminadas para preservar sistemas indignos de honra. Por isso pode parecer, em uma primeira leitura do relato, que Herodes não teve opção nessa violência contra João Batista. Também pode parecer que a culpa seria de Herodias em um conluio com Salomé. Mas o que o relato aponta é muito diferente disso. Todos são culpados, pois o que Herodes, Herodias e Salomé buscavam era alcançar a honra, utilizando os mecanismos que essa estrutura injusta do patronato apresentava. Nessa busca, a vida das pessoas, no caso a vida de um profeta, João Batista, não tinha valor nenhum. Era um objeto nos jogos de poder. Ao entendermos essa história no conjunto dos relatos do envio de missionários por Jesus, onde ele próprio é visto como um profeta, percebemos que essa é uma narrativa didática. Ela ensina a seguidores e seguidoras de Jesus os desafios da missão, a injustiça e a violência de um sistema no qual a valorização da honra individual massacra a vida inocente e os riscos que esses e essas que são enviados irão passar. O relato aponta aos seguidores e seguidoras de Jesus que, de um lado, terão de enfrentar a violência desse sistema que coloca a honra acima da vida e, de outro, que terão de assumir que a missão se inscreve na denúncia dessa estrutura de morte.

3 Meditação Nas mais diversas sociedades ao longo da história, o grande desejo sempre foi o de ser reconhecido como alguém honrado. Isso faz parte da pretensão humana. Porém os conceitos que definem o que é honra ou o que é vergonha mudam no decorrer dos tempos e são diversos dentro de cada sociedade. Em alguns agrupamentos, a honra pode ser marcada por busca de dignidade, em outros a honra pode ser caracterizada pelo acúmulo de poder ou de posses. Deste modo, esse conceito cria encontros e desencontros. Na busca da honra pode-se construir espaços de dignidade e luta pela vida ou de violência e morte. Nosso texto é um alerta acerca desses processos e um convite a um compromisso de vida: buscar a honra por meio da denúncia profética da violência e no desafio para a vivência da missão enfrentando essa realidade. Ao lermos Marcos 6.14-29, encontramos a trágica história da morte de João Batista. Ela é contada para a comunidade de Marcos no meio dos relatos do envio missionário dos discípulos de Jesus. Isso não é gratuito. Ao descrever a violência em meio ao envio missionário, o evangelista relembra sua comunidade e a todas as pessoas cristãs que essa mesma violência está presente no desenvolvimento da missão. Outros textos que cercam o calendário litúrgico dialogam com o texto de Marcos. Em Amós 7.7-15, encontramos o profeta anunciando o juízo de Deus sobre as práticas iníquas. Por causa disso, o profeta sofre a violência dos poderes

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dominantes. Em Efésios 1.3-14, encontramos a descrição da obra redentora de Cristo que nos coloca como escolhidos e escolhidas pelo Senhor, como filhos e filhas vocacionados para fazer a vontade de Deus. A união desses textos apresenta-nos a redenção, o vocacionamento e os desafios para cada seguidor e seguidora. A missão desenvolve-se na oposição aos poderes que buscam estabelecer sua honra por meio da violência. João Batista criticou Herodes e a estrutura de poder e de família. Sua morte apontou não apenas a violência contra o profeta como também denuncia o funcionamento das estruturas de poder de sua época. Em um sistema em que a honra era marcada para o homem por possuir muitos clientes e para a mulher por ter uma família notória, João Batista acusa Herodes e Herodias de um relacionamento impuro, portanto sem honra. Nesse sistema violento, Herodias e sua filha se organizam usando os papéis destinados às mulheres para conseguir a promessa de morte de João Batista. Herodes, diante da possibilidade de decepcionar seus clientes e parecer um patrono fraco, executa João Batista. Homens e mulheres, nesse sistema, utilizam recursos violentos para buscar honra, respeito e status. A vida de um ser humano é menos importante do que o papel que se representa na sociedade. Diante de um sistema como esse, discípulos e discípulas recebem o chamado, aceitam o vocacionamento e precisam ter em mente que, ao anunciarem o evangelho, existe a possibilidade de sofrerem a violência. Ao mesmo tempo, necessitam ter em mente que assumir os ditames da sociedade sem questionar esses valores, como fizeram Herodes, Herodias e Salomé, é inaceitável para aqueles e aquelas que experimentaram a redenção em Jesus. Diante disso, cabe a cada pessoa cristã vivenciar o desafio de construir espaços de justiça, valorização da outra pessoa e de solidariedade e, como afirma Cora Coralina em sua poesia Ofertas de Aninha, precisamos “não desistir da luta, recomeçar na derrota […] e acreditar nos valores humanos”, em especial nos valores e na coragem que são defendidos em nosso texto.

4 Imagens para a prédica Nossa sociedade vive uma experiência que nossos pais e nossos avós não experimentaram: uma pandemia global com muito longa duração de tempo. Embora recentemente tenhamos vivido uma pandemia do H1N1, ela não foi em nada comparável a uma pandemia global como a da Covid-19. Outra só aconteceu no início do século 20 (a gripe espanhola) e, antes disso no século XIV (a peste negra). Diante da ameaça de vidas, as imagens que mais nos indignaram foram as de pessoas que minimizaram o sofrimento das famílias que perderam entes queridos, desqualificando a pandemia. Também imagens daquelas pessoas que, em nome de realizar práticas que davam prazer, colocaram outros em risco e disseminaram o vírus usando para isso o discurso do direito individual, mesmo que isso significasse colocar as vidas mais frágeis em risco. Mesmo as igrejas, por vezes, frente ao desejo de realizar celebrações presenciais, colocaram vidas em risco. Muitas vezes, colocaram sobre Deus a responsabilidade de preservar essas vidas. Em todas essas imagens, a manutenção de

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direitos individuais, do hedonismo, da manutenção de estruturas que garantiam privilégios se sobrepôs à vida das pessoas fragilizadas da sociedade. Como esse texto fala a essas situações? O que se aprende com isso?

5 Subsídios litúrgicos Ofertas de Aninha (aos moços) – Cora Coralina Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou. Ensinou a amar a vida. Não desistir da luta. Recomeçar na derrota. Renunciar a palavras e pensamentos negativos. Acreditar nos valores humanos. Ser otimista. Creio numa força imanente que vai ligando a família humana numa corrente luminosa de fraternidade universal. Creio na solidariedade humana. Creio na superação dos erros e angústias do presente. Acredito nos moços. Exalto sua confiança, generosidade e idealismo. Creio nos milagres da ciência e na descoberta de uma profilaxia futura dos erros e violências do presente. Aprendi que mais vale lutar do que recolher dinheiro fácil. Antes acreditar do que duvidar.

Bibliografia KONINGS, Johan; GOMES, Rita Maria. Marcos – O Evangelho do Reinado de Deus. São Paulo: Loyola, 2018. MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992.

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8º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

PRÉDICA: EFÉSIOS 2.11-22

18 JUL 2021

JEREMIAS 23.1-6 MARCOS 6.30-34,53-56

Kurt Rieck

Outrora excluído, agora incluído

1 Introdução Por volta de 630 antes de Cristo, vivia o profeta Jeremias (23.1-6). Ele trouxe uma palavra de juízo sobre as lideranças religiosas, pois conduziam o povo de Deus de forma relapsa. O profeta anuncia que Deus colocará pastores que cuidarão das suas ovelhas, culminando num rei que receberá o nome de Senhor, Justiça Nossa. Esse rei justo veio na pessoa do Messias. O Evangelho de Marcos 6.30-34,53-56 fala acerca de um povo desesperado como ovelhas que não têm pastor (v. 34). As pessoas eram curadas de toda sorte de doenças. Eis o pastor que o profeta Jeremias havia anunciado: Cristo. Chegamos num novo tempo descrito no livro de Efésios (2.11-22). Líderes judeus seguiam distanciando o povo de Deus. A imposição de tradições religiosas afastava as pessoas de Deus. Jesus Cristo inaugura então um novo tempo, que por intermédio da sua morte na cruz permite que todas as pessoas possam ter acesso a Deus. O legado dado às comunidades cristãs foi concretizar uma nova forma de viver, uma nova humanidade, que se constrói sobre os parâmetros deixados por Jesus. Essa nova forma de viver não se baseia em ritos externos, mas no agir interno, em que Jesus vive e reina em cada pessoa, surgindo uma nova comunidade unida por um só Espírito. Este tempo pós Pentecostes faz buscar entender essa casa onde Deus vive por meio do seu Espírito (v. 22 NTLH).

2 Exegese

Éfeso, a mais importante cidade portuária da Ásia Menor, teve a presença de Paulo por cerca de dois a três anos. Há indícios de que essa epístola fosse uma carta circular para muitas pequenas comunidades, pois nos manuscritos mais antigos a cidade de Éfeso não é mencionada. Também a autoria de Paulo é questionada. Nenhuma dessas teses diminui a relevância do conteúdo dessa epístola. A carta tem como tema central o anúncio do plano divino de salvação, que consiste na vocação de judeus e não judeus para formarem o povo de Deus. Ela também fala de como é a nova humanidade que se deixa conduzir na pessoa do Cristo ressurreto.

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Outrora a exclusão – v. 11 e 12 Os judeus desconsideravam os demais povos, chamando-os de gentios na carne, pagãos, deixando de compartilhar com eles o conhecimento que tinham de Deus. A circuncisão, ato de cortar o prepúcio do órgão sexual masculino, era sinal visível da fé judaica. Os incircuncidados eram considerados pessoas sem Deus, pois lhes faltava o “sinal do pacto abraâmico”. A radicalidade desse pensamento segregacionista chegava ao extremo de dizer que “os gentios haviam sido criados por Deus para ser combustível para o fogo do inferno” (BARCLAY, 1973, p. 114). “Mãos humanas” colocam sinais. A circuncisão é uma operação física. A fé em Deus, o viver com Deus é bem mais que rituais externos. Se permanece apenas um sinal externo, nada se opera no íntimo da pessoa. Desprezar toda uma história vivida pelo povo judeu, marcada pela circuncisão, negando seu valor institucional, seria cometer o mesmo erro apontado nesses versículos. Certamente os judeus fazem parte do povo de Deus. Mas o povo de Deus não se restringe ao antigo estado teocrático de Israel. O povo de Deus é bem mais que o povo judeu. Agora a inclusão – v. 13 a 18 Em Cristo iniciou um novo ciclo. Quem outrora era julgado de estar sem Deus, agora são [...] trazidos para perto dele pela morte de Cristo na cruz (NTLH). [...] fostes aproximados pelo sangue de Cristo (ARA). Menção semelhante verificamos em Efésios 1.7, que diz: [...] no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados (ARA); [...] pela morte de Cristo na cruz, nós somos libertados, isto é, os nossos pecados são perdoados (NTLH). O que separa as pessoas de Deus é o pecado. Cristo na cruz opera a redenção. Quem nos restaura é a graça de Deus. “A ideia fundamental de redenção é de tornar livre uma coisa ou pessoa que se tornara propriedade de outrem” (FOULKES, 1963, p. 42). A redenção tem um preço, e o preço apontado no texto é o sangue de Cristo. Não há valor maior que a pessoa do Messias. No pensamento judaico, a redenção do povo escravizado no Egito, celebrado na Páscoa, estava relacionada a um sacrifício. Pecado requeria sacrifício; [...] sem derramamento de sangue não há remissão (Hb 9.22, cf. Lv 17.11). “O pecado implica escravidão da mente, vontade e membros, ao passo que remissão é liberdade, é aphesis [...] que literalmente significa a soltura de uma pessoa de algo que a prenda” (FOULKES, 1963, p. 42). O texto insistentemente aponta para a eirēnē. “Ele mesmo é a nossa paz.” A paz concretiza-se na pessoa de Jesus Cristo. Segue uma sistematização para perceber as ênfases dos versículos que gravitam em torno do tema paz.

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v. NTLH ARA 14 Cristo quem nos Ele é a nossa paz trouxe a paz 15 e Foi assim que Fazendo a paz 16 ele trouxe a paz

Consequência / Ação Derrubou o muro da inimizade entre os judeus e não judeus Acabou com a lei, juntamente com os seus mandamentos e regulamentos, formando novas pessoas, uma nova humanidade (2Co 5.17), eliminando a inimizade 17 Anunciou a boa Evangelizou paz Para todos os que estavam perto e notícia da paz aos que se encontravam longe

Quando se menciona que Cristo aboliu na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças (v. 15 ARA – texto semelhante encontrado no livro de Romanos 10.4), vemos uma nova forma de entender a religião. O rabino Guershon Kwasniewski escreve: “No judaísmo existe uma rigidez muito grande no cumprimento dos preceitos e mandamentos. Temos como pilares 613 preceitos e mandamentos, que foram ordenados por Rambam” (In: WONDRACEK et al. (Orgs.), 2016, p. 28. No cristianismo surge uma nova forma de se relacionar com Deus a partir da graça de Deus revelada na cruz. Todos chegarão até a presença do Pai em um só Espírito. Há somente um Espírito Santo. Há um Espírito que unifica pensamentos e ações. Esse sopro que vem de Deus permite o acesso ao Pai (ARA). Deus tem poder de transformar a tensão existente entre judeus e não judeus num novo caminho de paz, que tem o único propósito de nos levar à presença de Deus, que é único. Igreja: a família de Deus – v. 19 a 22 A fé monoteísta deixa de ser exclusividade dos circuncidados. Estrangeiros e peregrinos (xenoi e paroikoi), pessoas que eram tratadas com antipatia e desconfiança, são reclassificados socialmente. É-lhes dada a dignidade de serem membros da família de Deus. Brota uma figura de linguagem: um edifício. Ele é construído. É uma obra que se encontra em movimento. Seu alicerce são os apóstolos e os profetas. Abusos foram cometidos quando muitos se intitulavam apóstolos. São apóstolos os 12 discípulos de Jesus e Paulo. E quem são os profetas? No Antigo Testamento encontramos muitos. Há a menção de profetas também no Novo Testamento, conforme Efésios 4.11 e Atos 11.27. Observando a discussão inicial, é possível concluir que o autor está considerando a história do povo de Israel contada pelos seus profetas, que carece de ser conhecida e compreendida. É inegável que Deus falou com seu povo por intermédio dos profetas do Antigo Testamento. A pedra angular é uma: Jesus Cristo. O parâmetro dessa construção é ele quem dá.

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3 Meditação Transpondo essa palavra para nossos dias, seguem algumas perguntas: 1) Em algum momento da sua vida você já se sentiu “sem lugar”, excluído? 2) Olhando para os v. 13 a 18, como somos “trazidos para perto de Deus” e quais as consequências práticas dessa aproximação? 3) Pensando nos versículos 19 a 22, o que Deus espera da igreja? 4) Qual é seu lugar na igreja de Cristo? Na exegese, sistematizamos o estudo em três blocos. Seguimos nessa linha de pensamento. Outrora a exclusão Havia um grupo étnico que se achava melhor que os demais. Ele acreditava ter nas mãos a fé legítima. Os demais eram pagãos, não merecedores de terem o conhecimento de Deus. Desconsideravam ser instrumentos de Deus para a evangelização. Saulo, homem de fé monoteísta, tinha como missão perseguir cristãos. Cristo o converte, mudando radicalmente sua visão de mundo. Paulo tem seus horizontes abertos, extrapolando limites étnicos, compreendendo que havia muitas ovelhas sem pastor. O bom pastor, Jesus Cristo, se revela a todos os povos e raças. Há um grande segmento social que vive sem ser pastoreado. Etnicamente, descendentes de alemães carregam um peso semelhante ao do povo judeu. Facilmente nos fechamos em nós mesmos. Somos até classificados como sendo uma “igreja particular”. Temos dificuldade de chegar naquelas pessoas que se encontram sem rumo, sem Deus. Outras denominações cristãs chegam mais fácil lá onde o povo está. A mensagem do evangelho trouxe alterações radicais. Em Jerusalém, entre o recinto do templo e o pátio dos gentios havia um muro de pedra no qual existia uma inscrição em grego e latim que “proibia qualquer estrangeiro de entrar, sob pena de morte” (FOULKES, 1963, p. 69). Esse quadro de separação é alterado por Cristo, unindo os povos, não nos ritos judaicos, mas sim na cruz. Agora a inclusão A morte de Cristo na cruz é o elemento que altera padrões. A morte questiona e nos faz reavaliar a vida. Cito o teólogo Vítor Westhelle: Uma teologia da cruz tem, por assim dizer, um princípio alopático em seu cerne; um veneno é, ao mesmo tempo, um remédio (ambos denotados pelo mesmo termo grego pharmakon). É em face da morte que a vida é uma dádiva; é em face da cruz que a ressurreição é uma palavra de graça; é no sofrimento que a salvação (saúde) é recebida gratuitamente (WESTHELLE, 2008, p. 62).

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Escrevo essas linhas em tempos de pandemia. O que a Covid-19 terá causado até julho de 2021? A exemplo da inquietante busca por uma saída contra essa doença que espalha a morte, Cristo é a poderosa vacina contra a maldade humana. A força restauradora do feito de Cristo na cruz precisa ser anunciada. A inclusão é tema sempre atual. A IECLB é constitucionalmente uma igreja ecumênica. Lamentavelmente também sofremos cisões. Respeitamos as igrejas pentecostais, sem a necessidade de nos tornarmos pentecostais. Cada denominação deve manter sua identidade sem desmerecer a forma de ser do outro. Corremos grande risco quando nos fechamos em nós mesmos. As instituições são frágeis, são humanas. Se por desapontamento quisermos criar a instituição perfeita, certamente a nossa participação a tornará imperfeita. O choro, a dor, a injustiça na cruz jamais foram ou serão motivo de revanche. Todo aquele sangue vertido quer promover a paz. Paulo não menosprezou a circuncisão como instituição. Para ele era o sinal da aliança, instituído por Deus; mas se o sinal externo não fosse acompanhado pela fé interior e pela obediência de vida à aliança, tornava-se sem valor e apenas obra da carne (FOULKES,1963, p. 67). A obra redentora de Cristo, de reconciliar todas as coisas com Deus, de justificar gratuitamente os pecadores pela mediação da nova aliança, está inteiramente contida nesta palavra: Paz (ALLMEN, [s.d.], p. 318).

Igreja: a família de Deus Em Cristo somos elevados à qualidade de povo de Deus, o mesmo título que era dado aos judeus. Judeus e gentios, pessoas de qualquer raça, cor ou posição estão juntos na família de Deus. Norteada por uma clara doutrina, a fé cristã está firmada nos ensinamentos dos apóstolos e profetas, tendo Cristo por parâmetro. Temos aqui a metáfora da construção, onde a pedra angular dá a linha certa para a edificação. Nesse povo, que hoje se chama igreja, reina o Espírito de Deus. Deus espera que sejamos como uma casa, tijolo por tijolo postos em ordem, unidos, juntos, onde ele vive por meio de seu Espírito Santo. Não somos um amontoado de pedras que não têm vida. Somos vidas que se somam a outras vidas, tornando-se um corpo. É preciso se deixar encaixar. É preciso querer fazer parte. Os corações conquistados por Cristo somarão num mesmo propósito. A igreja tem a oferecer uma palavra que estrutura as pessoas, que faz elas se encontrarem consigo mesmas, que as auxilia a chegar até a presença do Pai (v. 18 NTLH), que faz elas descobrirem o valor da solidariedade, da fraternidade, do amor ao próximo. Encontre seu lugar na igreja de Cristo!

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4 Imagens para a prédica Outrora a exclusão Você já se sentiu excluído? É um sentimento nada agradável. Ao pensar sobre essa pergunta, lembrei-me de quando tinha 13 anos. Fui ao grupo de jovens da igreja para aprender a jogar pingue-pongue. Entrei na roda por duas vezes e depois me excluíram. Eu jogava muito mal e estragava o jogo dos “bons”. Na oportunidade, havia prometido nunca mais pôr os pés naquele grupo, que se dizia cristão, mas que não era capaz de aceitar alguém com suas limitações. Histórias de exclusão acontecem em todos os segmentos e em todas as faixas etárias. Ainda bem que o ódio que senti daqueles que me rejeitaram foi passageiro, pois ali onde fui rejeitado, tornou-se espaço de vida onde o amor de Deus chegou ao meu encontro e me incluiu. Agora a inclusão

É preciso que sempre de novo mergulhemos por muito tempo e sossegadamente na vida, no agir, no sofrimento e na morte de Jesus para reconhecer o que Deus promete e o que ele realiza. O certo é que no sofrimento se oculta nossa alegria, na morte nossa vida; certo é que, em todos os momentos, estamos em uma comunhão que nos carrega (Dietrich Bonhoeffer, Senhas Diárias 10.04.2020).

Igreja: a família de Deus

“Ubi Christus ibi Ecclesia”. Onde está Cristo ali está a Igreja. Igreja está para ser morada onde habita o Espirito de Cristo e onde todos os que amam a Cristo podem encontrar-se em seu Espírito. (BARCLAY, 1973, p. 126).

Proponho uma dinâmica para trabalhar a figura de linguagem da construção do edifício chamado igreja. Valer-se de um quebra-cabeça, na quantidade de peças que represente a quantidade de pessoas que integram sua comunidade. Entregar uma peça para cada participante neste culto. Valorizar a importância de cada parte. Montar o que for possível na celebração. A peça que ainda não tem seu encaixe aguarda a sua vez. Deixar o desafio para que ao longo de determinado tempo o quebra-cabeça possa ser construído. Cada pessoa encaixará apenas a sua peça. Expor num lugar visível, compondo-o, seja nos cultos, seja nos grupos existentes. Cada peça terá seu espaço no quebra-cabeça, tal qual cada membro será motivado a ocupar seu espaço em sua comunidade. Quanto tempo será necessário para finalizar esse quebra-cabeça (edifício)? Essa dinâmica quer mostrar de forma plástica a importância de cada pessoa na construção do todo.

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Bibliografia ALLMEN, J. J. von. Vocabulário Bíblico. São Paulo: Aste, [s.d.]. BARCLAY, William. El Nuevo Testamento, Gálatas y Efesios. Buenos Aires: Editorial La Aurora, 1973. v. 10. FOULKES, Francis. Efésios, introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1963. WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008. WONDRACEK, Karin H. K. et al. (Orgs.). Perdão. Onde saúde e espiritualidade se encontram. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2016.

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PRÉDICA: JOÃO 6.1-21 2 REIS 4.42-44 EFÉSIOS 3.14-21

9º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

25 JUL 2021

Cláudio Kupka

Nada resiste à presença transformadora de Jesus

1 Introdução Estamos diante da versão joanina de dois episódios centrais na atuação de Jesus com seus discípulos: o milagre da multiplicação dos pães e o momento em que Jesus anda sobre as águas. Os textos auxiliares são bastante adequados. 2 Reis 4.42-44 relata um milagre similar envolvendo o profeta Eliseu e uma doação de vinte pães de cevada que milagrosamente alimenta cem profetas com sobras. Efésios 3.14-21 apresenta um conteúdo singular em forma de oração. Paulo sintetiza em sua prece a busca pela compreensão de Deus, de seu atributo mais essencial, ou seja, seu amor. Cristo vive no coração de seus fiéis à medida que esses compreendem, enraízam, alicerçam suas vidas no amor. A vida em Cristo consiste, por consequência, na busca constante por compreender as profundas dimensões desse amor, apesar de nunca o compreendermos plenamente em nossa limitada condição humana. O texto parece vir ao encontro de nosso evangelho na parte final, quando Paulo ora pelo poder de Deus de fazer muito mais do que pedimos e pensamos. Ou seja, seu amor por nós e pelo mundo, mesmo não sendo compreendido e acolhido, manifesta-se efetivamente e nos cerca graciosamente de bênção e cuidado. Nossa percepção sempre será imediata e limitada, às vezes, mesquinha e utilitária. Cabe-nos sempre mais crescer no entendimento desse amor imensurável. Devidamente acompanhado, nosso texto coloca-se como um convite à nossa reflexão e meditação deste nosso texto.

2 Exegese Nosso texto conjuga duas perícopes em regra interpretadas independentemente. Nosso exercício, desta vez, será conjugá-los numa leitura e interpretação associativa. Trata-se de dois milagres bastante próprios. Multiplicação de alimento e domínio sobre elementos da natureza. A primeira perícope refere-se à versão de João sobre o milagre da multiplicação dos pães. Nos evangelhos sinóticos há duas versões desse milagre. A primeira versão, associada ao número de pessoas alimentadas (cinco mil) e o alimento oferecido à partilha, cinco pães e dois peixes (Mt 14.13-21; Mc 6.31-44; Lc 9.10-17), corresponde também a esta de João 6.5-15. A segunda versão, em que quatro mil pessoas são alimentadas, aparece somente em Mateus 15.32-39 e

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em Marcos 8.1-9. Esse milagre também é conhecido como milagre dos sete pães e peixes. Em João, o lanche ofertado pelo rapaz é definido como de “cinco pequenos pães de cevada e dois peixinhos”. Nosso texto contextualiza semelhantemente o milagre. Jesus refugia-se do assédio da multidão usando o recurso da navegação pelo lago Tiberíades. Mesmo assim, a multidão consegue alcançá-lo e ele, nessa oportunidade, “sobe a um monte” e assenta-se com os discípulos. Não há referência ao período longo de ensino, ao qual os sinóticos se referem. A menção da proximidade da Páscoa (v. 4) provavelmente é uma indicação da presença de peregrinos entre a multidão que se aproximava de Jesus. Isso explica a presença dessa informação, aparentemente isolada. Logo o tema da alimentação da multidão se coloca. Não há menção ao entardecer e à fome. Jesus coloca a questão aos seus discípulos. Primeiro a Felipe. Esse responde segundo uma lógica bastante material e financeira. Faz as contas e apresenta o que é necessário: os pães necessários custariam duzentos denários, o valor em dinheiro correspondente à remuneração de duzentos dias de um trabalhador comum. André então informa que há um rapaz com um lanche de cinco pães de cevada e dois peixinhos. Se, por um lado, André é propositivo e apresenta uma alternativa, por outro, emenda um questionamento que desfaz a própria proposta. Jesus pede que o povo se assente na relva. Aqui não há orientações sobre formarem grupos. Ele toma logo o lanche, dá graças e o distribui à multidão dos cinco mil. Não há também referência à bênção aos alimentos. O povo come à vontade e se farta, informação igual aos sinóticos. Também aqui é dada a ordem que se recolha o que sobrou, para que nada se perca. Isso corresponde a 12 cestos cheios, informação igual aos outros evangelhos. Em João, há a menção do comentário referente ao milagre: Este é, verdadeiramente, o profeta que devia vir ao mundo. A empolgação foi tamanha, a ponto de quererem proclamá-lo rei. Pressentindo isso, Jesus se afasta e vai sozinho a um monte, provavelmente para orar. Agora aparece a menção ao fim do dia, quando os discípulos, sem o Mestre, tomam um barco e rumam ao outro lado do lago, a Cafarnaum. Aqui se inicia a segunda parte do texto. Jesus caminha sobre as águas e acalma o mar agitado. O cenário é o lago e o barco navegando à noite. Essa história aparece também nos sinóticos (Mt 14.22-33; Mc 6.45-52), na sequência do texto da multiplicação dos pães e peixes. Em Mateus há mais detalhes envolvendo Pedro, que vai ao encontro de Jesus caminhando sobre as águas. O mar começa a agitar-se em determinado momento e o vento fica forte. Jesus então aparece e vai ao encontro do barco, andando sobre o mar. A reação dos discípulos é de temor. Aqui ninguém se refere a Jesus como fantasma. Ele é reconhecido ao manifestar a eles: Não temais! Eles o recebem “de bom grado” no barco. O vento e as ondas parecem cessar com sua entrada no barco, semelhante ao relato dos sinóticos.

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3 Meditação A interpretação de duas perícopes conjugadas exige certa atenção. Considerando a premissa que a Bíblia se explica a si mesma, podemos com segurança interpretar dois eventos que o evangelista põe em sequência como harmônicos. Perguntas estratégicas precisam ser feitas: 1) Como um texto ilumina o outro? 2) Há uma relação de continuidade entre os dois milagres? 3) Há algo sendo revelado sobre Jesus que mereça nossa atenção? Vejamos que, no primeiro milagre, há uma preocupação de Jesus com a alimentação da multidão que o cerca. Ele a acolhe, apesar do seu cansaço. Acolhe e cuida da condição física deles. Mas não só isso. Paralelamente, do jeito como é conduzido o milagre, Jesus problematiza aos discípulos a situação de carência de alimentos. Ele quer observar sua reação. Há aqui um processo pedagógico e libertador também. Vemos em ambos os grupos a condição humana exposta: uma multidão com fome e discípulos respondendo à carência com suas lógicas econômicas. Nessa linha, há margem para mais interpretações. Assim como um jovem oferece um lanche, é possível que mais pessoas possuíssem alimentos entre seus pertences. Ninguém faria uma peregrinação sem levar mantimentos. É possível que a oferta do lanche de um rapaz e a consequente partilha desse tenha oportunizado que outras pessoas compartilhassem seus alimentos. O maior milagre talvez fosse a possibilidade de compartilhar o que seria de uso pessoal numa dimensão comunitária. Jesus ficava observando. Não condenava imediatamente, não repreendia, mas criava oportunidades de renascimento, de compaixão e partilha. Num mundo já tão marcado pelo interesse pessoal, ensinar a partilhar é o verdadeiro milagre. Num mundo em que o esforço pessoal, o mérito são sobrevalorizados, receber algo sem pagar por ele é algo inusitado. Num mundo em que a carência torna as pessoas mesquinhas e egocêntricas, ver um lanchinho modesto resultar na saciedade de cinco mil pessoas e ainda sobrar 12 cestos cheios é incomum. Não só é incomum, mas algo revelador do que Jesus representa, do seu Reino, de sua vontade para o mundo. Vemos Jesus iluminando, com seu ensino e gesto concreto (milagre), a realidade marcada pelo espírito humano (pobre), com seus limites e condicionamentos. Jesus promove não um simples momento de distribuição de alimentos, mas um verdadeiro momento de anúncio da mensagem transformadora de seu Reino. Sabemos que há muitos que vão acompanhar Jesus pelo alimento e pela curiosidade sobre os milagres. Sabemos que alguns vão interpretar o gesto de Jesus como uma ruptura artificial da condição humana limitada (aclamá-lo rei e assim resolver todos os problemas), mas o impacto da ação de Jesus sobre a vida de seus seguidores e suas seguidoras é indescritível. Até hoje essa história continua nos impactando. A segunda perícope possui também contornos simbólicos muito fortes. Se no outro texto há referência ao alimento pessoal e ao alimento compartilhado,

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agora os discípulos estão plasticamente num barquinho frágil, à noite e à mercê das forças da natureza. Sem Jesus, eles se sentem desprotegidos, desorientados. Assim eles experimentam a vida. Assim era a vida como conheciam, sejam pescadores, agricultores ou qualquer outra profissão. A vida sempre esbarra em limites humanamente intransponíveis. Só resta lamentar e temer que chegue esse momento de limite e talvez seja o fim. Jesus então vem ao encontro dos discípulos, caminhando por meio dos mesmos elementos que para eles são sinais de perigo e morte. Ele passa incólume. Quando ele chega, sua palavra anuncia a paz, sua presença anuncia o fim do medo. Novamente o que os discípulos podiam produzir, por eles mesmos, era o esforço de conduzir a embarcação pelo mar agitado, cruzando seu destino, em meio a muito medo e insegurança. Era ver com medo qualquer pessoa que aparecesse naquela situação com medo. Jesus irrompe dentro dessa situação, como se nada o afetasse e, dentro do barco, anuncia a paz e o fim das ameaças à vida. Novamente vemos a mesma lógica da perícope anterior. A presença de Jesus liberta as pessoas de suas visões pequenas, egoístas e cheias de temor, e oportuniza uma nova experiência de confiança, partilha e esperança. Ao ser humano que crê em Cristo, que se expõe à sua Palavra, é oportunizada, pela fé, na ação do Espírito Santo, uma atitude de entrega e confiança no agir de Deus em todas as situações da vida. Cabe-lhe confiar e alimentar essa fé de que não estamos sozinhos diante das ameaças da vida. Incluindo aqui a reflexão do texto de Efésios, entendemos por que Deus age assim conosco. Deus se manifesta dessa maneira para expressar seu grande amor por nós e por toda a sua criação. A essência de Deus, manifestada em Jesus, é amor, em sua perfeição. Amor percebido por meio da fé e objeto de nosso conhecimento e experiência por toda a nossa vida! Jesus nos ama ao nos fazer esgotar nossa autossuficiência, ao partilhar o pão com as pessoas famintas, ao oportunizar a partilha, ao permitir a angústia diante do mar revolto, ao manifestar sua presença protetora e nos dar a paz.

4 Imagens para a prédica O médico e o pão Conta-nos a história de um médico que havia falecido numa situação de muita miséria, depois da Segunda Guerra Mundial. Os filhos, ao fazerem o inventário, encontraram junto aos pertences um pedaço de pão. Ninguém entendeu o porquê de ter sido guardado esse pedação de pão. Então a cozinheira que estava cuidando do médico foi chamada e explicou: Depois da guerra, havia pouca comida no país. Estando o médico doente, um idoso veio visitá-lo e lhe deu aquele pedaço de pão. Porém o médico recusou-se a comê-lo e o mandou para a vizinha, cujo filho também estava doente. “Eu já estou velho”, disse ele, “mas aquela criança está no começo de sua vida”. A vizinha agradeceu ao receber o pão e o enviou a um velho idoso. Esse também não ficou com o pão e o mandou à sua filha, que morava com duas crian-

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ças num porão perto dali. Essa, porém, com a intenção de ajudar o médico, levou o pedaço de pão até ele. Ao chegar novamente em suas mãos, o médico percebeu que se tratava do mesmo pão. Emocionado, disse: “Enquanto permanecer vivo entre nós o amor que reparte seu último pão, não temo pelo nosso futuro. Este pão saciou a fome de muitas pessoas, sem que ninguém tivesse comido dele um pedaço sequer. Vamos guardá-lo bem e, quando o desânimo se abater sobre nós, olhemos para ele!”. Os filhos, então, compreenderam a ação do pai e decidiram deixar entrar em seus corações o amor que reparte e anima. O velho organista Mendelssohn, certa vez, visitou a Catedral de Friburgo e, depois dos ofícios religiosos, dirigiu-se ao organista e pediu licença para tocar um pouco o famosíssimo órgão daquela igreja. O velho organista, zeloso de seu instrumento, recusou a princípio, mas diante da insistência do estranho, concedeu-lhe o desejo. Depois de alguns momentos, passados em êxtase, deleite e surpresa, o velho homem, num ímpeto, pôs as mãos nos ombros do inspirado músico e perguntou: – Quem és? Qual o teu nome? – Mendelssohn. Com lágrimas nos olhos, disse, então, o velho organista: – E pensar que eu quase impedi Mendelssohn de tocar nesse órgão! A pedra de fazer sopa Num pequeno povoado, uma mulher teve uma grande surpresa ao ver que havia à sua porta um estranho, mas corretamente vestido, que lhe pedia algo para comer. – Sinto muito, disse ela, mas neste momento não tenho nada em casa. – Não se preocupe, disse amavelmente o estranho, tenho uma pedra de sopa na minha bolsa. Se você me permitisse colocá-la numa panela de água fervendo, eu faria a mais magnífica sopa do mundo. Consiga uma panela bem grande, por favor. A mulher não conteve sua curiosidade, pôs a panela no fogo e foi contar o segredo da pedra às suas vizinhas. Quando a água começou a ferver, todos os vizinhos haviam se reunido para ver aquele estranho e sua pedra de sopa. O estranho deixou então cair a pedra na água. Logo provou uma colherada com verdadeira satisfação e exclamou: – Deliciosa! A única coisa que falta são umas batatas. – Eu tenho umas batatas na minha cozinha, gritou uma mulher. Em poucos minutos, ela estava de volta com uma grande bacia de batatas descascadas, que foram direto para a sopa. O estranho voltou a provar a poção: – Excelente! Então acrescentou pensativamente: – Se tivéssemos um pouco de carne, faríamos um prato mais apetitoso.

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Outra dona de casa saiu voando e voltou com um pedaço de carne, que o estranho aceitou cortesmente, colocando na sopa. Quando voltou a provar o caldo, ficou por instantes olhando o vazio e disse: – Ah, que saboroso! Se tivéssemos umas verduras, seria perfeito, absolutamente perfeito... Uma das vizinhas foi correndo até sua casa e voltou com uma cesta cheia de cebolas e cenouras. Depois de introduzir as verduras na sopa, o estranho provou novamente a sopa e, com um tom autoritário, disse: – O sal! – Aqui tem, disse a dona da casa. A seguir, outra ordem: – Pratos para todo mundo! As pessoas se apressaram para ir às suas casas buscar os pratos. Alguns regressaram trazendo ainda pão e frutas. Logo todos se sentaram para desfrutar da esplêndida comida, enquanto o estranho falava de suas muitas receitas de sopa. Todos se sentiam estranhamente felizes enquanto riam, conversavam e compartilhavam pela primeira vez sua comida. Em meio ao alvoroço, o estranho foi embora silenciosamente, deixando atrás de si a milagrosa pedra de sopa, que eles poderiam usar sempre que quisessem fazer a mais deliciosa sopa do mundo.

5 Subsídios litúrgicos Confissão de culpa Dirigimo-nos a ti, Senhor, sabendo que nos enganamos de caminho. Andávamos tentando apalpar as paredes como cegos. Acreditávamos que o caminho que nos oferecias era suficientemente largo para podermos andar nele, levando junto nossos caprichos, os rancores, as ambições desmedidas, a dureza de coração e a idolatria. Agora nos encontramos na escuridão deste caminho, órfãos de ti. Apaga, por tua graça, o pecado que nos conduziu a este caminho equivocado. Orienta-nos mais uma vez para o caminho da vida, o estreito e difícil, para o caminho da cruz, o caminho da ressurreição e da vida. Em nome de Jesus, nós te pedimos. Amém. Bênção Que tuas mãos sejam sempre generosas e solidárias, e que teus passos transitem, firmes, no rumo da paz. Que teus ouvidos permaneçam abertos à voz de Deus e ao clamor de teu próximo, e que tua boca saiba pronunciar palavras que animem, que sanem, que perdoem, que denunciem a injustiça e anunciem a vida. Que brilhe teu olhar, puro, com a luz da esperança e que tua vida inteira reflita, em cada ato, em cada gesto, em cada som e em cada silêncio, o amor de Deus. Cantos LCI 171, 557, 567, 596, 605, 612, 616

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PRÉDICA: ÊXODO 16.2-4,9-15 JOÃO 6.24-35 EFÉSIOS 4.1-16

10º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

01 AGO 2021

Gerson Correia de Lacerda

A oportunidade da crise

1 Introdução Com pequena variação dos versículos bíblicos, está é a quarta vez que o capítulo 16 de Êxodo é objeto de estudo em Proclamar Libertação. Sugerimos que, na utilização do presente auxílio homilético, os outros textos publicados sejam igualmente examinados. Eles encontram-se nos volumes: 14, p. 283, escrito por Clóvis Horst Lindner; 28, p. 276, texto de Martin Volkmann; 36, p. 251, por Carlos A. Dreher. O primeiro texto não seguia o padrão atual da publicação. Assim, não menciona outras leituras bíblicas, limitando a comentar o texto da prédica (Êx 16.23,11-18). O segundo, além de comentar o texto da prédica (Êx 16.1-5,12-21), faz breve referência ao texto de João, que, aliás, não era um dos indicados para as demais leituras. O terceiro texto, de 2012, relaciona o texto da prédica com o texto de João, mas observa que é muito difícil estabelecer alguma vinculação entre os textos de Êxodo e de Efésios. De fato, é fácil relacionar os textos de Êxodo e de João. O evangelho narra o encontro de uma multidão com Jesus. Aquela multidão fora alimentada gratuitamente com os pães e peixes multiplicados pelo Senhor. Ao encontrá-lo, as próprias pessoas referiram-se ao maná no deserto. Jesus aproveitou para declarar: Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim jamais terá fome, e quem crê em mim jamais terá sede (Jo 6.25). Por sua vez, o texto de Efésios fala de Jesus como aquele que desceu dos céus (Ef 4.10). Recomenda que as pessoas deixem de ser crianças instáveis (Ef 4.14), exatamente como ocorrera com o povo de Israel no deserto. Também apela para que as pessoas cristãs, diferentemente do povo de Israel, que murmurara contra Deus no deserto, vivesse de maneira digna da vocação a que fora chamado, com toda a humildade [...] (Ef 4.1). Nesses três pontos destacados é possível estabelecer conexão com o texto da prédica.

2 Exegese Deserto: lugar de tentação ou caminho de libertação? (v. 1) Na Bíblia, temos duas interpretações para o significado do deserto. Para constatarmos isso, basta examinar dois textos antagônicos a respeito da peregrinação apresentada no livro do Êxodo: Diz o Senhor: A casa de Israel se rebelou

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contra mim no deserto, não andando nos meus estatutos e rejeitando os meus juízos [...] (Ez 20.13; cf. Ez 20.10-25). Assim diz o Senhor: “Lembro-me de você, meu povo, da sua afeição quando era jovem, do seu amor quando noiva e de como você me seguia no deserto, numa terra que não é semeada” (Jr 2.2). Na verdade, não há que se optar entre as duas alternativas. De fato, o termo deserto contém essa ambiguidade. Não é isso o que demonstra a narrativa do que ocorreu com Jesus? O texto do evangelho afirma que ele foi levado para o deserto para ser tentado pelo diabo e, ao mesmo tempo, que ele permaneceu fiel e saiu fortalecido para iniciar seu ministério. Ou, como diz o Evangelho de Marcos, no deserto, Jesus estava com as feras e os anjos o serviam (Mc 1.13). Murmuração: simples crítica ou verdadeira rebelião? (v. 2) A tradução de Almeida refere-se à murmuração, que tem o sentido de criticar, lastimar, queixar-se etc. Na verdade, o termo hebraico tem um significado muito mais intenso. Refere-se, de fato, a uma rebelião. Além disso, deve-se notar que o texto bíblico não fala simplesmente da queixa do povo (texto paralelo de Nm 11.1), mas de uma rebelião de toda a congregação de Israel (Êx 16.2), o que possui um significado mais específico, referindo-se à “assembleia do povo de Deus” ou, ainda, à “comunidade reunida”. Rebelião: contra Moisés ou contra Deus? (v. 8) Outra questão importante é contra quem o povo estava se rebelando organizadamente. O texto bíblico, por um lado, repete duas vezes que a rebelião era contra Moisés e Arão (Êx 16.2,3), mas, por outro lado, em ambas as ocasiões, afirma que a rebelião era contra Deus (Êx 16.7-19). Na verdade, Moisés e Arão consideravam-se simples representantes de Deus. Não eram eles os heróis da libertação, mas Deus era o grande libertador. Egito: visão do passado correta ou idealizada? (v. 3) Um argumento forte a favor da rebelião apresentado pelo povo procede da comparação entre a situação vivida no Egito e a situação vivida no deserto. É certo que o deserto era o caminho da libertação. Porém não era um caminho suave e florido. Ao contrário, era um caminho de privações e dificuldades. Nesse caminho, o povo de Israel pôs-se a fazer uma revisão de sua avaliação sobre o passado. Contudo, não era uma revisão justa e imparcial. Na verdade, era uma revisão distorcida, que fornecia uma interpretação idealizada do passado. O Egito não era mais relembrado como local em que os egípcios, com tirania, escravizaram os filhos de Israel, e lhes amargaram a vida com dura servidão (Êx 1.13,14). Ninguém lembrava mais que os filhos de Israel gemiam por causa da sua escravidão. Eles clamaram, e o seu clamor chegou até Deus (Êx 2.23). No deserto, os filhos de Israel lembravam-se que, no Egito, sentavam-se junto às panelas de carne e comiam pão à vontade (Êx 16.3). Certamente, era uma interpretação idealizada

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do passado causada pelas dificuldades do presente. Tal interpretação trazia no seu bojo o desejo de volta a um passado que nunca existira e a desistência de uma caminhada rumo a um promissor futuro de liberdade. Pão do céu: fé em Deus ou confiança no acúmulo? (v. 4) Diante da rebelião do povo de Israel, o Senhor se dirige a Moisés e lhe diz: Eis que farei chover do céu pão para vocês (Êx 16.4). Carlos A. Dreher explica claramente a origem do “pão do céu” representada pelo maná e pelas codornizes: Tais milagres, na verdade, são fenômenos naturais, comuns na região do Sinai até hoje. As codornizes são aves que, por volta de setembro, ao voltarem de sua migração para a Europa, já cansadas pelo longo voo e impulsionadas pelo vento sobre o mar, pousam no deserto, semimortas de cansaço. Então fica bem fácil capturá-las. O maná é resultado do trabalho de pequenos insetos que sorvem a seiva de algumas tamareiras para alimentar suas larvas. Deixam o resto cair no chão, em forma de pequenas gotas endurecidas e com sabor de mel. Tais gotas ficam parecendo pequenas sementes espalhadas pelo solo. E são comestíveis (Proclamar Libertação 36, p. 252s).

Aqui temos dois pontos a destacar: a) Jesus aproveitou exatamente a imagem do pão do céu, destacando que assim como Deus deu, pela sua graça, o pão do céu para alimentar os filhos de Israel no deserto, da mesma forma, referindo-se a si mesmo, ele é o verdadeiro pão do céu que dá vida ao mundo (Jo 6.33). b) Deus não forneceu alimentação antecipada para todos os dias da peregrinação. Ao contrário, a cada dia, os filhos de Israel tinham de colher o maná suficiente para o sustento de um dia somente. Não deviam acumular para garantir todo o sustento, mas tinham de se colocar na dependência de Deus, confiando, a cada dia, na sua providência. Aliás, foi isso mesmo o que o Senhor Jesus ensinou aos seus discípulos quando lhes disse para orarem dizendo: O pão nosso de cada dia nos dá hoje. Provação: o ser humano prova Deus ou Deus prova o ser humano? (v. 4) A rebelião dos filhos de Israel pode ser interpretada, realmente, como um ato deliberado de colocar Deus a prova. Isso não é descrito exatamente com tais palavras no texto bíblico da prédica. Contudo, é exatamente dessa maneira que a rebelião é interpretada na ótica divina em outros textos (Nm 14.11,22). Isso quer dizer que, mesmo depois de terem presenciado grandes e poderosos milagres da atuação divina, os filhos de Israel ainda não depositavam sua confiança em Deus. Ao contrário, desejavam ter mais garantias da presença de Senhor em seu meio. Na verdade, isso ocorre frequentemente. Na dúvida, o ser humano sempre quer ter provas e mais provas da presença contínua de Deus. Diante da falta de fé do ser humano, que busca provar Deus, o Senhor não se submete, mas faz exatamente o oposto, ou seja, Deus coloca o ser humano a prova. Foi o que ocorreu no deserto. Ao prometer a chuva de pão do céu, ele ordenou que o povo saísse e recolhesse

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somente a porção para cada dia, declarando: Eu os porei à prova [...] (Êx 16.4). Em outras palavras, enquanto os filhos de Israel desejavam uma solução definitiva para seu problema de alimentação, Deus respondia concedendo uma solução provisória. Eles estavam sendo provados pelo Senhor que tencionaram provar. A resposta de Deus: lei ou graça? (v. 9) Já destacamos que essa rebelião dos filhos de Israel contra Deus não foi a única a ocorrer no tempo da peregrinação. No texto semelhante de Números, o Senhor respondeu a Moisés que foram dez as rebeliões. Certamente, aquele povo era rebelde. No texto da prédica deste domingo, ao afirmar que iria colocar os filhos de Israel à prova, Deus acrescentou: [...] para ver se andam na minha lei ou não (Êx 16.4). Diante dessa expressão, somos levados a concluir que o Senhor é um Deus legalista, ou seja, uma divindade que exige obediência à sua lei para se relacionar com o seu povo? Se assim for, tendo em vista a rebelião dos filhos de Israel, então Deus deveria aguardar, primeiramente, arrependimento e mudança de vida para, posteriormente, providenciar socorro. No entanto, segundo o texto bíblico, nada disso sucedeu. De fato, o povo revoltou-se e acusou Moisés e Arão de trazê-lo para o deserto a fim de matá-lo. Diante da rebelião, Deus declarou: Cheguem-se à presença do Senhor, pois ele ouviu as murmurações de vocês (Êx 16.9). De um lado, pois, estava um povo rebelde; de outro lado, estava um Deus gracioso. Aliás, no texto semelhante de Números, quando o povo se revoltou, Moisés intercedeu por ele junto ao Senhor. Nessa oportunidade, em nenhum momento, argumentou em favor do seu povo destacando suas virtudes, boas obras ou obediência à lei divina. Foi exatamente o contrário. Moisés orou dizendo: Perdoa, pois, a iniquidade deste povo, segundo a grandeza da tua misericórdia e como também tens perdoado a este povo, desde a terra do Egito até aqui (Nm 14.19). Portanto Deus não respondeu à rebelião com os rigores da lei, mas com a manifestação de sua maravilhosa graça.

3 Meditação Neste momento em que estamos preparando este auxílio homilético, nosso mundo atravessa uma crise terrível, provocada pela Covid-19. Tudo começou numa província chinesa, no ano de 2019, de onde surgiram as primeiras notícias de uma epidemia provocada por um novo vírus, contra o qual não existiam medicamentos eficazes. Rapidamente, aquela província foi fechada, mas, mesmo assim, já era tarde demais. Com uma velocidade incrível, o vírus foi se espalhando. Finalmente, chegou ao nosso país. Já não era uma epidemia, mas uma pandemia, segundo a Organização Mundial da Saúde. No Brasil, juntamente com a grave crise no setor da saúde, acrescentaram-se a crise econômica e a crise política. Diante disso, passou-se a falar de uma crise sem nenhum precedente na história de nosso país. Decretou-se o isolamento das pessoas nas suas casas e o distanciamento social. Com isso, também o campo religioso foi afetado. Os tem-

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plos tiveram de permanecer fechados. Os cultos e demais atividades das igrejas passaram a ser virtuais. Nesse contexto, a boataria tornou-se imensa, inclusive a boataria de teor religioso. Muita gente começou a identificar na crise atual o início do fim do mundo, utilizando para isso versículos bíblicos isolados, totalmente fora de seu contexto. Por isso sugerimos como tema para a prédica deste domingo a ideia de crise (qualquer crise). A crise não tem somente um sentido negativo. Ela não significa somente fim, mas também oportunidade. Foi exatamente isso o que ocorreu na grave crise enfrentada pelos filhos de Israel, segundo o texto principal da prédica. Inicialmente, eles foram beneficiados por José, filho de Jacó. Receberam, no Egito, a terra de Gósen para habitar e nela adquiriram propriedades, foram fecundos e se multiplicaram (Gn 47.27). Depois, com a subida de um novo faraó (talvez o início de uma nova dinastia), passaram a viver como escravos. O sofrimento foi tão intenso, que houve um clamor ao Senhor que, em resposta, providenciou a libertação por intermédio de seu servo Moisés, prometendo levar os filhos de Israel para uma terra boa e ampla, terra que mana leite e mel (Êx 3.8). Foi com essa promessa divina que eles saíram do Egito. Estavam deixando a terra da escravidão para a terra da liberdade. Havia, contudo, um porém: entre a terra da escravidão e a terra da liberdade havia o deserto. E foi no deserto que sobreveio a crise: a crise da fome, a crise da falta de água, a crise da peregrinação, a crise da dúvida da presença de Deus. Nessa crise, os filhos de Israel sentiram que tinham chegado ao fim. Por isso disseram a Moisés e Arão: Vocês nos trouxeram a este deserto a fim de matarem de fome toda esta multidão (Êx 16.3). Temos de entender bem a atitude do povo. Afinal, os filhos de Israel habitaram o Egito por 430 anos (Êx 12.40). Foram séculos de opressão, em uma situação de vida à qual tinham se acostumado. Por mais contraditório que possa parecer, na escravidão, os filhos de Israel estavam na sua zona de conforto. A libertação foi o rompimento com a estabilidade da escravidão. A peregrinação pelo deserto representava a novidade desconhecida. Não dispunham de um mapa de viagem a ser seguido. Caminhavam seguindo uma coluna de nuvem durante o dia e seguindo uma coluna de fogo durante a noite (Êx 13.21). Caminhavam como Abraão tinha caminhado, sem saber o caminho (Gn 12.1-4). Ou, como escreveu o poeta espanhol Antônio Machado (1875-1912): “Caminhante, não há caminho; o caminho se faz ao caminhar”. Contudo, essa crise da libertação e da peregrinação sem rumo conhecido previamente também era a oportunidade de uma nova vida. Não a vida de segurança na zona de conforto da escravidão, mas a vida de fé na liberdade em uma terra desconhecida. Indicamos, a seguir, ainda que rapidamente, alguns aspectos da oportunidade oferecida pela crise vivida pelos filhos de Israel na peregrinação.

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Oportunidade de viver olhando para frente O texto da prédica indica claramente que os filhos de Israel, diante da insegurança da vida de peregrinação no deserto, olharam para trás. Não viram as oportunidades do futuro nem as agruras do passado. Pior ainda: perderam a memória fiel do passado, passando a enxergá-lo como um tempo de bem-aventurança. Podemos lembrar aqui as palavras do Senhor Jesus que disse: Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus (Lc 9.62). Era isso o que o povo de Israel tinha de aprender, caminhando com fé no futuro providenciado por Deus. Oportunidade de viver com confiança sob a soberania de Deus Uma característica do ser humano é a busca do controle da existência. Foi exatamente isso o que demonstrou Jesus na parábola do rico tolo. Nela, ele falou de um homem que se preocupou em acumular bens. Sua intenção era a de possuir tanta riqueza a ponto de poder dizer para si mesmo: Você tem em depósito muitos bens para muitos anos; descanse, coma, beba e aproveite a vida (Lc 12.19). Mas Deus lhe disse: Louco! Esta noite pedirão a sua alma; e o que você tem preparado, para quem será? (Lc 12.20) Não é fácil viver com segurança tendo fé na soberania de Deus! Mas era isso que os filhos de Israel teriam de aprender recolhendo o maná para cada dia. Oportunidade de viver sob a graça de Deus Uma característica que marcou a peregrinação dos filhos de Israel no deserto foi a murmuração contra Deus. Tal rebelião pressupõe a exigência de um direito que lhes fora concedido, visto terem sido eleitos por Deus como filhos de Abraão. No entanto, a libertação da escravidão não era o atendimento a um direito, mas a manifestação da graça de Deus. O mesmo se pode dizer a respeito da concessão divina de sustento em pleno deserto. Em tudo, Deus estava, solicitamente, manifestando a sua graça. Podemos lembrar aqui a pregação de João Batista no deserto, na qual, dirigindo-se aos fariseus e saduceus, disse: Raça de víboras! [...] Não pensem que podem dizer uns aos outros: “Temos por pai Abraão [...]” (Mt 3.8). Os filhos de Israel precisavam, pois, aprender que nada podiam reivindicar, mas tão somente viver sob a graça de um Deus amoroso.

4 Imagens para a prédica O nosso sustento vem do Senhor Um jovem pastor foi visitar uma igreja que pretendia convidá-lo para o pastorado. Depois, foi visitar um colega mais velho para lhe contar as novas. Ele apresentou uma adversativa terrível:

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– O problema é que eles não estão oferecendo um bom salário e, pelo que estão oferecendo, eu não vou. O colega mais experiente ficou desapontado. Quando o jovem pastor se retirou, um dos filhos do pastor disse: – Que coisa triste colocar o dinheiro em primeiro lugar! Todas as vezes que nos mudamos, você nunca colocou o salário em primeiro lugar. Constrangido, o pai completou: – Deus nunca deixou faltar nada. O sustento vem dele.1 Pegadas na areia Uma noite eu tive um sonho... Sonhei que andava a passear na praia com o Senhor e, no firmamento, passavam cenas da minha vida. Em cada cena que passava, percebi que ficavam dois pares de pegadas na areia: um era meu e outro era do Senhor. Quando a última cena da minha vida passou diante de nós, olhei para trás, para as pegadas na areia, e notei que muitas vezes, no caminho da minha vida, havia apenas um par de pegadas na areia. Notei também que isso aconteceu nos momentos mais difíceis e angustiosos do meu viver. Isso me aborreceu e perguntei ao Senhor: – Senhor, tu disseste-me que andarias sempre comigo, em todos os caminhos. Contudo, notei que, durante as maiores atribulações do meu viver, havia apenas um par de pegadas na areia. Não compreendo por que, nas horas em que eu mais necessitava, tu me deixaste sozinho. O Senhor respondeu-me: – Meu querido filho. Jamais te deixaria nas horas da prova e do sofrimento. Quando viste, na areia, apenas um par de pegadas, eram as minhas. Foi exatamente aí que eu te carreguei no colo.2 Caminhante Caminhante, são teus passos o caminho e nada mais. Caminhante, não há caminho; faz-se caminho ao andar. Ao andar se faz caminho e, ao voltar a vista atrás, se vê a senda que nunca se voltará a pisar. Caminhante, não há caminho, mas sulcos de escuma ao mar.3

MORAES, Jilton. Ilustrações e Poemas para Diferentes Ocasiões. São Paulo: Editora Vida, 2010. p. 114. 2 Autoria reivindicada por várias pessoas. 3 Antonio Machado, Poema XXIX de Provérbios e Cantares. 1

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5 Subsídios litúrgicos Oração suplicando esperança Deus de nossas vidas, tu nos chamas para seguir-te rumo ao futuro. Tu nos convidas a novas aventuras, a contemplar novos horizontes. Tu sempre encontras novas maneiras de tocar o nosso coração. Quando estivermos com medo do desconhecido, dá-nos coragem. Quando nos lamentarmos considerando-nos incapazes, e quando nos sentirmos cansados e desapontados, relembra-nos que tu geras o novo e a esperança.4 Oração de gratidão Graças, Senhor, pela graça da vida e da ressurreição. Graças pelo corpo maravilhoso que nos deste, pelo ar que respiramos, pelo chão que pisamos, pelo céu que nos cobre. Graças pelo corpo espiritual que há de vir, pela ressurreição em Cristo para a herança do reino. É maravilhoso, Senhor, saber que os que choram serão consolados; os humildes serão exaltados; e os mansos herdarão a terra. Graças, Senhor, pela paz que virá depois das aflições, das lutas e das guerras. Graças, Senhor, pela tua igreja. Graças, Senhor, pela graça da fé que nos reconcilia com a tua justiça e nos permite a graça de te agradecer. Amém. (Autoria desconhecida.) Bênção Nas noites do deserto, que o Senhor caminhe à nossa frente. Nas tempestades da vida, que o Senhor seja a nossa proteção. Nas incertezas da alma, que o Senhor seja a nossa esperança. Nas alegrias e nas vitórias, que ao Senhor seja o nosso louvor. A bênção do Deus Pai, Filho e Espírito esteja sempre conosco. Amém!5

Bibliografia BORTOLINI, José. Roteiros Homiléticos – Anos A, B, C – Festas e Solenidades. São Paulo: Paulus, 2012. BUZZI, A. R.; BOFF, Leonardo (Coord.). A Mesa da Palavra. Petrópolis: Vozes, 1983. DAVIDSON, F. (Ed.). O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1963.

ALVES, Rubem (Org.). CultoArte – Celebrando a Vida – Tempo Comum. Petrópolis: Vozes; Cebep, 2000. p. 29. 5 ALVES, Rubem (Org.). CultoArte – Celebrando a Vida – Quaresma e Páscoa. Petrópolis: Vozes; Cebep, 2001. p. 36. 4

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PRÉDICA: JOÃO 6.35,41-51 1 REIS 19.4-8 EFÉSIOS 4.25 – 5.2

11º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

08 AGO 2021

André Martin

Deus nos dá pão! Pela fé, nos alimentamos para a vida eterna!

1 Introdução Para este final de semana, em que também temos a comemoração do Dia dos Pais, o texto bíblico de João 6.35,41-51, que nos inspira à reflexão, traz vários aspectos importantes para a nossa vida de fé. Mas, uma vez lendo e comparando nossa perícope proposta com as demais leituras bíblicas (1Rs 19.4-8 e Ef 4.25 – 5.2), salta-nos aos olhos o agir de Deus, dando pão, dando condições ao povo. Em 1 Reis, Deus age, interfere na situação do profeta Elias e com pão o sacia, dando-lhe forças para seguir seu caminho até o monte Sinai. Em João, texto da pregação, o agir de Deus traz o pão da vida, Jesus Cristo, ao alcance de todas as pessoas. Quem o recebe e dele se alimenta pela fé tem a vida eterna. Por fim, o texto de Efésios nos mostra todo um rol de como vivem as pessoas que se alimentam com o pão da vida e em fé o recebem.

2 Exegese O texto tem como contexto o milagre da multiplicação dos pães e peixes no início do capítulo 6. Jesus saciou a fome física da multidão, e por isso ela o segue e continua pedindo por sinais. Jesus mesmo afirma, no v. 26, que o povo o está procurando não pelos sinais, mas pelo pão com o qual ele os fartara. A multidão pede mais um sinal, demonstrando que o anseio dela é pão, pois evoca a lembrança de que Moisés providenciara maná para o povo na travessia do deserto. Jesus, então, dá um passo adiante na sua explanação e fala de um outro tipo de pão, um pão que também desceu do céu, mas, ao contrário do maná, sacia para sempre! Ansiosos por esse pão, o povo pede para que Jesus, assim como Moisés, lhe dê sempre desse pão. Jesus então dá a conhecer sobre qual pão ele está falando. Vale ressalta que não encontramos grandes diferenças de tradução que mereçam ser ressaltadas. Qualquer das traduções no português servirá como uma boa base. Também não diferem da tradução de Martim Lutero na Bíblia em alemão. Analisaremos o texto por pequenos blocos de versículos. V. 35 – O versículo inicia com Jesus dizendo: Eu sou [...]. No versículo anterior, as pessoas pedem a Jesus desse pão do qual ele estava falando. Neste

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caso, Jesus é enfático e diz: “Eu sou”. Jesus usa esta expressão “Eu sou” em outros momentos de seu ensinamento também. Werner de Boor atenta para esse recurso do idioma grego de acentuar o “Eu” como forma de mostrar que ante as muitas opções de pão que talvez se colocassem diante do povo, Jesus detém a exclusividade. Também que Jesus não busca falar de forma abstrata ao povo. Ele quer reafirmar que o pão da vida existe e que é ele. O pão da vida não pode ser recebido de outra forma a não ser em Cristo (BOOR, 1977, p. 199). V. 41 a 42 – Estes versículos fazem uma ponte com o v. 35, pois demonstram a reação das pessoas quando Jesus se declara como sendo o pão da vida que desceu do céu. A incredulidade toma conta. Os contemporâneos de Jesus não conseguem perceber nele, Jesus, filho de José e Maria, que eles conhecem, o pão da vida descido do céu. Por isso a murmuração contra a afirmação de Jesus. Como ele ousa afirmar que desceu do céu se conhecem o pai e a mãe dele? V. 43 e 44 – Aqui o “murmurar” da multidão volta à tona. Se o maná acompanhou o povo de Israel na travessia do deserto, o “murmurar” também fez parte dessa travessia. E Jesus se confronta com o murmúrio da multidão ante as suas palavras. Jesus reafirma que somente pode vir a ele aquele a quem Deus trouxer. V. 45 e 46 – Jesus mostra de que forma as pessoas vem a ele, lançando mão daquilo que os profetas já ensinaram (conforme Isaías 54.13 – Observação constante na Bíblia em Língua Alemã, tradução de Lutero). Jesus reafirma que aquelas pessoas que, da parte de Deus, tem ouvido e aprendido, essas vêm a ele. Os ensinamentos de Deus, dados a partir dos profetas, levam a Jesus Cristo. V. 47 – Aqui novamente vem uma expressão muito conhecida e usada por Jesus para denotar a importância das palavras que virão: Em verdade, em verdade, vos digo, e aqui a fé é colocada em evidência. Quem crê em Jesus tem a vida eterna. Quem, pela fé, recebe Jesus como o pão da vida tem a vida eterna. V. 48 a 50 – Aqui Jesus novamente remete à murmuração da multidão reunida. Jesus remete à lembrança do maná do deserto. O povo não estava satisfeito com o pão distribuído por Jesus na multiplicação. Eles querem maná. O pão que Jesus distribuiu matou a fome momentânea. A multidão quer mais. Ela quer o maná, que garantiu a subsistência do povo na travessia do deserto por anos a fio. A multidão quer um sustento mais duradouro. Então Jesus retoma e diz ser ele mais do que a multidão esperava. Ele é o pão da vida. O maná do deserto garantiu sustento por décadas, mas não evitou a morte. Jesus é o pão que desce do céu, assim como o maná, mas quem dele comer não mais perecerá, não mais deixará de viver. V. 51 – Aqui novamente Jesus inicia com a expressão “Eu sou”. Faz referência a ele mesmo como o pão que procede de Deus, mas ressalta que aquela pessoa que dele comer terá a vida eterna. E Jesus termina o versículo indicando que a sua carne é o pão que ele dará pela vida do mundo.

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3 Meditação Dia dos Pais! Penso que não há como fugir de incluir essa data em nossas celebrações. Em muitas comunidades há homenagens. Não queremos colocar a figura paterna como provedora exclusiva do pão, mas é um gancho que poderemos fazer. Afinal de contas, o que é o pão em nossos dias? Pão é alimento milenar. Símbolo de sustento. No texto do Antigo Testamento, o pão é dado pelo próprio Deus ao profeta Elias, dá forças para a caminhada. O pão físico, o alimento nutricional revigora. Quantas vezes nosso próprio corpo já não pediu pão? E como sentimos quando o pão, sintetizando o alimento, falta. Fome não é algo fácil para lidar, embora muitos pais precisam lidar com a própria fome e com a fome de filhos e filhas sem, muitas vezes, encontrar quem lhes dê uma fatia sequer do famoso alimento. Jesus se apresenta como o pão da vida, o pão vivo que desceu dos céus. Claro que Jesus está atento para a fome física e, inclusive, aplaca a fome da multidão no milagre da multiplicação dos pães e peixes. Jesus não está alheio às necessidades físicas das pessoas. Mas Jesus dá um passo adiante, abre os olhos daqueles que o seguem e se apresenta como o pão que desceu do céu. Um pão que aplaca a fome e não deixa mais morrer. Encontrar o pão da vida em Cristo Jesus é fruto do conhecimento de Deus. Quem experimenta desse pão da vida tem sua existência transformada e viverá para sempre. O pão físico nos dá forças para seguir vivendo. Jesus, o pão da vida, nos dá forças não apenas para viver, mas para viver de acordo com os propósitos de Deus, viver de acordo com o que o texto de Efésios nos traz. O pão da vida nos dá forças para vivenciar sinais do reino de Deus já agora e nos leva a viver no reino de Deus na plenitude da eternidade. Comer do pão da vida nos dá forças para continuar divulgando que o pão físico precisa ser concedido a todas as pessoas. Ele nos dá forças para afirmar que o pão físico não pode ser subtraído de outras pessoas. Deus nos dá o pão da vida, Jesus Cristo, para que vivamos conforme nos é relatado em Efésios. Deus nos dá o pão da vida para que, ao cansarmos, nos restabeleçamos tal qual o profeta Elias em 1 Reis. Como um Pai amoroso que é, Deus quer que todos os seus filhos e as suas filhas experimentem do pão da vida. Que sejamos todos e todas ensinados por Deus para que, em meio a tantas ofertas de pão, ofertas de sustento, ofertas de alento, escutemos a enfática voz de Cristo ecoando ainda hoje e nos orientando: Eu sou o pão da vida, quem vem a mim jamais terá fome e quem crê em mim jamais terá sede. Se as orientações de Efésios 4. 25 – 5.2 não estiverem sendo vivenciadas, a cristandade não está se alimentando de Cristo, o pão da vida.

4 Imagens para a prédica • Lembrar que pão é tudo o que está relacionado ao nosso sustento, conforme explicação dada por Martim Lutero.

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• Talvez possamos fazer a pergunta aos pais presentes na celebração: “Como vocês se sentiriam se não pudessem dar o pão de cada dia a seus filhos e suas filhas, à família? • Por que o pão, ainda hoje, continua não fazendo parte da realidade de muitas pessoas mundo afora e também perto de nós?

5 Subsídios litúrgicos Culto Eucarístico, com especial ênfase ao Cristo que diz: “Eu sou o pão da vida”. Durante a distribuição da Ceia, sugiro cantar: LCI 279 – Comam do Pão, bebam do Cálice. A exemplo dos Dez Mandamentos, podemos fazer uma adaptação. Lanço uma sugestão: 1. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”, por isso honra e serve somente a Deus, pois ele te dá segurança. 2. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”, por isso lembra de orar e agradecer a Deus, pois ele te dá sustento. 3. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”, por isso tira tempo para te abastecer de Deus, pois só assim sentirás a plena realização. 4. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”, por isso te abastece desse pão para que haja pleno convívio entre as gerações. 5. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”, por isso te abastece desse pão para que haja pleno respeito por todas as formas de vida e a morte não encontre espaço. 6. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”, por isso te abastece desse pão para que o amor e o respeito sejam abundantes nos relacionamentos. 7. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”, por isso te abastece desse pão para que haja respeito e igualdade de oportunidade tanto na produção quanto na partilha de tudo que nos dá sustento. 8. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”, por isso te abastece desse pão para que encontres ânimo em relatar toas as coisas boas que tens vivido. 9. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”, por isso te abastece desse pão para que percebas que Deus te dá o suficiente para viver. 10. Jesus Cristo diz: “Eu sou o pão da vida”; ele te convida e por ti se entrega!

Bibliografia BOOR, Werner de. Das Evangelium des Johannes, 1 Teil, Kapitel 1 bis 10. In: Wuppertaler Studienbibel. 5. ed. Darmstadt: R. Brockhaus Verlag Wuppertal, 1977. WALDECK, Thomas. In: Homiletische Monatshefte. 82. Jahrgang. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2007. WEIGEL, Edgar. In: Homiletische Monatshefte. 76. Jahrgang. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2001.

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PRÉDICA: EFÉSIOS 5.15-20 PROVÉRBIOS 9.1-6 JOÃO 6.51-58

12º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

15 AGO 2021

Jorge B. Dietrich de Oliveira

Chamados e chamadas para a vida verdadeira

1 Introdução Os textos indicados para o 12º Domingo após Pentecostes apresentam a Sabedoria como caminho para a vida verdadeira. Cada qual apresenta pistas distintas de como desfrutar dessa vida ofertada por Deus. No texto de Provérbios, a Sabedoria constrói sua casa, prepara um banquete e convida para a festa da vida. Ela diz: Deixem a companhia dos tolos e vivam! A vida consiste em conhecer e temer a Deus. No evangelho, Jesus se apresenta como o verdadeiro pão do céu que Deus mandou para dar vida ao mundo. Ele é a vida verdadeira, ele é o alimento e sustento para a vida eterna. Na epístola, Paulo admoesta seus leitores e leitoras a andarem como pessoas sábias, sendo sensatas e procurando compreender qual é a vontade de Deus para suas vidas. Elas devem aproveitar as oportunidades para conduzir aquelas que são de fora a Cristo, demonstrando a sabedoria de Deus por meio do preenchimento do Espírito, falando entre si e louvando ao Senhor com hinos e cânticos espirituais e rendendo sempre muitas graças por tudo o que Deus faz.

2 Exegese A Carta aos Efésios é um escrito doutrinário exortativo aparentemente sem destinatários definidos. Durante três anos Paulo morou e trabalhou na cidade de Éfeso (At 19.1 e 20.31). Era de se esperar, portanto, que ele fizesse alguma referência ao tempo que lá esteve ou mencionasse o nome de pessoas que conhecera tão bem nessa comunidade. No entanto, não existe nenhuma referência nem notícias pessoais de qualquer espécie. Essa carta não trata de nenhum problema específico das pessoas cristãs ou situações reais a quem se destina, como ocorre com as outras cartas paulinas. A referência a Éfeso no início da carta (1.1) falta em diversos manuscritos antigos. Além disso, há indícios de que seus destinatários não eram bem conhecidos do autor (1.15; 3.2; 4.20). Portanto esse documento parece mais um sermão ou uma carta circular que contém a síntese da mensagem paulina dirigida a cristãos gentios da Ásia. É provável que Paulo tenha escrito essa mensagem na mesma época da Epístola aos Colossenses, devido à semelhança entre elas e pelo fato de mencionarem Tíquico como portador de ambas (Ef 6.21; Cl 4.7). Esse tratado pode ser dividido em duas grandes partes. A primeira é doutrinal (1 – 3). Fala da igreja, que se baseia na morte e ressurreição de Jesus, que

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une gentios e judeus num só corpo. A segunda parte (4 – 6) é parenética e enfatiza quais deveriam ser as consequências práticas para a vida e as relações humanas. A perícope em estudo faz parte desse segundo bloco, que apresenta um grande complexo de admoestações e recomendações práticas para a vida cristã. V. 15 – No contexto menor anterior (5.1-14), Paulo exorta as pessoas crentes a serem imitadores de Cristo, afastando-se das obras infrutíferas das trevas e permanecendo na luz de Cristo. Agora, o apóstolo recomenda que os leitores e as leitoras mantenham um controle dos princípios pelos quais governam suas vidas. Portanto, vede prudentemente como andais significa: sede estritamente cuidadosos acerca da vida que levais. Não como néscios, e sim como sábios: a admoestação de andar como pessoas sábias está fortemente enraizada na tradição judaica. Também os gregos apreciavam muito a sabedoria. Por isso Paulo aborda esse tema em diversas passagens da carta. Lembra que eles receberam a sabedoria de Deus (1.8,17) e devem demonstrá-la em suas vidas (3.10), tal como a afirmação de Colossenses 4.5: Portai-vos com sabedoria para com os que são de fora, aproveitando as oportunidades. V. 16 – Andar em sabedoria tem a ver com o uso adequado do tempo e a oportunidade dada por Deus (kairos). Paulo lembra que os dias são maus, ou seja, os seguidores e as seguidoras de Cristo enfrentam condições desfavoráveis. Por isso devem usar cada oportunidade para conduzir outros das trevas para a luz. Cada oportunidade deve, portanto, ser aproveitada antes que seja tarde demais. V. 17 – Não vos torneis insensatos dá a entender que os leitores e as leitoras corriam o risco de saírem do estado de integridade e bom senso com que começaram a agir. Para aproveitar as oportunidades, deviam compreender a vontade do Senhor para o seu tempo. Paulo repetidamente apresenta essa procura em conhecer e fazer a vontade de Deus como prioridade no andar diário da pessoa cristã. A verdadeira sabedoria consiste em vivermos em conformidade com o plano de Deus para nossas vidas, para que compartilhemos da imagem de Cristo, de sua plenitude (1.23) e da própria plenitude de Deus (3.19). V. 18 – A embriaguez é apresentada como um exemplo concreto da falta de bom senso. Por isso a recomendação apostólica não exige abstinência completa do “vinho”. Mas a ausência de autocontrole não deveria ser vista naqueles que encontraram em Cristo a origem e o caminho da sabedoria. O apóstolo propõe um caminho melhor para estimular a mente, a palavra e a ação, do que pelo uso de bebidas alcoólicas. Enchei-vos do Espírito significa deixar sua vida aberta para ser constante e repetidamente cheia pelo Espírito de Deus. Paulo já havia dito que eles foram selados pelo Espírito (1.13-14) e que não deveriam entristecer o Espírito (4.30). Agora ele ordena: sejam cheios do Espírito. V. 19 – Em vez da embriaguez, deve haver um extravasamento na forma de cântico e louvor, pois a música é a expressão do pulsar do coração das pessoas e tem um grande lugar na vida e na adoração da igreja. As pessoas cristãs também celebram suas festas e expressam seus sentimentos, mas sob a orientação do Espírito Santo. Na comunhão, onde quer que os seguidores e as seguidoras de Cristo se encontrem reunidos, há alegria por meio de hinos e cânticos de adoração a Deus de todo o coração (Cl 3.16-17).

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V. 20 – E o apóstolo instrui que a pessoa cristã, seja em cânticos, seja de outras maneiras, deve viver dando sempre graças por tudo ao nosso Deus. O agradecimento em nome de nosso Senhor deve ser entendido no sentido de Romanos 8.32ss, onde Deus é louvado pelo fato de já ter dado a nós seu Filho, esperando-se que, por esse motivo, venha a nos dar também todas as coisas.

3 Meditação O texto da pregação é por demais desafiador, pois nos exorta a examinarmos a maneira como estamos vivendo e testemunhando a fé em Cristo perante outras pessoas. Todos os dias, vivenciamos as mais diferentes experiências no convívio com pessoas e situações, quando necessitamos agir com sabedoria para o bom testemunho do reino de Deus. Será que nos portamos como filhos e filhas de Deus em meio às situações adversas da vida no contexto relacional humano? E o que seria agir com sabedoria? Para o autor da epístola, a sabedoria é o caminho para a vida verdadeira. Ele usa o contraste para falar sobre estilos de vidas diferentes. Em versículos anteriores ele contrasta velho e novo ser humano, luz e trevas (4.22-23; 5.8-13). Aqui ele usa sabedoria e insensatez para falar de um modo de comportar-se, da maneira de viver. A primeira recomendação para alcançar a vida verdadeira é aproveitar bem todas as oportunidades que temos para progredir no caminho da sabedoria, cuidando para que nossa vida seja agradável a Deus e aos irmãos e irmãs, a fim de alcançar as pessoas de fora para Cristo. Nossa conduta é importante, pois a maneira como nos portamos no tempo presente se encontra ligada com o bom testemunho perante “os de fora”. Também nós enfrentamos dias maus. Enquanto elaboro este estudo, o Brasil está mergulhado numa crise sem precedentes. Não apenas pela pandemia da Covid-19, que gerou o caos na saúde e milhares de mortes, mas também por uma recessão econômica, desemprego em massa e uma enorme crise na política e na sociedade em geral. O mundo que conhecemos não será mais o mesmo depois dessa crise, que acelera transformações nos relacionamentos, gerando mudanças profundas no comportamento e no estilo de vida de todas as pessoas. Forçosamente, os hábitos a partir de agora tendem a ser outros. Diante disso, somos chamados e chamadas a aproveitar as oportunidades para testemunhar a vida verdadeira, promovendo a paz, a justiça e a vida digna para todos e todas. Assim, podemos estabelecer nosso comportamento para com os outros no modelo do perdão e da graça de Deus para conosco. A segunda dica é crescer no conhecimento da vontade de Deus. Paulo está dizendo que uma pessoa sábia é aquela que aproveita bem seu tempo, vive procurando qual é o propósito de Deus para sua vida, busca compreender e praticar a vontade do Senhor. A verdadeira sabedoria consiste em vivermos em conformidade com o plano de Deus para nossas vidas. Deus revela seu plano por meio de sua Palavra, de seu Espírito em nossos corações e das circunstâncias nos relacionamentos dentro da comunidade cristã e com o mundo em geral.

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Uma terceira dica para desfrutar da vida verdadeira é dar lugar ao Espírito Santo. Paulo recomenda, em vez de vinho, enchei-vos do Espírito. Como fazer isso? Segundo Paulo, o Espírito Santo enche nossa vida à medida que louvamos a Deus e somos gratos e gratas a ele por todas as coisas. A passagem bíblica afirma: falando entre vós. Isso nos apresenta a ideia da coletividade. Claro que há lugar para as experiências individuais na espiritualidade cristã, mas a congregação dos filhos e filhas de Deus é parte indispensável para o enchimento do Espírito e a vivência da vida verdadeira. Quando o apóstolo fala sobre entoar salmos, louvar de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais, somos lembrados que a adoração, em essência, é marcada pela genuína busca de Deus e pela gratidão, que é inclusiva e alcança todos os meandros da nossa existência. Está expressa uma gratidão por “tudo”. Isso nos livra da murmuração e lança-nos numa confiança plena de que Deus está cuidando das nossas vidas. Assim, o conhecimento da vontade de Deus nos leva a um processo em que nosso comportamento se ajusta a essa vontade divina. Contando com a ação do Espírito, vivemos e testemunhamos a vida verdadeira que Jesus nos dá. Amém.

4 Imagens para a prédica Urgência de viver Esperamos demais para fazer o que precisa ser feito, num mundo que só nos dá um dia de cada vez, sem nenhuma garantia do amanhã. Enquanto lamentamos que a vida é curta, agimos como se tivéssemos à nossa disposição um estoque inesgotável de tempo. Esperamos demais para dizer as palavras de perdão que devem ser ditas, para pôr de lado os rancores que devem ser expulsos, para expressar gratidão, para dar ânimo, para oferecer consolo. Esperamos demais para ser generosos, deixando que a demora diminua a alegria de dar espontaneamente. Esperamos demais para ser pais de nossos filhos pequenos, esquecendo quão curto é o tempo em que eles são pequenos, quão depressa a vida os faz crescer e ir embora. Esperamos demais para dar carinho aos nossos pais, irmãos e amigos. Quem sabe quão logo será tarde demais? Esperamos demais para ler os livros, ouvir as músicas, ver os quadros que estão esperando para alargar nossa mente, enriquecer nosso espírito e expandir nossa alma. Esperamos demais para enunciar as preces que estão esperando para atravessar nossos lábios, para executar as tarefas que estão esperando para serem cumpridas, para demonstrar o amor que talvez não seja mais necessário amanhã. Esperamos demais nos bastidores, quando a vida tem um papel para desempenhar no palco. Deus também está esperando nós pararmos de esperar. Esperando que comecemos a fazer agora tudo aquilo para o qual este dia e esta vida nos foram dados. É hora de VIVER! (Henry Sobel)

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5 Subsídios litúrgicos Oração de confissão de pecados Misericordioso Deus! Confessamos que temos pecado em pensamentos, palavras, ações e omissões. Não temos te amado de todo o nosso coração, nem as pessoas próximas de nós. Confessamos que muitas vezes não conseguimos realizar o bem que gostaríamos. Sendo assim, magoamos pessoas, ferimos tua Criação e ignoramos tua vontade em nossas vidas. Temos dificuldade em confiar plenamente na tua palavra e em teu amor. Preferimos confiar em nossa sabedoria do que buscar a sabedoria que vem do alto. Quantas vezes agimos como pessoas tolas e assim nos afastamos de ti, de nossa comunidade de fé, da comunhão plena contigo e com nossos irmãos e irmãs. Por tudo isso, ó Deus, confessamos que estamos arrependidos e arrependidas. E pedimos: tem compaixão de nós e perdoa nossos pecados! Por meio de teu Santo Espírito, dá-nos uma nova oportunidade de te servir e trilhar teus caminhos. Caminhos de sabedoria e de conhecimento da tua palavra. Oramos em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém! Oração do dia Deus de amor! Rendemos graças a ti porque ao longo da história sempre de novo tu te voltas para o teu povo e concedes sabedoria e conhecimento de tua vontade. Que teu Espírito Santo abra nossos corações e mentes para ouvir, compreender e viver a tua Palavra. Oramos em nome de teu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, que contigo e com o Espírito Santo vive e reina de eternidade a eternidade. Amém! Oração de intercessão Deus de amor! Nosso coração se alegra por ouvir novamente a tua palavra. Ela nos desafia a sermos sensatos e a procurarmos compreender qual é a tua vontade para nossas vidas. Dá que possamos sempre beber de tua fonte de sabedoria e que possamos assim testemunhar teu amor e tua paz em nosso mundo. Intercedemos por nossa igreja, por seus ministros e ministras e por suas lideranças. Permita que tenhamos ouvidos abertos e atentos para a tua Palavra. Dessa forma, poderemos proclamar e realizar a tua vontade junto a todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas. Intercedemos pelas autoridades de nossa nação. Dá que possam governar com justiça e ética, sem interesses pessoais e visando ao bem comum. Dá a elas também a sabedoria que vem do alto para discernir entre o que é bom e mau. Intercedemos por todas as pessoas que sofrem por doença e pelas famílias enlutadas. Lembramos de............... Entregamos tudo em tuas mãos quando oramos conforme teu Filho Jesus Cristo nos ensinou: Pai nosso... Amém.

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Bênção Que a sabedoria de Deus nos instrua no conhecimento de sua vontade. Que o amor de Jesus Cristo nos sustente na comunhão do seu povo. Que o Espírito Santo nos preencha com sua paz e nos impulsione para o testemunho da vida verdadeira. Assim abençoa-nos o Deus todo poderoso que é Pai, Filho e Espírito Santo (+). Amém.

Bibliografia COMBLIN, José. Epístola aos Efésios. São Paulo: Metodista; São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1987. (Comentário Bíblico – NT). FOULKES, Francis. Efésios. Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1981.

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PRÉDICA: JOÃO 6.56-69 JOSUÉ 24.1-2a,14-18 EFÉSIOS 6.10-20

13º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

22 AGO 2021

Alberi Neumann Paulo Sérgio Macedo dos Santos

O conhecimento liberta a pessoa

1 Introdução Recomendamos a leitura das excelentes contribuições feitas por Guilherme Lieven, no PL 36, e por André Martin, no PL 42, previstas para este 13º Domingo após Pentecostes. Os autores apontam para a confissão de fé, para o reconhecimento necessário de que Jesus é o Messias esperado que se torna alimento para nossas vidas. O texto do evangelho dialoga de maneira absolutamente eficaz com o texto de Josué previsto para o dia de hoje, no sentido de sugerir que seguir e reconhecer Cristo é servir o Senhor com sinceridade. Tanto no texto de Josué como no Evangelho de João se faz urgente e necessária a tomada de decisão, se faz imperioso compreender e aprender tanto com os erros anteriores (Josué) como com as palavras duras do Mestre (evangelho). Por esse motivo, abordaremos neste auxílio o caráter pedagógico existente no texto previsto para a prédica.

2 Exegese O Evangelho de João difere dos outros evangelhos em vários pontos. Vamos destacar dois: primeiro, o fato de João narrar “apenas” sete milagres efetuados por Cristo, apesar de no final do texto o evangelista afirmar que há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos (Jo 21.25). Um segundo ponto refere-se à intensa profusão de diálogos existentes no evangelho. O Cristo joanino utiliza-se de discursos e diálogos como forma de conduzir o ouvinte ao aprendizado e ao discipulado. Suas perguntas nem sempre são compreendidas e suas respostas não esgotam todas as dúvidas. Tanto nas perguntas como nas respostas, o Cristo de João exige de seus interlocutores a reflexão apurada, o exercício constante de pensar sobre sua própria existência e, principalmente, reconhecer em Cristo o Messias, o Mestre enviado. Helmut Koester aponta aproximadamente o ano de 125 EC como provável datação do Evangelho de João. Como um fragmento do evangelho mais ou menos dessa época foi encontrado no Egito (Papiro 52), outros exegetas sugerem uma data próxima ao ano 100. Temos aí, de qualquer forma, uma boa distância cronológica dos outros evangelhos sinóticos. Koester faz a divisão do evangelho

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em quatro blocos: do capítulo 1.1 a 1.51: introdução, incluindo o prólogo, João Batista e a escolha dos 12 discípulos; do capítulo 2.1 a 11.54: Cristo se revela ao mundo; do capítulo 11.55 a 19.42: Cristo se revela aos discípulos e, finalmente, o epílogo do capítulo 20 ao 21, ressaltando o túmulo vazio, a aparição aos discípulos e a aparição a Tomé. Koester afirma ainda que João possui uma herança gnóstica considerável, para a qual a busca pelo verdadeiro conhecimento é essencial para a salvação. Essa “herança” a que Koester se refere pode ser percebida na estrutura do texto. Nos versículos 56 a 59, Cristo nos confronta com palavras que soam assaltadoras aos judeus: comer a carne e beber o sangue de um ser humano. Para os judeus, isso era inconcebível e dificultava ainda mais a compreensão do que Jesus havia dito, principalmente porque isso era o que ele “ensinava na sinagoga”. Em decorrência disso, o bloco dos versículos 60 a 69 mostra todo o estranhamento que essa lição produz. “Quem pode aceitar esses ensinamentos?” E o mestre avisa que era necessário apurar o olhar para compreender a lição. Que o Espírito Santo desvelaria o encoberto e apuraria o foco para o entendimento. Muitos não quiseram fazer a lição, abandonaram Cristo, mas Pedro sentencia ao final do texto: E nós cremos e sabemos que o Senhor é o Santo que Deus enviou. Pedro entendeu a lição.

3 Meditação Cristo se apresenta como um professor neste texto. O Jesus apresentado por João não é um milagreiro, não é um mágico, é um mestre. Ensina o caminho para a vida eterna, mesmo que para isso tenha que se utilizar de palavras duras, ou até mesmo incompreensíveis. Talvez por isso os exegetas atribuam ao último evangelho características gnósticas. Cristo aqui ensina numa sinagoga. Seus seguidores ainda não compreenderam verdadeiramente seu maior ensinamento, o amor. São prisioneiros de toda uma estrutura religiosa punitiva e legalista. Não se deixam entender sentidos diversos da palavra. Cristo anuncia nas entrelinhas que seu corpo morrerá e seu sangue será derramado por amor aos seus “alunos”. No campo da pedagogia, esse sentimento cristão pode ser visto no grande educador, por vezes incompreendido e atacado, Paulo Freire. Freire defende uma educação construída pelo diálogo, assim como Cristo o faz neste texto. Freire afirma que o diálogo franco, aberto e solidário é uma forma profunda de mostrar o amor, pois o amor é um ato de coragem (FREIRE, 2011). Existe ato de coragem maior que se colocar pronto a morrer pela humanidade? Na concepção dos seguidores/alunos de Cristo, isso era inconcebível. Freire afirma que “se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo” (FREIRE, 2011, p. 111). O próprio evangelista João afirma: Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3.16). Aqui Cristo aparece ensinando esse amor de maneira integral, plena. Uma lição que, se não compreendida pelo amor, se torna ainda mais dura, menos

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deglutível. Assim como um bom professor, Cristo, o bom Mestre, quer conduzir seus discípulos ao verdadeiro amor. Por mais dura que pareça a lição, Cristo insiste em ensinar. Ensinar aquilo que é o que importa de verdade: ele é o Messias, ele é o pão vivo que desceu dos céus. Ele se oferece humildemente em sacrifício por amor, por considerar que há muito para aprender, mesmo que as palavras sejam duras. Quando se apresenta como o pão vivo, o alimento que dá vida e produz sentido real para a existência, Cristo mostra que ele é o alimento necessário para as nossas vidas. Assim como o pão de trigo nos dá forças físicas para a caminhada, o Pão da Vida nos anima na mesma, reconhecendo a cada partilha a presença real do Cristo em nosso meio. Por mais duras que pareçam as lições, por mais incompreensível que o Mestre se mostre, o ensinamento será libertador. Paulo Freire calca toda a sua “Pedagogia do Oprimido” em caminho semelhante ao do Evangelho de João: o conhecimento liberta o ser humano. Em João, reconhecer Cristo como verdadeiro Messias é igualmente libertador. Em ambas as proposições, o conhecimento só é possível no amor.

4 Imagens para a prédica Sugerimos que a prédica comece abordando a dificuldade “do compreender”. Talvez um parágrafo ou frase de algum texto de um teólogo, uma teóloga, um filósofo ou uma filósofa que tenha uma mensagem importante, mas que, se não for compreendida, perde toda a sua validade. Perguntar para as pessoas quem se lembra de seu professor ou de sua professora no primário, com aqueles rabiscos, que depois se tornaram letras e ganharam sentido, como, por exemplo, foram parar em bilhetes e cartas de amor. Seria interessante não colocar a pregação como uma aula, mas sim mostrar como, à medida que compreendemos os significados, as palavras ganham mais sentido. Leia no Catecismo Menor de Lutero a 6ª parte, que trata do Sacramento do Altar ou Ceia do Senhor. Que tal assar pão dentro do templo durante a celebração? No ano passado, usamos uma máquina de pão e assamos pão durante o culto. Foi muito bom sentir o cheiro e, ao final, usá-lo na mesa da comunhão. Sugerimos ainda, se possível, ao término da prédica, ler o poema de Paulo Freire. Canção Óbvia Escolhi a sombra desta árvore para repousar do muito que farei, enquanto esperarei por ti. Quem espera na pura espera vive um tempo de espera vã. Por isto, enquanto te espero trabalharei os campos e conversarei com os homens.

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Suarei meu corpo, que o sol queimará, minhas mãos ficarão calejadas, meus pés aprenderão o mistério dos caminhos, meus ouvidos ouvirão mais, meus olhos verão o que antes não viam, enquanto esperarei por ti. Não te esperarei na pura espera porque o meu tempo de espera é um tempo de quefazer. Desconfiarei daqueles que virão dizer-me, em voz baixa e precavidos: É perigoso agir É perigoso falar É perigoso andar É perigoso, esperar, na forma em que esperas, porque esses recusam a alegria de tua chegada. Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me, com palavras fáceis, que já chegaste, porque esses, ao anunciar-te ingenuamente, antes te denunciam. Estarei preparando a tua chegada como o jardineiro prepara o jardim para a rosa que se abrirá na primavera.

5 Subsídios litúrgicos Será interessante se o culto for com a Ceia do Senhor, para que a ponte pão/ palavra seja trabalhada como duas formas de alimento cristão. Oração do dia Santo Deus, nós nos colocamos no dia de hoje com fome e sede de aprender teus ensinamentos. Nossa ignorância se transforma em arrogância pelo não saber. Ensina-nos o caminho da vida. Ensina-nos o caminho da verdadeira liberdade. Ensina-nos o caminho do amor. Transforma nossa arrogância em humildade ao escutarmos a tua palavra libertadora. E que por meio desse aprendizado possamos chegar mais perto daquela pessoa que sofre e daquela que ainda não compreende o teu amor. Por teu filho, Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo vive e reina eternamente. Amém. Oração pós-Comunhão Santo Deus, agradecemos-te pelo verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo dado a nós para ser comido e bebido, sob o pão e o suco da videira. Dá que creiamos nas palavras de Jesus “dado e derramado em favor de vocês, para remissão dos pecados” e com isso saibamos e vivamos da alegria que brota pelo perdão dos pecados, vida e salvação presenteados por ele. Amém.

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Bibliografia FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2005. v. 2.

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14º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

29 AGO 2021

PRÉDICA: DEUTERONÔMIO 4.1-2,6-9 MARCOS 7.1-8,14-15,21-23 TIAGO 1.1-17

Marcos A. Rodrigues

“Teko Porã” – o rio da esperança

1 Introdução Do outro lado do rio existe uma terra para bem viver (Teko Porã). Trata-se de um termo em Guarani que significa o “belo caminho” ou o “bem viver”. Caracteriza a filosofia, a cosmogonia e a espiritualidade refletidas na sabedoria popular de povos originários das Américas, conhecidos hoje como indígenas, em especial os Guaranis. Esse também é o sonho que está no pano de fundo do texto previsto para pregação. Nas palavras de Moisés, ouvir, guardar, cumprir e ensinar a lei de Deus são requisitos para a travessia rumo à nova terra. Quando o cruzar de rios nasce de esperanças, águas turbulentas e perigosas podem vir a ser oportunidades de solidariedade. Cruzar juntos o rio é tão importante quanto chegar à terra firme. A lei de Deus e seu cumprimento apresentam-se como pontes para a travessia. Nostalgias e esperanças, desertos e terras prometidas são elementos capazes de unir diferentes paisagens. Eles conduzem à liberdade, que só pode ser validada pela prática da justiça e do amor. São pontes que permitem o ir e vir da misericórdia, da compaixão, da partilha e do perdão. Moisés, Marcos, Jesus e Tiago serão nossos guias e cruzarão conosco esse rio. Suas esperanças, resistência e solidariedade são necessárias para chegar à nova terra, nascida do encontro de corpos com toda a criação, em disponibilidade dialogal e amorosa. A terra da promessa só estará do outro lado do rio se do lado de cá houver disposição para o amor – lei maior. Do contrário, será só mais um cruzar de rios para horizontes que se afastam do sonho de Deus.

2 Exegese Usando uma imagem dessas terras fluidas, cheias de lagos, igarapés, igapós e rios da Amazônia, poderíamos dizer que o livro do Deuteronômio é o “encontro das águas”. De um lado chegam as águas escuras do rio Negro, abundantes de vida trazida pelo seu serpentear na imensa floresta. Em linguagem bíblica, chegam as tradições já consolidadas do Gênesis, Êxodo, Levítico e Números, trazidas pelas histórias dos antepassados, que formam a maior parte do Pentateuco. Do outro lado, as águas barrentas e amareladas do rio Solimões, ricas em mine-

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rais, ilustram as tradições vindas das narrativas de Josué, Juízes, Rute, Samuel, Reis, Crônicas, Esdras, Neemias e Ester (Livros Históricos). Tudo o que acontece no Deuteronômio vem do futuro (Livros Históricos) e busca estabelecer relações de significado e pertença com o passado (Pentateuco). Deuteronômio é o rio formado pelo encontro dessas águas, vindas de diferentes épocas e tradições. Ele configura o encontro de memórias, leis, pregações, regras e estatutos que, oriundos do passado e do futuro, se encontram para dar novo sentido à história e projetar um novo futuro. Mas, como por aqui na Amazônia, do encontro do rio Negro com o Solimões surge um novo rio cheio de vida, trazida de diferentes águas, o rio Amazonas, o maior do mundo em volume de água e de biodiversidade, do encontro das tradições do Pentateuco com as tradições dos Livros Históricos nasce uma nova teologia, não mais fundada apenas nos patriarcas, na libertação do Egito e no deserto, mas também na conquista e posse da terra. Nostalgia e esperança unem as mãos para forjar uma nova realidade teológica. O deserto foi só uma parte do caminho. Ao cruzar o rio, ele precisa ficar para trás, mas não esquecido. A posse da terra não pode ser eternizada. Ela é herança deixada por aqueles e aquelas que enfrentaram o deserto. É necessário manter viva a consciência de que, na nova terra prometida-conquistada, todos e todas que nela vivem foram pessoas libertadas por Deus e receptoras de sua porção da herança. A terra conquistada será reconstruída na base das esperanças dos antepassados, da realidade dura da guerra de conquista e da avaliação das velhas leis, seguindo para a formulação de outras leis (dêutero-nômio) para uma vida em outra realidade. Agora não se trata de sonhar com a terra que está depois do rio, mas de construir relações de propriedade e de justiça no manejo da terra. O processo de construção da narrativa do Deuteronômio foi tão longo e conflitivo quanto o caminhar pelo deserto e a sedentarização na terra. Ele durou no mínimo três séculos (VIII-VI a.C.) e pode ter se estendido por até seis séculos. Foram tempos marcados por encontros culturais e perspectivas teológicas diversas, confrontos políticos e militares entre povos e deuses, tribos e reinos em tendas e templos. Por aqui, águas barrentas e frias e águas escuras e quentes seguem seu curso lado a lado por muitos quilômetros antes de se tornarem um novo rio. Com o Deuteronômio acontece o mesmo. É possível distinguir os embates entre as leis do deserto e as leis da sedentarização caminhando lado a lado, sendo discutidas e trabalhadas a partir de suas diferentes épocas e tradições. O Deuteronômio não é apenas um filete de água separando duas paisagens teológicas distintas. Ele é o processo teológico-legal necessário para manter a unidade da história do povo de Deus. Em nosso contexto mais imediato, Moisés sabe que não poderá cruzar o rio. Sua caminhada está perto do final. Seu discurso vem carregado de recomendações que, se acolhidas pelo povo, podem determinar se do outro lado do rio a vida será ou não realmente diferente. Se haverá ou não libertação, justiça, misericórdia, partilha e perdão. Leis e estatutos entregues foram esperanças e sonhos que se materializaram durante a peregrinação pelo deserto. Esperanças passadas e

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futuras são forças motrizes que, vindas do passado, apontam e conduzem a humanidade de todos os tempos e lugares para suas terras prometidas e conquistadas ainda hoje e no porvir. A terra da nova realidade precisará ser conquistada. A conquista, contudo, só será possível se houver antes um compromisso verdadeiro e amoroso com o Deus dos antepassados, o Deus libertador, aliado ao desejo de que o futuro seja um lugar onde todos e todas tenham sua porção. A terra que está do outro lado do rio não foi um presente. Foi conquista! Depois da conquista, rebanhos, pomares e colmeias precisarão de pastores, agricultores e apicultores para reconstruir, plantar, cultivar, proteger, colher e partilhar. Só assim as frutas, o leite e o mel serão abundantes. A lembrança desse momento, estando há poucos metros da terra prometida, pode ser o pano de fundo litúrgico desse texto, seu lugar vivencial. A comunidade se reúne para reafirmar sua identidade e sua fé. Ao colher as dádivas da terra, lembra que ela é fruto do suor e do sangue de muitos inocentes e culpados, mas também é fruto da esperança de muitas pessoas que cruzaram os desertos e rios em outros tempos. Elas não podem ser esquecidas ao agradecer pela abundância de leite e mel.

3 Meditação Escrevo este texto no momento em que a humanidade está diante de um grande rio que precisa ser cruzado por todos e todas. A esperança guia os passos daqueles e daquelas que caminham rumo a uma nova terra, situada depois da pandemia. Um mundo melhor. Nascido da partilha das riquezas, da solidariedade diante da pobreza, da compaixão diante das realidades que ainda não somos capazes de explicar ou transformar e do empenho por transformar lanças e espadas em arados e enxadas. Existe uma expectativa de que os conhecimentos acumulados pela ciência e o avanço das tecnologias possam nos livrar da asfixia agonizante que rouba de nossos pulmões o ar-espírito-de-vida soprado por Deus em nossas narinas no sexto dia da criação. Esperanço (como diria Paulo Freire) que, quando este texto servir de ajuda e reflexão para nossas pregações, já tenhamos cruzado o rio grande da tristeza e da nostalgia. Que nossos pés e mãos, mesmo cansados, já estejam pisando e arando a nova terra, criando abundância de leite, mel, justiça e sororidade. Que nossos corpos, ainda molhados pela travessia e pelo suor de nosso trabalho, possam se abraçar, dançar, cantar e comungar no altar da partilha e do amor. Mas, por enquanto, ainda estamos do lado de cá! Olhando daqui, a pandemia não se parece com aquelas cheias sazonais dessa região amazônica. Elas revitalizam a floresta e seus habitantes. Servem de berçários para os peixes da região, que alimentam populações humanas da floresta, da cidade e a vida animal. Elas abastecem o rio de nuvens que generosamente leva a chuva, regula o clima e oferta fartura a grande parte do planeta. A cheia dá descanso à terra, renova a vida e traz fertilidade. Ela é aguardada a cada ano como bênção, proteção e prosperidade ofertadas, sem a necessidade de dízimos ou sacrifícios levados a altares

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profanadores de humanidades. Elas são dádivas da natureza que devolvem o sentido da vida às pessoas e a toda a criação. A pandemia se parece mais com a enchente causada pelo rompimento de uma barragem ou represa. Ela chega violenta e impiedosa. Tinge de vermelho o rio doce da vida, destrói casas, escolas e igrejas. Soterra sonhos e esperanças e deixa uma herança de dor e luto que precisaremos carregar por muito tempo. Sabíamos que ela era realidade possível, mas achávamos que, como humanidade, estaríamos em terras mais altas, livres da devastação causada por sua passagem. Ledo engano! Não só fomos os seres vivos mais afetados por ela, como nos tornamos corresponsáveis pela inundação/transmissão que roubou o ar das pessoas mais vulneráveis entre nós. Algo mais grave aconteceu muito antes da pandemia. Havia uma parte da humanidade que sentiu o desejo de construir um muro do seu lado do grande rio, para que a terra da abundância fosse somente sua posse e riqueza. Eles acreditavam que misericórdia, compaixão e partilha enfraqueciam a espécie humana. Por eles compreendida como somente sua própria imagem e semelhança, sem as feições indígenas, negras, orientais e femininas. Suspeito que muitos de nós nem notamos que esse muro já havia sido construído dentro de nós. Não carecia da materialidade de tijolos de barros, que desde tempos ancestrais vêm sendo moldados por mãos escravas de deuses faraós. O muro transformou-se em dique. Deixou a violência das águas da pandemia do lado das mulheres e crianças violentadas. Desalentadas, já não conseguem mais nadar. Afundam nas pesadas águas da depressão e da apatia. Paradoxalmente, essas águas não serviram para apagar o fogo que queimava a floresta. O combustível ateado pela ambição queima sobre e sob a água. Porteiras foram abertas para que o gado flamejante da devastação pudesse devorar plantas, gentes e animais. O ar, outrora puro e fresco, virou fumaça sufocante e ardida, spray de pimenta que provoca mais lágrimas no olhar de quem buscava justiça. A maldade colocou seu joelho no pescoço do planeta e contemplou extasiada a sua agonia. Não poderemos levar tudo o que temos para o outro lado do rio. Algumas coisas não só colocaram em risco o lado de cá, mas podem impedir a travessia e infectar a terra da promessa. Temos dentro e ao nosso redor coisas que não flutuam. Se insistirmos em levá-las conosco, ao invés de chegar à outra margem, acabaremos no fundo do rio. Certas coisas que a humanidade tem trazido consigo ao longo de séculos não podem chegar ao outro lado do rio. Elas podem contaminar o futuro. E o futuro repetirá o passado. Não haverá uma nova terra de justiça e partilha. Mas podemos nadar juntos e juntas até o outro lado! Levar conosco todos e todas! O amor é leve e faz flutuar!

4 Imagens para a prédica Deuteronômio é o encontro das tradições do deserto e da terra conquistada. Nostalgias e esperanças precisam ser mescladas para fazer sentido e produzir novas realidades em novos tempos. Conectar esperanças que estão em lados opostos

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do rio pode ajudar a ver a paisagem da fé de um ponto de vista mais amplo. Novos tempos abrem portas para novas possibilidades. Sugiro que a pregação não seja sempre o falar de um para todos e todas. Ela pode também ser o falar e o ouvir de todos e todas para com todos e todas. A imagem de um rio para ser cruzado pode incentivar o diálogo sobre o porquê e como podemos cruzar esse rio em nossa vida diária. Quais são as coisas e os sentimentos que poderiam nos fazer naufragar nessa tentativa de fazer de nossa vida pessoal e em sociedade uma realidade mais justa e amorosa? Quais são as pessoas, coisas que nos ajudaram a flutuar melhor em meio às correntezas de violência, egoísmo e indiferença – forças incapazes de construir novos mundos de fraternidade? Enxadas e arados, embora pesados, precisam chegar às mãos de quem construirá hortas e pomares para a abundância e partilha. Lanças e espadas não são necessárias onde se vive em solidariedade, compaixão e amor. O coração precisa ser civil. Estatutos e regramentos têm peso simbólico, mas precisam ser revistos ao chegar do outro lado. Nem tudo que vale do lado de cá vai ter o mesmo valor do lado de lá.

5 Subsídios litúrgicos Imaginem comigo! Um rio pode ser construído entre o altar e a comunidade. Ele pode ser feito de muitos símbolos e imagens de realidades destes tempos que vivemos. Cada coração de pregador e pregadora pode escolher as imagens e símbolos de acordo com o que lhe for mais sensível e necessário. A comunidade, como o povo que estava com Moisés, será convidada a levar consigo o essencial para o outro lado do rio. Depositar no altar suas esperanças e necessidades. A terra da promessa pode ser representada pelo altar. Deste lado, podem ser espalhadas enxadas, ferramentas de trabalho, e imagens de pessoas solidárias que salvaram vidas durante a pandemia. Seria de uma beleza reveladora, se já houvesse, além de vinho e pão, também leite, frutas e mel sobre o altar. As pessoas que cruzarem o rio precisarão deixar algo antes da travessia. A confissão de pecados pode simbolizar as coisas que não serão levadas para a nova terra. Também dará leveza para a travessia. Pode ser feita por escrito e colocada no rio, ou simbolicamente numa parada contemplativa diante do rio e oração silenciosa. A oferta pode ser feita nesse momento. Pessoas levam para o altar sua contribuição para um mundo novo e as colocam junto com o vinho, o pão, o leite e o mel. As crianças e pessoas idosas podem se servir das frutas, do leite e do mel, e assim sentir o sabor de um mundo que se aproxima de nós quando oramos: venha teu reino, Senhor! Adultos e jovens podem servir as crianças e as pessoas idosas em disposição diaconal.

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Bibliografia HATHAWAY, Mark; BOFF, Leonardo. O Tao da Libertação: Explorando a Ecologia da Transformação. Petrópolis: Vozes, 2012. RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamento. História, Escritura e Teologia. São Paulo: Loyola, 2004.

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15º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

05 SET 2021

PRÉDICA: MARCOS 7.31-371 ISAÍAS 35.4-7a TIAGO 2.1-10(11-13),14-17

Nádia C. Engler Becker

Efatá: Abre-te!

1 Introdução Optei por abordar apenas o segundo milagre previsto para a pregação (Mc 7.31-37), levando em conta que o texto de Marcos 7.24-30 e paralelos foram trabalhados diversas vezes e de forma muito significativa nos últimos tempos. Caso haja interesse, alguns desses textos estão disponíveis no portal Luteranos. O texto de Tiago afirma que pessoas que vivem sob a lei do reino de Deus não fazem distinção entre pessoas por causa da sua aparência ou das suas posses. Diante do próximo, o amor e a fé se transformam naturalmente em diaconia, ou é “coisa morta”. “Coisa viva” é o trecho de Isaías. Uma promessa cheia de vigor e consolo que faz viver a esperança! Deus está aqui! E onde há sofrimento, haverá transformação, libertação, pois ele vem para salvar! O surdo-gago do texto de Marcos experimenta concretamente a diaconia de pessoas que o levam à presença de Jesus quando ele não consegue nem mesmo pedir em favor de si mesmo. Experimenta a transformação e a libertação daquele que veio para salvar. Ele, que até então passivamente recebe a ajuda de outras pessoas e agora de Jesus, de repente se junta aos demais para testemunhar e adorar a Deus, pois reconhece que tudo ele tem feito esplendidamente bem!

2 Exegese V. 31 – O texto inicia com: De novo, deixando claro que Jesus já esteve ali antes. Tiro, Sidom, território de Decápolis são terras pagãs por onde Jesus já havia passado e onde já havia realizado milagres (Mt 4.25; Mc 5.20). O itinerário e o porquê de Jesus fazer essa volta por terras gentias para chegar ao mar da Galileia não são mencionados. Mas é suficiente para situar esse milagre em território pagão. É suficiente para deixar clara a intenção de Jesus desde o princípio de abrir as portas da salvação para além de Israel. V. 32 – [...] lhe trouxeram. O homem, pelo impedimento da deficiência auditiva, não havia ele mesmo ouvido falar do poder de Jesus. Mas pessoas próximas a ele, sim. Mesmo em território gentílico, a fama de Jesus havia se espa1

A perícope prevista pelo Lecionário Comum Revisado da IECLB, Ano B, é Marcos 7.24-37.

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lhado. O texto não dá detalhes de quem são essas pessoas que trazem o homem a Jesus. Supõe-se que fossem pessoas próximas, talvez familiares, que queriam ajudá-lo de alguma forma. Talvez já o tivessem levado a outras pessoas e lugares em busca de cura. E ao ouvir notícias sobre o poderoso agir de Jesus, a esperança renasceu. Mogilalos: Essa palavra só aparece aqui e em Isaías 35.6. A tradução indica que ele tem dificuldade para falar, mas não impossibilidade. [...] impusesse as mãos. A cura pela imposição de mãos era algo conhecido entre as pessoas daquele tempo. Jairo, por exemplo, suplica que Jesus imponha as mãos sobre sua filha para salvá-la (5.23). Do mesmo modo, os relatos de Marcos 1.41; 6.5; 8.23,25; ainda nos textos de Marcos 1.31; 5.41 e 9.27 aparecem o toque, o segurar a mão e ajudar a se levantar no momento da cura. Esses textos mostram que o contato físico, o gesto de impor as mãos tem grande valor simbólico para a espiritualidade das pessoas. Porém Jesus não depende de gestos visíveis para transferir poder e realizar a restauração. Em muitos casos, Jesus ajudou sem ao menos ter visto a pessoa (Mc 7.30; Mt 8.16), pelo simples poder de sua palavra. Nesse caso específico, todo o gestual que antecede o milagre é pura demonstração do jeito inclusivo e amoroso de Jesus. Quando ele põe os dedos nos ouvidos e lhe toca a língua com saliva, Jesus estabelece comunicação íntima e direta com o homem numa linguagem que ele podia entender. Primeiro, ele lhe abre o entendimento e o coração, depois os ouvidos e a boca. V. 33 – Jesus, tirando-o da multidão, à parte. Ao fazer milagres, Jesus não pretendia promover a si mesmo, como uma propaganda para atrair pessoas para si. Ele não quer fama – quer que as pessoas estejam bem. Deste modo, “coloca seu poder e sua autoridade integralmente a serviço da salvação da criatura, de sua saúde, de seu bem-estar, de sua vida” (BRAKEMEIER, 2012, p. 30 e 32). Por isso ele tira o homem do meio da multidão e ao final pede que não falem sobre o milagre. V. 34 – Depois, erguendo os olhos ao céu, suspirou. Os gestos que Jesus emprega aqui eram comuns na medicina e na taumaturgia da sua época. Ele se vale de elementos e gestos conhecidos pelas pessoas do seu tempo. Em alguns momentos isso fez com que ele fosse confundido com curandeiros, mágicos e feiticeiros. Sem se importar com comparações, ele olha para o céu e revela de onde vem o seu poder e em nome de quem ele age. O suspiro é expressão de sofrimento. A dor vivida por aquele homem isolado pelas suas deficiências atravessa Jesus. Cheio de compaixão, ele suspira e leva sua miséria perante a face do Deus da misericórdia. Efatá!, que quer dizer: Abre-te!: O fato do evangelista apresentar a tradução da palavra indica que ele não queria que ficasse margem para interpretações diferentes. Aramaico era a língua materna de Jesus, portanto ele recorre a um termo conhecido para fazer conhecido o imenso poder de Deus de abrir não apenas ouvidos e bocas, mas também mentes, portas, corações, caminhos, sepulturas. V. 36 – [...] lhes ordenou que a ninguém o dissessem. Isso é contraditório! Por que restaurar a audição e a fala para então ordenar que não se fale? Sim, ele podia falar. Mas não deveria falar da cura e de quem o havia curado. No Evangelho de Marcos, mais vezes Jesus proíbe pessoas de falar. Naquele momento, ele não quer

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ser revelado como o Messias, o Cristo. Jesus mesmo só se revela como o Cristo um pouco antes da sua morte ao ser interrogado pelo sumo sacerdote (16.61-62). [...] quanto mais recomendava, tanto mais eles o divulgavam. Jesus insiste que guardem o segredo, porém, tomados de admiração, eles não conseguem calar. Algo idêntico vemos acontecer com Pedro e João anos mais tarde, quando mesmo sendo ameaçados para que não falassem em o nome de Jesus, eles se levantam e dizem: Nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos (At 4.20). Os transgressores da ordem de Jesus não são criticados. Marcos sabe que não é possível reter para si a maravilha de ter experimentado o poder restaurador de Jesus. V. 37 – Maravilhavam-se sobremaneira, dizendo: Tudo ele tem feito esplendidamente bem! Cabe lembrar novamente que quem tanto se admira e não consegue deixar de testemunhar são pessoas pagãs. A multidão de Tiro, Sidom e do território da Decápolis, antes do que o povo escolhido, é presenteada com a graça de ter aberta diante de si a glória do Senhor, o esplendor do nosso Deus, conforme a promessa de Isaías 35.2.

3 Meditação Efatá! Abre-te! Quantas coisas abrimos ao longo do dia? Olhos, janelas, portas, geladeira, páginas de internet, livros. Para quais coisas nós nos abrimos? Para relacionamentos, para pessoas, para novas ideias, para o Evangelho...? Para que estamos fechados? Diante de que nossos ouvidos são surdos e nossas bocas são mudas? Ouvir e falar são aspectos muito importantes da comunicação entre as pessoas e também com Deus. O surdo-gago fala, mas tem dificuldades em se fazer entender. Ele fala, mas não é compreendido. Os ouvidos fechados para ouvir são símbolo da humanidade que passa os dias ouvindo sons, mas em muitos momentos tem ouvidos fechados para o Evangelho e para o clamor do próximo; a língua com empecilho é símbolo da humanidade que faz curso de oratória para aprender a falar melhor, mas parece ter “tramela” na língua na hora de denunciar uma injustiça, de pedir perdão, de dizer obrigado, de pedir ajuda. Por outro lado, as falas são eloquentes numa discussão familiar, num debate político e para emitir juízos sobre a vida alheia. Jesus não deu um manual do que o homem deveria falar e ouvir depois de ser curado. Esse, porém, ciente da maravilha que é ser libertado de sofrimento e solidão, testemunha e louva seu Salvador. Viver sob a lei do reino de Deus requer ouvidos abertos para ouvir o Evangelho e bocas que anunciem com clareza o Evangelho. Segundo Lutero, língua e ouvidos são a marca que diferencia uma pessoa cristã de uma não cristã: Aqui, Cristo se dedica especialmente a estes dois órgãos: ouvidos e língua. Pois, como se sabe, o reino de Cristo se fundamenta na palavra que não pode ser recebida nem compreendida a não ser por meio destes dois membros, os ouvidos e a língua. Esse reino exerce seu domínio no coração dos homens tão somente por meio da palavra e da fé. Os ouvidos apreendem a palavra, e o coração crê nela; agora,

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a língua anuncia ou confessa a palavra que é crida no coração. Portanto, se as línguas emudecem e os ouvidos se fecham, não resta nenhuma diferença visível entre o reino de Cristo e o mundo. Pois, no tocante à vida corporal ou exterior, a conduta de um cristão em nada difere daquela do não cristão: ele constrói, planta, lavra o solo como os demais, e não realiza nenhuma obra ou feito especial em termos de comida, bebida, trabalho, sono ou qualquer outra coisa. Apenas esses dois órgãos estabelecem uma diferença entre cristãos e não cristãos: o cristão fala e ouve de forma diferente e sua língua exalta a graça de Deus e prega o Senhor Jesus Cristo, declarando que somente ele é o Salvador. O mundo não faz nada disso. Ao contrário, fala da avareza e de outros vícios, prega e engrandece sua própria pompa2.

A ordem dos gestos de Jesus também é pedagógica: primeiro os ouvidos, depois a boca. Tiago 1.19 admoesta: Cada um esteja pronto para ouvir, mas demore para falar e ficar com raiva. E Rubem Alves escreve sabiamente um texto intitulado: A Escutatória. Em diversas passagens do Antigo Testamento, Deus chama a atenção do povo dizendo: Escuta, Israel (Dt 6.4). A palavra que vivifica precisa penetrar nos ouvidos e vivificar o ser humano: Ouçam-me com atenção [...] me escutem que vocês viverão (Is 55.2b-3a). Efatá! Que nossos ouvidos sejam abertos! Em Isaías 35.5-6, falar e ouvir são apontados como sinais do cumprimento da promessa da vinda do reino de Deus. Ao ser curado de sua surdez e gagueira, o homem experimentou o reino de Deus, experimentou o poder do amor ilimitado e gratuito de Jesus. Outro sinal da presença do reino de Deus é anterior a essa cura: é quando pessoas se juntam, movidas pela esperança de um milagre e pela compaixão e levam o homem surdo e gago à presença de Jesus. As pessoas que trouxeram esse homem acometido de dupla limitação (auditiva e de fala) vieram com duplo sentimento: esperança e humildade, expresso na forma como se dirigem a Jesus: “Suplicaram”. Suplicar não é simplesmente pedir. É implorar, rogar de maneira intensa, humilde e insistente. Um gesto totalmente altruísta em favor de alguém que não pode se ajudar sozinho é certamente um sinal da presença do reino de Deus! Fé somada ao amor torna-se diaconia, marca daqueles e daquelas que vivem sob a lei do reino de Deus. Essa dimensão comunitária da cura é muito significativa. Brakemeier escreve: Jesus reage não somente à fé da própria pessoa doente. Não menos importante é a fé de pais, familiares e amigos. Os quatro homens que levam o paralítico até Jesus (Mc 2.1ss) não o transportam apenas com seus braços e suas pernas, mas também o carregam com sua fé. É a mãe que intercede por sua filha (Mc 7.24ss), um centurião que busca socorro para seu servo (Mt 8.5ss), o pai que anseia por ver seu filho livre da possessão (Mc 9.14ss) – todos eles creem para conseguir a cura não de si mesmos, mas de outros! Isto não significa a diminuição da fé dos próprios enfermos. Ressalta-se, isto sim, a importância do apoio por uma comunidade de fé (BRAKEMEIER, 2012, p. 39).

O surdo-gago não foi sozinho buscar Jesus. Não porque não pudesse andar, mas porque estava numa condição de conseguir sequer pedir por ajuda. Por não 2

Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/conteudo/lingua-e-ouvidos>.

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ouvir, não conhecia o grande poder e amor de Jesus. Quantas pessoas do nosso tempo vivem nessa condição? Aqui reside um impulso missionário valiosíssimo para famílias e comunidades! O Evangelho quer ser ouvido, quer ser anunciado com clareza, porque ele é o poder de Deus para abrir o caminho para a salvação: tudo ele tem feito esplendidamente bem!

4 Imagens para a prédica Deus é aquele que abre bocas (Ef 6.19), ouvidos (Mc 9.14ss), olhos (At 26.18 e Is 42.6-7), mentes (Lc 24.45), portas (1Co 16.9), corações (At 16.14), caminhos para a missão (At 14.27), o céu (Mt 3.16), as sepulturas (Mc 16.4). O próprio Jesus se apresenta como porta (João 10.9), a porta aberta a qual ninguém poderá fechar (Ap 3.7ss). Vale a leitura desses diferentes versículos! Sugiro encenar o texto bíblico valorizando especialmente duas coisas: (a) os gestos de Jesus, frisando que o poder para a transformação vem dele; (b) as pessoas que trazem o surdo-gago, ressaltando a dimensão comunitária e missionária do milagre.

5 Subsídios litúrgicos Litania Efatá: Abre-te! Escutem! Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta eu entrarei em sua casa, terei comunhão com ele e ele comigo! (Ap. 3.20) Para a comunhão contigo, Senhor, queremos nos abrir! Tu nos dizes: Efatá: Abre-te! Para ouvir tua voz, tu nos dizes: Efatá: Abre-te! Para ouvir o clamor da pessoa próxima, tu nos dizes: Efatá: Abre-te! Para dizer palavras que edificam, tu nos dizes: Efatá: Abre-te! Para a transformação da mente e do coração, tu nos dizes: Efatá: Abre-te! Para transformar a fé e o amor em diaconia, tu nos dizes: Efatá: Abre-te! Para enxergar tuas dádivas e acolhê-las com gratidão, tu nos dizes: Efatá: Abre-te! Para viver sob a lei do reino de Deus, tu nos dizes: Efatá: Abre-te! Diante de ti abrimos nossos ouvidos, mentes e corações para a transformação. Diante de ti abrimos nossas bocas em louvor e mãos em ação! Efatá: Abre-te! Sim, diante de ti queremos nos abrir! A ti, Deus Trino, seja toda a honra e toda a glória, agora e para sempre, amém!

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Antes da pregação, sugiro o versículo de Efésios 6.19. Para a confissão de pecados, utilizar Ezequiel 12.2, Jeremias 5.21; 6.10 ou Isaías 6.9.

Bibliografia BRAKEMEIER, Gottfried. O segredo do milagre: uma perspectiva bíblico-teológica. São Leopoldo: Sinodal, 2012. COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000. v. I. POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba: Evangélica Esperança, 1998.

DIA DA PÁTRIA PRÉDICA: JUÍZES 9.7-15 TITO 3.1-7 MARCOS 12.13-17 Pesquise: Proclamar Libertação, v. IX, p. 98ss www.luteranos.com.br (busca por: Juízes 9.7-15)

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16º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

12 SET 2021

PRÉDICA: TIAGO 3.1-12 ISAÍAS 50.4-9a MARCOS 8.27-38

Claudete Beise Ulrich

Use sua língua corretamente: falar e agir com responsabilidade e solidariedade

1 Introdução Os textos para o 16º Domingo após Pentecostes apresentam reflexões sobre o poder da língua, um membro do corpo humano que articula a fala, a comunicação. A língua tem várias funções, além de expressar pensamentos, posições, reflexões. É um órgão sensorial que percebe a conformação, a dimensão, a textura, a temperatura e o sabor dos alimentos. Além de ser um órgão muscular que auxilia o movimento dos alimentos dentro da cavidade bucal, inicia a deglutição e participa da linguagem, articulando as palavras durante a fala. Ela é, portanto, um órgão do corpo humano muito importante. O texto de Isaías 50.4-9a nos diz que Deus deu ao profeta língua de eruditos, para que saiba dizer boa palavra ao cansado. A finalidade de ter língua de eruditos é dirigir palavras às pessoas que estão cansadas, sofridas e sobrecarregadas. A narrativa de Marcos 8.27-38 nos conta da confissão de Pedro, quando ele responde à pergunta que Jesus dirige a seus discípulos: Quem dizem que sou eu? Depois de várias respostas, Jesus pergunta novamente: Mas vós, quem dizeis que eu sou? Pedro confessa: Tu és o Cristo. Jesus os advertiu de que a ninguém dissessem tal cousa a seu respeito. Jesus deixa claro aos discípulos que será preso, torturado e morto devido ao anúncio e à prática da Palavra. Falar do reino de Deus é perigoso. Jesus colocou-se ao lado das pessoas cansadas, anunciou boa palavra a elas e isso significou perseguição e morte de cruz. Qual é o projeto que anunciamos? Ao lado de quem nos colocamos? O texto da Carta de Tiago 3.1-12 é o previsto para a prédica. Ele fala do poder da língua e como ela necessita ser controlada. A pergunta que se faz: como será que a fala/a língua estava sendo utilizada na comunidade para a qual Tiago se dirige? Por que Tiago se refere à língua como pequeno órgão, se gaba de grandes cousas. Vede como uma fagulha põe em brasas tão grande selva! (Tg 3.5)? O que estava se passando na comunidade para a qual Tiago se dirige?

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2 O texto de prédica 2.1 Destinatários da Carta de Tiago O autor da carta dirige-se aos destinatários como irmãos e com alegria. Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às dozes tribos que se encontram na dispersão, saudações. Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança. Ora a perseverança deve ter ação completa, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada deficientes (Tg 1.1-3). A carta foi escrita, possivelmente, ao final do primeiro ou princípio do segundo século. Ela se destina às 12 tribos que se encontram na diáspora (1.1), isto é, se dirige a migrantes. O autor se coloca ao lado desses irmãos que se encontram na diáspora, pois diz: Meus irmãos. É um sinal de solidariedade. O autor se solidariza com esses migrantes que são, em sua grande maioria, pobres ou muito pobres (TAMEZ, 1985, p. 49). Ele também é o único que saúda a comunidade e utiliza a palavra chairein na saudação. Tiago escolhe a saudação comum do mundo grego, a qual se traduz por “ser feliz, ter alegria”. O autor abarca em sua carta – Deus e Jesus Cristo – como que mostrando essa continuidade do Antigo Testamento (referências ao Êxodo, Gênesis, Isaías) e do Novo Testamento (especialmente Mateus, Marcos, Atos). Isso indica que ele era judeu que conhece o Antigo Testamento e a tradução rabínica e era um cristão (cita vários dizeres de Jesus, e fala das práticas da igreja primitiva; TAMEZ, 1985, p. 22). Importante destacar que ele não se apresenta como apóstolo (Paulo assim se apresenta), mas sim como servo/ escravo de Deus e do Senhor Jesus Cristo (TAMEZ, 1985, p. 49) e com alegria e perseverança quer servir “a comunidades cristãs que sofrem marginalidade e desprezo nas sociedades onde vivem” (TAMEZ, 1985, p. 49). Entender a saudação é fundamental para entender também o texto para a pregação neste domingo. 2.2 Reflexões exegéticas O pastor Günter Adolf Wolff refletiu o presente texto, no volume 36 de Proclamar Libertação, também para o 16º Domingo após Pentecostes, no ano de 2012. Ele sugeriu a seguinte divisão, a qual reproduzo aqui, pois nos ajuda a entender como ele foi construído: v. 1-2 – só quem é um verdadeiro mestre não tropeça no falar; v. 3-5 – exemplificações sobre pequenas coisas que se tornam grandes catástrofes ou grandes bens; v. 6-8 – a língua é fogo; v. 9-10 – com a língua bendizemos e amaldiçoamos; v. 11-12 – a língua como contradição entre fé e vida.

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O texto de Tiago 3.1-12 está intimamente ligado a uma fé ativa no amor (Gl 5.6). Tiago 2.26 diz: [...] assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta. Tiago não se autodenomina nem apóstolo nem mestre. Em 3.1-2, ele diz: Meus irmãos, não vos torneis, muitos de vós, mestres, sabendo que havemos de receber maior juízo. Porque todos tropeçamos em muitas cousas. Se alguém não tropeça no falar, torna-se perfeito homem, capaz de refrear todo o corpo. Tiago aponta para a interligação de todos os membros. Todo o falar necessita ser coerente com o agir. A língua necessita ser domada, freada, pois também ela pode se tornar um mal mortífero. Isso porque, dependendo do que falamos, podemos produzir uma fogueira, isto é, criar confusão, divisão. A questão toda é: conseguimos ser responsáveis com as nossas falas? A sabedoria está no equilíbrio entre o falar e agir, em assumir responsabilidade com aquilo que é dito. Os falsos mestres fazem uso da língua sem sabedoria, sem compromisso, sem solidariedade, sem responsabilidade, utilizando-se de falsas notícias para dividir a comunidade. Como já anotamos, Tiago está na continuidade da mensagem do evangelho: Porque a boca fala do que o coração está cheio (Mt 12.34b). A pergunta que nos é colocada é: do que o nosso coração está cheio? Como cristãos e cristãs, somos chamados e chamadas a construir a paz, a justiça social, relações amorosas, e a romper com as estruturas da mentira, desigualdade social e morte. Os v. 3-5 falam dos freios que são colocados na boca dos cavalos para obedecerem, e assim também o corpo é dirigido. Assim também os navios, mesmo sendo grandes e batidos por fortes ventos, são dirigidos por um pequeno leme para onde queira o impulso do timoneiro. A língua é colocada como um pequeno órgão que se gaba de grandes coisas. O autor então faz a comparação: Vede como uma fagulha põe em brasas tão grande selva! (v. 5). Portanto palavras mal ditas podem levar ao desastre, a um incêndio, a uma devastação da vida, assim como também uma fagulha pode incendiar uma grande floresta. A língua é fogo, diz o v. 6, é mundo da iniquidade, a língua está situada entre os membros de nosso corpo, e contamina o corpo inteiro, e não só põe em chamas toda a carreira da existência humana, como também é posta ela mesma em chamas pelo inferno. Portanto a língua é como o fogo que pode contaminar toda ação e existência do ser humano. Nos versículos seguintes, v. 7-8, o autor diz que todas as espécies de feras, de aves, de répteis e de seres marinhos têm sido domadas pelos seres humanos. A língua, porém, nenhum ser humano tem sido capaz de domar. É um mal incontido, carregado de veneno mortífero. Tiago também aponta para a incoerência na vida das pessoas e das comunidades e mostra como a língua é mal usada: Com ela, bendizemos ao Senhor e Pai, também com ela, amaldiçoamos os seres humanos, feitos à semelhança de Deus. Não é possível bendizer a Deus e amaldiçoar a pessoa próxima. 1 João 4.21 lembra o mandamento que temos por parte de Jesus Cristo: [...] aquele que ama a Deus ame também a seu irmão. O v. 10 diz que de uma só boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não é conveniente que estas cousas sejam assim. Tiago então faz uso de elementos da natureza para afirmar que isso não é possível. Nos v. 11 e 12 são utilizados como exemplos a água e árvores frutíferas. O v. 11 assim diz: Acaso, pode a fonte

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jorrar do mesmo lugar o que é doce e o que é amargoso? Já no v. 12 temos o seguinte: Acaso, meus irmãos, pode a figueira produzir azeitonas ou a videira, figos? Tampouco fonte de água salgada pode dar água doce. É difícil uma mesma fonte jorrar água doce e amarga, da mesma forma que uma figueira não pode produzir azeitonas, da mesma forma que uma videira produz uvas e não figos. O tema do falar já tinha aparecido anteriormente a este texto em Tiago 1.19: Todo ser humano, pois, seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar. Em 1.26, o autor deixa claro o significado da religião e o uso da língua: Se alguém supõe ser religioso, deixando de refrear a língua, antes, enganando o próprio coração, a sua religião é vã. Religião tem a ver com o religar, isto é, religação com Deus e Jesus Cristo e inclui a religação com a pessoa próxima e a natureza. A língua é um membro fundamental do nosso corpo para verbalizar, expressar os pensamentos, para a comunicação e necessita ser usada para uma vivência correta da religião. O uso correto da língua/da fala encontra-se no âmbito da práxis da fé cristã (TAMEZ, 1985, p. 83). Falar mal uns dos outros é pecado. É necessário coerência entre o falar e agir na vida de fé. O apóstolo expressa o verdadeiro sentido da religião em Tiago 1.27: A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo.

3 Meditação Trago inicialmente uma poesia de Mario Quintana e uma frase de Nelson Mandela. Fere de leve a frase... E esquece... Nada Convém que se repita... Só em linguagem amorosa agrada A mesma coisa cem mil vezes dita. (Mario Quintana) Se você falar com um homem numa linguagem que ele compreende, isso entra na cabeça dele. Se você falar com ele em sua própria linguagem, você atinge seu coração. (Nelson Mandela) O texto de Tiago 3.1-12, no tempo histórico que estamos vivendo, com tanta desinformação, mentiras/fake news, questiona a cada um de nós pessoal e comunitariamente. Como nós irmãos e irmãs em Cristo estamos nos comunicando? O que a nossa língua tem expressado? Temos coragem para combater as fake news? Temos pesquisado para ver se as notícias que são transmitidas pelas mídias são verdadeiras? Como temos usado a nossa língua? O que falamos está a favor de qual projeto? Da paz e da justiça, das pessoas pobres, dos povos negros, dos indígenas, das mulheres, das crianças, das pessoas necessitadas, dos e das migrantes, das pessoas excluídas? Como temos educado a nossa língua e o nosso falar?

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A reflexão do texto de Tiago 3.1-12 torna-se fundamental numa época marcada por fake news. O que são fake news? São notícias falsas. Nós as reproduzimos com a nossa fala, bem como as enviamos via mídias sociais, especialmente, WhatsApp e Facebook. O que está acontecendo conosco, pessoas cristãs? Não temos mais o cuidado de verificar que aquilo que estamos transmitindo é verdadeiro ou falso? O falar e o agir necessitam estar em coerência, em equilíbrio. Para podermos falar a verdade, precisamos ler, estudar, pesquisar, buscar conhecimento além da simples informação. Importante deixar claro que precisamos ser responsabilizados pelo nosso falar. Para evitar fake news/mentiras, necessitamos investir na formação/educação. Cada pessoa tem a sua língua e necessita fazer uso respeitoso, responsável, ético, articulando palavras e pensamentos que conduzam para um projeto de vida que objetive a paz, a igualdade, o amor e a justiça social. É necessário ficar claro que o cristianismo, como religião, promove a vida em sua integridade: todas as vidas importam.

4 Subsídios litúrgicos Confissão de pecados Confissão pessoal e comunitária do mau uso da língua, do acreditar e espalhar fake news/mentiras, ou fazer fofocas. Confissão pessoal e comunitária da falta de estudo, de pesquisa e de conhecimento sobre determinados temas. Mesmo assim, sem o devido conhecimento, emitimos opiniões sobre os mesmos. Confissão pessoal e comunitária da falta da vivência de uma fé cristã que religa, que produz frutos de paz e justiça. Perdão por todos os pecados que cometemos pelo mau uso da língua por meio do nosso falar. Canto

Palavra não foi feita – LCI 609

Absolvição Jesus Cristo diz: Bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam! (Lucas 11.28) Kyrie eleison Clamar por todas as pessoas que sofrem devido a fofocas, mentiras. Clamar por todas as pessoas trabalhadoras que não são consideradas nos projetos dos governos. Clamar pela natureza que geme de dores, sendo explorada sem dó nem piedade. Clamar por todas as pessoas que sofrem com violências, especialmente mulheres, crianças, pessoas negras e povos indígenas.

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Canto

Kyrie – Pelas dores deste mundo – LCI 56

Gloria in excelsis Glorificamos a Deus por Jesus Cristo, que sempre anunciou o reino de Deus como proposta de uma nova sociedade de paz e justiça social. Glorificamos a Deus por todas as pessoas que “se emprenham” e colocam sinais do reino de Deus. Canto

Glória

Oração geral da igreja Intercedemos para que nossas palavras sejam verdadeiras e que nossa língua articule pensamentos e palavras que objetivem a construção de um mundo de amor, paz e justiça. Intercedemos por todas as pessoas que sofrem, doentes. Intercedemos por todas as pessoas enlutadas, que sofrem porque tiveram que se despedir de uma pessoa querida. Intercedemos pelos cientistas para que tenham sabedoria na criação de vacinas e remédios para a manutenção da saúde. Intercedemos por todas as pessoas que trabalham na área da saúde. Intercedemos pelas professoras e pelos professores. Intercedemos pelas autoridades de nosso país, do estado e do município. Intercedemos pelo cuidado de todas as famílias, para que eduquem seus filhos e suas filhas, para que falem a verdade e respondam por seus atos. Intercedemos por nossa comunidade, para que dê testemunho do evangelho do reino de Deus e que todas as pessoas possam viver coerentemente no falar e no fazer. Oração do Pai-Nosso Bênção Deus da vida, abençoa meu pensar e meu falar. Jesus Cristo, companheiro de vida, abençoa meu agir em retidão. Espírito Santo, ajuda-me a falar verdades e não mentiras, a espalhar, em palavras e ações, a solidariedade e a misericórdia. Amém. Sugestão de hinos Arde a voz em meu peito – LCI 591 Palavra não foi feita – LCI 609 Ó que mil línguas eu tivesse – LCI 611

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16º Domingo após Pentecostes

Bibliografia TAMEZ, Elsa. A Carta de Tiago. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. WOLFF, Günter Adolf. 16º. Domingo após Pentecostes: Prédica: Tiago 3.1-12; Leituras: Isaías 50.4-9a e Marcos 8.27-38. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação 36. São Leopoldo: EST; Sinodal, 2012. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/textos/tiago-3-1-12>. Acesso em: 30 ago. 2020.

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PRÉDICA: MARCOS 9.30-37 JEREMIAS 11.18-20 TIAGO 3.13 – 4.3,7-8a

17º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

19 SET 2021

Cristina Scherer

Beabá do C: Casa – Criança – Caminho – Conversa – Cristo – Cruz – Conversão

1 Introdução O texto de Marcos 9.30-37 demonstra movimento, reflexão, ação. Jesus está a caminho de Jerusalém. Sabe o que está por vir. Nesse caminho, faz pausas, conversa, ensina, acolhe, repreende, convida. Jesus apresenta aos discípulos sua proposta de ação para o discipulado, proposta de amor, acolhida, humildade, serviço e prática da não violência. Faz isso usando como exemplo/metáfora a criança. A prática da opressão que permeia as relações humanas precisa ser erradicada para nascer o novo, baseado na paz, no amor e na reconciliação. No caminho, Jesus faz uma pausa e volta-se ao espaço geográfico da casa, local de aconchegar-se e partilhar afetos para que a viagem progressiva em direção ao sul e à cruz prossiga. A casa e sua dinâmica anda hoje nos instigam, desafiam e transformam. Voltemo-nos para o texto bíblico que nos convida ao interior de nossas casas para nesse espaço aprender, de maneira especial com as crianças, que são trazidas ao centro como exemplo de aceitação, amorosidade, acolhida, humildade e paz.

2 Exegese 9.30-32 – Missão de Jesus – incompreensão dos discípulos Marcos 9.30-37 relata o segundo anúncio da paixão de Jesus Cristo. O Evangelho de Marcos apresenta três anúncios da paixão, o que mostra a importância desse tema para a comunidade primitiva. Essa perícope está situada na Galileia (cf. 9.30-32). É ali que ocorre uma seção de ensinamentos com duas partes: crianças e o tema do primeiro/último. Marcos enfatiza duas vezes que Jesus será morto. Aqui é reintroduzido o termo jurídico-político “entregue à custódia” (paradidōmi), que irá aparecer na narrativa da sua prisão, julgamento e execução. Os discípulos não compreendem esse dito e fazem silêncio, não querendo interrogar Jesus. Marcos relaciona o insucesso em compreender e aceitar o destino político de Jesus e suas consequências ao fato de que os discípulos ainda estão presos ao esquema deste mundo (cf. 8.33).

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9.33 – Caminho – Cafarnaum – casa Essa parada na viagem é significativa, pois aqui acontece a instrução sobre assuntos internos de poder e disciplina. Cafarnaum é mencionada como sendo a “casa” de Jesus, o centro das atividades na Galileia: Mateus 4.13 afirma que Jesus havia estabelecido sua residência em Cafarnaum, que em 9.1 é chamada “a sua cidade”. Jesus deu início ao seu ministério público ensinando na sinagoga de Cafarnaum aos sábados (Mc 1.21; Lc 4.31). 9.34 – Silêncio – discussão Em Cafarnaum, quando Jesus já está “em casa”, ele pergunta a seus discípulos sobre o que discutiam no caminho. Eles calam. Esse silêncio dos discípulos pode ser interpretado como um sentimento de vergonha diante do que vinham conversando. No Evangelho de Marcos e no texto paralelo (Lc 9.46) não fica claro que tipo de grandeza eles discutiam e reivindicavam para si. Mateus afirma que eles perguntaram a Jesus sobre: Quem é o maior no reino dos céus? (18.1). É no espaço simbólico da casa, em Cafarnaum, que Jesus sente-se à vontade para falar e ensinar e desmascara o desejo dos discípulos por poder e a disputa por obter os melhores lugares. Os discípulos são “apanhados” discutindo para saber quem era o maior entre eles “no caminho” (9.33b; 34a). A discussão do grupo pelo caminho afeta a relação de igualdade e de amor recíproco entre eles, denotando problemas internos na comunidade. Parece haver a compreensão no grupo de que o caminho para Jerusalém é o caminho para o lugar em que se dará a revelação messiânica. Os discípulos demonstram nada compreender: estão equivocados sobre a pessoa de Jesus e sobre o movimento dele, pois não sabem aonde vai dar o caminho que estão trilhando. 9.35 – Primeiro/último; maior/menor Como reação diante do inusitado ou já previsto, Jesus reage de maneira familiar, chamando os doze para perto de si (cf. 3.14; 6.7; 10.32; 14.17) e lhes dirige uma pergunta. Em seguida senta-se, como sinal de quem deseja ensinar algo importante sobre a verdadeira grandeza do discipulado! (v. 35). Marcos apresenta Jesus como um mestre que, em sua sabedoria, sabe aproveitar oportunidades adversas, como uma discussão entre o discipulado para ensinar. Jesus ensina com autoridade, e não como os escribas (1.22). Aqui Jesus introduz os princípios fundamentais de sua proposta. Nesse versículo Jesus ensina sobre a condição necessária para quem quiser ser o maior: Quem quer ser o primeiro tem que ser o último e servidor (diakonos) de todos. Marcos radicaliza com um duplo “todos” inserido no texto original: “Seja o último de todos e aquele que serve a todos”. Jesus, o servidor de todas as pessoas, recorda a importância de se fazer algo pelos demais. Em 9.35b é introduzido o tema da liderança da pessoa que serve, sendo aqui o ápice do discurso de Jesus.

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9.36s – Conversão – ser como criança Para ilustrar esse ensinamento, Jesus recorre ao que tem à sua frente, uma criança. Elas representavam, na época de Jesus, o ponto mais baixo da escala social e econômica em termos de status e direitos. Elas não eram consideradas pessoas, e sim não entidades. O gesto de Jesus é radical e surpreendente. Utiliza uma criança como modelo de seu projeto e anúncio. Ele faz isso uma segunda vez na sequência, em 10.13-16. Jesus coloca as crianças “no meio deles”, retira as crianças da margem e coloca no centro da nova comunidade e do seu projeto de Reino baseado no serviço, na humildade e acolhida. 9.37 – Receber uma criança é receber Jesus O Mestre desafia seus discípulos a receber (dechetai) uma criança em seu nome e em nome de quem o enviou ao mundo. Jesus está comprometido com a abrangência e inclusividade, enquanto seus discípulos agem e pensam com categorias de exclusão. Jesus é veemente e transforma a divergência aparente em desafio divisório sobre a participação no reino (10.15). Apesar da oposição dos discípulos, Jesus toma as crianças em seus braços. Em 10.16 ele toca nas crianças e as abençoa (kateulogeo), termo esse que aparece somente nesse trecho de Marcos. Agir de maneira inclusiva e amorosa é evidenciar que quem assim faz tem Jesus como o Messias e o serve como tal.

3 Meditação Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele está indo a caminho de Jerusalém, onde o aguarda a cruz. No caminho, eles fazem uma parada na casa, Cafarnaum, espaço de aconchego, acolhida, ensino, desafios. Os discípulos continuam sem entender o anúncio que Jesus faz de sua morte e ressurreição. Mesmo sem entender, não perguntam nada ao Mestre, talvez por não se sentirem à vontade, por respeito, por medo, por falta de entendimento, por inibição. Não temos a resposta correta. O fato é que somente quando chegam a Cafarnaum e se sentem em casa, é que entre eles discutem e abrem seus corações. Na casa, lugar de acolhida e bem-estar, há espaço para abrir o coração, falar do que passa na alma... Jesus perguntou aos discípulos: Sobre o que vocês estavam discutindo no caminho? O que temos partilhado/conversado, tido como desafio para nossas vidas e horizontes em nossos lares e casas? Qual valor temos dado ao “ficar em casa”. Qual a diferença quando esse “estar em casa” é voluntário ou forçado, como no tempo da pandemia? A casa tem sido, de fato, espaço seguro de acolhida, aconchego, de ficar à vontade para falar e aprender, ensinar e ouvir? Para muitas crianças e mulheres, a casa tem sido espaço de violência, agressão, pavor, medo, insegurança. Aqui seria importante aprofundar índices de violências e abusos sexuais contra crianças e acidentes domésticos que ocorrem

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no âmbito da família, por exploração, dominação, opressão, violências, descuido, desamparo, abandono, displicência etc. Sugiro aprofundar esse ponto com a comunidade, abordando como Jesus sentia-se à vontade em sua casa. Como nós nos sentimos hoje em nossas casas, qual o valor que damos a esse espaço necessário e importante para nossa vida de fé? Na casa nos encontramos com quem somos de verdade, sem máscaras, sem subterfúgios. Ali somos quem somos, mas também podemos nos abrir para mudanças, aprendizados e novos paradigmas na vida, tal qual os discípulos na relação com Jesus desde o espaço da casa. A discussão dos discípulos no caminho sobre quem deles era o maior manifesta que nada tinham compreendido das palavras de Jesus. Na relação entre eles continuam na busca do domínio e do poder. Lembremos que naquela cultura o status de uma pessoa era muito importante. Jesus os conhece e por isso explica, uma vez mais, qual é sua proposta de vida e do reino de Deus. O detalhe de Marcos, ao nos dizer que depois de estar na casa Jesus se sentou e chamou os doze, nos permite imaginar a cena de um encontro privado com seus mais próximos. Sentar-se para ensinar, para demonstrar humildade, para fazer uma pausa no caminho e convidar à reflexão e à transformação de vida... Quais têm sido esses momentos em nossa caminhada desde o espaço da casa? Jesus é objetivo e amoroso em seu ensino: Se alguém quer ser o primeiro, deverá ser o último, e ser aquele que serve a todos. O caminho para ser o maior é oposto ao que pensavam os discípulos de sua época! Para entender a segunda sentença, temos que ter presente que na época de Jesus as crianças eram tidas como criaturas insignificantes, sem condições de participar da vida social e religiosa. Elas estavam entre os marginalizados da sociedade. O Antigo Testamento dizia que era essencial na vida de cada judeu acolher as pessoas marginalizadas, a saber, os órfãos, as viúvas e os estrangeiros. A imagem de Jesus abraçando a criança não é só um gesto terno, porque as palavras que Jesus pronuncia apresentam uma mensagem diferente. Ele traz a criança para o centro do grupo e a abraça. Ao identificar-se com a criança, com os pequenos da sociedade, Jesus anima a comunidade cristã a acolher essas pessoas em seu nome. A novidade de Jesus e de sua comunidade está justamente em servir, em primeiro lugar, aqueles que a sociedade, por diferentes motivos, despreza e deixa de lado. Jesus é o menor de todos, pois se fez servo em sentido pleno, até dar sua própria vida. Ser discípulo, discípula é acolher Jesus como o Messias servidor que enfrenta a morte para comunicar vida para todos. É aceitar que o caminho do discípulo e da discípula é como o caminho de seu Mestre. Seus discípulos “deverão” passar pela cruz, para chegar à ressurreição, pessoal e comunitária. Aqui vale refletir na íntegra o comentário sobre os v. 36-37. Jesus acrescenta algo novo à cena quando, num gesto simbólico-pedagógico, chama uma criança, coloca-a no meio dos discípulos e “toma-a entre os braços”, “abraçando-a”. A referência a este gesto talvez sugira um ponto de contato com a cena narrada em 10,13-16, onde Jesus abraça e abençoa crianças. O abraço é gesto de apreço, carinho, expressão de amor. Ao abraçar as crianças, podemos perceber em Jesus um modo de agir diferente da cultura do seu tempo. Na antiguidade, a

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postura frente à criança era neutra ou negativa, especialmente se se tratava de meninas. O mundo grego via na criança, quase sempre, o inacabado ou infantil. Na cultura judaica, a criança é tida como travessa e imprudente, “sem juízo” (Sab 12,24). O amor de Jesus às crianças, expresso no gesto de acolhimento, mostra claramente a postura que deve existir na comunidade frente aos pequeninos e aos pouco considerados. Jesus se identifica de tal modo com estes pequenos, que se põe no seu lugar: “Aquele que receber uma destas crianças por causa do meu nome, a mim recebe” (SOARES, 2012, p. 351).

Por que essa ênfase de Jesus em tomar as crianças como exemplos? O que ele quer dizer/ensinar com isso? Ched Myers aprofunda essa questão e afirma que a criança é vítima, é excluída da sociedade, assim como os impuros, pobres e gentios, que são representações da marginalização social real. Esse autor propõe que é preciso cortar as estruturas e práticas da violência pelas raízes, a começar pela família. É dentro da família que se evidencia amor ou rejeição, e, segundo as disciplinas psicológicas modernas, a unidade familiar é um sistema social, o que podemos denominar de “sistemas de família”, e dentro desse sistema a criança é sempre a primeira vítima das práticas de violência e de dominação. A filósofa e psicanalista Alice Miller afirma “ser possível para nós captarmos algum dia a extensão da solidão e do isolamento a que estivemos expostos como crianças e, em consequência disto, intrapsiquicamente como adultos” (Apud MYERS, 1992, p. 325). Ela afirma que crianças são candidatas para exploração pela sua dependência material e emocional de adultos, sendo que elas não têm percepção crítica de manipulações feitas por adultos nem podem reagir contra elas. Essas manipulações não são checadas pelo sistema social mais amplo, pois a família é considerada “domínio privado”. Assim, a sujeição da criança no sistema familiar é o sinal da socialização dentro das estruturas sociopolíticas de dominação mais ampla. Todo adulto que for humilhado quando criança não deixará de reproduzir essa humilhação de forma inconsciente. Do ponto de vista psíquico e social, o adulto introjetará e projetará o sofrimento e a indignação profunda que acumulou em si desde a infância, culminando em depressão, desespero, opressão e reprodução da violência intrapessoal. Qual então é o caminho? É passar da raiva para a reconciliação, sem idealizar a infância, essa é a transformação da estrutura psíquica que somos convidados a realizar em idade adulta. Algo que pode necessitar da ajuda de outras pessoas/ profissionais em nossa vida. A libertação que Jesus Cristo deseja promover em nossas vidas é um convite que gera acesso e aceitação, como nos apresenta Marcos 9.37. “A criança não é mera simbologia no evangelho, ela é pessoa. Lidar com esta pessoa equivale a lidar com nosso próprio passado reprimido, tanto as raízes da violência quanto futuro transformado, nosso e de nossa descendência” (MYERS, 1992, p. 328), cientes de que se não recebermos o reino de Deus como uma criança, jamais entraremos nele (cf. Mc 10.15).

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4 Imagem para a prédica Os adultos exigem razões. Perguntam-se sobre as razões de sua vida, sobre sua missão na terra, e outras coisas parecidas. Criança nunca faz perguntas assim. Brincar com água, brincar de pique, empinar pipa, brincar de casinha: essas alegrias pequenas bastam às crianças. São razões suficientes para viver. Às crianças basta pouco. Por isso são felizes. [...] As crianças vivem no mundo dos sentidos. Para elas, o real é aquilo que entra pelos olhos, pelos ouvidos, pelo nariz, pela boca, pela pele. Elas são os seus corpos, inteiramente... entidades paradisíacas (ALVES, 2000, p. 46).

Você e sua comunidade conhecem o Programa “Missão Criança” da IECLB?1 Ele visa cumprir com a tarefa missionária de batizar, educar na fé cristã e promover a vivência comunitária da fé. É uma ótima oportunidade para colocar e abraçar as crianças no centro da vida da comunidade e tê-las como exemplo, tal qual Jesus Cristo ensinou. Converse com a comunidade sobre essa proposta e coloque-a em prática! Será uma experiência transformadora e libertadora.

5 Subsídios litúrgicos Confissão dos pecados “Confesso-te, Senhor, hoje não foi um dia bom. Aquela menina vendendo flores... Aquela mãe sem dinheiro para o remédio do filho... Aquele telefonema que atrapalhou meu trabalho... A notícia do desemprego do meu amigo... Confesso-te, Senhor, minha limitação, minha indignação diante das coisas que eu não consigo mudar e ao mesmo tempo minha indiferença para com aquelas coisas que posso mudar. Acolhe-me, Senhor, e transforma meu jeito de viver!” (Inês de França Bento) Hinos

Veja opções de hinos no LCI: 533 a 554.

Canção: Direito de ser criança Eu quero um lugar onde eu possa brincar. Eu quero o sorriso de quem sabe amar. Eu quero um pai que abrace bem forte. Eu quero um beijo e um abraço de mãe (bis). Refrão: Eu quero o direito de ser criança, de ser esperança de um mundo melhor. Eu crescer como gente.

1

Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/conteudo_organizacao/missao-crianca/programamissao-crianca-2>.

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Eu quero um mundo diferente. Será que eu posso contar com você ! (3x). Eu quero meus passos marcando esse chão. Eu quero o direito de ter o meu pão. Eu quero uma mão que me mostre o caminho. Eu quero a vida, eu só quero o amor (bis). Eu quero os homens unindo as mãos. Eu quero um mundo mais justo e irmão. Eu quero os jovens vivendo a esperança. Eu quero as crianças cantando assim (bis).

Bibliografia ALVES, Rubem. Culto Arte: Celebrando a vida – tempo comum. Petrópolis: Vozes, 2000. MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992. SOARES, Armando Gameleira; CORREIA JÚNIO, João Luiz; OLIVA, José Raimundo. Comentário do Evangelho de Marcos. São Paulo: Fonte Editorial, 2012 Dicas de leitura para aprofundar textos bíblicos sobre crianças: A Bíblia e as crianças – Revista Ultimato. Disponível em: <https://ultimato.com. br/sites/maosdadas/2014/04/23/o-que-a-biblia-diz-sobre-as-criancas/>. RAMOS, Luiz Carlos. A criança da Bíblia. Disponível em: <https://www. luizcarlosramos.net/a-crianca-da-biblia/>. KLEIN, Remí. A criança, a Bíblia e a história. Protestantismo em Revista, São Leopoldo: EST. Disponível em: <http://periodicos.est.edu.br/index.php/ nepp/article/view/159/193>.

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18º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

26 SET 2021

PRÉDICA: NÚMEROS 11.4-6,10-16,24-29 MARCOS 9.38-50 TIAGO 5.13-20

Roberto E. Zwetsch

Oxalá todo o povo de Deus fosse profeta!

1 Introdução Numa primeira leitura do texto da prédica ficamos surpresos que esse texto do Pentateuco tenha sido escolhido para um dos domingos do tempo de Pentecostes. E a estranheza continua com as leituras complementares do Evangelho de Marcos e da Carta de Tiago. Mas uma olhada mais atenta pode nos dar alguma ideia das razões de quem trabalhou essas perícopes do Lecionário Ecumênico. Ainda assim, isso não nos dispensa de pensar sobre os textos, refletir como trabalhá-los em vista do serviço comunitário, da pregação do evangelho e do contexto maior em que vivemos e atuamos. De minha parte percebi que há nesses textos, especialmente a partir da narrativa de Números, um desafio enorme: que o povo se torne instrumento da profecia! Será isso mesmo? E o que isso significa concretamente? Vamos estudar o texto, compará-lo com as leituras previstas e depois fazer nossas escolhas para a pregação deste domingo. Em 2020, devido à pandemia da Covid-19, os cultos públicos foram cancelados em vista do isolamento social necessário para evitar aglomerações e reuniões que poderiam implicar um aumento do contágio do vírus. Isso foi necessário e correto, como se pode verificar nas comunidades. A presidência da IECLB foi muito clara e corajosa ao lançar as cartas pastorais nesse sentido, recomendando que se buscassem outras formas de fortalecer a fé comunitária bem como ações solidárias dentro das possibilidades de cada lugar. E chamou a atenção a criatividade de muitos colegas ao celebrarem de modo virtual, cada qual procurando ensaiar novas formas de proclamar o evangelho, anunciar a fé e a esperança, desafiando as comunidades a viver na prática o que cremos e louvamos no canto e na oração de intercessão. Em 2021, não posso imaginar como estaremos em relação à pandemia. O desejo e a esperança é que o pior tenha passado e tenhamos voltado – com muitos cuidados – a reconstruir nossa vida social e coletiva. Não acho que isso possa ser conceituado com a palavra “normalidade”, usada de forma muitas vezes rápida demais e até leviana. Que normalidade podemos imaginar depois de tantas pessoas falecidas, tantas famílias destruídas, tantos profissionais de saúde que deram suas vidas para salvar vidas de outras pessoas? Que normalidade é possível num país em que a principal liderança ignorou a gravidade da pandemia e comprometeu a vida de toda a sociedade? Que normalidade se pode imaginar num momento em que a economia nacional foi destroçada por opções equivoca-

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das e falta de um mínimo de senso social por parte das autoridades constituídas? O país jamais será o mesmo depois do ano de 2020. Aliás, o mundo deverá se repensar profundamente. Se houve algum aprendizado na tragédia global, talvez tenha sido este: os Estados nacionais são extremamente necessários e fundamentais para a vida pública. Educação e saúde públicas são essenciais para o nosso povo, em sua maioria sem recursos para planos privados. Qualquer promessa de que a saúde privada é melhor e mais segura não resiste à crítica. Planos de saúde não conseguiram dar conta da tragédia que vivemos em 2020. E num país como o Brasil, com milhões de desempregados e uma pobreza generalizada, só a saúde pública, geral e irrestrita – como a define a Constituição Federal de 1988 – consegue oferecer os serviços básicos para garantir a vida de todas as pessoas. Por isso, mesmo quem sempre questionou o Sistema Único de Saúde – SUS, fruto da luta social assumida pela Constituição de 1988, precisou se convencer de que ele é o melhor sistema de saúde do mundo, como afirmou o Dr. Drauzio Varella. E isso diante do gigante dos EUA, país que se revelou completamente despreparado para enfrentar a pandemia. O Brasil pode enfrentar a pandemia por causa do SUS, mesmo com toda a falta de coordenação imposta pelas decisões equivocadas do governo federal e a precariedade dos hospitais e outros serviços. Sem o SUS, nem podemos calcular as dimensões da tragédia nacional. Nesse contexto maior e dramático, reler um texto como esse de Números em 2021 nos exige uma reflexão profunda, aberta ao Espírito Santo, de modo que Deus possa nos dizer algo novo a que não acedemos facilmente. Isso é o que entendo como porta de entrada neste momento. Que Deus nos ajude! A narrativa de Números foi estudada antes nos volumes do Proclamar Libertação VIII (Milton Schwantes), 32 (Sisi Blind) e 41 (Roger M. Wanke).1 Consideremos as leituras para depois nos determos no texto da prédica. Marcos 9.38-50 – A leitura do evangelho confronta-nos com um ensinamento de Jesus sobre a tolerância e o cuidado em não julgar pessoas. A grita do grupo de Jesus contra uma pessoa que expelia demônios em nome dele nos parece justificada, ainda mais hoje em dia com tantos pregadores que usam o estratagema para enriquecer. Jesus, porém, faz uma afirmação que nos desconcerta: Quem não é contra nós, é por nós. Penso que esse dito precisa ser repensado. Que significa hoje ser “por nós”, ser “por Jesus”? Será que, em nossa realidade, podemos ser condescendentes ao extremo com quem “cura em nome de Jesus”, por exemplo, depois das barbaridades que vimos acontecer nos tempos da pandemia? Antes, é preciso discernir quem de fato agiu “por nós”, pela vida e dignidade das outras pessoas, a quem Deus ama. A segunda parte dessa narrativa é dura. É o típico texto que constrange quem faz leitura literal da Bíblia. Pois quem pode garantir que, em algum momento de sua vida, não “fez tropeçar” alguma pessoa crente e vulnerável? Cortar uma das mãos ou um dos pés, ou mesmo arrancar um dos olhos é algo radical. Quem se dispõe, sendo honesto consigo e com Deus? 1

Todos disponíveis no portal Luteranos: <https://www.luteranos.com.br>.

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Trata-se evidentemente de uma hipérbole! Mesmo assim, é difícil de interpretar esse texto de Jesus. Entrar no reino de Deus ou no seu reinado de paz e justiça sempre será o desafio mais radical, pois exige a entrega da vida, de tudo o que nos é mais caro. Ficar no meio termo não resiste ao tempo e à caminhada da fé, ainda que essa seja um aprendizado constante, uma conversão diária. Por isso, graças a Deus que Jesus também nos ensinou a pedir perdão e a perdoar. Bonhoeffer alertou no seu tempo: a graça que nos salva é graça cara. Baratear o seguimento de Jesus é uma tentação da igreja cristã em todos os tempos. Tiago 5.13-20 – A carta traz recomendações bem práticas para a vida cotidiana das pessoas da comunidade de fé. Não jurar em falso é fazer com que nosso sim seja sim, e o não seja não. Outra vez, a ambiguidade não serve, embora sejamos mestres nela. Na continuação, a carta traz orientação sobre como acompanhar as pessoas enfermas da comunidade e da vizinhança. A oração da fé em favor da pessoa adoecida salva a pessoa, a consola e a resgata para o coração da comunidade. É oração vicária. A intercessão também liberta dos pecados, da vida equivocada que levamos. Como em 1 Pedro 4.8, também aqui o cuidado, o perdão e o amor para com o outro “cobre multidão de pecados”. Chama a atenção que os redatores não explicitem de que pecados se trata. Não importa. Cada qual conhece sua vida. Não se trata de inquirição, mas de perdão, de aceitação, de mudança de vida. Nesse sentido, Tiago nos dá uma orientação muito atual: muito pode a súplica do justo. Aprendamos com essas primeiras comunidades a suplicar, a interceder, a perdoar, pois assim vamos experimentar o que significa ser libertos de uma “multidão de pecados”.

2 Informações exegéticas A narrativa de Números 11, na verdade, é uma compilação de duas ou mais narrativas que aparecem, por exemplo, em Êxodo 12 a 15, textos que compõem a história do êxodo pelo deserto e as tradições ligadas a essa história, com a demorada estadia no Sinai (Êx 19 – Nm 10). O pano de fundo é a murmuração dos israelitas pelos apertos que estão passando com a falta de comida (v. 1: queixou-se o povo aos ouvidos do Senhor). No conjunto dos versículos escolhidos para a reflexão temos, então, diversos assuntos: a ira de Deus e o fogo consumidor de Taberá (v. 3), o desejo das comidas (perdidas) dos egípcios como peixes, pepinos, melões, alhos, cebolas (v. 4-5), o que revela a saudade das panelas de “carne” (Êx 16.3). A liberdade tem preço! Viver do pobre maná do deserto ou das codornizes que o vento traz de graça é muito pouco, é uma desgraça para a multidão. Por que você, Moisés, nos trouxe até aqui para tanto sofrimento? Moisés se insurge contra o povo e contra Deus. E briga com Deus: por que fizeste mal a teu servo e por que não achei favor aos teus olhos, visto que puseste sobre mim a carga de todo esse povo (v. 11)? Acaso fui eu que “concebi este povo”? Moisés ousa confrontar o Deus libertador. A caminhada pelo deserto da libertação é duríssima, não é romântica como alguns filmes costumam mostrar. Conflito sobre conflito, murmuração sobre murmuração.

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Então vem a última parte do texto, que narra a escolha dos auxiliares de Moisés. Eles são escolhidos para aliviar sua carga como líder, como aquele que conduz a caminhada de libertação (v. 16-29). Aqui a ordem vem de Deus mesmo (v. 16ss): Ajunta setenta homens anciãos de Israel [...] e os trarás perante a tenda da congregação, para que assistam ali contigo. São esses homens que irão receber do Espírito que já se manifestava em Moisés para que possam dar conta da “carga” que é levar adiante a caminhada do povo (v. 17), que tem um alvo: a terra prometida aos pais (v. 12). Essa é a parte que nos ajuda a focar no que parece ser o centro da narrativa de Números. Quando o Senhor desce na nuvem e repassa aos setenta a parte que lhes cabe do Espírito que repousava sobre Moisés (v. 25), esses anciãos começam a profetizar. Milton Schwantes chama a atenção que a tradução de Almeida aqui pode ser diferente. Na tradução de Almeida, temos: quando o Espírito repousou sobre eles, profetizaram; mas depois nunca mais. Schwantes observa que na tradução grega da Septuaginta a formulação é outra: e não cessaram mais de profetizar. Quer dizer, sempre temos diante de nós a ingente tarefa de ler com todo o cuidado os textos e procurar estudá-los criticamente. Aqui parece que a Septuaginta tem razão, porque os anciãos assumiram a profecia da luta pela terra até que ela se realizasse (v. 12). Cabe lembrar aqui que o Pentateuco termina com a não entrada de Moisés, o grande líder do êxodo, na terra prometida. A tradição apenas diz que ele a viu de longe, mas então morreu e até hoje ninguém sabe onde ficou sua sepultura (Êx 34.4-6). Não parece estranho? A questão da profecia em Números 11 tem a ver com a carga que é liderar uma caminhada de libertação cheia de sofrimento, disputas, traições, idas e vindas, e, por fim, uma aposta que pode apenas redundar em bênção para as futuras gerações. Nada está garantido no rumo da terra prometida. E essa carga não pode ser colocada apenas sobre um líder. Ela precisa ser compartilhada, distribuída, e até mesmo aberta para participações inesperadas como o que aconteceu no acampamento dos israelitas. De repente, além dos anciãos escolhidos, aparecem dois outros que também começam a profetizar: Eldade e Medade (v. 26). E isso gera ciúmes do grupo principal, que vai se queixar a Moisés: Você não vai proibir esses dois? Moisés rebate, firme: Que é isso, Josué? Tens ciúmes por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito! (v. 29). Uma última observação pode ainda ser importante. Não há certeza sobre o surgimento histórico desse texto, mas o conteúdo indica para a possibilidade de vir dos tempos do exílio. Foi quando se fez uma releitura em retrospectiva da história do êxodo e se vincula essa tradição à profecia. Tanto que Moisés é reivindicado como sendo raiz da profecia de Israel. Sabemos que os profetas, durante o reinado, foram marginalizados e perseguidos porque eram a consciência crítica no meio do povo. Mas Schwantes acrescenta ainda um ponto. Ele afirma que aqui os anciãos são reivindicados para a profecia. Por que essa afirmação? Ora, normalmente na história de Israel, os anciãos eram o baluarte conservador da sociedade, assumindo as funções de mantenedores da sabedoria, as funções de administração da justiça e do direito, junto com a elite sacerdotal. Por isso, normalmente, se colocavam em oposição aos profetas. Em Números 11 temos uma outra tradição! Justamente esses anciãos da caminhada profetizaram e se torna-

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ram os auxiliares de Moisés, de quem receberam e assim partilharam do Espírito. O Espírito de Deus esteve com eles e não mais deixaram de profetizar na caminhada rumo à terra prometida. Provavelmente, mais tarde, o Espírito se calou e na terra de Canaã, especialmente após a organização do reinado, seus herdeiros se acomodaram. Mas essa é outra história e aqui fica apenas como hipótese incompleta.

3 Meditação A análise da narrativa nos conduz a algo bem importante. Profecia tem a ver com a manifestação do Espírito de Deus. É um movimento carismático mediado por Moisés, como escreveu Schwantes. Moisés, assim, não fica restrito às leis, aos milagres do êxodo, aos sacrifícios, à liderança monocrática. Moisés guarda uma dimensão profética que contrabalança seu prestígio, porque – ao profetizar – precisa se insurgir contra o povo e discutir com o próprio Deus. Isso é muito importante hoje em dia, pois vivemos tempos em que muitos se apresentam como “cheios do Espírito” e se autoapresentam como “profetas”, “apóstolos”, alguns até ousam se intitular como “messias”. Há que discernir os tempos e os espíritos. Jesus foi muito claro a respeito. Então se alguém disser a vocês: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo ali! Não acreditem; porque surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos (Mt 24.23s). Por isso é preciso – com urgência – identificar os critérios que nos ajudem a reconhecer a profecia autêntica, aquela que não nos pode enganar. E um dos critérios é a carga que a profecia carrega, a cruz que identifica o discípulo e a discípula de Jesus. Profetas carregam a luta do povo rumo à liberdade, jamais se aproveitam da fé e da confiança de sua gente. Profecia é serviço em nome do Espírito e que se exerce na força do Espírito, para que venha a bênção divina sobre as pessoas, para que se chegue ao alvo da nova terra, da vida digna, da liberdade. Jesus afirmou que veio para servir e não para ser servido, veio para libertar e curar, e não para escravizar e oprimir, veio para dar a vida e não para tomá-la. Nesse sentido, quem sabe se pode afirmar que existe uma espécie de experiência vicária (Schwantes) no relato de Números. Essa forma de profecia vicária, que intercede e luta pelo povo e com ele não é algo incomum no Primeiro Testamento. Pode-se mencionar aqui a vida de Jeremias, seu sofrimento e prisões por causa da atuação profética. Há um relato muito significativo sobre Jeremias no capítulo 38. Aí ficamos sabendo que o profeta – diante da prisão e da morte iminente – foi salvo precisamente por um etíope não israelita, um servidor negro de outro povo que visitava o rei Zedequias e era simpatizante da fé de Israel. O etíope intercedeu pelo profeta, salvando-o da morte (38.10-13). Cabe também lembrar a atuação de Ezequiel, que leva sobre si a iniquidade de Israel (Ez 4.4ss) ou os textos do servo sofredor, que levou sobre si os pecados de muitos (Is 53.12), além de outros exemplos. Talvez se possa mencionar aqui a história exemplar de Jó, que, depois de longo sofrimento, afinal testemunha a presença de Deus em sua história pessoal cheia de tribulações (Jó 42.1-6), mesmo sendo esse um livro da tradição da Sabedoria.

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No caso da narrativa de Números, Moisés se sente solitário e desamparado (v. 11-15). Não aguenta mais. E grita contra Deus. Mas Deus o escuta. E aponta um caminho. Ele deve aprender a partilhar a liderança, precisa aprender a compartilhar as cargas que uma liderança assume ao ser escolhida para uma grande tarefa, que em certos momentos ultrapassa sua força humana, sua fraqueza. Nessa caminhada, é preciso que a liderança saiba escutar, aprenda a reconhecer seus limites. Na narrativa paralela de Êxodo 18, foi precisamente o sogro de Moisés, Jetro, um sacerdote midianita, não israelita, quem o advertiu de seu erro (v. 19-24). E Moisés o escutou! Não existe chance de fazer tudo sozinho. Aliás, essa é uma visão míope do que seja uma boa liderança, que exerça a coordenação com autoridade. O texto nos faz ver que o Espírito de Deus não é propriedade da liderança nem de ninguém. É Deus mesmo que o distribui e faz se manifestar. Até mesmo fora do arraial ele pode mover pessoas. Se podemos atualizar, até mesmo fora da igreja, da comunidade de fé, Deus mobiliza pessoas por meio do seu Espírito para que sua obra se realize. E a obra de Deus é que seu reino venha, que a paz e a justiça prevaleçam sobre a violência, a opressão e a morte. Assim, anciãos, lideranças e mesmo pessoas de fora da comunidade podem se unir para servir ao Espírito divino. Algo que neste momento de nossa história pode tornar-se alerta, desafio e consolo. Não estamos sozinhos.

4 Rumo à prédica Domingo de culto em época de Pentecostes ajuda-nos a enfatizar outra vez o dom do Espírito Santo derramado sobre a comunidade de Jesus depois de sua ascensão (At 2). No Evangelho de João, o dom do Espírito já acontece no encontro com o Ressuscitado (Jo 20). Em uma e outra tradição, o que importa é dar-nos conta do que significa a comunidade se tornar cheia do Espírito Santo. A narrativa de Números nos mostrou que o Espírito não é propriedade da liderança, nem mesmo de Moisés, e que Deus o distribui como melhor lhe apraz. Lá o Espírito foi dado a anciãos, à gente experimentada, para que ela participasse da liderança como sustentação e fortalecimento nos momentos de crise, da pressão por resultados, da fome e da miséria. Como seria nos dias de hoje? Quem assume profeticamente a liderança na comunidade, disposto a enfrentar a resistência de alguns para que a vida seja digna para todas as pessoas? Nos relatos do Novo Testamento sobre o derramamento do Espírito, a comunidade das discípulas e discípulos recebe com o Espírito o dom da paz: Que a paz enteja com vocês, diz Jesus em João 20.19. O Espírito habilita a comunidade para ser testemunha do evangelho: como o Pai me enviou eu envio vocês (Jo 20.20; cf. At 2). Na Carta de Tiago, o Espírito ensina a perdoar pecados, a reatar relações quebradas, ele é força libertadora. Em Números, ele ajuda a distribuir a carga pesada da profecia. Há que apostar na distribuição da liderança, a aprender a despertar e coordenar os carismas, a deixar que o Espírito atue na comunidade e habilite seu povo para a ação, para a caminhada da fé e da vida plena. O Espírito nos desafia a aprender a discernir o que conduz à vida, à justiça, à liberdade, à terra prometida, à comunhão e ao amor mútuo.

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A multiforme dádiva do Espírito ensina ainda mais. Nos textos lidos junto com Números, percebemos que o Espírito de Jesus nos desafia a ser firmes, justos, verdadeiros com as pessoas: que o nosso sim, seja sim; que o não, seja não (Tg 5.12). O Espírito de Jesus nos ensina a orar pelas pessoas, a interceder pelo sofrimento alheio, a lutar por vida digna para todas as pessoas, mesmo aquelas que não nos são próximas ou merecedoras de atenção. Aliás, é bem nesses casos que o Espírito se manifesta de forma mais desafiadora. Ele não aponta pecados, mas se os houver, esses são perdoados; as pessoas libertadas de culpa, tristeza e dor podem recomeçar. Por fim, o Espírito se manifesta coletivamente, comunitariamente, ele quer revolucionar a comunidade inteira. E assim, a comunidade dos crentes se torna veículo da profecia. É isso que Paulo vai ensinar à comunidade de Corinto em sua pregação sobre os dons do Espírito (1Co 12 – 14). Ora , o dom maior é e será sempre o amor. O amor que recebemos e o amor com que nos amamos uns aos outros (Rm 13.8-10; Mt 5.43ss). O amor é o maior desafio porque nunca sabemos até onde ele nos há de levar. Também o amor é dom profético. O Espírito de Jesus manifesta-se na vida das pessoas, no seu ser integral. Hoje poderíamos acrescentar – sem ofender a tradição evangélica – que o Espírito clama a partir da terra, das águas dos rios, dos mares, das fontes subterrâneas, do ar, das maiores alturas e da vida dos outros seres que compartilham conosco o mesmo planeta (Rm 8.20s). Todos vivemos perigosamente hoje em dia. Por isso é tempo de clamar ao Espírito da vida! É tempo da manifestação do Espírito para que a vida vença a morte, a justiça prevaleça sobre a injustiça e a liberdade sobre a escravidão. Todas as escravidões antigas e modernas, atuais e futuras. Vem, Espírito Santo, renova a criação, a criação inteira (OPC, 208). Assim cantamos nos cultos comunitários. Essa é a nossa oração e a nossa súplica. E que o mesmo Espírito renove a igreja, a comunidade de fé, a nossa vida inteira. E nos faça um povo que profetize! Desde os maiores até os mais pequeninos.

5 Subsídios litúrgicos Cantos LCI 461 – Espírito, Verdade LCI 465 – Vem, Espírito da vida LCI 463 – Espírito, Deus, ó santo Senhor LCI 469 – Ó Santo Espírito do Senhor LCI 462 – Vem, Espírito Divino, grande ensinador LCI 466 – Vento que anima HPD 2 – 318, 437, 443 O Povo Canta – 208 Orações Vem, Espírito Criador! Vem, Espírito Santo Criador, agora, hoje. Fica conosco, dá-nos tua inteligência

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e enche de bondade nossos corações. Teu nome é: consolo, inspiração, vida, graça. Tu és novidade, criação, força. Vem, Espírito Santo, para que tua luz ilumine nosso caminhar e fortaleça nossas decisões. Tu és quem fizeste todas as coisas boas – Quem preside nosso discernimento e aponta o caminho de nossas opções. Teu nome é unidade, esperança, amor. Afasta-nos do mal, do egoísmo, da injustiça, da intolerância e da dispersão. Dá-nos tua paz, tua bênção, teu consolo, tua serenidade e tua sabedoria, para que transformemos nosso presente na vontade do Pai que está nos céus. (Dom Pedro Casaldáliga – Bispo emérito de São Félix do Araguaia, MT. Trad. Roberto E. Zwetsch.) Vem, Espírito Santo Se habitas apenas nos corações que são fiéis, como poderei ser abençoado por ti? Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração infiel, transforma-o num coração que guarda fidelidade. Se habitas apenas nos corações que são puros, como poderei ser abençoado por ti? Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração imundo e faze com que seja um coração puro. Se habitas apenas nos corações que são misericordiosos, como poderei ser abençoado por ti? Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração impiedoso e transforma-o para que seja um coração misericordioso. Se habitas apenas nos corações que são justos, como poderei ser abençoado por ti? Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração injusto, e transforma-o num coração justo. Se habitas apenas nos corações que creem, como poderei ser abençoado por ti?

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Ó Espírito Santo, vem habitar em meu coração descrente, e transforma-o num coração que crê. Ó Espírito Santo, quando tu entrares no meu coração, serei ricamente abençoado. Minha alegria então será a de um cego que reconquistou a visão, a de um surdo que reconquistou a audição, a de um mudo que reconquistou a fala. Tão grande será minha alegria. Ó Espírito Santo, entra em meu coração. Amém. (Johnson Gnanabaranam – cristão luterano da Índia, professor universitário e poeta.)

Bibliografia GNANABARANAM, Johnson. Senhor, renova-me. Reflexões. Trad. Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1993. SCHWANTES, Milton. Auxílio homilético sobre Números 11.11-12; 14-17; 2425. In: DREHER, Carlos A.; KIRST, Nelson (Coord.). Proclamar libertação VIII. São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 205-212.

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PRÉDICA: MARCOS 10.2-12 GÊNESIS 2.18-24 HEBREUS 1.1-4; 2.5-12

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03 OUT 2021

Dione Carla Baldus

Luz de esperança para a realidade

1 Introdução Escrevo em meio à pandemia, com o sistema de saúde colapsando, a violência doméstica aumentando, milhares de mortes e, nas comunidades, um esforço imensurável para acompanhar as pessoas, oferecendo-lhes o conforto e o sustento na Palavra e na oração. Assim, coloco-me diante do texto do evangelho. Noto o quanto a tradição ensinou a ler esse texto tendo em mente a proibição do divórcio e ocultando, na maioria das vezes, os relacionamentos humanos fragmentados pelo antropocentrismo e pelo patriarcalismo. Colaboram com essa reflexão alguns auxílios homiléticos anteriores de Proclamar Libertação (v. 28; 36; 42). O texto de Gênesis é parte de um dos relatos da criação: Deus expressa o propósito de criar alguém que seja como a outra metade do homem. Segue o relato da criação, a nomeação dos animais e a conclusão de que Adão ainda estava só. Em seguida Deus faz adormecer o homem, do seu “lado” forma a mulher, e apresenta-a ao homem. Ao vê-la, o homem a reconhece como uma igual. O texto sugere então que os dois são de uma só carne, culminando com o tradicional versículo empregado nas cerimônias de bênção matrimonial (Gn 2.24). A Carta aos Hebreus reafirma a autoridade de Jesus em comparação a outros mensageiros de Deus. Argumenta que Deus falou de diferentes formas e por meio de muitas pessoas no passado. Nos últimos tempos, ele falou por meio de seu filho. Não há um desmerecimento da história passada ou das testemunhas passadas, mas uma rememoração do plano original da criação e uma admoestação de que tudo está sob o poder de Deus, e que Jesus está ao “lado” das pessoas para ser irmão no sofrimento e autor da salvação.

2 Exegese O texto de Marcos trata sobre a licitude e sobre os motivos do divórcio. O assunto era muito discutido na época de Jesus. Duas escolas rabínicas, lideradas por Shammai e Hillel, tinham posições diferentes sobre o tema. A primeira, mais severa, dizia que somente culpas muito graves podiam ser razão para o divórcio, como o adultério, comportamento imoral grave ou o fato de a mulher não ser virgem no momento do casamento. A escola de Hillel, ao contrário, defendia que qualquer motivo seria suficiente para que o homem solicitasse o divórcio. Assim, cada qual podia interpretar o que seria a “coisa indecente” que o homem pudesse

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eventualmente encontrar na mulher para justificar o divórcio (Dt 24.1). Entre os gregos e romanos, havia mais paridade nos direitos entre homem e mulher. Para os judeus, o direito de dar a carta de divórcio era exclusividade do marido. Em casos excepcionais, a esposa poderia requerer o divórcio, mas esse só seria concretizado se o tribunal convencesse o marido a assinar a carta de divórcio. A controvérsia na qual Jesus foi envolvido poderia ser benéfica para muitas pessoas e, ao mesmo tempo, prejudicar o próprio Jesus. Sua posição poderia ser vista como apoio a uma das escolas, como contrária à lei de Moisés, como causa de conflito com o rei (João Batista perdeu a cabeça porque censurou Herodes por casar-se com a cunhada), como priorização de uma cultura sobre a outra, ou poderia ainda conflitar com o próprio povo. O cenário era propício para uma grande confusão! A pergunta inicial dos fariseus (v. 2) tem a ver com o direito (a lei) e revela ao mesmo tempo a situação da mulher na sociedade. O termo grego apolyō (mandar embora, repudiar, abandonar, deixar de lado) significava na prática deixar a mulher à mercê da sorte, dependente da caridade alheia ou de uma eventual sobrevivência na prostituição. Sem a carta do divórcio (biblion apostasiou), mencionada no v. 4, os direitos garantidos por lei à mulher seriam negados, assim como sua condição de ser livre para casar-se novamente. O fato de os fariseus não mencionarem a palavra divórcio reforça a ideia de que o foco inicial da discussão era sobre o motivo alegado para o divórcio. O termo permitir atribuído a Moisés (v. 4) não significa legitimar o fim do casamento como os fariseus querem dar a entender. Ao contrário, o texto de Deuteronômio 24.1-4 é uma exortação aos homens que estão tentando justificar o divórcio com qualquer motivo. O texto de Deuteronômio é um alerta para o fato de que, em sendo necessário, o divórcio precisa seguir alguns passos para resguardar o direito e a dignidade da mulher: o homem deve preparar o documento de divórcio, entregá-lo à esposa e mandá-la embora. O texto termina exortando para que as pessoas não cometam esse “pecado”. Jesus reage à alegada concessão mosaica ao divórcio com o argumento da dureza do coração do ser humano (v. 5), que se deixa escravizar pela lei e negligencia a vontade de Deus manifestada na criação do homem e da mulher. Essa afirmativa evidencia situações de não reconhecimento das dádivas de Deus, tais como desvalorização do ser humano, uso do corpo humano como objeto, desigualdade de gênero, que fere a dignidade da mulher, o uso do poder e da lei para interesses próprios. Na medida em que foi dado ao ser humano a responsabilidade e o poder de nominar a criação e de cuidar dela, ele tem esse dever. Esse poder é de reconhecimento, aceitação e serviço. E vem acompanhado do dever. Nessa relação estão intrínsecas a liberdade, a ética, o valor à vida e a interdependência de toda a criação. Jesus direciona seu argumento para o objetivo primordial da criação, discorrendo sobre o ser humano, e não sobre a questão formal ou legal, como querem discutir os fariseus. Repare que os discípulos, em particular, fazem mais perguntas. O que ficou registrado dessa conversa foi uma resposta de Jesus. Ela chama a atenção pela redundância e pela inclusão do termo adultério (palavra normalmente utilizada para designar traição amorosa, mas que significa também falsificação e adulteração).

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Provavelmente Jesus não estava se referindo à traição amorosa, tendo em vista que a pena para o adultério é o apedrejamento (Jo 8.1-11), ou seja, morte. Dado o teor da resposta de Jesus, pode-se suspeitar que havia dúvidas sobre os papéis da mulher e do homem implicados no casamento, pois Jesus equipara a homens e mulheres a responsabilidade pelo casamento e aparenta sinalizar que a fidelidade inclui zelo, respeito e cuidado mútuos. O Evangelho de Marcos, se comparado com Mateus 19.1ss, não menciona a cláusula de exceção para o divórcio (adultério). Presume-se que Marcos, por enfatizar os princípios que norteiam a boa criação de Deus, não considera a exceção. O texto não esclarece o que fazer quando ocorre um divórcio, por isso é significativo recorrer ao evangelho, que convida ao não julgamento e ao acolhimento e acompanhamento das pessoas em sofrimento.

3 Meditação Há assuntos difíceis com os quais algumas pessoas preferem não se envolver. Esse é um deles! Porém ele é necessário e urgente. Os dados do IBGE informam que, em cada três casamentos, um termina em divórcio. A média de duração do casamento civil era de14 anos em 2017. O aumento significativo de divórcios judiciais, com sentença de guarda compartilhada, mostra que filhos e filhas não são empecilho para o divórcio. Essa modalidade passou de 7,5% em 2014 para 20,9% em 2017. Nesse caso, a mulher continua sendo a principal responsável pela guarda. Fato é que, por vezes, o estar juntos no casamento significa se anular ou anular a outra pessoa, o que resulta em frustrações, tristezas e violências. O casamento é uma dádiva divina e não tolera relações baseadas em sujeição, violência e exploração. Bem sabemos que a realidade do divórcio está presente em muitas famílias, trazendo os mais diferentes sentimentos: solidão, rejeição, um profundo senso de ter falhado, perda de autoestima, crítica dos familiares e sociedade, problemas com a educação dos filhos e das filhas e muitos outros dilemas. O sofrimento pode ser até maior do que a separação por morte da pessoa cônjuge, pois se postergam determinadas decisões e situações que trazem angústias e geram dúvidas sobre a possibilidade de retorno à relação. Em uma sociedade em que as pessoas casam pensando em se separar e tem como característica o individualismo, é preciso enfatizar a seriedade da vida matrimonial e a perspectiva da indissolubilidade do casamento, mas a partir da convivência a dois de forma plena, realizada e feliz. Jesus recupera na discussão com os fariseus o sentido do casamento de acordo com intenção primeira da criação: uma oportunidade para que as pessoas possam encontrar sua individualidade e a vida conjugal em uma parceria para a vida toda, com cooperação, complementariedade, equidade, cuidado mútuo, sonhos, projetos. O casamento foi instituído para ser uma bênção ao casal, com potencial para conduzir ao conhecimento de si mesmo e da outra pessoa, abertura para o diálogo, o confronto de mentalidades, a humildade, o perdão, a oração, o respeito, a valorização, a não culpabilização e vitimização. Esses valores viabilizam e sustentam a união matrimonial.

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O ensino de Jesus supera a visão de mundo que coloca o ser humano (preferencialmente o homem) no centro, o corpo como objeto de uso, estética e exploração, as conquistas materiais acima das relações e da própria vida (o ter sobre o ser). O princípio do amor, que deve nortear todas as relações, leva o ser humano a buscar o bem de toda a criação, numa relação de interconectividade e dependência mútua, cooperando para o melhoramento do mundo, inclusive nas relações conjugais. É o amor que deve orientar a relação do ser humano consigo mesmo, com a outra pessoa, com a natureza e com Deus. Na vida comunitária, as pessoas perguntam se tal coisa é lícita ou não. Requerem-se respostas prontas, fechadas, fáceis e que favorecem quem pergunta. Decidir sobre a vida das outras pessoas é fácil. Mais difícil é comprometer-se a caminhar junto. A comunidade deve ser alertada a não aceitar como normais a violência, a inferiorização e a infidelidade (nos mais diferentes sentidos), e a proporcionar espaços de diálogo e reflexão a respeito da responsabilidade e do cuidado com a vida, para precaver situações de sofrimento familiar e comunitário. Jesus não condena a mulher samaritana com a qual ele conversa sobre os valores do Reino, mas exorta para que ela reflita sobre o seu viver. Jesus não entra na questão da legitimidade do divórcio (direitos), mas olha para a atitude das pessoas e pondera sobre a prática do amor, que deve nortear a dádiva do casamento. Jesus sustenta a indissolubilidade do casamento em vista da vontade original de Deus na criação. Tal relação não deve ser quebrada pelo pecado, pois é dom de Deus! O Evangelho reafirma a interdependência nas relações, a complementariedade entre homem e mulher, relações de paz, justiça e amor. As pessoas podem e devem ser exortadas a ter uma postura mais proativa como testemunhas do reino de Deus proclamado por Jesus, assumindo responsabilidade individual e coletiva que daí decorre.

4 Imagens para a prédica – Oferecer dados sobre a dissolução de casamentos e os sofrimentos que daí decorrem pode ser relevante para sensibilizar a comunidade sobre a temática. Mas cuidado para não expressar juízo! – A partir do contexto local, refletir sobre algumas questões suscitadas pelo texto: a) questão da interpretação: o meu modo de ver um texto ou a tradição da qual provenho não estão acima da palavra de Deus; b) a forma como Jesus reage: não entrar na polêmica, mas argumentar com consistência em favor da vontade divina e da mudança de mentalidade; c) o valor do compromisso firmado por ocasião da bênção matrimonial e o que isso representa; d) o cuidado com as palavras (língua) no cotidiano e a importância de não julgar; e) o diálogo como modo de mudar a visão sobre as situações e problemas. – Mencionar o compromisso da igreja de testemunhar os valores ensinados por Jesus, auxiliando as pessoas a construir relações sustentadas pelo amor e em favor do bem de toda a criação. A igreja deve posicionar-se sobre as questões que

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contrariam a vontade divina como a questão da violência doméstica e a falta de equidade nas relações. – Considerar o cuidado com as palavras diante de pessoas que enfrentaram situações que culminaram no seu ou no divórcio de pessoas próximas e aquelas que estão em situação de união estável. Ter uma pregação compreensiva, positiva e esperançosa do texto para permitir que as pessoas possam refletir sobre mudanças na forma de pensar e agir para edificarem relacionamentos como dádivas de Deus.

5 Subsídios litúrgicos Poesia Além da terra, além do céu Além da Terra, além do Céu, no trampolim do sem-fim das estrelas, no rastro dos astros, na magnólia das nebulosas. Além, muito além do sistema solar, até onde alcançam o pensamento e o coração, vamos! vamos conjugar o verbo fundamental essencial, o verbo transcendente, acima das gramáticas e do medo e da moeda e da política, o verbo sempreamar, o verbo pluriamar, razão de ser e de viver.1 História Um casal de estudantes de Teologia, em diálogo com o pastor sobre a bênção matrimonial, pede para que sejam omitidas da liturgia as palavras: “até que a morte vos separe”. O pastor pareceu assentir com o pedido. Durante a bênção matrimonial, a mensagem foi introduzida com uma pesquisa entre as pessoas presentes. Cada qual foi convidada a escrever em um papel o nome do órgão do corpo humano que mais ajuda e o que mais atrapalha no casamento. Foi então que o pastor partilhou que o órgão que tem essa dupla função é a língua. No momento do compromisso, os celebrantes perguntaram ao casal: “......., queres receber ....... das mãos de Deus como teu esposo/tua esposa, amá-lo/a e honrá-lo/a, não o/a abandonar em horas de alegria e de dor e manter a união matrimonial santa e indissolúvel ‘até que a morte vos separe’?” Dias depois, o casal foi conversar com o pastor a respeito da inclusão da frase “até que a morte vos separe”. O diálogo foi como um sopro do Espírito que oportunizou uma mudança do pensar sobre o casamento e que marca, até hoje, o pastorado e a vida conjugal do casal. Toda 1

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

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celebração que ministram é precedida de um diálogo sobre o casamento santo e indissolúvel como sendo dádiva e fonte de alegria, cumplicidade e realização em todos os sentidos.

Bibliografia DÜCK, Arthur W. Divórcio e Novo Casamento no NT: período intertestamentário, Marcos 10.2-12 e Lucas 16.18. Disponível em: <http://revista.batistapioneira. edu.br/index.php/rbp/article/view/257>. Acesso em: 01 maio 2020. ONGARATTO, Sabrina. Brasil: um a cada três casamentos termina em divórcio. Disponível em: <https://revistacrescer.globo.com/Familia/Sexo-eRelacionamento/noticia/2019/04/brasil-um-cada-tres-casamentos-terminaem-divorcio.html>. Acesso em: 09 maio 2020.

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PRÉDICA: HEBREUS 4.12-16 AMÓS 5.6-7,10-15 MARCOS 10.17-31

20º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

10 OUT 2021

Ramona Weissheimer

O que Cristo fez por nós

1 Introdução Com essa delimitação e com esses textos de leitura, Hebreus 4.12-16 ainda não foi proposto em Proclamar Libertação como texto de pregação. Porém Hebreus 4.9-16 foi trabalhado por Heinz Ehlert (PL IXX) e Gottfried Brakemeier (PL 31); e Hebreus 4.14-16; 5.7-9, por Kurt Riek (PL 43), Sílvia B. Genz (PL 24) e Ana Isa dos Reis (PL 34). Há ainda outros estudos que abrangem parte desses versículos: Hebreus 4.12-13, por Günter Adolf Wolff (PL XI) e Hebreus 4.14-16, por Augusto Kunert (PL XI). Amós 5.6-7,10-15 é uma dura palavra de juízo: voltem para Deus, parem de fazer o mal e praticar a injustiça, não respeitar os direitos dos pobres, odiar a verdade, aceitar suborno e impostos escorchantes. Parem de fazer o mal e voltem para Deus. Então será verdade o que vocês dizem: que o Deus todo-poderoso está com vocês! Talvez Deus tenha compaixão dos que escaparem da destruição. Marcos 10.17-31 afirma que não é suficiente cumprir os mandamentos. Mas é preciso seguir o Senhor com todo o ser. Jesus constata que é difícil entrar um rico no reino dos Céus e que muitos dos que são agora os primeiros serão os últimos. Sobre a Carta aos Hebreus, a Bíblia de Jerusalém diz: “Sua linguagem e seus pensamentos (são) provenientes da cultura alexandrina (filoniana), sua apologética de belo vigor oratório, sua argumentação, enfim, fundada inteiramente sobre a interpretação do Antigo Testamento” (p. 2117). Eduard Lohse observa que Hebreus não começa com um estilo de carta (autor, destinatário, saudação). Mas não se pode dizer que o início se tenha extraviado, porque a introdução é muito bem elaborada, não só em termos de estilo, mas já apresentando todo o programa da carta: como Deus falou anteriormente com os seus, por meio dos profetas e de outras maneiras, e como agora, “nestes últimos tempos”, agiu e falou por meio de seu Filho, sua glória e tudo o que o Salvador fez por nós (1.1-4). “O autor não escreve um tratado ou um ensaio teológico, mas dirige-se a uma comunidade específica, cujos problemas conhece e a qual quer ajudar, exortando e ensinando” (LOHSE, 1985, p. 212). A Carta aos Hebreus mescla, muitas vezes, um trecho doutrinário com uma parênese ou exortação. Como numa prédica, traz a teoria e depois se dirige à pessoa que lê ou ouve com uma exortação. A carta cita textos do Antigo Testamento (Sl 8; 95; 110; Jr 31) e depois segue com uma exortação. Sua grande questão é mostrar o que Cristo fez por nós.

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Assim, ela menciona os anjos, a antiga aliança, os sacrifícios dos sacerdotes, para dizer que o que Cristo agora fez é melhor e definitivo. Por isso, afirma o autor, não abandonem o que agora receberam. Sobre os destinatários, vale lembrar que o nome Hebreus foi acrescentado mais tarde à carta. De qualquer forma, os destinatários não são pessoas cristãs de primeira geração, pois ouviram/foram ensinadas de outros (2.3), passaram por perseguição logo após sua conversão (10.32), ajudaram outros em necessidade (6.10). Poderiam ser judaico-cristãos, porque conhecem a lei, o culto. Mas também isso tem sido posto em questão. A Bíblia de Jerusalém, porém, dá a entender que os destinatários seriam judeus “não apenas muito versados na antiga Aliança, mas também convertidos do judaísmo. Sua insistência no culto e na liturgia faz pensar até em sacerdotes (cf. At 6.7)”. Exilados por causa de sua fé, saudosos do culto levítico, confusos com as perseguições e tentados a voltar atrás. A carta se destinava, então, a impedi-los de tal apostasia (10.19-39). Lohse, ao contrário, constata que a carta é escrita num grego muito bem elaborado, citando textos da Septuaginta – não de cor como Paulo às vezes faz. Cita o culto a partir das Escrituras, mas não demonstra uma vivência em Jerusalém. Assim, o mais provável é que fossem gentios cristãos, pois deixaram uma vida “sem sentido”, receberam ensinamento sobre arrepender-se de obras mortas e crer em Deus (6.1). A carta, que já era conhecida por I Clemente no final do primeiro século, pode ter sido escrita entre 80-90 d.C. De qualquer forma, deve tratar-se de uma comunidade que está numa situação de perseguição e abandono da fé, ou pelo menos resfriamento: não façam como alguns estão fazendo, de deixar de participar das reuniões (10.25); a fé é a certeza de que existem coisas que não se pode ver (11.1). Mas uma coisa é forte: conforme Lohse, diferentemente de Paulo, o autor diz que não tem segunda chance. Lutero percebeu bem esse contraste, razão pela qual teceu críticas a essa carta. Conforme a Bíblia de Jerusalém, a carta responde ao desânimo, oferecendo magníficas perspectivas da vida cristã, apresentada como uma peregrinação rumo ao descanso na pátria celestial, conduzidos por Cristo, guia muito melhor que Moisés (3.1-6). Jesus é sumo sacerdote da ordem de Melquisedeque, superior a Arão (4.14 – 5.10; 7); Jesus oferece sacrifício melhor e mais eficaz que as oferendas do AT (8.1 – 10.18). A prova da dignidade soberana é que esse guia e sacerdote, Jesus Cristo, é o Filho de Deus encarnado, rei do universo, superior até mesmo aos anjos (2 e 3). “Faz o apelo para aproveitar a possibilidade alcançada pela morte de Cristo e ofertada no batismo, e ingressar em obediência e fé no santuário aberto por Cristo, a fim de receber misericórdia e graça (4.16; 10.19)” (LOHSE, 1985, p. 213). Em resumo, o autor afirma a seus leitores: vocês receberam, pelo batismo, aquilo que Cristo conquistou. A salvação alcançada por Cristo superior à antiga aliança. Cristo é sacerdote da ordem de Melquisedeque, sumo sacerdote e sacrifício ao mesmo tempo, e esse sacrifício, de uma vez por todas, nos dá a salvação. Por isso permaneçam firmes e não lancem fora a graça recebida.

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2 Exegese Comparamos cinco versões, quais sejam, a Bíblia na Linguagem de Hoje (LH), Bíblia de Jerusalém (BJ); Almeida Revista e Corrigida (ARC), Almeida Revista e Atualizada (ARA – Bíblia de Lutero) e a Nova Versão Internacional (NVI – Bíblia de Estudo). Apenas a LH destoa a tradução, mas sem comprometer muito a interpretação (v. 12, a palavra de Deus [...] vai até o lugar mais fundo do espírito, vai até o íntimo, enquanto as demais versões trazem penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Mas nesse versículo a ARC e ARA trazem: é apta para discernir os pensamentos, enquanto as demais trazem: julga as disposições e as intenções do coração. E no v. 16, LH traz cheguemos perto do trono divino, onde está a graça de Deus, enquanto as demais traduzem como trono da graça. Há outras diferenças, mas muito pequenas. A estrutura de Hebreus I. Preparação do tema central: teses fundamentais: 1.1 – 6.20 1. O Cristo preexistente e encarnado é promovido a Filho de Deus: 1.1-14 2. Exortação a escutar a palavra: 2.1-4 3. O Cristo humilhado e morto é promovido a sacerdote celestial: 2.5-18 4. Exortação à fidelidade: 3.1-6 5. Midraxe sobre o Salmo 95: o povo peregrino e a promessa do descanso: 3.7 – 4.13 6. Exortação à confissão de culpa: 4.14-16 7. O Filho de Deus como sumo sacerdote: 5.1-10 8. Ponte para a parte principal: exortação aos ouvintes e as características da palavra a ser proferida: 5.11 – 6.20 II. O tema principal: o sacerdócio do Filho: 7.1 – 10.18 1. A dignidade do sacerdócio de Cristo: 7.1-28 2. O ministério do sacerdote: 8.1 – 10.18 – Explicação breve: 8.1-13 – Explicação mais longa: 9.1 – 10.18 – O sacerdócio antigo é prefiguração do novo: 9.1-10 – O sacrifício sacerdotal de Cristo: 9.11-15 – A necessidade do sacrifício de Cristo: 9.16-28 – A validade eterna do sacrifício de Cristo: 9.16-28 III. Consequências para a fé: 10.19 – 13.17 1. Exortação a guardar firme a confissão de fé: 10.19-39 2. As características da fé: 11.1-39 3. A luta da fé em meio à provação: 12.1-29 4. Parênese: 13.18-25

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IV. Recomendações finais: 13.18-25 (ROTEIRO, 1996, p. 92-93) O texto V. 12-13 – Esses versículos dão continuidade a uma citação do Salmo 95. Diz o Salmo: Hoje, se ouvires a sua voz, não endureçais o coração, como em Meribá, como no dia de Massá, no deserto, quando seus pais me tentaram, pondo-me à prova, não obstante terem visto as minhas obras [...] por isso jurei na minha ira: não entrarão no meu descanso. Esse trecho é referido em Hebreus 4.7b-9,11. Por causa da desobediência, aqueles a quem haviam sido anunciadas as boas novas não entraram no descanso. Por isso ainda resta um repouso para o povo de Deus (v. 9). A promessa de descanso permanece, e importa que ninguém caia naquele exemplo de desobediência. Parece que essa lembrança se encaixa no início da perícope, quando o autor escreve que a Palavra de Deus é viva, e eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes. Ela penetra no mais íntimo do ser, daquilo que se julga indivisível, e perscruta, discerne, julga os pensamentos, as vontades do coração. E não há nada, nem ninguém, que se possa esconder, porém, aos olhos daquele a quem teremos de prestar contas tudo está descoberto e patente. V. 14-16 – Temos Jesus, o Filho de Deus, como o Grande Sumo Sacerdote! E ele entrou não apenas no Santo dos Santos, como o sumo sacerdote araônico, mas entrou nos céus. Por isso permaneçam firmes na fé que receberam. E esse sumo sacerdote pode se apiedar das nossas fraquezas e mazelas, pois ele também foi tentado, como nós. Ele, porém, não caiu na tentação, não pecou. Então, porque temos esse sumo sacerdote, que tem compaixão, podemos com toda confiança nos achegar ao trono da graça, buscar ali misericórdia e socorro, e não temer o julgamento.

3 Meditação “O que Cristo fez por nós, conforme a Carta aos Hebreus? Veja e confira a resposta em 2.15; 4.15; 5.9; 9.14; 9.26” (MEINCKE, 1983, p. 23). Encontrei, por acaso, o livro de Silvio Meincke, “Na plenitude dos tempos”, espremido na prateleira. Sobre Hebreus só havia duas perguntas e o convite para buscar a resposta no texto bíblico. Para a segunda pergunta, “O que é fé?”, o livro indica Hebreus 11.1. Para a primeira pergunta, uma das respostas possíveis é 4.15, que faz parte de nossa meditação: Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se de nossas fraquezas; antes, foi ele tendo em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado. O texto bíblico faz referência a Jesus, que se tornou autor da Salvação ao dar-se em sacrifício definitivo por nós. Mas aqui também é dito que ele conheceu nossas dificuldades, pois também as sentiu. Por isso tem compaixão de nós. E assim nos dá a confiança de que necessitamos para nos achegar ao trono de Deus, para não temer o julgamento, para saber que ali há socorro na hora da necessidade. Como diz Lutero:

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Vê-se quão grande e excelente coisa é o Batismo, que nos arranca da garganta do diabo, nos torna propriedade de Deus, subjuga e tira o pecado e depois fortalece diariamente o novo homem, e sempre opera e permanece, até que desta miséria passemos à glória eterna (OSel 7,430, cf. Bíblia de Lutero, p. 1.165).

Nosso texto vem logo após a citação e comentário do Salmo 95: eu lhes teria dado descanso. Deus tirou israelitas do Egito, onde eram escravos, guiou-os nos perigos, alimentou-os, protegeu-os, mas quando lhes faltou algo, eles quiseram colocá-lo à prova e o abandonaram. E eu lhes teria dado descanso. Porque eles abandonaram Deus, é feita nova e mais perfeita aliança. Descanso, aqui, não é o copo de água ou o sofá no fim do dia, mas o fim do sofrimento, o poder aproveitar o que se recebeu, dádiva. E o povo desdenhou disso. Não façam vocês o mesmo! Se hoje ouvirem a Palavra, guardem-na, permaneçam firmes nela, mesmo que haja dificuldades. A Palavra, a boa-nova que vocês receberam, é viva e eficaz. Ela salva, mas também julga. Nada pode se esconder daquele a quem teremos que prestar contas. Aqueles que eram guiados por Moisés, depois por Josué, cederam às crises, abandonaram a fé e acabaram perdendo a promessa. Não façam vocês o mesmo. Agora vocês são os depositários dessa promessa de descanso, o reino de Deus. Não abandonem a fé. Além disso, temos Jesus, Filho de Deus, como sumo sacerdote! O sumo sacerdote era o mediador por excelência. Sua função, intransferível, era entrar anualmente no Santo dos Santos, no Dia da Expiação (Lv 16), e oferecer sacrifício pelos pecados do povo e também pelos seus. Jesus, porém, é apresentado como o sumo sacerdote inigualável, que, sacrificando-se a si mesmo, restabelece o acesso a Deus. Jesus, a um só tempo, é sacerdote e sacrifício, e sacrifício suficiente, de uma vez por todas. E aqui ele é apresentado como sacerdote compassivo, solidário com o ser humano, que conhece suas dores e angústias, que também foi tentado, mas não pecou. Ele é representante de Deus que penetrou os céus, e com seu auxílio podemos tranquilamente submeter-nos ao juízo de Deus. A descrição de Jesus tão próximo é bem diferente daquela de Êxodo 19.12-13, onde qualquer que se chegasse ao monte Sinai, fosse homem, mulher ou animal, seria morto. Então, o texto convida para permanecer firme na Palavra, na fé recebida, mesmo diante das dificuldades (até porque não dá para enganar Deus) e dá a certeza de que temos um sumo sacerdote que não apenas não precisa entrar todo ano no Santo dos Santos, mas entrou no próprio céu. Ele é Filho de Deus, nos conhece e se apieda de nós, e nos dá confiança para nos achegar a Deus. Então, fiquem firmes. Pensando na prédica, poderiam ser citadas as dificuldades e crises que abalam nossa confiança, que nos levam a duvidar, a buscar orientação para a nossa vida em outro lugar e não em Deus, que nos levam a desprezar o batismo e esquecer o que Deus fez por nós. Recebi uma mensagem há algum tempo que dizia mais ou menos assim: Diante de uma grande enchente, um fiel perguntou a um rabino: “Por que Deus fez isto?”. O rabino respondeu: “As enchentes e furacões são catástrofes naturais. O que Deus fez foi você, para ajudar aqueles que precisam”.

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4 Subsídios litúrgicos Do “Livro de Culto”, Seção VII, sugerimos a bênção de número 11 (VII.326). Sugiro alguns hinos que ajudam a enfatizar o que Cristo fez por nós e nos levam a permanecer firmes na fé apesar das dificuldades: LCI 25 – Quando o povo se reúne; LCI 51 – Cristo acolhe o pecador; LCI 84 – Te agradeço; LCI 568 – Nem só Palavra é amor; LCI 170 – Meu irmão, tu precisas; LCI 263 – Paz, paz de Cristo.

Bibliografia LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1985. MEINCKE, Sílvio. Na plenitude dos tempos. São Leopoldo: Sinodal, 1983. ROTEIRO PARA A LEITURA DA BÍBLIA. São Leopoldo: Sinodal, 1996.

21º DOMINGO APÓS PENTECOSTES PRÉDICA: MARCOS 10.35-45 ISAÍAS 53.4-12 HEBREUS 5.1-10 Pesquise: Proclamar Libertação, v. 28, p. 289ss; XVI, p. 277ss; 34, p. 270ss; 36, p. 316ss; 42, p. 298ss www.luteranos.com.br (busca por: Marcos 10.35-45)

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PRÉDICA: JEREMIAS 31.7-9 MARCOS 10.46-52 HEBREUS 7.23-28

22º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

24 OUT 2021

Astor Albrecht

Para que o amanhã seja melhor

1 Introdução

O texto de Hebreus 7 apresenta Jesus Cristo como sacerdote único e perfeito. Nele, encontramos ampla salvação. Toda a esperança de salvação flui do sacrifício de Cristo oferecido uma vez para sempre. A leitura indicada do Evangelho de Marcos 10 trata da cura do cego Bartimeu, de Jericó. Ele clama pelo nome de Jesus e roga por misericórdia. Tem esperança de um amanhã melhor e nada impede esse seu clamor. Nessa fé é acolhido por Jesus e, abençoado, recupera a visão. O texto de Jeremias 31, que serve de base para a prédica, apresenta o povo de Israel que está cativo na Babilônia. O povo está assentado à beira do caminho e carece de salvação. Há o clamor: Salva, Senhor, o teu povo (v. 7). Espera-se do Senhor um tempo novo. A palavra do profeta proclama um amanhã melhor.

2 Exegese O tema central do capítulo 31 de Jeremias é a esperança gloriosa de que um dia Israel e Judá serão restaurados como nação. No v. 7 está em pauta o retorno dos exilados da Babilônia. Esse versículo continua a nota de alegria que já está presente no v. 4: haverá muito para ser celebrado quando o Senhor restaurar seu povo disperso. Haverá gritos de alegria e de triunfo. Cabeça das nações: “cabeça”, neste caso, é paralelo a “Jacó”, o que quer dizer que Israel é retratado como exaltado entre as nações, tornando-se a principal entre as nações, quando a restauração ocorrer. A Bíblia NTLH traduz: Cantem de alegria por causa de Israel, a maior de todas as nações. No v. 8, o norte é mencionado e é uma referência à Babilônia e, talvez, à Assíria, lugares para onde israelitas do sul, Judá, e do norte, Israel, tinham sido levados. É o Senhor quem convoca todo o seu povo para novamente se congregar. Não haverá um só lugar em que a voz do Senhor não será ouvida e todo o povo vai responder ao chamado divino. Até aqueles que teriam maior dificuldade em viajar retornarão à terra natal. Isso é enfatizado, a começar pelos mais fracos, cegos e aleijados, alcançando todo o povo que retornará à terra prometida. O termo “congregação” é palavra técnica que indica a nação de Israel. As diversas classes apresentarão muitas necessidades especiais, mas nenhum indivíduo necessitado ficará sem a atenção do Senhor.

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O v. 9 afirma que será um tempo de emoções muito fortes. Os israelitas chorarão de alegria e não de tristeza, pois serão muito bem conduzidos pelo Senhor. O povo voltará chorando, mas o Senhor é quem conduzirá em meio a consolações (NVI). O povo vai caminhar às margens dos ribeiros de águas, com todas as suas necessidades satisfeitas, pois a experiência do deserto passou. O caminho deles será reto, plano e fácil, porque o Senhor os guiará. Efraim: Jacó tratou Efraim como a um neto favorito, com a bênção do primogênito (Gn 48.13-20). Como tribo maior das dez tribos do norte, passou a ser um dos nomes coletivos dessas. Assim, Israel e Efraim são usados como termos sinônimos. Jeremias usa o simbolismo do relacionamento entre pai e filho para mostrar o profundo amor de Deus pelo seu povo. Coisa alguma faltará aos israelitas restaurados, o que será simbolizado pelo fato de que eles caminharão ao lado das águas. Isso tudo procede do amor de Deus, que o trata como “primogênito”: na família israelita, o primogênito tinha numerosos privilégios e era objeto de consideração especial.

3 Meditação Eu proponho para este auxílio homilético o título “para que o amanhã seja melhor”. Claro que isso não é uma espécie de “receita”, mas sim palavra que desperta esperança. É dela que precisamos na época em que preparo este auxílio. É tempo de pandemia! Como será hoje quando você medita sobre essa passagem bíblica? Não tenho dúvidas que a esperança se faz necessária para viver e seguir adiante. Em nossa cidade, ontem, foi registrada a vigésima morte por Covid-19, além de centenas de pessoas enfermas. Tudo é muito novo e há poucas certezas. E talvez mais do que nunca esperamos por um amanhã melhor. Estamos como Bartimeu, sentados à beira do caminho. Antes de ouvir que Jesus passava, será que tinha esperanças de um amanhã melhor? Em todo caso, assim que soube e ouviu que Jesus passava ali, perto dele, a esperança se mostrou em insistentes gritos por compaixão. E ele não se calou! Falar de um amanhã melhor é falar de esperança, de renovação, de restauração. É proclamar que as forças do mal não têm a última palavra; o medo pode dar lugar à coragem; o choro, à alegria. A fé no Senhor é maior e com ela os montes são jogados ao mar. De Deus vêm novas forças! Portanto não devemos em momento algum deixar de proclamar o nome de Deus e a sua vontade. Nestes tempos em que cultos, celebrações e encontros acontecem somente de modo virtual, é essa proclamação que desperta e mantém a fé. Anima-nos a ter boa esperança. Assim também o v. 7 destaca o canto e a alegria que acompanham a proclamação do agir de Deus. Enquanto que muita produção de música “evangélica” trata dos sentimentos das pessoas e dos seus desejos, devemos nos lembrar de dar a Deus o louvor pela consolação e ajuda que dele recebemos e que podemos partilhar com o próximo. Louvamos a Deus pelo que tem feito e devemos invocá-lo pelos favores futuros que seu rebanho precisa e espera. Para um amanhã melhor, nossa resposta ao chamado divino tem seu lugar e não pode ser negligenciada. Jeremias proclama que cegos e aleijados, as mulheres grávidas e as de parto voltam junto com todo o povo. Duas observações

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poderiam ser feitas. Primeiro, que ninguém que tenha a Deus como seu guia alegue ser cego, ou que ninguém que tenha a Deus como sua força alegue ser aleijado. Quando Deus chama, não devemos alegar qualquer incapacidade de ir. Porque aquele que nos chama nos ajudará e nos fortalecerá. Observemos que para onde Deus chama o seu povo, ele lhes fará um caminho adequado. Segundo, o dever cristão de nos ajudarmos uns aos outros. Lembremos as palavras de Jó: Eu me fazia de olhos para o cego, e de pés para o coxo (Jó 29.15). Um amanhã melhor pede que cuidemos uns dos outros hoje. Que ajudemos. Examinemos nosso proceder se não somos como aquelas pessoas que repreendiam Bartimeu e mandavam ele se calar. Quando Jesus parou e mandou que o chamassem, essas pessoas mudaram sua atitude e ajudaram. Nós somos daqueles e daquelas que já ouviram Jesus. Se não ajudamos, estamos nos fazendo de surdos. Se ajudamos, respondemos com obediência ao seu chamado. Precisamos ser generosos. Isso, sim, constrói um amanhã melhor. Para um amanhã melhor importa vivermos nossa espiritualidade com toda a força e de todo o coração, pois Cristo é quem pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus (Hb 7.25). Como os israelitas, podemos nos voltar a Deus com choro, e com súplicas (v. 9). O pranto e a oração andam juntos. As lágrimas colocam a vida em espírito de oração e expressam sua vivacidade, enquanto as orações ajudam a enxugar as lágrimas. O alicerce da esperança para um amanhã melhor descansa na confiança do agir de Deus. Ele é nosso Pai! Ele ama suas filhas e filhos! A mesma razão que foi dada para o livramento dos israelitas do cativeiro babilônico foi dada na libertação da escravidão no Egito: Israel é meu filho [...] Deixa ir meu filho, para que me sirva (Êx 4.22,23). Fomos libertos para não mais ser escravizados! Podemos esperar um amanhã melhor. Deus assim nos ajude.

4 Imagens para a prédica Segue uma ilustração de como um pouco de bondade pode fazer grande diferença para construir um amanhã melhor. Meu amigo Paulo e sua família visitaram o castelo da Cinderela na Disney. O local estava repleto de pais e filhos. De repente, todas as crianças correram para um lado. Cinderela havia entrado. Uma linda jovem, com um sorriso brilhante, foi cercada até a cintura por um jardim de crianças, todas querendo tocar e ser tocadas. Nesse exato momento, Paulo se virou e olhou para o lado do castelo. Tudo estava vazio, a não ser por um menino de sete ou oito anos de idade. Ele tinha uma deficiência física e ficou ali olhando quieto e melancólico, segurando a mão de um irmão mais velho. Você não acha que ele desejava estar no meio daquela multidão de crianças que estavam atrás da Cinderela clamando seu nome? De repente, a jovem vestida de Cinderela percebeu aquela criança. Caminhou rapidamente em direção ao menino, ajoelhou-se, a ponto de olhar nos olhos daquele pequeno menino surpreso, e deu um beijo em sua face.

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Ao encontrar uma pessoa generosa, você se vê no lugar onde a graça está acontecendo.

5 Subsídios litúrgicos Voto inicial Eu manterei a aliança que fiz com você na sua mocidade e farei com você uma aliança que durará para sempre (Ez 16.60). Teu pacto de bênção vigora para sempre, tua palavra é sim e amém; que ela nunca desapareça do nosso espírito e da nossa boca, nem de nossa posteridade! Dá que tua palavra nos admoeste, console e guie em todos os tempos. Em ti está a nossa esperança e, por teu amor, aguardamos um amanhã melhor. Oração “Senhor, quando tu olhas para nós, é porque nos amas. E assim como teu olhar me fita com tal atenção, que jamais de mim se desvia, assim faz também o teu amor. O teu ser não abandonou o meu ser. Eu existo apenas à medida que tu estás comigo. Eu amo a minha vida, porque tu és a alegria do meu viver. O teu olhar nada mais é do que um vivificar, um constante infundir do mais felicitante amor a ti. Nele se originam todas as alegrias” (Nicolaus von Kues, teólogo alemão, 1401-1464). Sugestão de hinos Confio em Deus (LCI 618); Salmo 121 (LCI 131); Não temas, pois que eu te remi (LCI 172); Por tua mão me guia (LCI 627)

Bibliografia CHAMPLIN, Russel Norman. Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo: Hagnos, 2001. v. 5. HARRISSON, R. K. Jeremias e Lamentações – Introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão; Vida Nova, 1985. (Série Cultura Bíblica). ORAÇÕES DO POVO DE CRISTO – Coletânea de Orações de 20 Séculos. Seleção e tradução Lindolfo Weingärtner. Curitiba: Encontrão; São Leopoldo: Sinodal, 1996.

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PRÉDICA: JOÃO 8.31-36 JEREMIAS 31.31-34 ROMANOS 3.19-28

23º DOMINGO APÓS PENTECOSTES DIA DA REFORMA

31 OUT 2021

Gottfried Brakemeier

31 de outubro: dia de renovação?

1 Introdução O Dia da Reforma é um dia difícil. Pois que é que estamos celebrando? Quando em 2017 preparamos os festejos alusivos aos quinhentos anos da Reforma luterana, houve quem solicitasse não falar em “jubileu”. Não haveria motivos para “júbilo”. Pois a Reforma provocou a divisão da igreja. Conduziu a guerras religiosas. É essa a imagem que se preservou até os dias atuais. Embora houvesse outros reformadores além de Lutero, é ele o principal protagonista do movimento que então teve início e que mudou a face da terra. Carrega o estigma de um dos maiores hereges da história. Essa conceituação de modo algum está superada. E, no entanto, um juízo puramente negativo passa ao largo da realidade. O Dia da Reforma oferece a chance para recuperar uma visão desapaixonada daquele movimento. Certamente, ele não se presta a ufanismo luterano. Não é oportunidade para indevidamente cultuar a pessoa de Lutero. Esse homem teve um enorme carisma, do qual a igreja de Cristo é devedora. Mas também ele teve limitações. Não foi pessoa perfeita. Mesmo assim, a humanidade tem motivos para ser grata. Para tanto apenas um exemplo: o escritor Laurentino Gomes, ao analisar o processo da independência do Brasil no século 19, lamenta o estado de precariedade em que na época se encontrava o povo brasileiro. Era inculto, ignorante, atrasado, diferente daquele dos EUA, onde “a cultura protestante havia criado uma colônia alfabetizada, empreendedora, habituada a participar das decisões comunitárias [...]”1. O Brasil colônia pagou caro ao fechar suas fronteiras para o espírito da Reforma. Educação era e continua sendo uma das bandeiras do protestantismo, com destaque ao de matiz luterano. Desleixo costuma acarretar gravíssimos prejuízos. E há outros aspetos a destacar. Aliás, a Reforma, seja em sua versão luterana, reformada ou calvinista, teve enormes reflexos na própria Igreja Católica. Sob o impacto desse terremoto, ela foi obrigada a, por sua vez, proceder a reformas. Hoje, a igreja papal é outra do que séculos atrás. Por isso mesmo seria anacrônico celebrar o Dia da Reforma como dia “anticatólico”. O ecumenismo possibilitou uma caminhada, do que a Declaração Conjunta sobre a Justificação por Graça e Fé, solenemente assinada em 1999, é bonito exemplo. Não menos instrutivo é o 1

GOMES, Laurentino. 1822. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. p. 50.

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relatório elaborado pela Comissão Luterana / Católico-Romana acerca da unidade com o título: “Do Conflito à Comunhão” (Editora Sinodal, 2015). Refere-se à possibilidade da comemoração conjunta católico/luterana da Reforma em 2017. Nós nos alegramos com os avanços, mesmo que permaneçam divergências. A Igreja Católica ainda não reconhece em seus companheiros protestantes igreja “em sentido próprio”, nem revogou a excomunhão de Lutero. Nós, da nossa parte, não podemos acompanhar o celibato obrigatório dos sacerdotes nem a estrutura rigidamente episcopal da Igreja Católica e a infalibilidade do papa. Portanto permanecem questões a trabalhar. E, no entanto, não queremos celebrar o “Dia da Reforma” contra (!) a Igreja Católica. Procuramos imprimir-lhe espírito ecumênico. Ele é relevante para toda a cristandade. Para tanto ajuda o texto previsto para a pregação neste domingo, já várias vezes tratado nesta série de auxílios. Vale a pena comparar. Aliás, sugiro desconsiderar as leituras paralelas do profeta Jeremias e da Carta aos Romanos. Elas colocam em pauta outras temáticas, importantes demais para serem tratadas apenas superficialmente em observações marginais. É preferível que nos concentremos no texto indicado. Ele reproduz parte de uma feroz controvérsia entre Jesus e alguns judeus que abrange os versículos 30 a 59 do oitavo capítulo do Evangelho de João. Está aí mais outra dificuldade deste “Dia da Reforma”. Como evitar que a prédica reforce o espírito antijudaico muito presente na sociedade do século 21? Inicialmente é dito que se trata de judeus que haviam crido em Jesus. Possivelmente fossem fariseus (7.32). Mas essa fé não deve ter passado de fugaz entusiasmo. Pois logo mais interpretam as palavras de Jesus como insuportável agressão. Se alguém questiona a filiação de Abraão como garantia da liberdade, os judeus reagem alergicamente. A oposição provoca até mesmo sua raiva, que chega a ponto de tramar contra a vida de Jesus. É o que Jesus lhes atesta. Eles querem matá-lo. Com isso eles provam que não têm Abraão por pai, e sim o diabo. Pois esse é assassino. Consequentemente a polêmica termina com a tentativa de um atentado. Os oponentes de Jesus querem apedrejá-lo. Mas Jesus se ocultou e saiu do templo (v. 59). Pelo que tudo indica, o texto é reflexo de determinado momento da história da igreja. A comunidade cristã se sabe separada dos judeus e sofre perseguição por parte deles. Mais tarde, ela daria o troco em proporção igual ou mesmo superior, lamentavelmente. O antisemitismo está na raiz de muito sofrimento do povo judaico, sendo o ápice o crime do holocausto. Por isso talvez seja providencial a limitação da prédica aos v. 31 a 36. Ficam excluídas as palavras mais contundentes de Jesus a seus adversários e a reação violenta dos judeus. Mesmo assim, o pano de fundo é o litígio com representantes do povo, do qual Jesus é natural e do qual paradoxalmente provém a salvação (Jo 4.22). Não se trata de peculiaridade desse texto. No quarto evangelho os judeus são apregoados como exemplos do mundo incrédulo. A pregação cristã deve precaver-se contra o perigo de fazer coro com tais vozes. O Dia da Reforma não é oportunidade de pregação antijudaica. Também nesse caso o ecumenismo trouxe bons frutos, apesar da enorme culpa acumulada pela igreja nesse povo. De qualquer maneira, o confronto de épocas passadas entre judeus e cristãos cedeu espaço para o encontro. É esse o espírito a pautar a exegese.

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2 O texto São dois os conceitos que sobressaem em João 8.31-36, a saber, “verdade” e “liberdade”. Esta se torna ilusória sem aquela. Jesus convida seus ouvintes a permanecer na sua palavra. É a condição de conhecer a verdade que liberta. Que significa “verdade” nesse caso? Ora, Jesus revela a identidade das pessoas que se aventuram a lhe dar crédito. Na companhia de Jesus ficamos sabendo quem realmente somos. Exemplifica-o o diálogo entre Jesus e a mulher samaritana (Jo 4.1s). Ela se surpreende ao perceber que Jesus a conhece melhor do que ela a si mesma. Ele lhe diz a “verdade” com o que muda sua vida. Muda também sua visão da realidade em geral. Isso porque em Jesus se manifesta a palavra do próprio Deus. Sim, ele é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14.6). Faz ver as coisas em nova luz. Percebemos que somos pecadores e que não podemos justificar-nos por próprias forças. Não podemos nem devemos produzir nossa salvação por nós mesmos. Tal tentativa conduz forçosamente a fracasso e frustração. Foi exatamente essa a experiência de Lutero. A verdade do evangelho lhe revelou que o ser humano vive da graça de Deus. Não são os pretensos méritos que salvam. Também os sacramentos da igreja não têm esse efeito. O que importa é a fé. Foi o que libertou Lutero de suas angústias. Concedeu-lhe nova coragem de viver. Denunciou a igreja de seu tempo de manter os fiéis em terrível cativeiro. A verdade o libertou e desencadeou um movimento de extraordinária dinâmica. O drama foi bem descrito por Lutero em seu hino “Cristãos, alegres jubilai...” (nº 484 do Livro de Canto da IECLB). A Reforma teve efeitos libertadores para além das fronteiras da Alemanha, da Suíça e mesmo da Europa, justamente devido à verdade que os reformadores e as reformadoras tiveram a coragem de manifestar. Não foi somente a Reforma que dividiu a cristandade. Não menos escandalosa foi a resistência do papa e das demais autoridades eclesiásticas às reformas julgadas urgentes pelo povo cristão. O Dia da Reforma articula o imperativo para lembrar a cristandade dessa verdade. Em comparação com ela, outras coisas se tornam irrelevantes. Os interlocutores de Jesus alegam sua descendência de Abraão. Ora, ela não é nenhuma garantia de liberdade. Algo semelhante vale para outras filiações, seja a da raça branca, a do sexo masculino, seja a pertença à classe alta ou outro privilégio qualquer. Somente quem se submete ao “teste da verdade” tem a promessa de se ver livre das amarras que o prendem às ilusões do mundo, ao poder do pecado, ao egoísmo que busca o proveito próprio às custas do bem alheio. Libertação articula-se em muitas variantes. Implica combate à injustiça, defesa dos direitos dos oprimidos, luta pela paz. Da mesma forma, porém, se expressa em perdão dos pecados, em desprendimento de si e na aprendizagem do amor que se dispõe a servir a Deus e à pessoa que sofre. A verdade de que o texto fala é a verdade do evangelho. É ela que deve estar no centro de uma prédica no Dia da Reforma. De acordo com o texto, essa verdade permanece vinculada ao nome de Jesus Cristo, ou seja, ao permanecer em sua palavra. Pergunta-se de imediato: e as outras religiões? Em contexto plu-

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rirreligioso tal pergunta é inevitável. Existe algo comparável à verdade do evangelho fora do cristianismo? Uma verdade que não prende, e, sim, liberta? Não podemos responder em lugar de outros. O assunto deverá constar na agenda do diálogo inter-religioso. De qualquer maneira, para nós existe somente a verdade cristã. É esse o caminho que a fé indica. O Dia da Reforma não tem a licença de relativizar o credo e sugerir uma opção do “tanto faz”. Com tal posição, a igreja luterana iria perder sua credibilidade. Então, há uma série de cuidados a tomar na celebração condigna desse dia. Acrescentamos que “reforma” costuma ser palavra suspeita, até mesmo antipática. Basta lembrar a “reforma da previdência” em nosso país. Sempre há quem tema perder privilégios e saia perdendo no jogo de interesses. E, no entanto, reformas podem ser necessárias. Sem elas a sociedade periga afundar em mortal estagnação. Algo semelhante vale para a Igreja de Jesus Cristo. Também ela deve atualizar-se, corrigir seu curso, reavaliar seu discurso e sua prática. Como igreja da Reforma, somos gratos à renovação que teve lugar no século 16. Nós a devemos à ação de pessoas destemidas que por ela se engajaram, às vezes sob risco de sua vida. Com elas nós nos sabemos comprometidos. Queremos ser igreja semper reformanda. Não tememos as reformas. Claro, não queremos reformas a qualquer preço. Queremos reformas justas. Queremos renovação (!). Infelizmente o Dia da Reforma corre o risco de ser substituído pelo dia das bruxas e dos bruxos. Deste modo o anseio por renovação fica de antemão abortado. Pois bruxos não produzem mudanças. Isso foi diferente no movimento da Reforma do século 16. Acarretou benefícios, dos quais nos orgulhamos ainda quinhentos anos depois. Inspiram a arriscar reformas em nossos dias, embora saibamos que as reformas necessárias hoje devem ser outras do que aquelas de séculos atrás. Eis porque o Dia da Reforma não pode limitar-se a evocar memórias saudosistas. Quer não menos desafiar-nos a identificar reformas urgentes na atualidade, adequando igreja e sociedade a seu contexto específico – que no nosso caso é brasileiro – sempre em fidelidade ao nosso Senhor Jesus Cristo.

3 Imagens para a prédica Se vocês permanecerem na minha palavra [...] Com essas palavras Jesus distribui seu “cartão de fidelidade”. Ele convida a comprometer-se com ele e a qualificar-se como seu discípulo. E ele tem promessa. Fidelidade a esse mestre vale a pena. Ele ensina uma verdade que liberta. A natureza dessa liberdade foi descrita magistralmente por Lutero em seu tratado “Da Liberdade Cristã”. Remetemos a esse escrito. Quem explica muito bem é Joachim H. Fischer em seu tratado “Reforma – renovação da Igreja pelo evangelho”2. Nós acrescentamos um só exemplo: a verdade do evangelho liberta do ódio e ensina o empenho pela paz. A prédica poderá explorar esses temas, ambos de extraordinária relevância nas ondas de violência

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FISCHER, Joachim H. Reforma – renovação da Igreja pelo evangelho. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2006. p. 26.

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que sacodem a humanidade. Conclamamos a marcar pontos no “cartão de fidelidade” de Jesus, com o que cumprimos mais um dever do Dia da Reforma.

4 Subsídios litúrgicos Oração do dia Senhor! Nós te agradecemos por este dia que comemora um dos eventos marcantes da história da igreja. Ele reconduziu a igreja ao caminho da verdade e inaugurou processos de libertação. Dá que nossa atenção não permaneça presa ao que aconteceu no passado. Dá que sejamos animados pelo exemplo dado por Martim Lutero e outros reformadores a igualmente revisar estruturas e condutas obsoletas e promover as reformas necessárias hoje. Para tanto, rogamos por teu Espírito, para que nos oriente e capacite. Amém. Confissão dos pecados Senhor! O ser humano costuma resistir a reformas. Não gosta de corrigir-se nem a si mesmo nem ao mundo ao qual está habituado. Por isso, às vezes, não percebe quando as coisas correm mal e estamos ameaçados por perigos. O Dia da Reforma coloca um sinal de alerta. Chama atenção a coisas que precisam mudar. Perdoa-nos nossa cegueira, bem como a alergia a verdades incômodas, e todavia salutares. Tem piedade de nós, Senhor! Intercessão Senhor! Nós recomendamos a teus cuidados pessoas em situação difícil. Mencionamos especialmente pessoas desempregadas e vítimas da violência que grassa em nosso país. Consola as pessoas aflitas e elimina as causas de seu sofrimento. Nós nos lembramos das pessoas cristãs perseguidas em muitos países de nosso globo. Pertencem aos grupos religiosos mais hostilizados em pleno século 21. Também outras minorias sofrem agressões por fanatismo ou autoritarismo estatal. Queiras protegê-los da fúria de seus inimigos. Faça com que tua igreja seja um espaço de paz e justiça e que te louve justamente assim. Amém.

Bibliografia LÖWE, Hartmut. Meditation. Johannes 8, 31-36. In: Neue Calwer Predigthilfen. 5. Jahrgang. Stuttgart: Calwer Verlag, 1982. Bd. A. p. 79s. SCHULZ, Siegfried. Das Evangelium nach Johannes. Das Neue Testament Deutsch. Göttingen:Vandenhoeck & Ruprecht, 1972. v. 4.

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FINADOS

PRÉDICA: 1 TESSALONICENSES 4.13-18

02 NOV 2021

DANIEL 12.1-3 MARCOS 5.21-24,35-43 Wilhelm Sell

Chamados e chamadas a confiar

1 Introdução Finados é o dia em que relembramos aquelas pessoas que partiram antes de nós. Dia marcado por memórias. Rememoramos momentos alegres e tristes que tivemos com a pessoa amada que já não está mais presente. “Como seria bom poder voltar no tempo!”; “Faria isso ou aquilo diferente!”. São alguns pensamentos daquelas pessoas que sempre de novo suspiram de saudades. Por isso, neste dia, muitas pessoas vão ao cemitério para limpar, arrumar e enfeitar os túmulos daqueles e daquelas que nos precederam no descanso. É uma forma de expressar carinho e cuidado para com quem já partiu. Há também um contato com a própria história. Antepassados e pessoas que conhecemos são relembrados e evocam cenas em nossa memória. Tudo isso significa que lidamos de frente com o tema da morte e seu contínuo mistério. No texto de Daniel 12.1-3, o mensageiro angelical promete ao profeta que o povo de Deus será protegido contra os poderes da escuridão. No entanto, isso não significa que estarão protegidos do tempo de angústia, mas serão, em momento oportuno, resgatados dele. Então a ressurreição é apontada como a reversão da maldição da morte. Esse novo “tempo” é marcado pelo resultado do compromisso ético diante de situações que a vida colocou: vergonha e horror eterno ou, para o sábio, a glória eterna. Já no texto de Marcos 5.21-24,35-43 encontramos a história da ressurreição da filha de Jairo, um dos principais chefes da sinagoga. Desesperado, Jairo se lança aos pés de Jesus Cristo e pede para que ele imponha suas mãos sobre sua filha a fim de curá-la. No caminho, Jesus cura uma mulher que sofria de hemorragia e que simplesmente o havia tocado. Fato é que até chegar à casa de Jairo, sua filha já havia morrido. Diante do lamento e desespero de toda a família, Jesus pergunta: Por que estais em alvoroço e chorais? A criança não está morta, mas dorme. E, por meio da palavra, Jesus Cristo chama a menina para que se levante. Todas as pessoas presentes ficam admiradas pelo grande milagre. Os dois textos, que servem de auxílio para o texto principal, evocam o tema do sofrimento e da morte. Mas para além de toda possibilidade de fatalismo, vislumbram aquilo que brota a partir da vontade e poder de Deus. Isso não significa a ausência de perguntas, sofrimentos e dúvidas. A morte continua sendo uma realidade indesejada e inconveniente. E isso não foi diferente nas primeiras comunidades cristãs. Nesse sentido, o texto de Paulo em 1 Tessalonicenses 4.13-18

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pode nos ajudar ainda hoje e lançar luz sobre as recorrentes dúvidas sempre presentes em nossas comunidades.

2 Exegese 2.1 Contexto Há consenso entre os pesquisadores de que a Primeira Carta aos Tessalonicenses é a mais antiga do apóstolo Paulo. A igreja se situava na cidade que atualmente é conhecida como Salônica, no nordeste da Grécia. Foi fundada cerca de 300 a.C. e chegou a ser uma das principais cidades da Macedônia e, posteriormente, uma importante cidade do Império Romano. Como podemos ler em Atos 17, Tessalônica foi evangelizada por Paulo durante sua segunda grande viagem missionária. Junto com Silas e Timóteo, ele viajou pela Ásia Menor até Trôade. O primeiro lugar que visitaram foi Filipos e, passando por Anfípolis e Apolônia, chegaram à Tessalônica. Ali pregaram o evangelho na sinagoga, tentando convencer judeus de que Jesus era o Cristo. Muitas pessoas, judeus e gentios, aderiram ao evangelho. Os judeus, porém, movidos de inveja, trazendo consigo alguns homens maus dentre a malandragem, ajuntando a turba, alvoroçaram a cidade e, assaltando a casa de Jasom, procuravam trazê-los para o meio do povo. Porém, não os encontrando, arrastaram Jasom e alguns irmãos perante as autoridades, clamando: estes que têm transtornado o mundo chegaram também aqui, os quais Jasom hospedou. Todos estes procedem contra os decretos de César, afirmando ser Jesus outro rei. Tanto a multidão como as autoridades ficaram agitadas ao ouvirem estas palavras; contudo soltaram Jasom e os mais, após terem recebido deles a fiança estipulada (At 17.5-8 ARA). Após Tessalônica, Paulo, Silas e Timóteo seguiram viagem para Bereia. Essas são as informações que temos sobre essa comunidade no livro de Atos. É bem possível que a primeira carta de Paulo a essa comunidade não demorou para ser enviada. Paulo mostra-se preocupado com as pessoas que haviam acolhido com tanta seriedade o Evangelho de Jesus Cristo. Mesmo impedido de ir visitar a comunidade, envia Timóteo para que os crentes fossem fortalecidos na fé por meio da palavra de Deus. As notícias que Timóteo envia a Paulo são surpreendentes. São basicamente três temas que compõem as recomendações e exortações para a comunidade: a) a prática da vida de fé, evitando a impureza, aperfeiçoando-se nos trilhos da graça; b) a contínua progressão do belíssimo exemplo que davam quanto ao amor fraternal, que fez a comunidade ser reconhecida por toda a região da Macedônia; c) e sobre a situação daquelas pessoas que morreram antes da volta de Jesus Cristo. O texto de 1 Tessalonicenses 4.13-18 está justamente no contexto das recomendações e exortações de Paulo. Há uma angústia bem pontual por parte de irmãos e irmãs da comunidade quanto às pessoas que já morreram. Disso se deflagra a compreensão presente nessa comunidade de que a volta de Jesus Cristo era iminente. Não imaginavam que seria possível perder membros antes desse

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esperado momento. Haveria alguma desvantagem para as pessoas que já haviam partido, em comparação àquelas que sobreviverão até a parúsia? É importante notar que Paulo não desmerece o tema. Considera-o uma preocupação válida na vida da pessoa que crê. O tema da morte e da esperança latente em busca de um sim para além da morte acompanha o ser humano desde a primeira humanidade. E isso faz com que o ensino de Paulo, nesse contexto, ultrapasse seu tempo, nos encontrando nos dias de hoje. 2.2 O texto V. 13 – Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes com respeito aos que dormem, para não vos entristecerdes, como os demais, que não têm esperança. (ARA) É impossível negar que os apóstolos se preocupavam com uma doutrina isenta de equívocos e que transmitisse o mais perto possível daquilo que entendiam como o evangelho. Por isso também um tema “marginal”, ou seja, que lida com uma questão de preocupação última da vida, como a morte, tem sua legitimidade e importância. Por isso, no tocante a esse assunto, Paulo quer sanar as dúvidas existentes para não haver ignorância. É fato que esse assunto se faz presente na vida daqueles e daquelas que perdem pessoas amadas ou que estão diante da possibilidade de perder a vida, por exemplo, quando constatada uma doença grave. A conjugação do verbo entristecer (lypēsthe – pres. subj. pass.) dá a ideia de uma tristeza contínua. Assim, clarear o entendimento a partir do evangelho evita que se dê ouvidos e atenção para discursos limitadores e opressores, ou seja, que não se fundamentam em uma esperança concreta, real e verdadeira, como a que é dada em Jesus Cristo por meio da sua morte e ressurreição. V. 14 – Pois, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará, em sua companhia, os que dormem. (ARA) Diante da realidade da morte, Paulo fala com toda convicção sobre a ressurreição de todas as pessoas. Assim, a fé cristã está intrinsicamente conectada a uma clara esperança. Isso demonstra que o evangelho atinge todos os assuntos relacionados à vida e à morte. A fé cristã está alicerçada na certeza da morte e ressurrreição de Jesus Cristo. Em 1 Coríntios 15.12-14, o apóstolo faz uma grande defesa sobre a relação entre fé e a certeza da ressurreição. Para ele, se essa não fosse uma realidade concreta e certa, vã seria a própria fé cristã. Portanto a ressurreição é um dos temas centrais do evangelho e sobre o qual não pode haver dúvidas. Isso significa que também a crença sobre a imortalidade da alma, proveniente das influências da filosofia grega, que, aliás, Paulo conhece muito bem, está completamente afastada. Aqueles e aquelas que “dormem” repousam na lembrança do Criador, aquele que trará cada um e cada uma de volta na parúsia. Assim como Deus não abandonou Jesus Cristo, mas o ressuscitou pelo agir do Espírito Santo, toda pessoa será ressuscitada, pois se vivemos, para o Senhor vivemos, e, se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor (Rm 14.8 – ARA). Ou seja, é no próprio Deus e em sua promessa que está a garantia da ressurreição e isso deve sustentar a pessoa

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crente. Aliás, não há nada no mundo mais certo do que a palavra de Deus, aquela por meio da qual todas as coisas foram criadas do nada. Para a comunidade de Tessalônica Paulo afirma, portanto, que as pessoas que precedem outras antes da parúsia estão abrigadas em Jesus Cristo e de nenhuma forma estarão em desvantagem no dia derradeiro. V. 15-17 – Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até a vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem. Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e assim, estaremos para sempre com o Senhor. O apóstolo Paulo consola quem está preocupado com as pessoas que já partiram e traça uma ordem para quando chegar o dia derradeiro. Primeiramente as pessoas que já faleceram serão ressuscitadas, e então os vivos serão arrebatados juntamente com eles para que juntos encontrem o Senhor com quem se ficará para sempre. Isso não acontecerá de qualquer maneira, mas pela palavra de ordem que ecoa por todos os espaços do mundo e penetra nas sepulturas dos mortos, evocando a ressurreição daqueles e daquelas que já partiram. E assim acontece porque o próprio Deus é quem desce dos céus para buscar os seus. Significa que somos dependentes do agir de Deus. Nenhuma garantia temos em nossas mãos além da promessa de Deus de que ele, em momento oportuno, agirá por meio de sua palavra, trazendo os seus novamente à vida. E assim, todas as pessoas crentes estarão com Jesus Cristo. Chama a atenção ainda sobre a referência a “nuvens” e um encontro com o Senhor nos “ares”. A palavra encontro (apantēsis) “tem um sentido técnico no mundo helenístico em relação à visita de dignatários às cidades, onde o visitante seria formalmente encontrado pelos cidadãos, ou uma delegação deles, que teriam saído da cidade para este propósito e, então, seriam cerimonialmente escoltados de volta para a cidade” (RIENECKER; ROGERS, 1995, p. 444). Portanto “nuvens” e nos “ares” simbolizam o lugar de encontro antes da volta à terra e não uma fuga ou desmerecimento da mesma. V. 18 – Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras. O apóstolo nada menciona sobre o destino das pessoas não cristãs. Sua preocupação é simplesmente responder as perguntas dos membros daquela comunidade cristã exemplar. Assim, ele também não quer dar a esses uma instrução dogmática sobre os eventos apocalípticos, mas quer lhes oferecer ajuda pastoral nesse tema que lhes gerava grande angústia. Por fim, ele pede para que se confortem mutuamente com essa esperança alicerçada na segurança da palavra de Deus.

3 Imagens para a prédica O apóstolo Paulo nos ensina ainda hoje a lidar com a morte. Sendo uma realidade pós-lapsária, ela continua a ser uma indesejada presença na vida de todos e todas nós. É certo e inevitável o sofrimento por aqueles e aquelas que

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partem antes de nós e faz parte do ciclo da vida passarmos pelo luto. Mas o texto remete a nós, atuais leitores e leitoras, não ao desespero diante da morte, mas à vivência da nossa realidade como aquela que é penúltima e temporária. A realidade última deve nos acompanhar, fazendo com que vislumbremos as promessas de Deus e não eternizemos aquilo que é temporário. Assim, aqueles e aquelas que nos precederam na morte e aguardam o dia derradeiro podem nos ajudar a lembrar de nossa própria finitude. Mas, além disso, é importante que nos lembremos daquelas pessoas que já partiram. Importa não esquecer os momentos da história em que nos encontramos com pessoas que marcaram nossas vidas. Na experiência pastoral é comum ouvir histórias de pessoas que gostariam de eternizar seus amados e suas amadas. Se tivéssemos a possibilidade de postergar a vida de quem amamos, dificilmente estaríamos dispostos a, em algum dia, dar o nosso “ok”, a não ser em casos de insuportável sofrimento. No entanto, essa expectativa pela eternidade livre de sofrimento é justamente aquilo que Jesus Cristo torna possível e promete por meio de sua própria morte e ressurreição. Em nossas comunidades, encontramos disseminada a ideia de uma alma que sai do corpo no momento da morte. A força dessa crença muito se dá pela tentativa de uma “garantia” da eternidade. A antropologia teológica judaico-cristã não admite esse tipo de interpretação. Onde estaria então nossa segurança de que a vida não termina na morte? Nesse contexto podemos lembrar as palavras do próprio Jesus Cristo quando disse: Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão (Mt 24.35). Ou seja, tudo pode passar, podemos até nos esquecer de muitas coisas, mas aquilo que Deus tem preparado para cada um de nós, vivos ou mortos, jamais cairá em seu esquecimento. Podemos ser tomados por incertezas com relação ao que acontecerá de fato no dia derradeiro, mas a fé nos convida a permanecer confiantes. Assim como Paulo encoraja todas as pessoas que creem, também nós hoje, para que permaneçamos firmes na promessa de Deus sobre a ressurreição.

4 Subsídios litúrgicos Sugiro a leitura do poema de Dietrich Bonhoeffer “Quem sou eu?”, que destaca a firmeza da sua fé diante das dúvidas, do sofrimento e da possibilidade de sua própria morte. Esse poema surge durante seu tempo como preso político de Adolf Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial. Quem sou eu? Seguidamente me dizem que saio da minha cela tão sereno, alegre e firme qual dono de um castelo.

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Quem sou eu? Seguidamente me dizem que da maneira como falo aos guardas, tão livremente, como amigo e com clareza parece que esteja mandando. Quem sou eu? Também me dizem que suporto os dias do infortúnio impassível, sorridente e com orgulho como alguém que se acostumou a vencer. Sou mesmo o que os outros dizem de mim? Ou apenas sou o que sei de mim mesmo? Inquieto, saudoso, doente, como um passarinho na gaiola, sempre lutando por ar, como se me sufocassem, faminto de cores, de flores, às vezes de pássaros. Sedento de palavras boas, de proximidade humana, tremendo de ira a respeito da arbitrariedade e ofensa mesquinha, nervoso na espera de grandes coisas, em angústia impotente pela sorte de amigos distantes, cansado e vazio até para orar, para pensar, para produzir, desanimado e pronto para me despedir de tudo? Quem sou eu? Este ou aquele? Sou hoje este e amanhã um outro? Sou porventura tudo ao mesmo tempo? Perante as pessoas um hipócrita? E um covarde, miserável diante de mim mesmo? Ou será que aquilo que ainda em mim perdura, seja como um exército em derradeira fuga, à vista da vitória já ganha? Quem sou eu? A própria pergunta nesta solidão de mim parece pretender zombar. Quem quer que sempre eu seja, tu me conheces, ó meu Deus, sou teu.

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Bibliografia BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 468-469. DUNN, James D. G. A teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. FRIEDRICH, Gerhard. Der Erste Brief an die Thessalonicher. In: Das Neue Testament Deutsch. Göttingen; Zürich: Vandenhoeck & Ruprecht, 1990. Band 8. RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1995.

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PRÉDICA: MARCOS 12.38-44 1 REIS 17.8-16 HEBREUS 9.24-28

24º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

07 NOV 2021

Wagner Tehzy

A oferta da viúva pobre e a hipocrisia religiosa

1 Introdução Os textos bíblicos indicados mostram uma conexão entre si quando expressam a entrega em confiança de toda a vida a Deus. Em 1 Reis 17.8-16, a viúva de Sarepta e seu filho, apesar de se encontrarem entre a vida e a morte por causa da fome, acreditam no profeta Elias e na palavra de Deus proferida por ele de que não faltaria sua farinha nem seu azeite. Sua confiança foi recompensada no sustento de sua casa. O texto de Marcos 12.38-44 nos mostra duas cenas que estão interligadas: a reprovação à atitude dos escribas e a denúncia do sistema de opressão que vitima as pessoas mais fracas, e o louvor à viúva pobre, que oferece tudo o que tem para o templo. Nessa entrega, sua própria sobrevivência está confiada nas mãos de Deus. O texto de Hebreus 9.24-28 aponta para a entrega de Jesus como sacrifício definitivo e suficiente para tirar os pecados. Aponta também para a segunda vinda de Cristo aos que nele confiam e o aguardam, quando haverá plenitude da salvação.

2 Observações exegéticas Os escribas A palavra grega traduzida como escriba é grammateus, que vem de gramma = letra. O título tornou-se sinônimo de pessoas instruídas. Os escribas eram especialistas em assuntos legais e por isso vistos como professores da lei. Vemos que os escribas nem sempre são retratados de maneira negativa em Marcos, como em nosso texto. Em 12.34, Jesus declara para um escriba que ele não está longe do reino de Deus. Jesus concorda com a interpretação deles de que Elias deveria vir primeiro (9.11-13). Em nosso texto, eles são descritos negativamente como aqueles que: • gostam de andar com vestes talares • gostam das saudações nas praças • gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas • gostam dos primeiros lugares nos banquetes • devoram as casas das viúvas • fazem longas orações para justificar seus atos

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Jesus dirige essa fala à multidão, que o ouvia com prazer (v. 37). Dentro do contexto da perícope, os escribas estão sendo apontados como aqueles que não estão amando os outros como a si mesmos (12.31), mas buscando apenas seus próprios interesses e privilégios por meio da dominação das pessoas mais fracas. Parece provável que aqui haja uma advertência às primeiras lideranças cristãs, para que não venham a sucumbir à tentação de parecer “bem-sucedidas” segundo os padrões do mundo. Não está totalmente claro o que se entende por “devorar as casas das viúvas”. Aqui duas interpretações: 1 – Marcos está se referindo à prática dos escribas de administrar bens das viúvas, já que, como mulheres, elas não podiam administrar as posses e os negócios dos maridos falecidos. Devido à sua reputação pública de piedade, eles ganhavam o direito legal de administrar as propriedades. Então recebiam porcentagens pelo serviço, que não raramente era acompanhado de abuso. Crítica semelhante se observa na prática de Corbã, à qual Jesus igualmente se opõe em Marcos 7.9-13. A vocação do judaísmo da Torá é “proteger órfãos e viúvas”, mas, em nome da piedade (para o justificar fazem longas orações), os escribas exploram essa classe de pessoas socialmente vulneráveis. 2 – Outra explicação pode ser encontrada na oposição que a narrativa de Marcos estabelece entre “oração” e “roubo”. O local de oração dos escribas é o templo, e as atividades demandadas pelo templo devoram os recursos dos pobres. Jesus, que se colocou enfaticamente contra essa exploração na ação do templo, aponta para a história da “oferta da viúva pobre” como uma ilustração. Em ambos os casos, o ponto principal está na exposição de uma piedade falsa, que ao invés de levar a Deus é marcada por oportunismo e exploração econômica. Marcos responsabiliza os escribas pelos abusos e, por isso, eles sofrerão juízo muito mais severo (v. 40). Talvez o julgamento mais severo se deva ao maior conhecimento desses professores da lei. Seu conhecimento deveria estar a serviço das pessoas mais fracas e desamparadas, em lugar de buscar explorá-las. As viúvas A preocupação bíblica com as viúvas evidencia sua posição de inferioridade na sociedade. Considerava-se uma desgraça ser uma viúva (Rt 1.20-21; Is 54.4). Elas contavam apenas com a compaixão das pessoas para receber atos de caridade e justiça. Tornar-se viúva era o destino mais temido por uma mulher. No caso da morte do marido, a viúva poderia voltar à sua própria família – caso houvesse pagamento por ela. Do contrário, ela deveria permanecer com a família do marido e, com frequência, recebia ocupações humilhantes, sendo lembrada como um fardo. Além de seu baixo status, a viúva do texto ainda é descrita no v. 42 como pobre (ptōchē), que se refere a alguém que é mendigo. Toda a vida dessa viúva depende da caridade de outras pessoas. O v. 41 diz que Jesus observa como as pessoas depositavam dinheiro no gazofilácio. Para a sua compreensão, o como importava mais do que o quanto as

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pessoas depositavam. Quem sabe ele observava suas expressões e seus sentimentos, como alegria, tristeza, orgulho, humildade. Leptos é o nome das duas moedas que a viúva pobre colocou como oferta. Era a menor moeda disponível. O dinheiro que ela colocou era insignificante, ao menos para o templo. O que dois lepta poderiam comprar? Para se ter uma ideia, eram necessárias cerca de oito lepta para comprar um simples pardal. Era o que ela tinha. Era muito pouco, e ela entrega tudo. Em vista do status das viúvas e da insignificância das duas moedas, chama a atenção a atitude de Jesus, que qualifica justamente essa oferta como sendo maior que todas as outras depositadas. A questão não está no quanto as pessoas ofertam, mas como o fizeram. Todos os outros ofertaram do que lhes sobrava, de sua abundância. A palavra abundância (perisseuō) implica ter mais do que o necessário. Suas doações vieram do que não precisavam, do excesso, das sobras. Mesmo tendo ofertado grandes somas, isso não lhes custou quase nada. Em contrapartida, a viúva oferta da sua pobreza, necessidade, falta (histēresis). O final do v. 44 mostra que ela entrega tudo o que precisava para viver. Bios significa vida, mas aqui também tem o sentido de bens, propriedades. A partir da cena, duas interpretações: 1 – A perícope aponta para o que Cristo fez, dando toda a sua vida. O ensino é destacado quando é lido como uma abertura para a paixão de Cristo. A ação da viúva pobre é louvável porque em sua pobreza e sem reservas ela entrega todo o seu viver a Deus. Sua oferta é um prenúncio do que Jesus está prestes a fazer: entregar sua própria vida. Para Marcos, o gesto da viúva aponta para Cristo, que sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos (2Co 8.9). 2 – Alguns intérpretes encontram o significado da história na oposição entre a ação da viúva e a crítica aos escribas na cena anterior. A interpretação é que Jesus está atacando os escribas e todo o sistema religioso, que ensinou essa mulher a entregar mesmo suas últimas e insignificantes moedas, como se Deus exigisse esse tipo de sacrifício por parte das pessoas mais pobres. Ou seja, a história seria mal interpretada se servisse para mostrar a superioridade da piedade dos pobres, quando deveria ser vista como uma desaprovação veemente de Jesus sobre o que se passa no templo. Myers conclui afirmando: “O templo roubou dessa mulher seus meios de subsistência. Como classe, os escribas não mais protegem as viúvas, mas as exploram. Como se estivesse com desgosto, Jesus ‘sai’ do templo pela última vez” (MYERS, 1988, p. 321). Interessante observar que imediatamente após esse episódio, Jesus prediz a destruição do templo (Mc 13.1-2). Isso poderia ser uma referência ao fim da exploração dos pobres e vulneráveis?

3 Meditação O evangelho de hoje nos fornece algumas pistas sobre a mensagem que Jesus tinha para dois tipos diferentes de pessoas. No início, Jesus alerta contra

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a hipocrisia religiosa: guardai-vos dos escribas. Eles viviam para manter uma posição elevada e honrada na comunidade. No entanto, usavam de forma errada a sua posição, vitimando as pessoas mais frágeis da sociedade. Depois, Jesus observa a viúva pobre, que oferece duas moedas de pequeno valor. Jesus chama a atenção dos seus discípulos para essa mulher: da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento. A importância não está no fato de ter ofertado tudo, mas em que confiava em Deus para suprir todas as suas necessidades. É bem possível que essa viúva tenha sido uma daquelas que foram lesadas pelos escribas, que receberam reprovação por parte de Jesus. As palavras que elogiam a viúva trazem condenação aos hipócritas, que não agem em favor dessa categoria de pessoas. As palavras podem soar como um lamento sobre aquelas pessoas cheias de dinheiro que nada fazem por essa viúva. Por outro lado, as palavras de Cristo louvam o dom da fé do Espírito Santo, que permitiu a essa viúva experimentar a total dependência de Deus. Jesus observa além do valor das moedas. Ele enxerga uma mulher que ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de toda a sua força (Mc 12.29). Ela deposita o que tinha no gazofilácio, mas Jesus percebe que ela tinha convicção de que toda a sua vida estava nas mãos de Deus. Dentre esses dois tipos de pessoas, queremos ser sempre aquelas que recebem aprovação de Jesus. Incomoda-nos parecer hipócritas. Queremos ser e agir como a viúva, que dá o que tem e se entrega aos cuidados de Deus. No entanto, se formos sinceros, temos de admitir que também parecemos com os escribas. Preocupamo-nos demasiadamente com a aparência, apreciamos lugares de destaque. Não questionamos a injustiça, os sistemas de opressão dos devoradores das casas das viúvas do nosso tempo. Como aqueles a quem Jesus observava, também ofertamos daquilo que nos sobra, do que não fará falta, e não olhamos ao redor, para as pessoas fragilizadas. Já nos ressentimos quando alguém não reconheceu devidamente nosso esforço na comunidade. Já pensamos em outras pessoas hipócritas (nunca nós), que deveriam estar ouvindo determinada parte da prédica. Ao olharmos com sinceridade para dentro de nós mesmos, reconhecemos que também nos cabem as palavras de juízo de Jesus. No entanto, sabemos que ele entregou, ofertou toda a sua vida por nós, e o fez na cruz. A partir disso, ele nos oferece perdão e vida renovada pela salvação. O Espírito Santo continua trabalhando por meio da palavra de Deus para nos conceder a mesma fé da viúva pobre. Faz isso por meio das Sagradas Escrituras que lemos e ouvimos e também na sua presença visível, no que comemos e bebemos no sacramento. A fé que o Espírito Santo nos concede recebe aquilo que Jesus nos oferece, quando dá sua vida em nosso favor. A mesma fé nos torna participantes da grande festa do reino de Deus, onde recebemos perdão, vida e salvação.

4 Imagens para a prédica Escrevo este auxílio neste tempo difícil de pandemia causada pelo coronavírus. Tempo cheio de incertezas, de dor, perda de vidas, perda de empregos, em que as paróquias e comunidades da IECLB são desafiadas a pensar também sobre

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sua sustentabilidade. O texto da pregação coloca-nos a refletir com responsabilidade e sensibilidade sobre como temos lidado com as pessoas mais frágeis em nosso meio, também quando falamos sobre ofertas e contribuições. Ao tratar sobre a perícope da viúva pobre, o contexto impele-nos a olhar além, para todo um sistema de opressão que está instalado no templo, aqui representado pelos escribas. Eles são os que devoram as casas das viúvas. Como exemplo atual, lembro que há algumas semanas o apóstolo Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, estava prometendo cura da Covid-19, entregando sementes de feijão em troca de uma oferta de mil reais. O Ministério Público Federal publicou em seu site que é falso que exista um tipo de feijão capaz de curar a doença. Também foi determinado que fosse retirado da plataforma YouTube o conteúdo. Esse é só um exemplo entre tantos, que infelizmente nos habituamos a assistir no cenário religioso do país. Escandaloso é que, há alguns anos, a revista Forbes (negócios e economia) tenha feito um artigo sobre os pastores milionários do Brasil. São aquelas pessoas que gostam de posar na mídia, que se orgulham de sua influência política, que não se envergonham de acumular riqueza diante da simplicidade das pessoas fiéis. São os mesmos que em meio à pandemia fizeram pressão junto ao governo para que os cultos religiosos fossem considerados serviços essenciais, ignorando os riscos para seu público. Cabe-nos também um olhar crítico sobre nossa instituição, na qual, por vezes, aquelas pessoas que doam do que lhes sobra acabam recebendo elogios e tratamento diferenciado, fazendo com que as pessoas que sustentam o trabalho das comunidades de maneira constante se sintam diminuídas, e as pessoas mais fragilizadas, esquecidas.

Bibliografia CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2002. v. 1, p. 768-769. MYERS, Ched. Binding the Strong man: A Political Reading of Mark’s Story of Jesus. New York: Orbis, 1988. p. 318-322

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25º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

14 NOV 2021

PRÉDICA: DANIEL 12.1-3

MARCOS 13.1-8 HEBREUS 10.11-14(15-18),19-25

Eloir Enio Weber

Esperança e ressurreição em meio aos sinais de morte

1 Introdução Penúltimo domingo do ano eclesiástico! Tempo no qual o teor apocalíptico dos textos bíblicos está fortemente presente. A composição de perícopes para este domingo não foge à regra. Temos uma composição bem interessante e desafiadora diante de nós. O texto de pregação, de Daniel, em estilo apocalíptico, traz a temática da ressurreição, tema não muito comum no Antigo Testamento (na exegese vamos nos ater ao texto). É um texto rico em promessas de Deus. Essas promessas são um verdadeiro evangelho, que quer animar as pessoas da época a permanecerem fiéis na fé em Deus. O texto do evangelista Marcos segue o estilo literário da perícope de pregação. Nele, Jesus fala da destruição do templo, criticando assim a teologia que tem a sua centralidade no templo de Jerusalém, além de alertar sobre os falsos profetas que aparecerão, guerras, terremotos, fome e o princípio das dores. Esses textos centrais são complementados com uma bela reflexão teológica da Carta aos Hebreus, que traz uma rica variedade de assuntos: perdão de pecados, purificação, sacrifício único de Cristo, alerta contra a prática de sacrifícios no templo, conclamando para guardar firme a confissão da esperança e chamando para congregar-se em comunidade. É um conjunto de textos que requer de nós, teólogas e teólogos, um estudo bem amplo e profundo, para não cairmos na tentação de tratá-los de forma rasa e vazia. O mundo religioso atual requer que esses temas sejam tratados com responsabilidade e estudo, fazendo frente à onda teológica vigente.

2 Exegese a) O livro: O livro do profeta Daniel caracteriza-se por um estilo literário apocalíptico. Esse estilo literário também está presente em alguns fragmentos nos profetas do Antigo Testamento. Mas é no livro de Daniel que ele aparece com clareza, destaque e evidência. No Novo Testamento, está presente em algumas falas de Jesus, nos evangelhos e, especialmente, no livro do Apocalipse de João. O livro de Daniel foi escrito no século II a.C., numa época na qual o rei Antíoco IV travava uma luta intensa contra a cultura, os costumes e a religião dos judeus. Ele queria implementar a cultura helenista em seu meio e passou a perseguir as pessoas que não se submetiam a essa nova onda. O livro busca trazer

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força e sustentar a esperança do povo fiel, para que se mantenha firme na fé e resista contra os opressores. Na primeira parte, nos capítulos 1 a 6, são trazidas histórias de como Daniel e seus amigos resistiram aos poderosos na Babilônia e, com a ajuda de Deus, permaneceram fiéis à sua religião e ao seu Deus durante o exílio. Importante lembrar que entre o exílio e a produção literária do livro de Daniel há um hiato de 300 a 400 anos. Na segunda parte, nos capítulos 7 a 12, em linguagem figurada, no melhor estilo apocalíptico, o livro ressalta que se aproxima a última etapa da história, e que é preciso ter ânimo, fé e coragem para resistir ao opressor. Todos os poderes serão subjugados pela ação de Deus. b) O contexto: A perícope em questão precisa ser lida dentro de um contexto maior. A moldura dentro da qual ela está inserida compreende os três últimos capítulos do livro (10-12). Ali está retratada a realidade de perseguição e da morte. A partir, especialmente, do que consta no texto do capítulo 11.21-45, é revelado como e por que a violência é sofrida pelo povo fiel a Deus. Os v. 29 a 35 relatam atrocidades, como a violação dos preceitos religiosos do povo, com a profanação do culto e do santuário (11.31), assassinato pela espada e pelo fogo (v. 33) das pessoas que resistem em adotar o helenismo como modo de vida. O povo fiel é submetido a roubos e saques (v. 33) e, por fim, à escravidão (v. 33). Nessa situação violenta e caótica, o texto precisa ser lido e compreendido. c) O texto: O texto inicia com a expressão nesse tempo, ou seja, indica que o que vem na sequência está colocado dentro da moldura maior, que foi retratada anteriormente. Em seguida, o texto traz que se levantará Miguel, o grande príncipe, o defensor dos filhos do povo de Deus. Miguel é considerado como o anjo da guarda de Israel. Em hebraico, Miguel significa “aquele que é parecido com Deus” (mi = “quem”, ka = “como”, El = “Deus”). É um arcanjo pouco citado na Bíblia. Aparece só três vezes: Daniel 12.1, Apocalipse 12.7-9 e Judas 1.9. Na tradição cristã, é chamado de São Miguel Arcanjo ou simplesmente de São Miguel. Ganhou mais destaque nas tradições do judaísmo e da igreja cristã do que na própria Bíblia. Na sequência, o texto descreve, em estilo apocalíptico, as angústias que se aprofundarão como nunca houve. Mas o povo de Deus, ou seja, as pessoas que estiverem inscritas no livro serão salvas. O Novo Testamento também se refere ao “livro da vida” (Fp 4.3; Ap 3.5; 13.8; 17.8; 20.12-15; 21.27). O sentido da expressão é sempre semelhante: exemplo disso é o que o apóstolo Paulo escreveu em Filipenses 4.3, de que as pessoas que cooperam com ele no evangelho têm os seus nomes inscritos no livro da vida. A partir desse conteúdo, o livro de Daniel trouxe um aprofundamento na reflexão: a temática da ressurreição. Com isso, se dá o ápice do texto para este domingo. Pois, tratando desse tema, ele deu uma nova orientação à esperança escatológica veterotestamentária: é a primeira vez que aparece claramente na Bíblia

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a referência à ressurreição de justos e injustos. Trata-se do texto mais claro do Antigo Testamento sobre uma futura ressurreição corpórea. O Novo Testamento, em todas as partes, proclama a ressurreição de Jesus, e, como consequência, a bendita esperança do retorno de nosso Senhor, para trazer os mortos de volta à vida e derrotar o último inimigo, a morte. Pode parecer que a esperança da ressurreição é exclusiva do Novo Testamento. Mas se pinçarmos essa esperança e começarmos a desemaranhá-la, descobriremos que ela tem raízes profundas que vêm do Antigo Testamento. Deus proveu a esperança da ressurreição a seu povo desde o princípio. A teologia da ressurreição, porém, não é aceita por todos os grupos no judaísmo. Os saduceus negavam que há a esperança da ressurreição, porque ela não é ensinada no Pentateuco. Eles negavam qualquer tipo de vida depois da morte. Eles acreditavam que não há qualquer penalidade ou recompensa depois da vida terrena. Por outro lado, os fariseus acreditavam na ressurreição dos mortos. Acreditavam em uma vida depois da morte, com a devida recompensa e punição individual. O autor do livro de Daniel se confrontou com a implacável perseguição aos justos durante a dominação selêucida (grega), que trouxe a morte para muitas pessoas. Esse quadro necessitava de uma resposta que satisfizesse de forma plena o clamor dos fiéis. A doutrina da ressurreição acabou com a concepção de retribuição em vida e ultrapassou a ideia de que apenas os justos irão ressurgir. Os ímpios também ressuscitarão e receberão sua porção. Assim, o texto conseguiu articular uma resposta satisfatória à angústia e morte e, ao mesmo tempo, cumprir a função de dar esperança aos que estavam resistindo e eram perseguidos por isso. O texto se encerra, no recorte dado para esta pregação, com a promessa de que os sábios e as pessoas que conduzirem muitos à justiça irão brilhar no céu como estrelas, eternamente.

3 Meditação Estou aproveitando a quarentena provocada pelo coronavírus para escrever o presente estudo. Enquanto trabalho de casa, estou lendo um livro do escritor moçambicano Mia Couto, cujo título é “Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra”. Trata-se de uma obra muito boa, que recomendo! Mia Couto diz de si mesmo: “Sou um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve em prosa; um homem com nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas sobre a ciência; um escritor em terra de oralidade”. Ele se assume no seu contraditório. Por vezes é difícil descrever quem somos e assumir nossa identidade contraditória e marcada pela diversidade, mas que nos dá a possibilidade de praticarmos, em nós, “a tese e a antítese”. No livro mencionado, Mia, como “ateu não praticante” (achei fantástico isso!), escreve na página 87: “Num mundo de dúvidas, onde tudo se desmorona, a igreja surge como a memória mais certa e permanente”. Um teólogo “praticante” teria dificuldades para uma melhor definição do papel da igreja, especialmente, no contexto de incerteza e crise no qual vivemos.

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No momento em que escrevo, estamos há uma semana em isolamento domiciliar. Há incertezas políticas, econômicas e de saúde pública, além do risco da contaminação. Templos estão fechados. Estamos tendo que nos reinventar. Assisti a diversos vídeos de colegas fazendo celebrações em escritórios. Eu mesmo me comunico com a comunidade escolar por vídeo. Minha filha está tendo aula em salas virtuais. Por outro lado, vivemos num contexto em que inúmeras pessoas, nos últimos cinco anos, perderam empregos com carteira assinada no Brasil e foram para a informalidade, num mundo cada vez mais “uberizado”. Essas pessoas não têm entrada de recursos para alimentar sua família enquanto não podem trabalhar. Precarizamos as relações trabalhistas e humanas. Estamos sendo cada vez mais sugados pelo sistema – “Num mundo de dúvidas, onde tudo se desmorona, a igreja surge como a memória mais certa e permanente”. O dia da celebração do culto para o qual escrevo este estudo é 14 de novembro de 2021 – daqui a um ano e oito meses. Como estaremos até lá? Nesse dia estaremos de feriadão, já que é véspera de celebrar mais um aniversário do primeiro golpe militar na república do Brasil, feito por generais, em 15 de novembro de 1889. E assim andamos como pátria amada! Em meio a notícias de morte, escrevo este estudo para o penúltimo domingo do ano eclesiástico, cujo tema central é a esperança na ressurreição. O livro que citei acima, na sua primeira linha sentencia: “A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência”. A partir da nossa esperança em Cristo, acrescentamos que além da lembrança de uma anterior existência, está algo muito mais profundo e gracioso: a ressurreição, o reino, a libertação que Cristo nos concede de todas as chagas, lágrimas, explorações, fome, vírus e outras calamidades às quais estamos expostos em vida. Em outra parte do livro (como percebem, o livro é cheio de frases de efeito sobre a morte), está escrito: “A morte, essa viagem sem viajante, ali estava a dar-nos destino”. A espiritualidade cristã, construída em torno e a partir da Sexta-Feira da Paixão e, especialmente, do Domingo da Páscoa, não esconde a realidade cruel da morte. Mas também não coloca todo o “destino” (não compreendam mal esse termo) da vida humana nas mãos dela – a morte. Ela é a maior inimiga da vida humana. E a nossa esperança de que Cristo volte para colocá-la debaixo dos seus pés, essa, ela que é o salário do nosso pecado. Na ressurreição, não seremos viagem sem viajante, seremos novas e eternas criaturas. A situação na qual vivemos evoca muitos medos. Há, no meio da situação, muitas vozes apocalípticas. E aqui não me refiro às belezas do estilo literário apocalíptico, tão presente na Bíblia, inclusive nos textos bíblicos deste estudo, nem ao apocalipsismo que pretende encher de esperança as pessoas oprimidas e perseguidas, para que se mantenham firmes na fé. Para confrontar o apocalipsismo atual, raso e inconsequente, a teologia da igreja precisa dar a devida atenção ao seu discurso e prática teológica. É necessário fazer frente às correntes “evangélicas” que confundem conceitos e dão vazão aos preconceitos. O conjunto de textos é desafiador, mas lindo ao mesmo tempo. Oportuno, como sempre é oportuna a palavra de Deus. Desejo que a bela linguagem apocalíptica esteja presente nas celebrações das comunidades de fé, enchendo de esperança os corações sedentes, as mentes famintas e os corpos marcados pela vida.

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Para terminar, deixo o fim em aberto, para que você faça o contraponto à frase: “A gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que entra em nós” (Mia Couto).

4 Imagens para a prédica Toda vez que se fala de ressurreição, é necessário falar da fragilidade da vida, que enfrenta a cada dia o risco da morte. Mas viver significa aprender a lidar com essa fragilidade e não se deixar abater por ela. Conviver com a morte como realidade e como parte da vida é o único caminho de realização, plenitude e felicidade. Penso que a pregação, necessariamente, precisa passar por esse enfoque. A ressurreição é consequência do agir de Deus, em Cristo. E esse agir de Deus nos leva a perceber que há senhores no mundo que pretendem nos impor o sofrimento, a subjugação e a morte. No tempo do escrito do profeta Daniel, havia o projeto de morte cultural e do imperialismo que o rei selêucida Antíoco IV queria implantar. No tempo de Jesus, era o imperialismo romano. E hoje... Quais os projetos de morte que enfrentamos? Quais imperialismos? O estilo literário apocalíptico quer nos dar forças para lutar contra os poderes estabelecidos e nos manter esperançosos e fiéis a Deus.

5 Subsídios litúrgicos Penso na temática da esperança, que se mistura com a realidade da morte/ ressurreição. Por isso coloco, abaixo, uma litania e um poema que juntei ao longo do tempo e que me são caros. Litania da esperança (responsório)1 Quando as forças se abatem... Creio na graça* de Deus que me fortalece. Se é noite e os pesadelos querem me dominar... Creio na graça* de Deus que me fortalece. Na angústia das tempestades... Creio na graça* de Deus que me fortalece. Quando as lágrimas desejam ser meu alimento... Creio na graça* de Deus que me fortalece. Se na caminhada eu ousar desistir... Creio na graça* de Deus que me fortalece. Na saudade de um tempo de alegria... Creio na graça* de Deus que me fortalece. Quando a voz estiver fraca para clamar... Creio na graça* de Deus que me fortalece.

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FRANÇA BENTO, Inês de; FILORDI, Alexandre. In: ALVES, Rubem (Org.). Culto Arte – celebrando a Vida. Petrópolis: Vozes, 2000.

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Se no abraço o amor universal estiver ausente... Creio na graça* de Deus que me fortalece. (* magia, no texto original.) Não tenho medo da morte2 Eu não tenho medo da morte, conheço muito bem seu corredor escuro e frio que conduz à vida. Tenho medo dessa vida que não surge da morte, que paralisa as mãos e entorpece nossa marcha. Tenho medo do meu medo, e ainda mais do medo dos outros, que não sabem para onde vão e continuam apegando-se a algo que creem que é a vida e que nós sabemos que é a morte! Vivo cada dia para matar a morte, morro cada dia para parir a vida, e nesta morte da morte, morro mil vezes e ressuscito outras tantas, neste amor que alimenta, do meu Povo, a esperança!

Bibliografia COUTO, Mia. Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra. Lisboa: Caminho, 2002. MARCONCINI, Benito. Daniel. São Paulo: Paulinas, 1984.

2

Julia Esquivel, Guatemala. Trad. Inés Simeone

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DOMINGO CRISTO REI

PRÉDICA: JOÃO 18.33-37

21 NOV 2021

DANIEL 7.9-10, 13-14 APOCALIPSE 1.4b-8

Martin Volkmann

Jesus Cristo é Rei e Senhor – hoje e sempre

1 Introdução Os três textos bíblicos indicados para a pregação e as leituras têm em comum o tema da presença de um soberano, cujo poder é absoluto e eterno. Em Daniel, há um ancião assentado sobre um trono, ao qual se achega o Filho do homem. Foi-lhe dado domínio e glória e o reino [...] o seu domínio é eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído (v. 14). No Apocalipse consta: Graça e paz a vós outros [...] da parte de Jesus Cristo [...] o soberano dos reis da terra [...] Eu sou o Alfa e o Ômega [...], aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso. Assim, as leituras sugeridas são uma boa preparação para o texto de pregação que reproduz o diálogo entre Pilatos e Jesus: És tu o rei dos judeus? [...] O meu reino não é deste mundo [...] Logo, tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo. Assim, os três textos se complementam mutuamente e, havendo o tempo e a disponibilidade para tal, que se aproveite a leitura dos mesmos na celebração. O texto de prédica de João 18.33-37 já foi analisado em três volumes de Proclamar Libertação: XIX, 31 e 36; em todos eles como texto de prédica para o Domingo Cristo Rei.

2 Análise exegética O relato de João 18.33-37 apresenta o interrogatório de Jesus por Pilatos. Depois de terem interrogado Jesus, as autoridades judaicas, convictas de que Jesus deve ser morto (v. 14 e 31), levam-no a Pilatos, que representa o efetivo poder/governo na região. As autoridades judaicas não ingressam no pretório – sede do governo; portanto espaço pagão, não judeu – na presença de Pilatos para não se contaminarem, estando, assim, impedidos de celebrar a Páscoa logo a seguir (v. 28). Por isso o interrogatório se dá sem a presença dos acusadores. Sem rodeios, Pilatos vai direto à questão: És tu o rei dos judeus? (v. 33). Como os versículos anteriores, que relatam o encaminhamento de Jesus a Pilatos, não dizem expressamente o motivo da acusação, o evangelista traz isso no diálogo de Jesus com Pilatos: Vem de ti mesmo esta pergunta ou te disseram isso outros a meu respeito? (v. 34). A resposta de Pilatos (v. 35) aponta claramente o cerne do conflito: A tua própria gente e os principais sacerdotes é que te entregaram a mim. Portanto o conflito não é entre os detentores do poder político

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e governantes (Império Romano, Pilatos como representante do mesmo) e um pretendente a derrubá-los e assumir o poder. Mas o conflito é de outra ordem. Por isso a resposta de Jesus é significativa e fundamental: O meu reino não é deste mundo (v. 36). Essa afirmação de Jesus se reveste de uma dupla dimensão. Por um lado, ela expressa que a origem e a abrangência de seu poder não se situam no mesmo nível do poder e do espaço de Pilatos e dos romanos. Não é um reino como o Império Romano ou qualquer outro reinado. Se assim o fosse, como Jesus continua sua argumentação, seus apoiadores e colaboradores interveriam para impedir que ele fosse entregue a seus adversários (v. 36). E o interessante é que Jesus cita os judeus como esses adversários. Porque, no relato da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, ele é saudado pelo povo com a aclamação: Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor e que é Rei de Israel (12.13). Para seus seguidores, ele é o Messias esperado. Mas para as autoridades judaicas, esse Jesus não pode ser o Messias, por contradizer todas as expectativas deles e por Jesus, com sua mensagem e maneira de ser, trazer bem outra imagem de reino. Essa é a outra dimensão dessa expressão que o seu reino não é deste mundo. Seu reino tem como referência o agir de Deus. Quem lhe confere autoridade não são instâncias humanas como nos reinos deste mundo, mas é o próprio Deus. No agir e falar de Jesus, como nos relatam os evangelhos, ele traz Deus para junto das pessoas. Jesus é o Deus encarnado (1.14). Nele, o reino de Deus irrompe na realidade humana. Por isso o seu reino não é deste mundo; é o reino de Deus. Pilatos entende a argumentação de Jesus e conclui com a pergunta: Logo, tu és rei? Jesus concorda com a afirmação de Pilatos de que ele é rei. Mas imediatamente, na sequência da argumentação do versículo anterior sobre a origem de seu reino, ele acrescenta por que e que tipo de rei ele é: Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade (v. 37). Nisso consiste sua missão e seu reinado, que não terá fim: testemunhar a verdade. A alētheia é tema recorrente no Evangelho de João: 8.44; 14.6, 17; 15.26; 16.13; 17.17, 19; 18.37, bem como em 1 João 2.21; 3.19; 4.6. Alētheia, sem dúvida, também compreende a veracidade de fatos históricos, de acontecimentos e dados objetivos. Mas na fala de Jesus segundo o evangelista João, à semelhança do que é dito em relação ao reino, alētheia tem uma outra dimensão. Trata-se não de uma verdade qualquer ou de fatos verdadeiros, mas é a verdade. Para dar testemunho dessa verdade é que Jesus veio ao mundo. Ou seja, é a verdade sobre o Deus que se torna humano e acolhe o ser humano em seu Reino. O testemunho da verdade que Jesus dá é que Deus vem ao encontro do ser humano pecador, que se afastara de Deus, e lhe oferece nova comunhão. Por isso a pessoa que ouve o testemunho de Jesus e acolhe essa oferta se torna participante da verdade, ou seja, faz parte do reino de Deus. Mas como Pilatos se move em outra esfera, como o seu reino é deste mundo, ele não participa dessa verdade e não tem condições de ouvir, aceitar o que Jesus diz. Só lhe resta perguntar: Que é a verdade? Resumindo o diálogo-interrogatório entre Pilatos e Jesus, vemos que ele gira em torno desses três termos que aparecem cada qual três vezes nesses seis versículos: basileus – rei; basileia – reino e alētheia. E os três termos se caracterizam

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por uma dimensão bem específica: caracterizam e testemunham a presença divina que invade a realidade humana e oferece comunhão, nova vida para quem se deixa motivar e envolver por essa realidade. Essa oferta foge da compreensão de Pilatos, que representa todo o grupo de pessoas que não ouve esse testemunho da verdade.

3 Meditação Redijo este estudo homilético em maio de 2020, portanto em plena pandemia do coronavírus. Já são dois meses de isolamento e distanciamento social. Algo que, como coletividade, em praticamente todo o mundo, ainda não se tinha vivenciado. E para muitas pessoas, especialmente sozinhas, idosas, morando em um pequeno apartamento, essa experiência está sendo muito marcante e sofrida. Por outro lado, também para aquelas famílias que vivem nas favelas, várias pessoas juntas em um pequeno espaço – como manter o isolamento e o distanciamento necessário para evitar o contágio? E pensando nas pessoas que trabalham nos hospitais, quanto desprendimento, energia e desgaste físico e emocional! E a dor das famílias que perdem um de seus entes queridos, sem poder se despedir dignamente numa cerimônia fúnebre. E quão chocantes são aquelas cenas de sepulturas abertas em série e sepultamentos em massa. Bastam esses exemplos. Diante dessa realidade, muitas dúvidas e perguntas invadem nossas mentes. Por que Deus permite tamanho sofrimento? Onde está a causa desse grande mal? Por que ainda não se encontrou um meio, uma vacina, uma medicação que possa amenizar ou impedir a propagação da doença? Por que inclusive governantes e autoridades políticas minimizam a pandemia e pouco se importam que há tanta gente, especialmente pessoas idosas e mais fragilizadas, morrendo? Ou até procuram tirar vantagens com o sofrimento alheio? Exponho todas essas colocações que são, sem dúvida do momento atual e, assim esperamos, não sejam mais a realidade em final de novembro, quando este é o texto de pregação no último domingo do ano eclesiástico. Mas provavelmente também aí haverá situações de sofrimento, de incertezas, de angústias que levantarão perguntas semelhantes: Por quê? Diante de tal realidade sofrida, essa pergunta é tanto mais angustiante, considerando o tema desse texto bíblico: Cristo Rei de um reino que não é deste mundo. Como essa mensagem do Cristo que é Rei, que anuncia a verdade e que nos promete o reino de Deus pode ser ajuda e consolo para as pessoas que sofrem, que se angustiam com suas dúvidas e que têm dificuldades de entender e aceitar a realidade? Quão paradoxal possa parecer, é justamente essa mensagem que muito está ajudando pessoas durante a pandemia enquanto elaboro este estudo. Saber que, apesar de e em meio a toda dor, Deus é o Senhor da vida e que, a partir de nosso batismo, nós fazemos parte do reino que não é deste mundo e onde Jesus é Rei ontem, hoje e sempre, nos dá a sustentação para continuar a viver. As múltiplas formas de transmitir a Palavra e manter a comunhão por meios virtuais que se encontraram nesse momento foram muito significativas. Com certeza atingiram muito mais pessoas por meio dessa modalidade do que teriam conseguido em encontros presenciais.

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Por outro lado, em meio a todas as incertezas, sofrimento e angústias, essa pandemia também mostrou muitas manifestações de solidariedade, de apoio e de ajuda. Quantas máscaras foram confeccionadas e distribuídas! Quantas cestas básicas foram montadas e distribuídas entre as pessoas que, por não poderem trabalhar ou não terem trabalho, não tinham recursos para o seu sustento! E tantas pessoas foram “visitadas” virtualmente por um telefonema ou uma mensagem via celular. Foram muitos exemplos que antes da pandemia nem se podia imaginar serem possíveis. Sinais no espírito do Reino que não é deste mundo. Portanto, mesmo que possa parecer paradoxal, essa mensagem do senhorio absoluto de Jesus Cristo é a verdadeira força e sustentação para todos nós. Saber-nos amparados pelo senhorio de Jesus, seguros nas mãos de Deus e guiados por seu santo Espírito nos dará a base firme para vivermos em meio e apesar de todas as dificuldades e sofrimentos. E ainda um último aspecto que poderá ser relevante, especialmente naqueles contextos em que se preserva essa outra tradição do último domingo do ano eclesiástico ser o Domingo da Eternidade, ou seja, em que se recorda, à semelhança do dia 02 de novembro, das pessoas falecidas. A eternidade pertence a Deus. E assim como nós hoje estamos nas mãos de Deus, mesmo que às vezes não o percebamos ou temos dificuldades de aceitar, também na hora da morte não caímos das mãos de Deus. Também depois da morte fazemos parte do reino de Jesus, que não é deste mundo e que não terá fim.

4 Imagens para a prédica Ainda sob os efeitos da realidade do presente momento em que elaboro este texto e considerando que possa haver situações semelhantes na época do Domingo Cristo Rei, uma imagem que poderá servir de introdução à pregação é a referência à situação de sofrimento, às contradições da sociedade, à dor causada por tudo isso. Uma segunda imagem poderá ser a seguinte afirmação: a chegada de Jesus “destrói reinos”. Por um lado, o domínio das lideranças judaicas e suas expectativas messiânicas; por outro lado, o reino de Pilatos. “Destrói” no sentido de que a proposta de Jesus vai na direção contrária, porque o seu reino não é deste mundo. Em combinação com essa referência ao reino, pode-se combinar a imagem da verdade: neste Jesus, a realidade divina, a transcendência invade a nossa realidade. Em Jesus, Deus mesmo vem a nós, oferece comunhão a quem a aceita e estabelece o seu reino em meio às contradições do mundo. Por isso Jesus Cristo é Rei e Senhor hoje e eternamente.

5 Subsídios litúrgicos Considerando os aspectos das contradições e dos sofrimentos existentes na sociedade causados, não por último, pela falsa ação humana, seria oportuna a oração do Kyrie, pedindo pela misericórdia de Deus. Sugestão de hino: Pelas do-

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res deste mundo, de Rodolfo Gaede Neto. Outros hinos relacionados com o tema seriam: Jesus Cristo é Rei e Senhor e Jesus Cristo reina em glória. De forma semelhante, a oração de confissão de pecados poderia enfocar essas situações contraditórias da vida causadas pela ação humana, em geral, e, em particular, dos próprios membros da comunidade. Aproveito ainda para fazer referências às diversas sugestões de Cristina Scherer constantes no v. 36.

Bibliografia NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 26. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1985. SCHMOLLER, Alfred. Handkonkordanz zum griechischen Neuen Testament. 13. ed. Stuttgart: Würtembergische Bibelanstalt, 1963.

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ÍNDICES TEMAS E TEXTOS NOS VOLUMES I – 45 A ceia do Senhor – O sacramento do altar...........................................................................34, p. 369 Advento – Celebração..........................................................................................................29, p. 325 AIDS – Um grande desafio.................................................................................................XV, p. 304 Ação de graças............................................................................... XII, p. 300; 20, p. 322; 33, p. 394 Ação de graças pela colheita....................... 32, p. 212; 34, p. 371; 35, p. 370; 36, p. 365; 37, p. 348 Achados e perdidos – experiências................................................................................. XVII, p. 288 A indústria da ilusão: como encarar o “Feliz e Próspero Ano Novo”? (Tg 4.13-17)............IX, p. 34 Armas da morte: “Quem brinca com fogo acaba se queimando” (Zc 9.9-10)........................ X, p. 91 Associação popular: “A união faz a força” (Ne 5.1-12)........................................................IX, p. 83 As três primeiras petições do Pai-Nosso..............................................................................39, p. 359 A velhice................................................................................................................................VI, p. 43 Batismo, alocução para .......................................................................................................26, p. 357 Batismo, culto de.............................................................................21, p. 327; 24, p. 358; 27, p. 299 Bênção matrimonial..........................................................................................XIX, p. 310, 317, 319 (Jr 29.13)..............................................................................................................................20, p. 351 (Ct 8.7).................................................................................................................................20, p. 353 (Ec 4.9-12)...........................................................................................................................21, p. 329 (Ct 1.2-3)............................................................................................................21, p. 332; 22, p. 311 Bíblia e arte...........................................................................................................................XV, p. 77 Breve exortação à confissão.................................................................................................39, p. 375 Cadê a mulher? (Jz 5.24-31)................................................................................................... X, p. 37 Carnaval: festejar é preciso (Jo 2.1-11).................................................................................IX, p. 41 Celebração da Santa Ceia (Lc 24.13-35)...............................................................................VI, p. 40 (Sl 133.1-3)..........................................................................................................................22, p. 300 Coluna social – promoção da fraternidade ou projeção egoísta? (Gl 3.28)......................... XII, p. 70 Como pode peixe vivo viver fora d’água fria? O colono na cidade (Ec 4.1-4)..................... X, p. 84 Componentes éticos da organização popular.................................................................. XVII, p. 281 Comunidade cristã: instrumento ou entrave para as lutas populares – uma avaliação (Ap 22.10-16).......................................................................................................... X, p. 11 Confirmação (Fp 3.12-16)..................................................................................................... II, p. 187 (Dt 30.11-20)....................................................................................................................... VIII, p. 23 (Jo 6.66-69)........................................................................................................................ XII, p. 293 (Mt 5.14-16).........................................................................................................................20, p. 339 (Ap 1.9-18)......................................................................................................................... XX, p. 342 Constituição – as leis a serviço de quem? (Dt 17.14-20)..................................................... XII, p. 51 Contribuição para a igreja – Pago para ter (2Co 8.1-5)...................................................... XIII, p. 18 “Criança, não verás país nenhum como este!” (Êx 1.8-22).................................................IX, p. 107 Culto como evento celebrativo ............................................................................................ XIV, p. 9 Culto de instalação de lideranças de comunidade (Hb 13)..................................................21, p. 309 Culto em época de eleição (1Sm 11.1-15).............................................................................V, p. 337 Culto eucarístico (Mc 14.32-42)..........................................................................................20, p. 346 Culto eucarístico (alocução para).........................................................................................23, p. 237 (Lc 22.14-15).......................................................................................................................20, p. 349 Culto para o Dia dos Povos Indígenas.................................................................................22, p. 295 Cultura popular: quando a vida se faz escola (1Co 8.2)..................................................... XIII, p. 42

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Curandeirismo: um “jeitinho” popular de cura? (Mc 5.25-34)............................................ XII, p. 27 Deus na marginalidade..........................................................................................................XVI, p. 9 Dedicação de templo............................................................................................................26, p. 361 Dia das Crianças (Zc 8.1-8).................................................................................................24, p. 337 Dia de Ações de Graças (Gn 8.15-22)......................................................................................I, p. 68 (Jo 4.31-38)........................................................................................................................... II, p. 256 (Ec 3.1-8)...............................................................................................................................VI, p. 48 (1Tm 4.4-5)....................................................................................................................... XIII, p. 298 (Mt 13.24-30,36-43)....................................................................................................... XVIII, p. 289 Dia da Colheita (2Co 9.6-15).................................................................................................V, p. 323 (Dt 26.1-11)..........................................................................................................................20, p. 317 Dia do Colono (Gn 2.4b-15)..................................................................................................V, p. 330 Dia de Finados (Is 25.1,(6-7)8-9) .......................................................................................34, p. 353 (Fp 3.20-21)........................................................................................................................... I, p. 143 (1Co 15.50-58).................................................................................................................... III, p. 176 (1Co 15.35-39,42b-44)...........................................................................................................V, p. 256 (Mt 22.23-33).................................................................................................................... VIII, p. 336 (2Pe 3.8-14)..................................................................................................................... XVII, p. 237 (Jo 5.24-29).................................................................................................................... XVIII, p. 267 (1Co 15.12-20)..................................................................................................................... 32, p. 311 (Is 35.1-10)...........................................................................................................................35, p. 347 (1Ts 4.13-18)........................................................................................................................36, p. 335 Dia da Independência (1Pe 2.13-17).......................................................................................I, p. 109 (1Tm 2.1-4)........................................................................................................................... II, p. 336 (Mc 12.13-17)......................................................................................................................III, p. 138 (Hb 13.12-16).........................................................................................................................V, p. 205 (Mt 6.9-13)...........................................................................................................VI, p. 53; 20, p. 328 Dia das Mães (Lc 15.8-10)................................................................................................XIX, p. 305 Dia da Reforma (Gl 5.1-11)....................................................................................................I, p. 125 (Jo 8.31-36)........................................................................................................................... II, p. 383 (Rm 3.19-28)........................................................................................................................III, p. 169 (Mt 5.1-10)........................................................................................................................... IV, p. 212 (Ap 14.6-7).............................................................................................................................V, p. 249 (Mt 10.26b-33).....................................................................................................................VI, p. 291 (Is 62.1-12)........................................................................................................................ VIII, p. 331 (Mt 10.26b-33)................................................................................................. XII, p. 268; 34, p. 347 (Gl 5.1-6).........................................................................................................XIII, p. 267; 35, p. 341 (Fp 2.12-13)........................................................................................................................XV, p. 282 (Jo 8.31-36).................................................................................................................... XVII, p. 225 (Mt 5.1-10)...........................................................................................................................32, p. 307 (Jr 31.31-34).........................................................................................................................36, p. 329 Dia de Penitência (Is 1.10-17)............................................................................................XV, p. 297 Dia do Trabalhador (Dt 5.12-15)...........................................................................................III, p. 62 (2Ts 3.6-13)..............................................................................................................................V, p. 97 Dia do Trabalho (1Co 7.29-32a)........................................................................................... II, p. 213 (Ez 34.1-2 (3-9), 10-16, 31).................................................................................................VI, p. 170 (Tg 5.1-6).......................................................................................................................... XIII, p. 285 Dia dos Pais (Pv 4.10-19)....................................................................................................21, p. 321 Dia Internacional da Mulher (Ct).........................................................................................21, p. 316 Domingo de Louvor através da Música.............................................................33, p. 401; 37, p. 353

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Domingo de Penitência (vide também: Dia de Penitência [Mt 12.33-35, (36-37)]).......... XII, p. 307 (Ap 3.14-22)...................................................................................................................... XIII, p. 304 Domingo de Ramos (Mc 14.3-9; Jo 12.12-16)..................................................20, p. 309; 36, p. 134 Ecologia – A vida está a perigo (Gn 2.8-15)....................................................................... XIII, p. 74 Educação: para a liberdade ou para a opressão? (Ec 9.13-18)................................................ X, p. 25 Em busca de espaço – o deficiente na igreja e na sociedade (Mt 4.23-25).......................... XII, p. 34 Empregadas domésticas (Gn 21.8-21)................................................................................ XIII, p. 60 Entre morte e eternidade: morrendo um pouco a cada dia (Is 65.17-25)...............................IX, p. 15 Epifania, reflexões para o período de...................................................................................27, p. 303 Época da Paixão I (Is 55.6-7).................................................................................................VI, p. 24 Época da Paixão II (Mt 26.36-46)..........................................................................................VI, p. 29 Época da Paixão III (Sl 130.4)...............................................................................................VI, p. 34 Época da Paixão IV (Mt 11.28-30)........................................................................................VI, p. 37 Estado, pátria, governo (Jz 9.7-15)........................................................................................IX, p. 98 Estudo bíblico numa conferência (Jo 1.1-18).....................................................................XVI, p. 42 Estudos bíblicos com pequenos agricultores...................................................................... XIV, p. 60 Exercício homilético............................................................................................................ XII, p. 91 “E viu Deus que isto era bom...”....................................................................................... XIV, p. 101 Férias: alienação ou antecipação do reino de Deus? (Ec 3.9-15)........................................... X, p. 16 Festa da Ascensão de Jesus Cristo.......................................................................................30, p. 303 Fome, instrumento de submissão (Mq 3.1-4)........................................................................XI, p. 45 Formatura – estudar para ganhar mais? (Jr 22.13-19)........................................................ XIII, p. 80 (Is 65.17-25).........................................................................................................................20, p. 334 Futebol: lazer ou instrumento de alienação? (Jz 2.11-15).....................................................XI, p. 20 Hermenêutica feminista latino-americana........................................................................ XIV, p. 101 Ídolos da opressão (Is 44.9-20)........................................................................................... XIII, p. 50 Inauguração da igreja (Mc 4.30-32; Mt 13.31-32; Lc 13.18-19)....................................... XII, p. 313 Inauguração de uma igreja (Is 24.12-16a)........................................................................ XIII, p. 312 Introdução a Dêutero-Isaías................................................................................................ VIII, p. 16 João Batista: por que rolou sua cabeça? (Mc 6.14-29)........................................................... X, p. 74 Joga limpo, Brasil................................................................................................................38, p. 363 Jubileu 500 anos da Reforma...............................................................................................38, p. 373 Kurusu Ñe’engatu – Palavras que a história não pode esquecer.................................... XVII, p. 275 La comunidad luterana y la práctica de una pastoral de vida...............................................XV, p. 71 La lucha por la tierra en el Paraguay....................................................................................XV, p. 55 Leitura da Bíblia entre indígenas..........................................................................................XV, p. 61 Lepra – uma doença que assusta? (Nm 12.9-16)................................................................. XII, p. 18 Libertação: vitória sobre a cruz! (1Jo 3.13-18)......................................................................IX, p. 57 Lutero e a educação.............................................................................................................41, p. 345 Lutero e a música.................................................................................................................40, p. 335 Marketing e igreja....................................................................................................................24, p. 7 Medicina popular – mutirão da saúde (Mt 12.22-28)............................................................XI, p. 77 Meditação sobre a oração ....................................................................................................31, p. 303 Meditação sobre o tema “Terra” – I: terra na nova sociedade (At 4.32-37)..........................V, p. 310 Meditação sobre o tema “Terra” – II: terra para todos...........................................................V, p. 316 Migração: esperança ou desespero? (Lv 25.8-17, 23-28, 35-43)...........................................XI, p. 65 Missão (1Co 12).................................................................................................................. XIII, p. 34 Movimento negro: “Alma não é branca, negro não é luto, preto não é cor!” (Am 9.7-10)..... X, p. 128 Movimentos populares: povo unido jamais será vencido (Mc 10.32-45)............................. X, p. 106 Mulheres agricultoras..........................................................................................................XVI, p. 15

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Mulheres na Reforma Protestante........................................................................................40, p. 341 Na estrebaria do mundo a criança é esperança (1Co 1.26-31)...............................................IX, p. 24 O assalariado empobrece produzindo riqueza (Ec 5.18)........................................................ X, p. 65 Observações introdutórias referentes ao Evangelho de Mateus........................................... II, p. 176 Lucas .................................................................................................................................... X, p. 139 João ...................................................................................................................................... VIII, p. 7 O deficiente na igreja e na sociedade (Mt 4.23-25)............................................................. XII, p. 34 O desafio de ser autor de PL.................................................................................................XV, p. 12 O ecumenismo na formação de lideranças............................................................................XV, p. 33 O evangelho no Clube de Mães – ocupação do solo urbano em Canoas..............................XV, p. 17 O índio: nosso irmão na caminhada pela libertação (Ef 2.11-22)........................................... X, p. 48 O Lecionário Ecumênico....................................................................................................XV, p. 315 O nosso Pai que está no céu.................................................................................................39, p. 351 O trabalho na Rondônia com agricultores vindos principalmente do Espírito Santo...........XV, p. 46 O veneno nosso de cada dia (Dt 8.6-10).............................................................................. XII, p. 11 Pago para ter (2Co 8.1-15).................................................................................................. XIII, p. 18 Pai-Nosso: pão, perdão e liberdade......................................................................................39, p. 364 Palavra e pregação em Lutero..............................................................................................40, p. 348 Pastoral Ecumênica de Periferia......................................................................................... XIV, p. 91 Pentecostes: o Espírito sopra onde quer e quando aprouver (1Jo 4.1-6)...............................IX, p. 72 Perdas – Alocução para Sepultamento (Jo 11.17-37)..........................................................22, p. 304 Planejamento familiar: genocídio planejado? (Sl 112)........................................................ XII, p. 77 Por uma linguagem integradora de mulheres e homens..................................................... XVII, 257 Posse de novo Presbitério, Conselho Sinodal ou Conselho Diretor (liturgia).....................28, p. 368 Posto de Saúde: vitrine da miséria (Mc 3.1-6)...................................................................... X, p. 114 Proclamar Libertação I – aspecto político (Lc 4.14-21)..........................................................VI, p. 7 Proclamar Libertação II – aspecto eclesial (1Pe 2.15-17).....................................................VI, p. 13 Proclamar Libertação III – aspecto individual (Lc 4.14-21)..................................................VI, p. 19 Propriedade e expropriação (Ne 5.1-6 [6-12]).................................................................... XIII, p. 11 Quaresma: dor solitária ou solidária? (Is 58.1-12).................................................................IX, p. 50 Quem não faz política sofre política (1Rs 12.1-15)...............................................................XI, p. 95 Relato de una caminata del pueblo con la Biblia................................................................XVI, p. 21 Ressurreição de que e para quê? (1Co 15.35-38)............................................................... XIII, p. 29 Roteiro para encontros de preparação visando à ordenação ao pastorado junto à IECLB....31, p. 307 Sacerdócio geral – vamos pegar juntos! (Ef 4.7-16)..............................................................XI, p. 85 Semana do excepcional................................................................................................... XVII, p. 264 Semana dos povos indígenas...............................................................................................24, p. 347 Sepultamento...............................................................XIX, p. 321, p. 323, p. 325, p. 327; 22, p. 240 (Jo 6.28-40)..........................................................................................................................20, p. 355 (Jo 19.25-27)........................................................................................................................20, p. 360 (Sl 39.5-7)............................................................................................................................20, p. 362 (Sl 142.1-2,5a).....................................................................................................................21, p. 336 (Ec 3.1-8).............................................................................................................................28, p. 365 Servo-arbítrio / livre-arbítrio................................................................................................40, p. 329 Sindicato: órgão de assistência ou instrumento de defesa dos trabalhadores? (1Co 12.20-26).......................................................................................................................XI, p. 55 Superstição: produto de angústias (Rm 8.31-39)...................................................................IX, p. 91 Teatro popular com crianças, adolescentes, jovens e adultos na periferia urbana de Belém.................................................................................................................XVI, p. 37 Tema e Lema da IECLB 2017 …........................................................................................41, p. 339

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Tema e Lema da IECLB 2018.............................................................................................42, p. 343 Tema e Lema da IECLB 2019.............................................................................................43, p. 355 Tema e Lema da IECLB 2020.............................................................................................44, p. 351 Tendências atuais de valorização das nações de indivíduos, individualidade na sociedade e influências dos novos movimentos religiosos nesse quadro............................20, p. 7 Tóxicos – exploração e dependência (Pv 24.10,14)............................................................ XII, p. 45 Trabalhador: entre a carência e o desemprego (Dt 24.14-35)................................................IX, p. 63 Trabalhando com agricultores sem terra............................................................................. XIV, p. 78 Trabalho com agricultores assentados................................................................................ XIV, p. 20 Trabalho com idosos...................................................................................................... XVIII, p. 297 Todas as religiões são boas? (Cl 2.8-10)................................................................................XI, p. 35 Uso da Bíblia em estudos com colonos que migram.......................................................... XIV, p. 68 Vida: celebração da esperança em meio à morte (Sl 138.1-8).................................................XI, p. 9 Vida está em perigo: socorro! (Gn 2.8-15)......................................................................... XIII, p. 74 Vigília pascal.....................................................................................................................XVI, p. 146 Violência no campo (Js 8.1-8)............................................................................................. XII, p. 61

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PERÍCOPES DOS VOLUMES I – 45 ANTIGO TESTAMENTO Gênesis 1.1-4a, 26-31; 2.1-4a........................ VIII, p.185 1.1-5...................................................... 45, p.70 1.26-31; 2.1-3..................................... III, p. 105 2.4-15................................................. 28, p. 301 2.4b-15...............................V, p. 330; 35, p. 211 2.7-9,15-17; 3.1-7......... 30, p. 66; XVIII, p. 84; ......................................... 35, p. 127; 40, p. 150 2.8-15................................................ XIII, p. 74 2.18-24...........22, p. 254; 25, p. 282; 33, p. 343 3.1-9..................................................XII, p. 170 3.1-19(20-24).................................... 25, p. 214 3.1-24.................................................VI, p. 133 3.8-15................................................. 39, p. 195 4.1-16...........................VII, p. 203; XIII, p. 246 8.1-13................................................XV, p. 135 8.15-22..........................................I, p. 71; p. 78 11.1-9......................... XII, p. 205; XVII, p. 130 12.1-4............................................. XVIII, p. 88 12.1-4a......... VII, p. 165; 38, p. 125; 44, p. 108 15.1-6.............26, p. 256; 34, p. 283; 40, p. 231 15.1-12,17-18..................................... 43, p. 122 17.1-13................................................. 27, p. 40 18.1-10a(10b-14)..............20, p. 208; 37, p. 223 18.20-21(22),23-32............................ 20, p. 214 21.8-21.............................................. XIII, p. 60 22.1-13...............................................VI, p. 144 22.1-14(15-18)..................................... 22, p. 65 28.10-17(18-22)................................... 22, p. 71 32.23-31.........................................XVII, p. 240 32.23-33......................................II, p. 207(374) 45.3-11,15............................................ 43, p. 98 50.15-21..........................24, p. 272; 27, p. 240; ......................................... 35, p. 295; 38, p. 284 Êxodo 1.8-22................................................ IX, p. 107 2.1-10................................................. 28, p. 181 3.1-14................................................XII, p. 154 3.1-8,13-15......................................... 26, p. 108 6.2-8........................... XVIII, p. 218; 30, p. 214 12.1-14............................. 21, p. 108; 40, p. 109 13.20-22............................................... 25, p. 46 16.1-5(6-11),12-21(22-30)................. 28, p. 276 16.2-4,9-15....................... 36, p. 251; 45, p. 249 16.2-3,11-18.....................................XIV, p. 283 19.2-8a .............................................. 21, p. 176

20.1-3(4-6),7-8(9-11),12-17................. 22, p. 75 20.1-17............................. 42, p. 101; 45, p. 114 22.21-27............................................. 21, p. 280 24.1-11............................. 32, p. 123; 38, p. 146 24.3-11........XVI, p. 224; 25, p. 164; 28, p. 272 24.12,15-18......................... 21, p. 78; 32, p. 79 32.7-14........... XV, p. 225; 23, p. 177; 37, p. 272 33.18-23.............................................VI, p. 102 34.4b-10..........................III, p. 153; XV, p. 273 34.29-35............................. 25, p. 123; 37, p. 87 Levítico 19.1-2,9-18......................................... 38, p. 101 Números 6.22-27.................33, p. 58; 36, p. 48; 40, p. 48 11.4-6,10-16,24-29............................. 45, p. 298 11.11-12,14-17,24-25...................... VIII, p. 205 11.24-30........................... 32, p. 169; 41, p. 196 12.9-16................................................XII, p. 18 21.4-9......... VII, p. 101; XIII, p. 159; 22, p. 80; ......................................... 33, p. 146; 39, p. 114 24.15-19............................................XV, p. 120 Deuteronômio 4.1-2,6-8.........22, p. 235; 36, p. 274; 45, p. 272 4.32-34,39-40 .................................... 27, p. 148 5.12-15............................... III, p. 43; 38, p. 171 6.1-9................................................... 33, p. 373 6.4-9.............................XV, p. 246, XIX, p. 164 7.6-12.................................................VI, p. 219 8.6-10..................................................XII, p. 11 8.7-18................................................. 37, p. 348 10.12-22............................................. 26, p. 336 11.18-21,26-28................. 21, p. 164; 32, p. 184 17.14-20..............................................XII, p. 51 18.15-20...........XIX, p. 67; 31, p. 57; 33, p. 92; ............................................................. 39, p. 81 24.14-15...............................................IX, p. 63 26.1-11............................... 33, p. 394; 40, p. 81 26.3-11................................................. 26, p. 91 30.9-14............................................... 34, p. 257 30.11-20............................................ VIII, p. 23 30.15-20............................. 34, p. 303; 35, p. 93 32.36-39............................................... 23, p. 79 34.1-12.............................XVII, p. 74; 29, p. 77 Josué 1.1-9....................................................VII, p. 36 8.1-8....................................................XII, p. 61 24.1-2a,13-25................... III, p. 117; 39, p. 262

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Juízes 4.1-7................................................... 32, p. 319 5.24-31.................................................. X, p. 37 9.7-15...................................................IX, p. 98 Rute 1.1-19a............................................... 29, p. 289 1 Samuel 2.1-10..................... II, p. 176 (343); VII, p. 113 2.18-20,26............................................ 40, p. 43 3.1-10(11-20)....................................... 42, p. 64 3.1-10(19)..........................XIX, p. 55; 31, p. 44 3.1-10,19.............................................. 25, p. 86 11.1-15.................................................V, p. 337 2 Samuel 7.1-11,16 ............................................. 36, p. 24 7.4-6,12,14a,16.................................... 25, p. 35 11.26 – 12.10,13-15........29, p. 199; 34, p. 231; ........................................................... 40, p. 189 12.1-10,13-14.....................................IX, p. 264 12.1-10,13-15a..................................XV, p. 261 1 Reis 3.5-12............................... 24, p. 240; 32, p. 236 3.16-28............................................... 30, p. 143 8.(21-23,27-30)41-43.....................XVII, p. 141 8.22-24,26-28.....................................VI, p. 189 8.22-30..............................................XII, p. 191 8.41-43............................................... 29, p. 188 17.8-16........ XVI, p. 292; 31, p. 286; 36, p. 346; .......................................... 39, p. 332; 42, p. 323 17.17-24.... XVII, p. 146; 29, p. 192; 37, p. 193 19.1-8(9-13a)..................................... 22, p. 226 19.1-13a...................XIV, p. 185; XVIII, p. 204 19.1-18................................................. III, p. 92 19.4-8................................................. 33, p. 285 19.9-13a ............................................ 30, p. 204 19.9-18............................................... 44, p. 246 19.(14-18)19-21...........XVII, p. 159; 29, p. 205 2 Reis 2.1-12 ................................................ 36, p. 105 2.9-18................................................. 37, p. 174 4.42-44............................................... 39, p. 238 5.1-14................................................... 31, p. 71 5.1-19a................................................VII, p. 58 Neemias 5.1-5(6-12)........................................ XIII, p. 11 5.1-12...................................................IX, p. 83 8.1-2,5-6............................. 20, p. 183; 34, p. 95 11.(1-3)4-6,10-11,16,24-29(30-36).... 31, p. 263 Jó 7.1-7 .................................XIX, p. 73; 31, p. 63 19.23-27a........................................... 37, p. 329

38.1-11............................. 25, p. 221; 42, p. 208 Salmo 1......................................................... 39, p. 177 8 .......................................................... 43, p. 50 16....................................................... 38, p. 165 22....................................................... 40, p. 115 22.1-19............................................... 35, p. 169 22.1-12,17-20..................................... 30, p. 104 22.2-12,17-20................................XVIII, p. 116 23..................................... 35, p. 187; 40, p. 137 29......................................................... 44, p. 61 31.1-5,15-16....................................... 41, p. 171 46.1-7(1-11) ................... 26, p. 313; 37, p. 311 68.1-10,32-35..................................... 44, p. 183 84.1-6................................................. 43, p. 313 105.1-7............................................... 38, p. 356 111........................................................ 26, p. 27 112.......................................................XII, p. 77 116.1-2,12-19..................................... 42, p. 124 118.1-2,19-29..................................... 41, p. 130 118.14-29 .......................................... 43, p. 166 130.4....................................................VI, p. 34 147.12-20............................................. 39, p. 54 Eclesiastes 1.2,12-14; 2.18-23 ............................. 43, p. 254 1.2; 2.18-26........................................ 20, p. 225 3.1-8(-13).............................VI, p. 48; 35, p. 51 3.1-13................................................... 44, p. 43 3.9-15.................................................... X, p. 16 4.1-4...................................................... X, p. 84 5.18....................................................... X, p. 65 9.13-18.................................................. X, p. 25 10.12-18 ............................................ 43, p. 275 Provérbios 8.22-31............................................... 23, p. 109 9.1-6................................................... 42, p. 248 9.1-6,10.............................................. 22, p. 230 9.7-13................................................. 23, p. 172 16.1-9................................................ VIII, p. 80 24.10-14 .............................................XII, p. 45 30.5-9................................................. 26, p. 215 Isaías 1.1-9................................................ XIII, p. 116 1.10-17..............................................XV, p. 297 2.1-5.................VI, p. 225; XVIII, p. 9; 30, p. 9 5.1-7........... VII, p. 87; XIII, p. 147; 21, p. 252; ........................................................... 44, p. 296 6.1-13.......... VI, p. 198; XII, p. 213; 42, p. 187; ........................................................... 45, p. 200 7.10-14................................................. 21, p. 37

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7.10-14(15-17).. ..............XIII, p. 104; 32, p. 27 7.10-16................................................. 44, p. 27 9.1-4..................................................... 38, p. 80 9.1-6............................................... XVIII, p. 31 9.1-6,10.............................................. 22, p. 230 9.2-7.....................................V, p. 294; 38, p. 39 11.1-5................................................ XVI, p. 63 11.1-9............. XVIII, p. 58; 33, p. 31; 37, p. 31; ...............................................39, p. 30; 43, p. 33 11.1-9(10-11)...................................XIV, p. 148 11.1-10................................. 27, p. 16; 38, p. 15 12.1-6................................................. 26, p. 114 24.12-16a........................................ XIII, p. 312 25.1,8-9.............................................. 43, p. 324 25.6-8.............................................. XIX, p. 114 25.6-9.............21, p. 258; 31, p. 128; 34, p. 353 29.17-24............................................XII, p. 233 29.18-24............................................. III, p. 130 30.(8-14),15-17....................................VI, p. 97 33.13-17,22........................................ 36, p. 187 35.1-10..........21, p. 273; 24, p. 306; 28, p. 346; .........35, p. 22; 35, p. 347; 38, p. 334; 41, p. 19 35.3-7............................31, p. 248; XIX, p. 237 35.3-10............................X, p. 158; XIV, p. 115 35.4-7a............................................... 33, p. 315 40.1-11.......VIII, p. 40; XIV, p. 124; XIX, p. 15; ................................. 31, p. 9; 42, p. 15; 45, p. 17 40.21-31............................... 42, p. 81; 45, p. 89 40.25-31.............................................IX, p. 216 42.1-7(-9)............21, p. 51; 25, p. 80; 35, p. 69; ........................................... 39, p. 131; 41, p. 64 42.14-21......................... XVIII, p. 92; 30, p. 72 43.1-7.........................II, p. 132 (299); 40, p. 58 43.16-21............................................... 40, p. 97 44.1-5................................................. 33, p. 401 44.6-8............................... 35, p. 246; 38, p. 242 44.9-20.............................................. XIII, p. 50 45.1-7............................... 21, p. 264; 32, p. 293 45.19-25............................................. 40, p. 298 45.22-25............................................... 28, p. 49 49.1-6................................... III, p. 85; 37, p. 58 50.4-9.....................II, p. 28, (195); XIII, p. 166 50.4-9a............................... 30, p. 94; 42, p. 268 50.4-10..........................XIX, p. 241; 31, p. 252 51.1-6................................................. 32, p. 259 52.7-10.............XV, p. 100; 22, p. 37; 33, p. 70; ............................................................. 39, p. 58 52.13 – 53.12..................... V, p. 72; IX, p. 196; .................... XV, p. 185; XII, p. 109; 36, p. 146 53.4-12............................................... 39, p. 310

53.10-12............................................. 25, p. 294 54.7-10............................IX, p. 183; XV, p. 170 55.1-5..... III, p. 68; VIII, p. 213; XVIII, p. 198; ......................................... 30, p. 197; 41, p. 244 55.1-9................................................. 34, p. 120 55.6-7...................................................VI, p. 24 55.6-11................................................. 34, p. 63 55.(6-9),10-12a............................... VIII, p. 119 55.10-11............................................. 24, p. 223 55.10-13............................................. 44, p. 227 56.1,6-8..................... XVIII, p. 213; 30, p. 209; ......................................... 35, p. 274; 38, p. 263 58.1-9a..............................................XV, p. 147 58.1-12...............IX, p. 50; 33, p. 125; 39, p. 97 58.5-9a................................................. 24, p. 88 58.7-12..............................................XII, p. 300 60.1-6............ V, p. 11; VIII, p. 92; XVII, p. 39; .............................24, p. 63; 29, p. 54; 38, p. 63 61.1-3(4-9),11................................. XIII, p. 120 61.1-3,10-11........................................ 28, p. 20 61.1-3,11,10........................................VII, p. 44 61.10 – 62.3.....XIX, p. 42; 25, p. 68; 28, p. 59; ............................................................. 45, p. 46 62.1-5................................... 20, p. 23; 28, p. 31 62.1-12.................II, p. 256, (423); VIII, p. 331 62.6-7,10-12 ................XIX, p. 279; 22, p. 272; ........................................................... 24, p. 297 63.7-9................................................... 44, p. 49 63.7-9(10-16)....................... 24, p. 44; 32, p. 46 63.15 – 64.3...................................... XIII, p. 91 63.15-16;19b – 64.3................... I, p. 152, (159) 63.15-17,19; 64.(1-2)3-7........................ 22, p. 9 64.1-9....................................... 33, p. 9; 39, p. 9 65.17-25.............................IX, p. 15; 30, p. 133 66.10-14.........29, p. 213; 37, p. 217; 43, p. 234 Jeremias 1.4-10......................... VII, p. 184; XIII, p. 228; ............................................................. 37, p. 82 7.1-11............................................. VIII, p. 257 7.1-11(12-15)...................................XIV, p. 301 7.21-26................................................. 30, p. 15 8.4-7............................VIII, p. 349; XIV, p. 390 9.22-23................................................VII, p. 71 11.18-20....... XIX, p. 246; 31, p. 256; 39, p. 287 14.7-10,19-22................... 37, p. 305; 40, p. 286 15.15-21.....XVIII, p. 222; 30, p. 220; 41, p. 266 17.5-8................................................... 23, p. 55 20.7-13.......VIII, p. 145; 21, p. 181; 38, p. 219; ........................................................... 44, p. 211 22.13-19............................................ XIII, p. 80

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23.1-6............................XVI, p. 217; 42, p. 232 23.2-6................................................. 20, p. 301 23.5-8............................... VI, p. 62; XII, p. 103 23.16-29..............II, p. 144, (311); XIII, p. 209; ........................................................... 37, p. 251 26.8-15................................................. 26, p. 97 28.5-9............................... 21, p. 186; 32, p. 208 29.1,4-14a............................................ III, p. 34 31.1-13................................................. 29, p. 35 31.7-9................................................. 45, p. 319 31.7-9(-14)......................... 25, p. 301; 35, p. 58 31.10-13(14).....................................XVII, p. 34 31.31-34............................. 22, p. 85; 36, p. 329 33.14-16................................... 26, p. 9; 43, p. 9 Lamentações 3.21-26,31-32.....................................VI, p. 269 3.21-33............................. 25, p. 226; 39, p. 212 Ezequiel 2.1-5................................................... 36, p. 226 2.1-5[6-7]........................................... 45, p. 225 2.1-8a................................................. 25, p. 231 2.3-8a;3.17-19.............................II, p. 96, (263) 17.22-24............................................. 33, p. 239 18.1-4,21-24,30-32.............................IX, p. 247 18.1-4,25-32....................................... 41, p. 291 18.1-4,25-37....................................... 27, p. 243 33.7-9................................................. 27, p. 230 33.7-11............................................... 44, p. 269 34.1-2(3-9),10-16............................... 21, p. 192 34.1-2(3-9),10-16,31..........................VI, p. 170 34.11-16,23-24................24, p. 328; 35, p. 363; ........................................................... 38, p. 347 37.1-3(4-10),11-14 ...................... XVIII, p. 103 37.1-3,11-14......................................... 30, p. 89 37.1-14.........XV, p. 193; 24, p. 117; 32, p. 108; ......................................... 33, p. 228; 44, p. 128 37.24-28............................................ VIII, p. 55 Daniel 5.1-30................................................. III, p. 188 7.(1-12)13-14(15-28)..... XVI, p. 311; 39, p. 344 12.1-3......... XIX, p. 296; 31, p. 293; 45, p. 340 Oseias 5.15 – 6.2....................... XVIII, p. 95; 30, p. 83 5.15 – 6.6........................................... 21, p. 169 11.1-4,8-9......................... 24, p. 323; 27, p. 284 Joel 2.1-2,12-17......................... 36, p. 111; 41, p. 98 2.12-18..............................................XII, p. 166 2.21-27............................................... 32, p. 212 2.28-29............................................... 21, p. 153

Amós 3.1-8..................................... 24, p. 75; 30, p. 54 5.6-7,10-15....................... 36, p. 309; 42, p. 292 5.18-24............................. 35, p. 352; 41, p. 326 5.21-24................................................VII, p. 76 6.1a,4-7.............................................. 43, p. 291 6.1-7................................. 23, p. 189; 37, p. 286 7.7-15................................................. 33, p. 264 7.10-15(16-17)................................ XVI, p. 211 8.4-7................................................... 23, p. 181 9.7-10.................................................. X, p. 128 Jonas 3.1-5(6-9),10....................XIX, p. 61; 31, p. 52; ............................................................. 36, p. 81 3.10 – 4.11.......................................... 32, p. 274 Miqueias 3.5-12................................................. 44, p. 325 5.1-4a............................... VI, p. 88; XII, p. 114 5.2-4..................................................... 29, p. 21 5.2-5.................................XVI, p. 63; 27, p. 29; ............................................. 34, p. 30; 40, p. 24 6.1-8.....................24, p. 79; 27, p. 58; 35, p. 87 6.6-8............................VIII, p. 324; XIV, p. 385 Habacuque 1.2-3(4); 2.1-4...............................XVII, p. 219; ......................................... 29, p. 281; 34, p. 327 Sofonias 3.14-20................................. 20, p. 20; 37, p. 20 Zacarias 7.9-10................................................. 26, p. 267 8.1-8 .................................................. 24, p. 337 9.9-10.............X, p. 91; XIX, p. 106; 31, p. 107 9.9-12................................................. 41, p. 227 12.7-10(11).....................................XVII, p. 153 Malaquias (2.17)3.1-5.......................................... 25, p. 207 2.17 – 3.5.............................................. 23, p. 9 NOVO TESTAMENTO Mateus 1.18-25.......................... XVIII, p. 25; 24, p. 29; .............................30, p. 19; 35, p. 28; 41, p. 24 2.1-12........... X, p. 193; XVIII, p. 49; 25, p. 74; ............................................. 32, p. 62; 44, p. 56 2.13-18(-23)........................V, p. 304; 35, p. 46; ............................................................. 38, p. 47 3.1-12............................ XVIII, p. 15; 24, p. 24; ............................................. 35, p. 14; 41, p. 14

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3.13-17......... X, p. 206; XVIII, p. 53; 24, p. 67; .............................30, p. 44; 32, p. 66; 38, p. 68 4.1-11.................. IV, p. 14; 27, p. 70; 32, p. 85; ......................................... 38, p. 119; 44, p. 102 4.12-17..............................................XII, p. 142 4.12-23........... XVIII, p. 61; 35, p. 81; 44, p. 71 4.23-25..............................XII, p. 35; XII, p. 34 5.1-10............. IV, p. 212; 32, p. 307; 41, p. 315 5.1-12............. XVIII, p. 64; 38, p. 85; 44, p. 79 5.13-16................................................ X, p. 390 5.13-16(17-20)............................... XVIII, p. 69 5.13-20................................................. 41, p. 81 5.17-20............................................... IV, p. 125 5.20-37........................... XVIII, p. 73; 38, p. 96 5.21-37................................................. 44, p. 84 5.38-48.....................II, p. 193,(360); X, p. 460; ............................................. 35, p. 99; 41, p. 92 6.1-4............................VIII, p. 279; XIV, p. 332 6.1-6,16-21....... 34, p. 115; 37, p. 94; 38, p. 114; ................................................................ 44, p. 96 6.5-13..................... II, p. 57, (224); XIV, p. 247 6.9-13.............................. VI, p. 53; VIII, p. 192 6.16-18............................................... IV, p. 133 6.24-34............................. IV, p. 180; 32, p. 179 6.25-34 ............................. X, p. 428; 38, p. 352 7.15-23............................................... IV, p. 140 7.21-29.......XVIII, p. 157; 24, p. 178; 30, p. 163 7.24-27...............................................VI, p. 233 9.1-8................................................... IV, p. 198 9.9-13......VIII, p. 110; XVIII, p. 161; 32, p. 188 9.35 – 10.8................. XVIII, p. 170; 44, p. 205 10.7-15......................................II, p. 104, (271) 10.24-39........................... 32, p. 204; 41, p. 216 10.26-33.....XVIII, p. 176; 30, p. 168; 34, p. 347 10.26b-33..... VI, p. 291; XII, p. 268; 43, p. 318 10.26-36........................................XXIV, p. 203 10.34-39............................................XII, p. 274 10.34-42..................... XVIII, p. 181; 30, p. 174 10.40-42........35, p. 229; 38, p. 225; 41, p. 222; ........................................................... 44, p. 216 11.2-10................................................ X, p. 170 11.2-11 .............III, p. 215; 21, p. 30; 27, p. 22; .............................32, p. 21; 38, p. 21; 44, p. 21 11.16-19,25-30................................... 32, p. 221 11.25-30.....XVIII, p. 186; 24, p. 216; 30, p. 184 12.14-21............................... 36, p. 63; 45, p. 62 12.22-30............................................. IV, p. 217 12.33-35(36-37)................................XII, p. 307 12.38-42................ II, p. 225, (292); XII, p. 175

13.1-9(18-23)..................21, p. 196; 27, p. 188; ........................................30, p. 189; 35, p. 240; ......................................... 38, p. 237; 41, p. 233 13.24-30(36-43)........ XVIII, p. 289; 21, p. 203; ......................................... 32, p. 229; 44, p. 232 13.31-33............................................. 38, p. 247 13.44-46..............II, p. 150, (317); VIII, p. 253; ...................................... XIV, p. 295; 35, p. 253 13.44-52........................... 21, p. 207; 27, p. 194 14.13-21..........................21, p. 213; 24, p. 245; .......................27, p. 198; 32, p. 241; 44, p. 242 14.22-33........VI, p. 109; 24, p. 249; 27, p. 202; .......................35, p. 267; 38, p. 258; 41, p. 249 15.21-28........................... X, p. 445; 21, p. 218; .......................27, p. 208; 32, p. 255; 44, p. 251 16.13-19............................................... 23, p. 40 16.13-20..........................24, p. 260; 27, p. 216; .......................35, p. 278; 38, p. 268; 41, p. 259 16.13-20(23)............................... II, p. 72, (239) 16.21-26.......... 21, p. 223; 27, p. 222; 32, p. 264 16.21-28............................................. 44, p. 263 17.1-9........... X, p. 216; XVIII, p. 78; 30, p. 60; ........................................................... 35, p. 114 18.1-5................................. 37, p. 48; 38, p. 310 18.15-20............II, p. 123,(290); XVIII, p. 226; .......................30, p. 227; 35, p. 290; 41, p. 273 18.21-35..................... X, p. 467; XVIII, p. 232; .......................30, p. 234; 32, p. 269; 44, p. 277 19.16-26................................... II, p. 182, (349) 20.1-16a....... IV, p. 7; X, p. 221; XVIII, p. 236; ........................................................... 30, p. 239 20.1-16............................29, p. 296; 35, p. 302; ......................................... 38, p. 290; 41, p. 285 20.17-28............................... 21, p. 96; 27, p. 87 21.1-9................................ III, p. 194; X, p. 149 21.1-11............................. 38, p. 140; 44, p. 133 21.14-17................. II, p. 52, (219); XII, p. 185; ........................................................... 37, p. 353 21.23-32........................... 32, p. 282; 44, p. 290 21.28-32..................... VI, p. 247; XVIII, p. 243 21.33-43(-46)............ XVIII, p. 250; 35, p. 315; ......................................... 38, p. 304; 41, p. 297 22.1-10(11-14)........... XVIII, p. 254; 30, p. 243 22.1-14.......... IV, p. 205; VI, p. 207; 32, p. 289; ........................................................... 44, p. 302 22.15-21(-22)............ XVIII, p. 259; 35, p. 323; ......................................... 38, p. 314; 41, p. 308 22.23-33.... VIII, p. 336; XVI, p. 288; 20, p. 285 22.34-40............................................. IV, p. 194 22.34-46............................................. 44, p. 314 22.34-40(41-46)............... 30, p. 253; 32, p. 298

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23.1-12...................II, p. 158, (325); 30, p. 259; ........................................................... 35, p. 335 24.1-14......................... VI, p. 68; XVIII, p. 275 24.15-28............................................. IV, p. 222 24.36-44............................................... 44, p. 11 24.37-44.....21, p. 21; 27, p. 9; 32, p. 9; 38, p. 9 25.1-13..........IV, p. 243; XI, p. 336; 24, p. 312; ......................................... 30, p. 277; 44, p. 331 25.14-30..................II, p. 233, (400); X, p. 394; ................ XVIII, p. 272; 30, p. 286; 41, p. 331; ........................................................... 44, p. 336 25.31-37....................................... XVIII, p. 297 25.31-46.....IV, p. 231; X, p. 472; XVIII, p. 298; ............. 21, p. 302; 27, p. 291; 32, p. 51; p. 324; ............................................................. 41, p. 44 26.14 – 27.66..................................... 35, p. 157 26.30-56....................................... XVIII, p. 109 26.36-46(-56).... VI, p. 29; 35, p. 162; 38, p. 154 26.36-56............................................. 41, p. 135 26.57-75 ............................................ 24, p. 122 27.11-26............................................. 32, p. 116 27.33-50............................................. 44, p. 145 27.33-50(51-54)............ VIII, p. 162; 38, p. 154 27.33-54............................. 21, p. 111; 27, p. 99 27.33-56...........................................XIV, p. 201 28.1-10............................VI, p. 167; 24, p. 139; ......................................... 35, p. 176; 41, p. 147 28.16-20.........X, p. 374; 30, p. 156; 34, p. 203; .......................35, p. 222; 40, p. 156; 41, p. 205 Marcos 1.1-8....................................22, p. 14; 28, p. 13; ............................................. 33, p. 16; 39, p. 13 1.4-11.... 22, p. 48; 28, p. 64; 36, p. 69; 42, p. 56 1.9-15............................... 33, p. 132; 39, p. 102 1.12-15............XIX, p. 79; 25, p. 129; 31, p. 84 1.14-20................22, p. 56; 28, p. 73; 33, p. 84; ............................................. 39, p. 75; 42, p. 71 1.21-28.............XVI, p. 99; 28, p. 79; 36, p. 86; ............................................................. 45, p. 80 1.29-39...............28, p. 87; 33, p. 101; 39, p. 87 1.32-39........................... VI, p. 284; XII, p. 261 1.40-45......... VI, p. 258; XII, p. 241; 36, p. 100 2.1-12................................ X, p. 453; 28, p. 100 2.18-22............................................ VIII, p. 105 2.23-28...... VIII, p. 311; XIV, p. 367; 22, p. 169; ........................................................... 28, p. 228 2.23-36............................................... 42, p. 193 3.1-6..................................................... X, p.114 3.20-35.......XVI, p. 192; 28, p. 233; 36, p. 209; ........................................................... 45, p. 205 3.31-35...............................................VI, p. 252

4.26-29............................................... VI, p. 113 4.26-34..........22, p. 175; 28, p. 240; 36, p. 216; ......................................... 42, p. 203; 45, p. 210 4.30-32..............................................XII, p. 313 4.35-41.......XVI, p. 200; 22, p. 182; 28, p. 247; ......................................... 32, p. 244; 39, p. 209 5.21-24a,35-43................28, p. 253; 33, p. 378; ........................................................... 39, p. 327 5.21-43............................. 42, p. 216; 45, p. 220 5.24b-34............................................. 22, p. 188 5.25-34................................................XII, p. 27 6.1-6............XVI, p. 205; 22, p. 200; 28, p. 260 6.1-13............................... 33, p. 256; 39, p. 218 6.6b-13..........................XIX, p. 201; 25, p. 236 6.14-29.............X, p. 74; 36, p. 235; 42, p. 225; ........................................................... 45, p. 231 6.30-34.......XIX, p. 206; 25, p. 241; 31, p. 208; ........................................................... 33, p. 270 6.30-34,53-56..................................... 39, p. 231 6.34-44 .............................................. 30, p. 247 7.1-8,14-15,21-23.........XIX, p. 233; 31, p. 242; ......................................... 33, p. 309; 39, p. 270 7.24-37............................. 36, p. 279; 42, p. 263 7.31-37........... IV, p. 163; X, p. 408; 22, p. 239; ......................................... 28, p. 307; 45, p. 278 8.22-26........................VIII, p. 269; XIV, p. 317 8.27-35........XVI, p. 247; 33, p. 323; 39, p. 280 8.31-38..........X, p. 234; XIX, p. 83; 25, p. 134; ..........................31, p. 91; 36, p. 121; 42, p. 97; ........................................................... 45, p. 108 9.2-9...........XVI, p. 105; 28, p. 108; 33, p. 119; ............................................. 42, p. 87; 45, p. 95 9.17-29...............................................VI, p. 278 9.30-37.......XVI, p. 255; 22, p. 245; 36, p. 289; ......................................... 42, p. 273; 45, p. 291 9.38-50..........22, p. 250; 28, p. 322; 33, p. 334; ........................................................... 39, p. 293 9.43-48.................II, p. 138, (305); XVI, p. 263 10.2-12..........28, p. 326; 36, p. 303; 42, p. 283; ........................................................... 45, p. 307 10.13-16............................................. 28, p. 313 10.17-27.....XII, p. 256; XVI, p. 268; 22, p. 260; ........................................................... 33, p. 348 10.17-31............................................. 39, p. 305 10.32-45.............................................. X, p. 106 10.35-45.....28, p. 289; XVI, p. 277; 34, p. 270; ......................................... 36, p. 316; 42, p. 298 10.46-52....... XVI, p. 283; 22, p. 265; 39, p. 315 11.1-11............................. 33, p. 160; 39, p. 126 12.1-12 ............................................... X, p. 242

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12.13-17............................................. III, p. 138 12.28-34........................... 36, p. 340; 42, p. 318 12.38-4............................................... 45, p. 335 12.41-44.........VI, p. 138; 22, p. 281; 33, p. 387 13.1-8............................... 36, p. 353; 42, p. 329 13.1-13........XVI, p. 302; 22, p. 286; 28, p. 351 13.24-31............................................. 28, p. 358 13.24-37................... 36, p. 9; 42, p. 9; 45, p. 11 13.31-37...........................................XIV, p. 397 13.33-37..............................XIX, p. 9; 25, p. 17 14.3-9.................................VI, p. 149; 22, p. 93 14.6-9................................................XII, p. 181 14.12-26.....XVI, p. 134; 22, p. 104; 28, p. 144; ......................................... 36, p. 140; 45, p. 136 14.17-26.............................................VI, p. 156 15.1-15(16-20)..............XVI, p. 129; 28, p. 139 16.1-8.......... IV, p. 144; X, p. 294; XVI, p. 153; ...................... 22, p. 112; 28, p. 159; 36, p. 152; ......................................... 42, p. 136; 45, p. 149 16.9-14(15-20)............VIII, p. 173; XIV, p. 225 16.12-18........................... 33, p. 184; 39, p. 148 16.14-20............................................... IV, p. 77 Lucas 1.1-4................................................... 23, p. 200 1.26-33(34-37),38............ VI, p. 81; XII, p. 109 1.26-38..........XVI, p. 56; XIX, p. 27; 22, p. 28; .............................28, p. 26; 33, p. 24; 39, p. 24 1.39-45(46-55)..................... 26, p. 20; 37, p. 26 1.(39-45)46-55(56) ............................. X, p. 175 1.46-55.................................................V, p. 288 1.47-55................................................. 43, p. 28 1.57-66............................................... 24, p. 200 1.67-79..............................V, p. 270; VIII, p. 30 1.68-79................................................. 43, p. 14 2.1-7..... 30, p. 24; 34, p. 38; 38, p. 33; 39, p. 36; ............................................. 40, p. 29; 45, p. 33 2.1-7,8-14,15-20................................ XVI, p. 63 2. (1-7)87-20........................................ 42, p. 31 2.1-14........ I, p. 161, (168); X, p. 181; 32, p. 41 2.(1-14)15-20......24, p. 41; 34, p. 69; 37, p. 54; ............................................. 41, p. 50; 44, p. 37 2.8-20................................................... 45, p. 39 2.15-21................................................. 42, p. 46 2.1-20..........III, p. 218; IV, p. 273; XVII, p. 28; .........................XIX, p. 26; 21, p. 41; 23, p. 21; .............................24, p. 34; 27, p. 34; 33, p. 37 2.22-40................................................. 36, p. 56 2.41-52................................................. 20, p. 35 3.1-9.....................................V, p. 281; 37, p. 14 3.1-14...................................................VI, p. 76

3.7-18............. XVII, p. 21; 23, p. 15; 29, p. 16; ............................................. 34, p. 24; 40, p. 18 3.15-17,21-22.......20, p. 40; 26, p. 36; 37, p. 64 4.1-13................23, p. 60; 29, p. 81; 37, p. 100; ........................................................... 43, p. 116 4.14-21................VI, p. 19; 26, p. 47; 37, p. 76; ............................................................. 43, p. 77 4.14-21(22).................20, p. 50; p. 59; 27, p. 47 4.16-21................................................ X, p. 186 4.21-30...............26, p. 54; 34, p. 100; 43, p. 83 5.1-11............IV, p. 118; XVII, p. 57; 20, p. 65; ............................................................. 26, p. 59 6.17-26.................20, p. 69; 26, p. 66; 43, p. 93 6.27-38................................. 20, p. 73; 26, p. 74 6.36-42...............................IV, p. 112; X, p. 368 7.1-10............................... 26, p. 206; 40, p. 176 7.11-17...........................IV, p. 186; VIII, p. 293 7.36-50..... VIII, p. 262; XIV, p. 309; 26, p. 220 7.36 – 8.3........................................... 37, p. 199 8.4-10.................................................. X, p. 228 8.26-39............................. 34, p. 237; 40, p. 196 9.10-17............................................ VIII, p. 241 9.18-24(25-26)................. 20, p. 190; 26, p. 226 9.28-36...............20, p. 82; 26, p. 85; 34, p. 109 9.28-36(37-43)................................... 43, p. 104 9.51-56..............................................XV, p. 167 9.51-62...........20, p. 198; 37, p. 212; 43, p. 229 9.57-62................................................ X, p. 251 10.1-11,16-20................... 34, p. 252; 40, p. 209 10.1-12,16.......................................... 20, p. 204 10.17-20............................................. 24, p. 285 10.21-24......................................II, p. 82, (249) 10.25-37.... X, p. 413; XVII, p. 163; 23, p. 135; ........................................................... 43, p. 237 10.38-42.....VI, p. 124; XVII, p. 170; 23, p. 140; ...................... 29, p. 216; 34, p. 264; 40, p. 214 11.1-13..........23, p. 145; 29, p. 223; 37, p. 229; ........................................................... 43, p. 248 11.5-13...............................................VI, p. 184 11.14-23......................... VI, p. 297; XII, p. 283 12.13-21........23, p. 149; 29, p. 228; 34, p. 278; ........................................................... 40, p. 224 12.32-40.... XVII, p. 183; 37, p. 241; 43, p. 260 12.35-40............................................ III, p. 226 12.41-48.............................................VI, p. 302 12.42-48............................................XII, p. 289 12.49-53... XVII, p. 189; 23, p. 154; 29, p. 235; ......................................... 34, p. 289; 40, p. 237 13.1-9............. XVII, p. 83; 23, p. 72; 29, p. 93; ......................................... 37, p. 111; 43, p. 128

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13.10-17........................... 37, p. 257; 43, p. 271 13.22-30......XVII, p. 193; 23, p. 159; 29, p. 241 13.31-35......... XVII, p. 78; 23, p. 65; 29, p. 88; ............................................................. 40, p. 87 14.1,7-14........23, p. 167; 29, p. 247; 40, p. 248 14.7-14...........................................XVII, p. 196 14.15-24.............................. IV, p. 96; X, p. 354 14.25-33.....VIII, p. 235; 20, p. 251; 26, p. 277; ......................................... 37, p. 266; 43, p. 280 15.1-3,11b-32................. XII, p. 220; 34, p. 125 15.1-3,11-32..................IV, p. 209; XVII, p. 88; ........................................... 29, p. 100; 40, p. 92 15.1-7(8-10)........................................ X, p. 361 15.1-10.......... IV, p. 106; 20, p. 255; 34, p. 309; ........................................................... 40, p. 252 15.8-32............................................... 28, p. 265 16.1-9................................................. IV, p. 147 16.1-13............ 20, p. 260; 26, p. 286; 37, p. 277; ............................................................... 43, p. 286 16.19-31.......... IV, p. 88; 20, p. 265; 35, p. 321; ........................................................... 40, p. 262 17.1-10............................. 20, p. 270; 26, p. 298 17.5-6..........................VIII, p. 286; XIV, p. 346 17.5-10............................. 37, p. 291; 43, p. 296 17.7-10 .......................... VI, p. 117; XII, p. 160 17.11-19....... IV, p. 172; X, p. 421; XX, p. 275; .......................26, p. 305; 34, p. 371; 40, p. 275 17.20-35...............................................V, p. 275 18.1-8a ............................ 20, p. 291; 23, p. 213 18.1-8............VIII, p. 343; 26, p. 325; 37, p. 301; ............................................................... 43, p. 307 18.9-14........... IV, p. 158; 28, p. 333; 34, p. 340 18.18-23............................................XII, p. 249 18.31-43.......................................... VIII, p. 124 19.1-10................II, p. 112, (279); VIII, p. 219; .................... XIV, p. 275; 37, p. 324; 40, p. 292 19.28-40........ 26, p. 121; 34, p. 138; 37, p. 116; ......................................... 40, p. 103, 43, p. 144 19.41-48............................ IV, p. 153; X, p. 401 20.9-19...........................XVII, p. 94; 29, p. 105 20.27-38.........23, p. 223; 34, p. 359; 43, p. 335 21.5-19............................. 20, p. 296; 37, p. 336 21.25-36........... III, p. 209; XVII, p. 9; 34, p. 9; ............................................................... 40, p. 9 22.7-20............................. 20, p. 116; 26, p. 126 22.31-34 .....................VIII, p. 131; XIV, p. 172 23.33-43.........26, p. 344; 34, p. 365; 40, p. 322 23.(26-32)33-49...........XVII, p. 102; 29, p. 119 23.33-49...........................VI, p. 162; 37, p. 127 23.35-43.........................................XVII, p. 248

24.1-11(12)......................................... 20, p. 127 24.1-12............ II, p. 201; 37, p. 132; 40, p. 121 24.13-35..........VI, p. 40; 21, p. 125; 27, p. 114; .......................32, p. 137; 38, p. 176; 44, p. 156 24.36b-48........................................... 42, p. 148 24.36-49.... XVI, p. 164; XIX, p. 128; 36, p. 162 24.44-53.........28, p. 201; 35, p. 206; 44, p. 177 24.(44-49)50-53............XIX, p. 148; 22, p. 145 24.50-53.............................................. X, p. 331 João 1.1-5,9-14.........XIX, p. 35; 25, p. 39; 31, p. 24; ............................................. 37, p. 36; 40, p. 35 1.1-14................................................... 43, p. 38 1.1-18................................... 33, p. 30; 29, p. 46 1.(1-9)10-18......................... 33, p. 64; 38, p. 59 1.6-8,19-28.......XIX, p. 22; 25, p. 29; 31, p. 14; ............................................. 42, p. 20; 45, p. 22 1.10-18................................................. 45, p. 57 1.19-23(24-28).................. VIII, p. 49; 36, p. 19 1.29-34.............................................. VIII, p. 98 1.29-34(35-41).............. XVIII, p. 57; 21, p. 55; ............................................. 35, p. 75; 41, p. 70 1.35-42..............................................XII, p. 227 1.43-51......... XII, p. 129; XVI, p. 92; 22, p. 52; ............28, p. 68; 34, p. 80; 36, p. 76; 40, p. 53; ............................................................. 43, p. 58 2.1-11..................IX, p. 41; 20, p. 44; 26, p. 40; .............................34, p. 89; 40, p. 64; 43, p. 69 2.13-22............................VI, p. 237; XIX, p. 87 3.1-11(15)............................................ X, p. 347 3.1-17..............22, p. 165; 28, p. 220; 32, p. 91; ....................... 33, p. 232; 39, p. 189; 41, p. 112 3.14-21...........XIX, p. 95; 25, p. 144; 31, p. 96; .......................36, p. 128; 42, p. 107; 45, p. 121 4.1-11 ................................................ 31, p. 149 4.5-26................................. 21, p. 82; 35, p. 139 4.31-38 .......................................II, p. 89, (256) 4.46-54..............................................XII, p. 148 5.1-9................................................... 37, p. 168 5.1-16...............................................XIV, p. 360 5.1-16(18)........................................ VIII, p. 304 5.19-21.............................................XIV, p. 215 5.24-29.... XVIII, p. 267; 22, p. 277; 29, p. 302; ........................................................... 30, p. 271 5.39-47...............................................VI, p. 204 6.1-15............ IV, p. 24; X, p. 383; XIX, p. 211; .......................25, p. 247; 31, p. 213; 36, p. 245 6.1-21................................................. 45, p. 243 6.(22-23)24-35.............XIX, p. 217; 21, p. 218; .....25, p. 254; 33, p. 280; 36, p. 365; 39, p. 245

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6.35................................................. VIII, p. 151 6.35,41-51......36, p. 257; 42, p. 242; 45, p. 257 6.37-40(41-43),44.....................II, p. 200, (367) 6.41-51.......XIX, p. 220; 25, p. 259; 28, p. 284; ........................................................... 31, p. 226 6.51-58.......XIX, p. 225; 31, p. 232; 33, p. 292; ........................................................... 39, p. 257 6.56-69...........36, p. 269; 42, p. 253; 45, p. 267 6.60-69........XIX, p. 229; 25, p. 264; 31, p. 237 6.66-69..............................................XII, p. 293 7.14-18.............................................. VIII, p. 87 7.37-39a...... XVI, p. 187; 22, p. 158; 28, p. 211 7.37-39........ VI, p. 194; XII, p. 199; 22, p. 158; ........................................................... 35, p. 216 8.1-11.............................................. VIII, p. 228 8.21-30........................VIII, p. 138; XIV, p. 179 8.31-36..................II, p. 216, (383); VIII, p. 73; ......................................................XVII, p. 225; .......................23, p. 209; 42, p. 307; 45, p. 323 9.1-7............................VIII, p. 248; XIV, p. 290 9.1-11................................................. 38, p. 135 9.1-41............................... 32, p. 104; 44, p. 121 9.13-17,34-39....................... 21, p. 91; 27, p. 81 9.35-41............................................ VIII, p. 299 10.1-5,27-30................................II, p. 40, (207) 10.1-10.......... 21, p. 133; 27, p. 119; 32, p. 144; ........................................................... 41, p. 165 10.11-16............................................... IV, p. 53 10.11-18.....XIX, p. 135, 25, p. 181; 31, p. 139; ........................................................... 33, p. 199 10.11-18,27-30.................................... X, p. 310 10.14-16,27-29..................................... 33, p. 50 10.22-30........................... 29, p. 141; 37, p. 149 10.22-30(31-39).............................XVII, p. 117 11.1,3,17-27............II, p. 188, (355); 35, p. 151 11.1(2),3,17-27(41-45)........................ X, p. 434 11.1-5,17-21..................... 37, p. 319; 40, p. 310 11.1-45............................................... 41, p. 123 11.47-53.................... VIII, p. 157; XIV, p. 192; ......................................... 21, p. 103; 33, p. 154 12.1-8................................................. 43, p. 140 12.12-16......... 36, p. 134; 42, p. 118; 45, p. 131 12.12-19............................ X, p. 269; 20, p. 110 12.20-26.............................................. X, p. 258 12.20-30............................................. 25, p. 150 12.20-33.....XIX, p. 102; 31, p. 103; 33, p. 154; ........................................................... 39, p. 120 12.44-50............................................ VIII, p. 65 13.1-15,34-35...................................... X, p. 277 13.1-17,31b-35................................... 43, p. 149

13.1-17,34.......................... 30, p. 99; 34, p. 144 13.31-35.....XVII, p. 121; 29, p. 149; 34, p. 144; ............................................... p. 191; 40, p. 145 14.1-6................................................XII, p. 134 14.1-12........... 21, p. 139; 27, p. 124; 39, p. 170; ...........................................42, p. 169; 45, p. 180 14.1-12(14)................II, p. 63, (230); 35, p. 192 14.1-14............................................... 44, p. 168 14.8-17(25-27)................. 34, p. 219; 43, p. 211 14.15-19............................................XV, p. 232 14.15-21.........34, p. 165; 35, p. 200; 41, p. 177 14.23-27.............................. IV, p. 82; X, p. 341 14.23-29.......................XVII, p. 126; 29, p. 154 15.1-8...............X, p. 317; XIX, p. 139; 25,189; ......................31, p. 146; 36, p. 174; 42, p. 158; ........................................................... 45, p. 166 15.9-12(13-17).................................XIV, p. 374 15.9-17......................VIII, p. 317; XIX, p. 143; ....................... 25, p. 192; 33, p. 211; 39, p. 165 15.(18)26-16.4..................................... X, p. 337 15.26-27; 16.4b-11..........20, p. 171; 26, p. 191; ........................................................... 36, p. 197 15.26-27; 16.4-15............. 42, p. 181; 45, p. 192 16.5-15................................................. IV, p. 65 16.12-15.......... 20, p. 177; 26, p. 200; 37, p. 184; ............................................................... 43, p. 217 16.16-23a........................... IV, p. 57; VI, p. 179 16.16,20-23a..........................VI, p. 129; p. 176 16.22-28............................................... IV, p. 72 16.23b-28,33....................................... X, p. 323 17.1-11..........21, p. 148; 27, p. 132; 38, p. 200; ........................................................... 41, p. 191 17.1a,6-19.......................................... 33, p. 221 17.1-15............................................... 24, p. 159 17.9-19............................... IV, p. 31; 25, p. 197 17.(9-10)11-19...............XIX, p.153; 31, p. 157 17.20-26........................ VIII, p. 198; 29, p. 168 18.33-37......XIX, p. 299; 31, p. 296; 45, p. 346 18.33-38a........................................... 36, p. 358 19.16-30........ IV, p. 38; X, p. 284; XIX, p. 110; .....25, p. 170; 31, p. 123; 33, p. 168; 39, p. 136 20.1-18..........34, p. 162; 38, p. 159; 43, p. 160; ........................................................... 44, p. 150 20.1-2,11-18 ...................................... 24, p. 230 20.1-9(10-18)............ XVIII, p. 120; 26, p. 136; ........................................................... 30, p. 109 20.11-18......................VIII, p. 166; XIV, p. 207 20.19-23.........24, p. 173; 30, p. 150; 38, p. 206 20.(19,23)24-29............. X, p. 301; XIX, p. 119; ........................................................... 32, p. 134

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20.19-31..... XIX, p. 119; 21, p. 121; 27, p. 110; ......................................... 29, p. 128; 31, p. 133 20.26-31............................................. 37, p. 138 21.1-14.........................XVII, p. 111; 29, p. 136 21.1-19............................. 34, p. 178; 40, p. 131 21.15-19.......................................... VIII, p. 179 21.20-25............................................... 34, p. 53 Atos 1.8-14................................................ 24, p. 168 1.1-11..................20, p. 155; p. 160; 26, p. 182; .....29, p. 161; 32, p. 162; 38, p. 195; 43, p. 197 1.15-26..........................XVI, p. 184; 28, p. 206 1.3-4(5-7),8-11...................................XI, p. 242 1.15a,21-26........................................ 36, p. 193 2.1-13.................................................XI, p. 249 2.1-21..........XIX, p. 158; 27, p. 139; 40, p. 162 2.14a,22-32...................... 24, p. 143; 41, p. 152 2.14a,36-47........................................ 24, p. 150 2.22-23,32-33,36-39..........................XV, p. 239 2.36-41................................................. III, p. 59 2.41a,42-47........................................XI, p. 284 2.42-47............................................... 44, p. 162 3.1-10................................................VII, p. 198 3.12-19............................................... 39, p. 153 3.13-15,17-26................XVI, p. 158; 28, p. 165 4.5-12................................................. 36, p. 168 4.8-12 ................................................ 28, p. 172 4.32-35............................. 42, p. 141; 45, p. 156 4.32-37................................................ V, p. 310 5.12,17-32......................................... 20, p. 130 5.27-32............................................... 40, p. 126 6.1-7................................ III, p. 134; 24, p. 155 7.55-60............................................... 38, p. 182 8.14-17................................ 34, p. 85; 43, p. 64 8.26-40....XIII, p. 222; XVI, p. 169; 28, p. 188; ........................................................... 33, p. 205 9.1-20................................................. 20, p. 136 9.36-43............................................... 34, p. 184 10.34-38...............23, p. 35; 27, p. 52; 31, p. 38 10.34-48(10.1 – 11.18)...................... XIX, p. 49 10.34-43........................... 27, p. 105; 33, p. 177 10. 44-48.......................... 42, p. 163; 45, p. 171 11.19-30........................XVI, p. 178; 28, p. 196 13.16-17,22-25..................................... 22, p. 33 13.44-52................................. 20, p. 140; p. 143 14.8-18.............................................. 20, p. 148 16.6-10............................................... 20, p. 164 16.9-15......... IX, p. 171; XV, p. 141; 43, p. 191 16.16-34............................................. 34, p. 211 16.23-34.......................VII, p. 122; XIV, p. 233

17.1-15............................................... 24, p. 159 17.16-34 .................................................I, p. 34 17.22-31......................... XV, p. 213; 32, p. 156 19.1-7................................................... 39, p. 63 Romanos 1.1-7.................XVI, p. 77; 25, p. 55; 28, p. 54; ............32, p. 36; 36, p. 30; 38, p. 28; 42, p. 26; ............................................................. 44, p. 32 1.16-17; 3.21-28................................. 38, p. 327 3.19-28........... II, p. 169; 20, p. 278; 21, p. 267; ......................................... 25, p. 287; 33, p. 364 3.21-25a................................. 27, p. 156, p. 272 4.1-5,13-17....................... 24, p. 100; 35, p. 133 4.13-25............................. 33, p. 138; 39, p. 108 4.18-25............................. 24, p. 184; 27, p. 161 5.1-5......... XVII, p. 137; 29, p. 180; 34, p. 224; ........................................................... 40, p. 168 5.1-8................................. 32, p. 197; 41, p. 212 5.1-11................. V, p. 51; 28, p. 122; 32, p. 98; ......................................... 38, p. 129; 44, p. 114 5.6-11............................... 24, p. 190; 27, p. 166 5.12-15............................................... 27, p. 172 5.12-19............................................... 41, p. 104 6.1b-11............................. 24, p. 211; 27, p. 183 6.3-8...................................................XI, p. 278 6.19-23 ............................. V, p. 164; IX, p. 258 7.15-25a.........35, p. 234; 38, p. 231; 44, p. 221 8.1-11............... I, p. 39; XIV, p. 253; 24, p. 111 8.12-17...............................V, p. 170; 36, p. 203 8.12-25............................................... 41, p. 239 8.14-17............................. 25, p. 203; 37, p. 179 8.14-17,22-27..................................... 29, p. 174 8.18-23.................................................V, p. 150 8.18-23(24-25)............................. XVIII, p. 192 8.22-27............................................... 39, p. 183 8.26-27............................................... 30, p. 193 8.26-30...............................................IX, p. 233 8.26-39............................................... 44, p. 237 8.31b-39.............................................XI, p. 144 8.31-39............................... IX, p. 91; 28, p. 115 8.(31-34)35-39................................ XVI, p. 110 9.1-5................................. 35, p. 261; 38, p. 252 9.1-5,31 – 10.4 ............................... XIII, p. 235 9.1-5; 10.1-4.........................................V, p. 185 9.30b-33............................................. III, p. 124 10.5-13.......................... XVI, p. 115; 32, p. 248 11.1-2a,29-32..................................... 41, p. 255 11.13-15,29-32................................... 25, p. 255 11.25-32....................................... I, p. 95, (102) 11.32-36...............................................V, p. 126

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11.33-36 ............................................XI, p. 256 12.1-8.............XI, p. 152; 24, p. 265; 44, p. 256 12.9-12............................................... 35, p. 284 12.9-21............................................... 38, p. 273 12.6-16...................................................V, p. 19 13.1-10............................................... 21, p. 229 13.8-10(13-14)...................................XI, p. 107 13.11-14............................ IV, p. 251; 24, p. 19; ................................................. 35, p. 9; 41, p. 9 14.1-12............................................... 41, p. 278 14.5-9................................................. 21, p. 234 14.7-13 ................................................ III, p. 79 14.10-13 ............................................XI, p. 266 15.4-13 ................21, p. 25; 32, p. 16; 44, p. 16 16.25-27............................... 31, p. 19; 45, p. 28 1 Coríntios 1.1-9.....24, p. 70; 32, p. 72; 38, p. 75; 44, p. 65 1.3-9 ...................................XVI, p. 51; 28, p. 9 1.4-9.....................................................V, p. 228 1.10-17................................. 21, p. 60; 41, p. 75 1.18-25................................................. 20, p. 97 1.26-31.. ..............V, p. 190; IX, p. 24; 21, p. 65 2.1-5..................................... 21, p. 71; 22, p. 60 2.1-10.............................VII, p. 50; XIII, p. 126 2.1-12(13-16)....................................... 38, p. 91 2.6-13................................................... 21, p. 74 2.12-16..............................................VII, p. 150 3.1-9..................................................... 41, p. 87 3.9-15..............................XV, p. 266; IX, p. 269 3.16-23............................................... 22, p. 193 4.1-5................................. IV, p. 261; XI, p. 119 6.9-14,18-20................................... I, p. 78, (85) 6.9-14(15-17),18-20....................... I, p. 86, (93) 6.12-20................................. 33, p. 76; 39, p. 69 6.24-34............................................... 35, p. 106 7.29-31 ................................ 24, p. 90; 45, p. 75 7.29-32a ...................................... I, p. 46, (213) 8.1-3..................................................... 42, p. 76 8.2 .................................................... XIII, p. 42 9.16-23............ XIV, p. 264, 25, p. 96; 36, p. 90 9.24-27............................. XI, p. 165; 33, p. 112 10.1-13.................................V, p. 179; 20, p. 91 10.16-17.... VII, p. 107; XIII, p. 171; 44, p. 139 10.16-17(18-21)................................. 31, p. 113 10.31 – 11.1........................................ 25, p. 107 11.23-26...........24, p. 127; 27, p. 94; 37, p. 120 11.23-29.................................................V, p. 65 12...................................................... XIII, p. 34 12.1,4-11......... XVII, p. 47; 29, p. 59; 37, p. 70 12.3b-13............................................. 44, p. 188

12.12-21,26-27..................... 23, p. 45; 29, p. 64 12.12-31a............................................. 40, p. 70 12.27 – 13.13...................XVII, p. 52; 29, p. 71 12.31b – 13.13.................... V, p. 32; XI, p. 182 14.1-3,20-25......................................VII, p. 158 14.12b-20............................................. 23, p. 49 15.1-11..................... XVII, p. 108; 324, p. 105; ........................................... 39, p. 142; 43, p. 88 15.1-20................................................. III, p. 13 15.12,16-20...................XVII, p. 63; 32, p. 311; ........................................................... 41, p. 321 15.19-28........... I, p. 16; IX, p. 207; XV, p. 207; ................................... XVIII, p. 280; 25, p. 175 15.20-28..................... XVIII, p. 280; 30, p. 293 15.35-38............................................ XIII, p. 29 15.45-49...........................................XVII, p. 69 15.50-58......... V, p. 78; XIX, p. 286; 26, p. 320 2 Coríntios 1.3-7.......................................... I, p. 112, (119) 1.18-22...........VII, p. 14; XIII, p. 98; 25, p. 113 3.1b-6................................................. 25, p. 118 3.3-9...................................................IX, p. 283 3.12 – 4.2..........................XIX, p. 76; 31, p. 78 4.3-6.............. IX, p. 157; XIV, p. 165; 39, p. 93 4.5-12............................XIX, p. 169; 31, p. 171 4.6-10.................................................XI, p. 158 4.7-18................................................... III, p. 53 4.13-18..........................XIX, p. 173; 31, p. 177 4.13 – 5.1........................................... 42, p. 198 4.16-18............................................ XIII, p. 192 5.1-10..............................IX, p. 295; XV, p. 288 5.6-10 .......................... XIX, p. 178; 31, p. 183 5.6-10,14-17....................................... 39, p. 203 5.14-21.................................I, p. 7; XIX, p. 181 5.(14b-18)19-21...........XVI, p. 140; 28, p. 153; ........................................................... 41, p. 140 5.16-21............................................... 43, p. 135 5.20b – 6.10......................35, p. 120; 40, p. 76; ......................................... 43, p. 110; 45, p. 100 6.1-10 .................................................VII, p. 82 6.1-13............................... 36, p. 221; 45, p. 215 8.1-9,13-14 .................................... XIX, p. 188 8.1-15................................................ XIII, p. 18 8.7-15................................................. 33, p. 251 8.9 ................................................... XV, p. 112 9.6-15................................ V, p. 323; XI, p. 272 (11.18,23b-30); 12.1-10.................. XIII, p. 142 12.1-10...................................................V, p. 26 12.2-10............................................... 42, p. 220 12.7-10..........................XIX, p. 195; 31, p. 199

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13.11-13........IX, p. 240; 21, p. 158; 32, p. 174; ......................................... 38, p. 214; 44, p. 198 Gálatas 1.1-12................................................. 37, p. 189 1.11-24............................. 23, p. 113; 40, p. 182 2.16-21.........................VII, p. 192; XIII, p. 241 3.(23-25)26-29................. 23, p. 119; 37, p. 206 3.23-29............................................... 43, p. 223 3.28.....................................................XII, p. 70 4.1-7...................................................IX, p. 144 4.4-7 ..........XV, p. 106; XVIII, p. 38; 30, p. 31; ............33, p. 44; 35, p. 33; 39, p. 43; 41, p. 29; ............................................................. 42, p. 40 5.1-6................................................ XIII, p. 167 5.1-11..................I, p. 118, (125), p. 124, (131); ......................................... 35, p. 341; 44, p. 320 5.1,13-25......... 23, p. 126; 34, p. 243; 40, p. 204 5.25-26; 6.1-3,7-10......VII, p. 214; XIII, p. 253 6.14-18............................................... 23, p. 131 Efésios 1.3-6,15-18..... XVIII, p. 43; 24, p. 58; 30, p. 37 1.3-14................III, p. 62; 22, p. 204; 34, p. 75; ........................................................... 39, p. 225 1.3-6,15-18..................................... XVIII, p. 43 1.15-23............................. 41, p. 181; 44, p. 341 1.(16-20a)20b-23............. 21, p. 144; 30, p. 138 1.20b-23............................................ IX, p. 227 2.1-10................................................. 30, p. 265 2.4-10............................XVI, p. 120; 28, p. 128 2.11-22.............. X, p. 48; 36, p. 239; 45, p. 236 2.13-22............................................... 22, p. 209 3.1-12...................31, p. 30; 35, p. 64; 41, p. 59 3.2-12 ...............................XVI, p. 83; 22, p. 43 3.14-21...............................V, p. 212; 33, p. 275 4.1-6 ............................... V, p. 218; XIV, p. 353 4.1-7,11-16......................................... 22, p. 215 4.1-16................................................. 42, p. 238 4.17-24............................................... 22, p. 220 4.20-32.................................................V, p. 235 4.25 – 5.2........................................... 39, p. 251 4.30 – 5.2........................................ XVI, p. 228 5.1-8a ................................................XI, p. 205 5.1-9.......................................................V, p. 46 5.8-14.............. 24, p. 105; 35, p. 145; 41 p. 118 5.9-14 ................................................ III, p. 100 5.15-20........XVI, p. 233; 36, p. 264; 45, p. 261 5.15-21................................................ V, p. 241 5.21(22-25),26-31........................... XVI, p. 236 5.21-31............................................... 28, p. 294 6.10-20..........................XVI, p. 242; 33, p. 300

Filipenses 1.3-11............. XI, p. 324; XVII, p. 14; 29, p. 9; ............................................. 34, p. 16; 40, p. 14 1.12-21................................................VII, p. 95 1.20c-27............................................. 24, p. 280 1.21-30............................................... 44, p. 284 2.1-4................................................. VII, p. 173 2.1-5(6-11)........................................ 21, p. 245 2.1-13............................... 35, p. 309; 37, p. 297 2.5-11.............V, p. 57; XI, p. 216; XVII, p. 97; ....... 25, p. 158; 29, p. 111; 32, p. 59; 39, p. 49 ; ............................................................. 45, p. 52 2.12-13..............................................XV, p. 282 3.4b-14............................................... 34, p. 133 3.12-21............................. 24, p. 290; 27, p. 251 3.7-11.................................................XI, p. 291 3.7-14 ..................................................V, p. 261 3.8-14................................................. 20, p. 102 3.12-16........................................ II, p. 20 (187) 3.12-21............................................... 27, p. 251 3.17-21...............................................XI, p. 330 3.17 – 4.1........................... 20, p. 86; 37, p. 105 3.20-21..................... I, p. 136, (137); 129,(143) 4.1-9................................................... 41, p. 303 4.4-7..................................... 26, p. 15; 43, p. 23 4.10-20...............................................IX, p. 150 Colossenses 1.1-6................................................... 26, p. 233 1.11-20............................................... 43, p. 346 1.12-20............................. 23, p. 229; 37, p. 342 1.15-23....................................................I, p. 47 1.15-28............................................... 43, p. 243 1.21-28............................................... 26, p. 240 1.24-27................................................. 42, p. 50 2.3-10 ..............................................XIV, p. 140 2.6-15............................... 26, p. 250; 40, p. 218 2.12-15............................................ XIII, p. 186 3.1-4................. III, p. 48; 21, p. 117; 32, p. 127 3.1-11................................................. 37, p. 236 3.12-17.................V, p. 107; 37, p. 42; 43, p. 45 4.2-6................................V, p. 114; XIII, p. 199 1 Tessalonicenses 1.1-5a.............................. 24, p. 294; 27, p. 256 1.5b-10............................................... 27, p. 263 1.2-10................................................VII, p. 210 1.1-10................................................. 44, p. 307 2.1-8............................... 35, p. 329; 348, p. 321 2.8-15................................................. 27, p. 277 3.9-13..................................... 20, p. 15; 37, p. 9 4.1-8.................................... V, p. 38; XI, p. 315

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4.13-14(15-18)................................... 21, p. 285 4.13-18..........21, p. 292; 36, p. 335; 42, p. 313; ........................................................... 45, p. 328 5.1-8...................................................IX, p. 288 5.1-11.............21, p. 297; 35, p. 357; 38, p. 340 5.12-24...............................................IX, p. 274 5.16-24.................22, p. 19; 33, p. 20; 39, p. 18 2 Tessalonicenses 1.1-4,11-12......................................... 43, p. 330 2.1-17............................... III, p. 165; 40, p. 316 2.(13-15)16-17;3.1-5.......................... 29, p. 311 3.1-5.................................................. IX, p. 252 3.6-13.................V, p. 97; 29, p. 317; 43, p. 341 1 Timóteo 1.12-17........ III, p. 74; XVII, p. 206; 29, p. 265 2.1-4 ........................................ II, p. 169, (336) 2.1-6................................................... 38, p. 279 2.1-8..........XVII, p. 211; 34, p. 314; 35, p. 370; ........................................................... 40, p. 257 3.16 ................................................ XIV, p. 132 4.4-5 .............................................. XIII, p. 298 6.6-16...........................XVII, p. 215; 29, p. 274 6.11b-16............................................. IV, p. 255 2 Timóteo 1.3-8(9-12),13-14............................... 23, p. 195 2.8-13............................... 23, p. 205; 37, p. 296 2.8a(8b-13) ...................................... XV, p. 198 2.8-15................................................. 43, p. 301 3.14 – 4.5......................... 34, p. 333; 40, p. 280 Tito 2.11-14.................. II, p. 263, (430); XI, p. 128; .............................24, p. 34; 35, p. 40; 41, p. 37 3.4-7................... IV, p. 280; 20, p. 29; 34, p. 45 Filemom 8-21.................................................... 29, p. 254 9b-17(18-21)..................................XVII, p. 201 Hebreus 1.1-4(5-12).......36, p. 35; 39, p. 299; 40, p. 267 1.1-9 ................................................ XVI, p. 70 2.9-11............................XIX, p. 257; 31, p. 274 2.10-18 ............................................. IX, p. 188 3.1-6 ............................................... XIX, p. 262 4.9-16............................XIX, p. 268; 31, p. 281 4.12-13...............................................XI, p. 171 4.12-16............................................... 45, p. 313 4.14-16...............................................XI, p. 192 4.14-16; 5.7-9.....24, p. 133; 34, p. 153; 43, p. 154 5.1-6(7-10)....................XIX, p. 273; 33, p. 356 5.5-10............................... 42, p. 113; 45, p. 125 5.7-9............XI, p. 211; XVI, p. 125; 28, p. 134

7.23-28............................. 36, p. 322; 42, p. 304 9.11-14............................................... 39, p. 322 9.15-17,26b-28................................... 20, p. 122 9.15,24-28.............................................. III, p. 7 9.15,26b-28..................................... XIII, p. 179 9.24-28 .......................................... XIX, p. 291 10.11-25............................................. 39, p. 337 10.16-25........................... 42, p. 130; 45, p. 141 10.19-25...................II, p. 241 (408); IX, p. 119 11.1-2,6,8-10......................................IX, p. 178 11.1-3,8-16......................................... 20, p. 229 11.1-4................................................... 28, p. 39 11.8-10..............................................XV, p. 160 11.29 – 12.2........................................ 43, p. 265 12.1-3................................................XV, p. 178 12.1-13.............................................. 20, p. 233 12.12-18(19-21),22-25a....................XV, p. 127 12.18-24.........20, p. 242; 34, p. 296; 40, p. 242 13.1-8................................................. 20, p. 246 13.1-8,15-16....................................... 37, p. 262 13.(7)8-9b ....................................... XIV, p. 153 13.12-16 ..............................................V, p. 205 Tiago 1.12-18 ............................................ XV, p. 154 1.17-27 ............................ 25, p. 268; 42, p. 258 2.1-13 ............................................ XIII, p. 262 2.1-5,8-10,14-18............... 25, p. 275; 39, p. 275 2.14-24 ............................................. III, p. 110 3.1-12............................... 36, p. 283; 45, p. 284 3.13 – 4.3,7-8a................................... 33, p. 327 4.13-17 ............................... IX, p. 34; 29, p. 40 5.1-6.........XIII, p. 265; XIX, p. 252; 37, p. 160 5.7-8 .................................................. XI, p. 114 5.7-10............................................. XVIII, p. 19 5.13-16..............................................VII, p. 220 5.13-20............................. 36, p. 295; 42, p. 277 1 Pedro 1.(1-17)18-21 ................................ XIII, p. 152 1.17-21............................................... 30, p. 118 1.17-22..... XVIII, p. 129; 35, p. 182; 41, p. 158 1.3-9..........III, p. 22; XI, p. 221; XVIII, p. 125; ........................................................... 30, p. 114 2.1-10...... I, p. 55, p. 61; XV, p. 254; 32, p. 149 2.4-10......................... XVIII, p. 138; 30, p. 128 2.13-17........................................ I, p. 102 (109) 2.15-17 ............................................... VI, p. 13 2.18-25............................................... 30, p. 122 2.19-25 ....................................... XVIII, p. 133 2.21b-25.............................. V, p. 91; XI, p. 229 3.8-17.................................................. V, p. 156

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3.13-22............................. 38, p. 188; 44, p. 173 3.15-18 ...................... XVIII, p. 146; 24, p. 165 3.18-22............. 36, p. 116; 42, p. 92; 45, p. 104 4.7-11 ................................................. V, p. 120 4.13-19 ....................................... XVIII, p. 152 5.1-5..................................................... III, p. 27 5.5b-11.............................. V, p. 144; XI, p. 307 2 Pedro 1.3-11 ............................................... III, p. 145 1.16-19(20-21).................................. IX, p. 165 1.16-21..............24, p. 95; 27, p. 65; 38, p. 108; ............................................................. 44, p. 91 3.8-14......... XVII, p. 237; 23, p. 218; 25, p. 23; ............................................................. 36, p. 14 1 João 1.(1-4)5 – 2.2.................... 22, p. 124; 36, p. 157 1.5-10; 2.1-6.................. XIII, p. 216; 36, p. 181 2.21-25................................................VII, p. 30 3.1-3................................................... VII, p. 21 3.1-7................................................... 33, p. 191 3.13-18................................................ IX, p. 57 3.16-24............................. 42, p. 153; 45, p. 161 3.18-24............................ III, p. 159; 22, p. 130 4.1-6 ................................................... IX, p. 72 4.1-11................................................. 22, p. 135 4.11-16............................................... 31, p. 165 4.7-12 ............................................... XI, p. 299 4.7-16 ................................................. V, p. 196 4.(7-16a)16b-21............... 22, p. 149; 39, p. 159 4.16b-21 ............................................. V, p. 135 5.1-5.................................... V, p. 84; XI, p. 235

5.1-6 ................................................. 22, p. 118 5.9-13............................... 42, p. 175; 45, p. 186 5.11-13.............................................. XI, p. 138 Apocalipse 1.4-8......... VII, p. 131; XIII, p. 204; 34, p. 169; ........................................................... 42, p. 334 1.9-18.............................VII, p. 65; XIII, p. 133 1.9-20................................................. 26, p. 145 2.8-11...........................VII, p. 228; XIII, p. 275 1.9-20................................................... 23, p. 84 3.1-6..... IX, p. 127; IX, p. 135; XV, p. 89, p. 95 3.7-13........................ II, p. 248 (416); 36, p. 42 3.14-22............................................ XIII, p. 304 4.1-11........................................... I, p. 144(151) 5.1-14....................................................VII, p. 7 5.11-14............23, p. 90; 26, p. 150; 37, p. 144; ........................................................... 43, p. 172 7.9-12 ........................................... XVII, p. 230 7.9-17........... III, p. 182; XIII, p. 110; 23, p. 94; ......................................... 26, p. 159; 43, p. 178 12.1-6 .................................................. 23, p. 26 12.7-12 ............................................. 21, p. 241 14.6-7 ................................................. V, p. 249 15.2-4 .............................................. XV, p. 218 19.11-16 ........................................... III, p. 195 21.1-5...............26, p. 170; 37, p. 155; 38, p. 52 21.1-6................................................. 43, p. 183 21.10-14,22-23................................... 26, p. 176 21.10,22 – 22.5.................................. 34, p. 195 22.10-16................................................ X, p. 11 22.12-14,16-17,20-21......................... 43, p. 205 22.12-17,20......................................... 23, p. 99

Observação: Os números das páginas relativas aos volumes I e II referem-se à edição desses dois volumes num só tomo; os números do volume III referem-se à 2ª edição de 1981.

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COLABORADORES E COLABORADORAS DO VOLUME 45 ABENTROTH, Anelise Lengler ACKER, Gerson ADAM, Júlio Cézar ALBRECHT, Astor BALDUS, Dione Carla BAPTISTA, Roberto N. BEISE ULRICH, Claudete BEZERRA DE SOUZA, Carolina BLASI, Marcia BRAKEMEIER, Gottfried BRAUN, Odair Airton BROSOWSKI, Ricardo CORREIA DE LACERDA, Gerson CUNHA GARIN, Norberto da DIETRICH DE OLIVEIRA, Jorge B. DOEHL, Elke DREHER, Carlos A. ENGLER BECKER, Nádia C. GAEDE NETO, Rodolfo GAEDE, Leonídio GARCIA, Paulo Roberto GAUSMANN, Samuel GIESE, Nilton JUNG, Marcelo KILPP, Nelson KONZEN, Léo Zeno KOWALSKA, José KREIDLOW, Daniel KRONBAUER, Adélcio KRÜGER, Eldo KUNZ, Claiton André KUNZ, Marivete KÜNTZER, Renato KUPKA, Cláudio MAIZTEGUI GONÇALVES, Humberto MARTIN, André NEUMANN, Alberi RAMOS, Luiz Carlos

anelisevilmar@gmail.com gersonacker@yahoo.com.br juliocezar@est.edu.br albrechtastor@gmail.com dionebaldus@yahoo.com.br roberto2017@hotmail.com claudetebeiseulrich@hotmail.com carolbsouza@gmail.com retalhos13@hotmail.com brakemeier@terra.com.br psinodal@sinodoparanapanema.com.br brosowski_ric@yahoo.com.br gersonlacerda@gmail.com norberto-garin@hotmail.com jorge.dietrich@hotmail.com elke.68@hotmail.com carlos.arthur.dreher@gmail.com nanaengler@yahoo.com.br rodolfo@est.edu.br leonidiogaede@hotmail.com paulo.garcia@metodista.br samuel_gausmann@yahoo.com.br giese1959@gmail.com ma2jung@hotmail.com nkilpp@uol.com.br leokonzen@urisan.tche.br pastorkowalska@luteranos.com.br danielkreidlow@gmail.com adelciokron@gmail.com eldokruger@yahoo.com.br claiton@batistapioneira.edu.br marivete@terra.com.br renato.kuntzer@luanett.com.br claudio@paroquiamatriz.org.br humbertox@uol.com.br anlumartin@gmail.com neunall@hotmail.com luiz.ramos@textoetextura.com.br

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REIS COSTELLA, Ana Isa dos RIECK, Kurt RODRIGUES, Marcos A. SANTANA FILHO, Manoel B. de SCHELL, Vitor Hugo SCHERER, Cristina SCHMITT, Flávio SEIBERT, Erní Walter SELL, Wilhelm STAUDER, Eduardo Paulo TEHZY, Wagner TREIN, Hans Alfred ÜCKER WEBER, Bianca Daiane VOLKMANN, Martin WANKE, Roger Marcel WEBER, Eloir Enio WEISSHEIMER, Ramona WIESE, Werner WITTER, Teobaldo ZWETSCH, Roberto E.

anaisadosreis@yahoo.com.br kurtrieck@gmail.com marcos65br@gmail.com m.bernardinofilho@gmail.com vhschell@gmail.com crisitati@yahoo.com.br flavio@est.edu.br erni@sbb.org.br wilhelmsell@gmail.com eduardostauder@luteranos.com.br sktwt@hotmail.com hansatrein@gmail.com biancaw@martinus.com.br martinvolkmann44@gmail.com roger.wanke@fl t.edu.br eloir@sinodal.com.br ramonaew@gmail.com wwiese@flt.edu.br twitter@terra.com.br rezwetsch@gmail.com

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Texto: Times New Roman 11 Títulos: Bangkok 15 Datas: Arial 10 Subtítulos: Times New Roman 18/12

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