13 minute read
FOI EMBORA
2
A MULHER MARAVILHA, BATEU ASAS E FOI EMBORA!
Advertisement
Estava em um dos auges da minha carreira como médica praticante da Ortomolecular. Acho que o primeiro auge que se chega ainda jovem, depende do conceito de “auge” que nos vendem. Um apogeu. Sua chegada no Monte Olimpo em primeiro lugar, com larga folga, sem concorrentes. Ainda, com pessoas te esperando para aplaudir e você ganhando a coroa de louros e uma linda taça. Essa era a imagem que eu tinha, isso tudo é meio inconsciente, claro. Eu tinha acabado de ser aprovada em um Board de Medicina regenerativa da American Academy of Anti-Aging que fica nos Estados Unidos, e estava bem feliz. Board é uma certificação ou título americano que diz que você está apta a praticar tal especialidade. Naquele ano, pouquíssimos brasileiros haviam sido aprovados, eles realmente são rigorosos e não existiam cursos à distância. Então, meus esforços estavam sendo muito bem recompensados, eu havia atingido meu objetivo. Ainda pensava que somente um papel me diria “pode” ou “não pode” fazer tal coisa. Mudei muito desde então.
Sempre me orgulhei por ter uma “saúde de fero”, como dizem. As crianças imitam muito a dinâmica dos pais, os meus não ficavam doentes, então, pela genética biológica ou pela cultural, também não ficávamos. Na idade adulta não sofria de enxaqueca, cólicas menstruais ou alergias. Uma TMP ocasional e um hipotireoidismo que tratados, nem me lembro. Me gabava intimamente da minha saúde, mais que isso, acho que eu pensava que nunca, nunca teria nada grave. Essa pretensão também pode ter sido coisa da idade.
Aliado a esse pensamento, minha destreza em lidar com pacientes no consultório aumentava. Eu nunca tinha feito consultório e é uma prática totalmente diferente de UTI e Saúde Pública. É preciso ouvir, “cheirar” e perscrutar com paciência o outro. Gosto deste verbo perscrutar, pois junta atenção com intuição e eu estava me aprimorando nesse processo. E rápido. Pessoas querem ser ouvidas e quando se junta atenção com assertividade no diagnóstico e tratamento, você vira o melhor médico do mundo. Há os que escutam e não acertam, há os que não escutam e acertam e há os que nem escutam, nem tratam. Esses precisam SE tratar urgente! Juntar esses dois é uma missão que eu sempre busquei e gostei. Porém, quando isso me elevou a “X” potência, não deu outra, meu ego se elevou. Há várias formas de reagir aos agradecimentos ou elogios. Algumas pessoas mudam de personalidade, outras deixam de atender como antes. E eu? Eu me sentia mais e mais necessária. Junte tudo isso com a dependência dos pacientes ao meu atendimento. Eu me sentia uma criatura “matriarcal”. Sempre queremos alguém que nos diga o que fazer, como agir e que vai ficar tudo bem. Sendo que nós é que temos que fazer esse papel. Porém eu alimentava essa dependência, não por mal, mas por achar que alguém tinha que fazer isso. E eu fazia. E os agradecimentos vinham. E isso cresceu dentro de mim criando uma aura de necessidade desses agradecimentos que hoje sei, não são saudáveis para nenhum lado. Cresceu tanto ao ponto de eu confundir que eles estavam lá para serem tratados e não para um convite social. Claro que os médicos precisam formar laços com seus pacientes, senão não seríamos humanos, mas nunca perder de vista essa questão: quem vai, procura um tratamento e não uma amizade, cuidado! E eu estava confundindo claramente. Até que uma coisa mudou tudo, nunca mais seria a mesma. Era Janeiro, feliz pela entrada do ano, ainda com os mil planos pela frente, acordei e meu olho direito parecia ter um “tapa-olho”. Tenho um grande grau de miopia nesse olho e como meu cérebro o anula, prefere olhar pelo esquerdo (assim me explicou meu oftalmologista) não me
chamou tanta atenção. Achava que era uma inflamaçãozinha qualquer, e fui ao encontro da minha orientadora do mestrado, o qual eu não poderia faltar. No caminho, esse tapume ficou mais forte se transformando em “blackout” total! E ao encontrar uma amiga muito querida, Patrícia Amanda que foi um anjo de Deus na minha vida, ela me olhou e disse: - Lu, estás mais estrábica que o normal. E foi então que contei o que estava sentindo e ela na hora falou: - Vai para um pronto atendimento em Oftalmo, com olho a gente não brinca. Essas palavras me alertaram na hora. Pensei “então é sério mesmo”. Liguei para o Fernando, meu esposo e disse: - Vamos para um hospital, acho que descolei a retina. Não sabia o diagnóstico certo, mas sou médica. Além de tudo, a gente sabe quando algo não está bem e naquela hora, algo me dizia que algo não estava nada, nada bem. Após uma pequena espera, que achamos longa - todos nós que precisamos um dia ser atendidos sentimos o quanto a espera é longa, a colega nos confirmou o diagnóstico e mais, eu teria que me operar no máximo em dois dias (o que?!). Foi a primeira vez que uma mão de gelo invisível pegou meu coração. Por fora calma, por dentro, morta. Na mesma hora vem em sua cabeça como fazer para organizar sua vida profissional. Desmarcar pacientes, interromper mestrado, avisar hospital. Um pequeno caos. Mas no caso era operar ou perder a visão. Nunca tinha operado nada. Nem feito biópsia. E iria operar logo um olho! Um dos sentidos mais delicados...estava chocada! E sempre se corria o risco de ficar cega, fui informada assim como se diz “tudo bem?” “Como fui deixar isso acontecer?” e tem também essa preferida de todos nós, “Por que eu?”. O pior era a sensação que eu tinha, que era irracional, mas me segurava na necessidade que eu tinha que colocar a culpa em alguém, era que eu estava em um palco que, pela frente todos me aplaudiam e por trás alguém vinha e me esfaqueava. Uma loucura isso tudo!
Após a cirurgia, que foi um sucesso graças a Deus, esperei os mimos pela mídia social. Vieram, mas bem menos que o esperado... esse foi o primeiro baque. Vazio. Eu estava acostumada a ser a líder do grupo, a receber os agradecimentos, “Onde estão todos para a minha festa surpresa?”. Me senti desamparada, frágil, necessitando de algo que me supria e que não estava lá agora. Não do jeito que eu queria. Meu primeiro e real entendimento foi que quando você se for, quando chegar sua hora, a roda continuará a rodar e não ponha a culpa em ninguém, se você não viveu ou não fez o que queria por conta do trabalho ou dos pacientes. Sempre haverão pacientes a serem cuidados e sempre haverão bons médicos que os cuidem. Essa era a mensagem por trás do meu incidente. Eu via bem claro agora com o olho afetado. O segundo baque foi pensar que a “Mulher Maravilha” envelheceu ou morreu. Para mim, essa imagem já não cabia mais. O terceiro e último baque veio com 15 dias antes de voltar de licença médica. Um dos meus pacientes me mandou uma mensagem que pode ter sido sem pretensão alguma, porém aquilo me provocou uma péssima reação. Foi mais ou menos assim: - Olá Doutora! Tudo bem? Espero que você esteja se recuperando. Sei que deves estar morrendo de vontade de voltar a trabalhar e preocupada conosco... A resposta que nunca digitei foi: - Não. Eu estou preocupada comigo. Não estou pronta para voltar, ainda preciso ser cuidada antes de cuidar de vocês. Nunca dei resposta. Não sabia como ele iria reagir ou como iria interpretar e eu não queria explicar nada naquele momento. Era a primeira vez na vida profissional que fazia essa reflexão. Depois dessa vieram muitas... Como é cruel estar em uma posição que você mesmo criou e agora não quer mais. Ou então, como é cruel ficar em uma falsa posição. Isso cansa. Chega de aumentar minha carência dependendo do outro, da necessidade do paciente. Foi preciso desorganizar minha visão externa para organizar a minha visão interna sobre mim. “Mulher Maravilha” nunca mais.
Quanto da mulher maravilha você carrega consigo?
É natural do ser humano sentir gratidão, aliás é um dos sentimentos mais bonitos e mais admiráveis. Gratidão nos transforma em um ser melhor, nos liga com Deus, nos abre a mente para outras possibilidades que até então não víamos. E é muito lindo quando expresso a gratidão da forma correta, ou seja, sendo sincera e não querendo favores em troca ou preferências da parte de quem oferta e não mude ou vicie quem recebe o “obrigada”. Atualmente procuro utilizar mais o “grata”, que o “obrigada”, para que a gratidão não seja vista como obrigação. Muitas vezes a usamos como uma “arma”. Quem nunca viu os famosos desenhos do aluno que não estudou para a prova levando a maçã para o professor, para disfarçar? Quando você é alvo de gratidão, isso também pode te pegar. Principalmente se você é mulher e tem filhos pequenos (e até grandes também, porque não?) e precisa dizer muitos NÃOS para educá-los, fica sempre uma vozinha lá no interior querendo nos desestabilizar: “Nossa, que bruxa do 71 você é!”. E se no hospital você também precisar ter essa postura seja com familiares ou pacientes, aí você não se questionará mais. Você será realmente a tal bruxa. Se você está em um bom dia, as crianças em casa bem e correu tudo certo no trabalho, tá tudo bem. Mas se você está de TPM ou entrou na menopausa e tudo está ruim, ou as crianças preferem sair com o pai... nesse dia você se desestabiliza e tudo que você quer é alguém que te diga que você é “muito, mas muito boa comigo”. É nesse dia que parece que está tudo ruim, que podemos cair na cilada. Não dos outros, na nossa chamada “Cilada da Carência”. E isso é viciante, como uma droga na qual você não reflete o porquê de sua vida estar assim, mas só quer aquela substância para você viver “só por hoje”. Salta uma dose de gratidão por favor!!!! Fora que nesse mundo digital em que vivemos, tem dias que queremos um afago, um abraço, um olho no olho, um afeto verdadeiro. Quando alguém diz MUITO OBRIGADA, isso tudo se esvai e bate lá no fundo da alma. A gente se derrete mesmo, não tem outra. Nessa hora, e isso é muito instintivo, aquela pessoa, com aquelas palavras, penetrou
no nosso coração e isso pode ser usado contra a gente. Não por maldade, isso é do ser humano mesmo. Compreender isso é saber que os outros não tem culpa das minhas ações e reações. Para exemplificar melhor, pensemos em cenários diferentes onde alguém chega me agradecendo algo de bom que fiz no trabalho, então:
1. O primeiro eu saí de casa desesperançosa, amargurada, que procura como uma náufraga uma ilha chamada “Atenção de alguém” para me sentir melhor. 2. O segundo eu sai de casa bem, confiante, sabedora da minha missão independente de qualquer coisa que me digam.
As reações não serão diferentes? Claro que são!
FIQUE DESCALÇA E ESCUTE-SE!
Nós, profissionais da saúde, temos que sempre nos perguntar:
1.Por que tenho tanta necessidade de agradecimento dos pacientes? 2.Como me sinto com isso? 3.Qual o vazio que quero preencher? 4.Se até o fim do meu ciclo trabalhando, ninguém me reconhecer ou me agradecer, ainda serei feliz fazendo o que faço?
Foram essas as perguntas que me respondi no tempo que estive afastada por conta do olho. Agradeço muito a minha amiga Psicóloga e Psicanalista Vera Machado pelos bate-papos rápidos porém profundos. Rápidos não por conta dela, mas por eu não querer abusar de um tempo tão precioso. Vera é do tipo de pessoa que nasceu para o que está fazendo. Até suas incertezas quando apresentadas são menos dolorosas. Quando
ela soube que eu estava com o projeto do livro, me deu muita força racional. Chamo de força racional aquele tipo de apoio que não é cego, leva em consideração a tua potencialidade e teus pontos a melhorarem. Nos pontos à melhorarem, claro que me indiciou a terapia. Meu sonho é que a Vera me aceite como paciente, no que ela me explicou que não dá, me fiz de besta porque sei da ética da psicologia em não aceitar amigos como pacientes. “Então mana (nos tratamos assim, pois somos de Belém), quando a psicologia mudar e você me aceitar como paciente. Eu faço terapia.” É uma mentira-verdade. Mentira, pois acho que a terapia ajuda a todos, sem exceção e verdade porque queria muito que ela me tratasse. O certo é que cheguei à conclusão que agora, no exato momento em que escrevo esse livro, preciso das minhas neuroses para que exponha meus sentimentos e sensações e passe para vocês a “minha verdade”. Fazemos muitas coisas “por fazer” e esse não é o caso do livro. A escrita também é terapêutica, me leio, me conheço, me entendo, e daí, posso eu mesma ser-me grata e reduzir a necessidade da gratidão externa. Mas se no meio do caminho eu sinta necessidade da terapia, eu avisarei aqui “gente, entrei na terapia”.
E por falar em verdade, me lembrei de um exemplo muito bonito de uma Técnica de Enfermagem quando trabalhei no Hospital São José, em Fortaleza, chamada Fátima Araújo, a Fatinha. Fatinha de longe foi a técnica mais falante que já conheci. Onde ela está é alegria. Impossível você estar em um plantão e não souber da existência dela no local. Os pacientes a adoram! A chamam a todo momento e ela, solícita, vai sempre numa boa. Realmente a enfermaria criava nova energia quando ela estava de plantão. Aprendi muito com seu exemplo. Fatinha vinha inteira para o trabalho, mesmo se não estivesse tudo bem em casa. Ela dava um jeito de estar presente ali para os pacientes. A nossa unidade “E” tem uma particularidade de internar os doentes com Tuberculose, HIV associado ou não. Então não é todo profissional que gosta de ir para lá. Principalmente quando internava algum portador de HIV com diarreia e advinha? Necessitando de várias limpezas devido ao
quadro grave. Fatinha nunca se sentiu menor por limpar as fezes de outro ser humano. Não sei se eu conseguiria limpar. Nessa situação de finitude da vida na qual o paciente se encontrava, as emoções estavam confusas e muitas vezes ela era recebida com agressividade. Seja no agradecimento sincero ou nas palavras ríspidas, Fatinha era sempre a mesma. Ela sabia que era importante. Para o paciente, para a equipe, para o sistema. Não importa. Ela sabia e não esperava nada. E seguia inteira. E seguia educando. Sempre com uma palavra de carinho ou ordem, para os mais “abusados” como ela gosta de falar. Recebi a notícia que ela fará Enfermagem, uma das profissões mais bonitas e menos reconhecida. Faço votos que ela não mude. Que não se dobre pelas doces palavras de fora ou para a pulga peçonhenta da vaidade que às vezes carregamos. Saber que somos importantes e que nosso trabalho deve ser feito da maneira mais livre possível nos tira um peso. Mas para tal, temos que nos conhecer. Saber o que é meu e o que não é. Saber que carrego somente o que é meu e o que é do outro eu não posso carregar, o que não significa que eu não possa ajudá-lo a encontrar seu eixo. Esse nosso olhar, a da profissional de saúde, sempre será difícil pelo excesso de coisas que assumimos nos últimos tempos. Mas só você para saber o que pode fazer ou não, o que é importante ou não e não vale copiar a vida da colega. Só você pode encontrar a saída desse labirinto e por favor, sem a roupa de Mulher Maravilha. Vista-se de você!