Revista Jornalismo e Cidadania Nº42

Page 18

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade

Centenário de Paulo Freire

Jornalismo e Sociedade (Alfredo Vizeu)

A Propósito de Paulo Freire (Luiz Costa Lima)

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 1
| PPGCOM/UFPE | ISSN
|
| 2021 JORNALISMO E
2526-2440
nº 42 | Maio e Junho
CIDADANIA

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha

Professor PPGCOM/UFPE

Editor Executivo | Ivo Henrique Dantas Doutor em Comunicação

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Revisão | Laís Ferreira / Bruno Marinho Mestre em Comunicação / Mestre em Comunicação

Alunos Voluntários |

Júlia Monteiro Cardouzo

Thomaz Antonio Costa e Alvim Matheus Henrique dos Santos Ramos

Colaboradores |

Alfredo Vizeu

Professor PPGCOM - UFPE

Túlio Velho Barreto

Fundação Joaquim Nabuco

Gustavo Ferreira da Costa Lima Pós-Graduação em Sociologia/UFPB

Anabela Gradim

Universidade da Beira Interior - Portugal

Ada Cristina Machado Silveira

Professora da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM

Antonio Jucá Filho

Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ

João Carlos Correia

Universidade da Beira Interior - Portugal

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas  da UFPB

Ana Célia de Sá

Jornalista Doutoranda do PPGCOM/UFPE

Alexandre Zarate Maciel

Professor da UFMA e Doutor em Comunicação pela UFPE

Índice

Editorial | p.3

A Propósito de Paulo Freire | p.4

Centenário de Paulo Freire: Jornalismo e Sociedade | p.6

Precisamos politizar a fome na mídia! | p.8

Humberto Maturana: Queremos ou não conviver? | p.10

A importância de se fazer uma boa pesquisa documental | p.12

Maquiavel: Dissenso, Liberdade e Lei (I) | p.14

Negócios do vento em Pernambuco e o papel do Iterpe | p.16

Mas o que é mesmo pós-colonial? | p.18

Redes e jornalismo: a colaboração em foco | p.20

A Internet e a Crise do jornalismo | p.22

Stop Extradition to the US of Venezuelan Diplomat Alex Saab | p.24

Palavras | p.26

Acesse:

facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania

JORNALISMO E CIDADANIA | 2

Editorial

Por Heitor Rocha

As tenebrosas transações, que foram reveladas recentemente ao país nos casos de corrupção nas negociações das vacinas indiana e chinesa, não podem deixar de ser consideradas uma consequência lógica da estratégia da imunização de rebanho, com o incremento de centenas de milhares de mortes devido à sabotagem na aquisição de imunizantes desde agosto de 2020. Também não podem, obviamente, ser desvinculadas da decisão de abrir à iniciativa privada a possibilidade de comprar vacinas, sob a justificativa de um suposto espírito filantrópico de empresários que investiriam dinheiro na compra de imunizantes que seriam doados ao Ministério da Saúde, quando na verdade se estava escancarando as portas dos recursos públicos destinados ao combate à pandemia para a rapina de uma verdadeira quadrilha.

Neste cenário, fica evidente que a retórica pretensamente ideológica de “negacionismo” do governo federal na sistemática sabotagem às recomendações científicas de prevenção à contaminação pelo Covid 19, com as medidas de distanciamento social, uso de máscara e vacinação, tinha o claro objetivo de encobrir a ambição de se apoderar corruptamente de dinheiro público que deveria ser aplicado na compra de imunizantes. Assim, o compromisso do presidente Bolsonaro sempre foi restrito ao âmbito dos negócios particulares/ privados de mercado e não aos princípios constitucionais republicanos a que deveria estar restrito o exercício de sua representação política, especialmente numa época de pandemia.

Neste momento em que o país se vê diante do imenso mar de lama em que se chafurda, de forma generalizada e sistemática, o governo federal, fazendo “passar a boiada” das negociatas para contrariar o interesse público e o bem comum, consideramos importante, para vislumbrar uma alternativa melhor para o Brasil, a Revista Jornalismo e Cidadania comemorar o centenário de Paulo Freire com a publicação de dois artigos. Um de Luiz Costa Lima, que relata a sua convivência com Paulo Freire, chamando atenção para a dimensão maior da importância de sua obra, além da sua proposta educativa conscientizadora e do método de alfabetização, que pode ser vislumbrada pelo tamanho da ira que o educador pernambucano suscita nos conservadores e reacionários que pretendem perpetuar as desigualdades sociais; e o segundo de Alfredo Vizeu, que destaca a relevante contribuição de Paulo Freire para enriquecimento da compreensão de mundo dos jornalistas e de aperfeiçoamento do rigor do método

de investigação jornalístico na construção da notícia. Portanto, a Revista Jornalismo e Cidadania homenageia com estes artigos o significado de Paulo Freire para o mundo e especialmente para o Brasil. Ao lado de brasileiros ilustres como Darcy Ribeiro, Anízio Teixeira, Celso Furtado e outros, Paulo Freire contribuiu com o memorável esforço de desenvolvimento em moldes nacionalistas ensejado pelas reformas de base (verdadeiramente reformas e não as restaurações conservadoras que vêm sendo defendidas atualmente) do governo João Goulart. Esforço desenvolvimentista este que foi interrompido pelo Golpe de 64, cuja conspiração instaurou por 21 anos um regime entreguista em relação aos interesses das multinacionais e concentrador da riqueza em benefício das elites nacionais. Toda essa conspiração que foi repetida no Golpe de 2016, por uma tropa de canalhas que também seguiu o ideário dos economistas liberais para favorecer a concentração do capital, entregar à iniciativa privada os setores mais lucrativos das empresas estatais - continuando a privataria de Fernando Henrique Cardoso - pois tanto o dandi aristocrático do PSDB quanto o brutamontes miliciano, apesar da diferença na etiqueta assumida, são empregados leais do bezerro de ouro do mercado -, e precarizar a qualidade de vida da população brasileira, através de medidas como o arrocho salarial, o esvaziamento da previdência social, desmanche da legislação trabalhista, entre outras perversidades perpetradas contra a sociedade.

É preciso frisar que, ao contrário do que diz a cantilena liberal tentando demonizar o funcionalismo púbico, a denúncia da corrupção da quadrilha para compra superfacturada de vacinas só poderia ter sido feita por um funcionário público de carreira, servidor concursado do Ministério da Saúde, e não por um funcionário comissionado por indicação política.

Heitor Costa Lima da Rocha, Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 3

A Propósito de Paulo Freire

Sempre que penso em Paulo, recordo os anos em que fomos vizinhos na rua D. Rita de Souza, no Bairro Alto, depois da praça e da igreja de Casa Forte. Assim sucedeu entre 1953 e 1954, quando teria de 16 a 17 anos. Nosso encontro se deveu à iniciativa de minha mãe, Elza Lisboa de Moraes Rego Costa Lima. Ela me contava que, na volta de ambos da missa do domingo – católicos praticantes que eram –, lhe pedira que me orientasse nos anos de adolescência, porque ela não se sentia capaz de fazê-lo.

Por sua iniciativa, passei a frequentar o escritório de Paulo. Foi de sua biblioteca que li os autores salientes da poesia moderna brasileira, assim como intérpretes sociais do país. Ou seja, nela encontrei os fundamentos que me seriam básicos.

Minha lembrança, não se exercitando com frequência no período, é bastante vaga. Recordo que o casarão de meus pais – hoje, destruído por um edifício indistinto – tinha enormes janelas que davam para a rua sem asfalto. Muitas vezes, à noite, saltava por uma delas e, mesmo de pijama, corria para o escritório de Paulo, onde conversávamos por horas e/ou lhe mostrava meus primeiros ensaios. Paulo, que havia sido professor de português, devia corrigir meus erros de principiante. A outra lembrança é de poucos anos depois. Como cumpria meu serviço militar, cursando o ano de CPOR em um quartel próximo de onde morávamos, ao terminar o expediente, passava em frente de sua casa e, ainda com a farda, se estivesse em seu escritório, passava horas em uma conversa infindável.

A recordação agora dá um salto por anos. Nos fins de 1961, havendo terminado meu curso na Faculdade de Direito, tive uma bolsa de estudos do Instituto de Cultura Hispânica. Minha escolha não era essa, mas não cabe aqui explicar por que fui parar em Madri. O curso não me entusiasmou e, ao contrário do que me ofereciam, não aceitei fazer ali minha pós. Não discuto o que ganhei, aprendendo uma língua, passando a conhecer, por influência de João Cabral – que foi meu verdadeiro mestre –, a poesia castelhana, e tendo contatos que minha reclusão no Recife não me permitia. Talvez a maior vantagem tenha sido a de me obrigar a descobrir meu caminho por conta própria. Também não cabe aqui me estender a propósito – apenas observo que

esse “por conta própria” não há de omitir o que deverei a influência bem posterior da Escola de Konstanz, na Alemanha.

Ao voltar ao país no final de 1962, encontrei o Recife como uma das cidades em que mais intensamente se sentia o ânimo de mudanças sociais que sacudia o governo de João Goulart, pela influência profunda de Darci Ribeiro. O reitor da Universidade Federal (então chamada) do Recife, decidido a romper a morosidade da instituição, promovera a constituição do Serviço de Extensão Cultural (SEC), dirigido por Paulo Freire, a que se subordinavam uma rádio universitária, dirigida por José Laurênio de Melo, com prática durante anos na BBC de Londres, e a revista Estudos Universitários, de que eu era secretário. Como ao mesmo tempo era assistente do professor Evaldo Coutinho, todo meu tempo era ocupado pela universidade. O SEC era a sede em que se preparavam os instrutores que iriam aplicar o sistema de alfabetização concebido por Paulo. Sendo costumeiro supor-se que o sistema de Paulo implicava o uso de uma cartilha, vale lembrar que nada lhe seria mais antagônico. Em seu lugar, projetava-se em um quadro-negro uma ou mais palavras e, depois de ser ensinada a identificação das letras, pedia-se ao alfabetizando que, a partir dela/s, pela mudança de letras ou sílabas, se formulassem outras palavras. Ou seja, incentiva-se a capacidade de combinação do aprendiz, sua imaginação ideativa e não simplesmente sua memorização visual. Como desenvolverei a seguir, esse princípio básico me leva a pensar que o método de Paulo ia além de um processo de alfabetização. A projeção era feita a princípio de maneira bem tosca, que não recordo bem; mas logo ela contou com um aparelho simples, concebido por Francisco Brennand. Paralelamente a meu trabalho na revista, eu participava, por aulas de cultura brasileira, da formação dos instrutores. Foi assim que se constituiu a primeira experiência, realizada em Angicos, Rio Grande do Norte.

Por interferência creio que de Darci Ribeiro, o projeto de Paulo Freire se tornou nacional. Seu êxito e extensão aumentaram sensivelmente a ira dos setores reacionários da cidade. Acusava-se Paulo e sua equipe de, a pretexto de alfabetizar a população marginalizada, pretender formar uma massa de votantes para candidatos comunistas. Poucas ignomí -

JORNALISMO E CIDADANIA | 4

nias podiam ser mais absurdas. Não só Paulo Freire era um católico praticante, como o próprio Partido Comunista não aprovava o clima de agitação instalado no país, em consequência muito menos o projeto de Paulo, sob a alegação, que logo se revelaria justa, de que o país não estava preparado para mudanças de alguma profundidade. O golpe militar de abril de 1964 mostraria que a força optava pela manutenção da estrutura da desigualdade que secularmente tem sido a marca do país. Contra o poder das armas que pode a ilusão de sonhos? O SEC é desfeito, seus membros são demitidos, muitos foram presos ou, meses depois, incluídos no AI/1. O golpe acentuava que a sobrevivência de cada um dos atingidos obrigava que procurassem outros ares.

Não devo terminar esse pequeno retrospecto sem ainda chamar a atenção para o projeto de Paulo. Parece-me ingênuo que ele se restrinja a ser um método, ainda que diversificado, de alfabetização. Não duvido que assim parecia a seu próprio criador e aos que tentavam implantá-lo. Mas também creio que seus adversários mais astutos intuíam que eram atacados em uma frente mais profunda. Isso não só não tem sido notado como pertence a uma área de estudos ainda quase inexistente. Não me cabe aqui mais do que apontar para sua possibilidade. Ou seja, delineá-la grosseiramente.

Tomo como exemplo o número mais recente da revista universitária norte-americana Critical inquiry (verão de 2021). Nele, se encontra artigo assinado por Anna Schatman, sob o título de “Command of media metaphors”. O ensaio não se destaca por sua qualidade; é antes bastante fraco, limitando-se a uma ampla resenha que, a partir do “Seminar Tamiment”, realizado em 1959, vindo atrás e adiante, restringe-se a assinalar o papel da metáfora como supradeterminação (“over-determination”) do texto mediático: “O que as conversações de Tamiment finalmente revelam é que quando os mídias entraram na linguagem corrente já eram associados a muitas definições”. A pormenorização do argumento da autora seria de valia tão só pouco maior do que a passagem acima. Ainda que seu desenvolvimento não abandone a mediocridade, o ensaio alerta para a necessidade de penetrar-se no que chamaríamos de composição textual. Ou seja, para a necessidade de verificar-se que o uso da língua sofre modificações significativas conforme a maneira como é feito. O uso do português na explicação de uma questão de ciência exata (melhor seria dizer “hard”, dura), em um best-seller, em um texto sociológico ou em um poema sofre mudanças que independem do propósito ou da intenção de seu autor. Ou seja, cada um deles constitui um bloco discursivo, cujas propriedades precisam ser caracterizadas. Não se diz com isso que cada bloco

contenha fronteiras rígidas. Muito ao contrário. De um texto mediático banal até um poema refinado, as diferenças concernem a graus de complexidade crescente, resultantes de diferenças de frames (molduras) que particularizam cada discurso.

Daí a intuição que provoca esse desenvolvimento. Creio que a ira que o método de Paulo Freire provocava decorria de que ele, mesmo sem o propósito consciente de seu promotor, atacava a constituição estabelecida nacionalmente do discurso sociológico, formulado de maneira a deixá-lo próximo do frame antes próximo do mediático, ou seja a formulação cotidiana. A diminuição então alcançada das formas discursivas seria louvável se não se fizesse em detrimento do intercâmbio entre conceitos e a plurivocidade metafórica, sem o qual os discursos, com exceção da formulação rigorosamente matemática, podem ser interessantes, sem que se tornem efetivamente novos. Como dizia Freud, a pesquisa e a reflexão posteriores por certo trarão a luz decisiva.

Se não sou eu que indevidamente extrapolo, as conversas mantidas na rua Rita de Sousa continuam a ecoar em minha mente. Sem ser responsável pelo que elas geram, devo a Paulo sua longa fermentação.

Rio de Janeiro, 8 de junho, 2021

Luiz Costa Lima é Professor Emérito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) crítico literário e autor de “Mímesis e Modernidade” e “A Ficção e o Poema”, entre outros livros.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 5

Centenário de Paulo Freire: Jornalismo e Sociedade

O centenário de Paulo de Freire é uma oportunidade de discutir a significativa contribuição do educador pernambucano para ampliação da compreensão do mundo dos jornalistas bem como de aprofundamento e enriquecimento do processo jornalístico de produção da notícia. No âmbito epistemológico e de fundamentação metodológica, vale destacar que a investigação é da essência do jornalismo porque diminui a possibilidade de erro e equívoco. Caso isso ocorra, ainda dentro das práticas jornalísticas, faz-se necessário retificar a informação publicada que se revela inexata. O compromisso com a revisão dos erros e imprecisões é, assim, uma das tarefas centrais do rigor do método, do conhecimento do jornalismo, para evitar a ambiguidade na informação. Outro aspecto importante no atual processo de produção da notícia é a imprescindível validação e legitimação de sua representação simbólica da realidade pela audiência, colocada à prova pela concorrência e desafiada pela pressa que pode tornar mais precária a qualidade da informação noticiosa.

Por isso, apropriando-me dos ensinamentos de Paulo Freire, considero importante nas práticas sociais do jornalismo ir além da mera captação dos fatos, buscando não só a interdependência entre eles, mas também o que há entre as parcialidades constitutivas da totalidade de cada um. Nesse sentido, o jornalismo necessita estabelecer uma vigilância constante sobre a sua própria atividade para garantir a inclusão progressiva de enquadramentos que contemplem a pluralidade significativa de versões e fontes existentes na sociedade.

Ainda dentro da perspectiva de Freire, consideramos que a comparação que o autor faz entre a ingenuidade e a criticidade pode contribuir para entendermos o conhecimento do jornalismo – que trata dos acontecimentos do mundo, dos diversos saberes, dos campos da experiência e do cotidiano. O autor esclarece que não há diferença e nem distância entre a ingenuidade e a criticida -

de. Para Freire, entre o saber da pura experiência e dos procedimentos metodicamente rigorosos ocorre uma gradativa superação.

Abrir a ‘alma’ da cultura

Freire argumenta que, nesse processo de superação, não acontece uma ruptura porque a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Continuando a explicação, diz que ao criticizar-se, tornando-se curiosidade epistemológica, metodicamente ‘rigorizando-se’ na sua aproximação no conhecimento do objeto, conota seus achados de maior exatidão. A curiosidade metodicamente rigorosa do método cognoscível se torna curiosidade epistemológica, mudando de qualidade, mas não na essência.

É dentro desse quadro que opera o conhecimento do jornalismo. Na produção da notícia, o jornalista trabalha constantemente dentro dessa perspectiva de superação. Não é permitido ao jornalista que seja ingênuo na cobertura dos fatos. A tomada de consciência é o ponto de partida da sua atividade. Como é possível dar conta da cobertura dos acontecimentos, da mediação entre eles e a sociedade, se antes de construir a informação não conheço o objeto? É tomando consciência dele que me dou conta do objeto, que é conhecido por mim. Portanto, como observador da realidade social, o jornalista já faz parte de seu objeto de investigação.

A eficácia da atividade jornalística e o conhecimento do jornalismo estão intimamente ligados ao que Freire colocava como a capacidade de abrir a ‘alma’ da cultura, de aprender a racionalidade da experiência por meio de caminhos múltiplos, deixando-se ‘molhar, ensopar’ das águas culturais e históricas dos indivíduos envolvidos na experiência. É a dimensão crítica do conhecimento jornalístico, num imbricamento entre teoria e prática.

Utopia de um compromisso histórico

Por fim, não custa lembrar que esses ensinamentos a partir da leitura da obra de Paulo Freire têm como preocupação mos -

JORNALISMO E CIDADANIA | 6

trar que o jornalista que seja tentado a abrir mão do rigor do método esquece o respeito ao outro, vítima, testemunha, parente, espezinha o respeito que deve a si mesmo: não é mais que um instrumento – um meio! – da informação.

É ainda o mestre Freire quem ensina. E isso é básico para o jornalismo. O trabalho humanizante não poderá ser outro senão o trabalho de desmistificação. Por isso, a conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que a ‘desvela’ para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante.

É dever do jornalismo a busca da verdade e a ética como singularidade. Uma utopia a ser perseguida diariamente. Um jornalismo de frontes levantadas. Dentro desse contexto, concluo com Paulo Freire: ‘…o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar a estrutura desumanizante e anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão, a utopia é também um compromisso histórico.’ O jornalismo é utopia realizável de um compromisso histórico com a verdade, a ética, a liberdade e a democracia.

Alfredo Vizeu é jornalista e professor do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM/UFPE).

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 7

Precisamos politizar a fome na mídia!

Por Inã Cândido e Karolina Calado

A história da alimentação, em parte, só pode ser compreendida através da luta diária contra o drama da fome. Desde tempos remotos, foram registrados inúmeros surtos e crises alimentares presentes em diversas partes do mundo. Em períodos sombrios assolados por guerras, pestes e catástrofes climáticas, ocorreram níveis alarmantes de escassez alimentar que marcaram profundamente as memórias dos povos (CARNEIRO, 2003). Mas a fome não faz parte do passado, ela está no presente. E a mídia, essa importante instituição social mediadora e denunciadora em uma sociedade democrática de direitos, como tem abordado o assunto fome nos últimos tempos diante das escolhas políticas do atual governo?

No Brasil, especialmente a partir do avanço da pandemia do novo coronavírus em 2020, a fome tem sido noticiada por veículos de imprensa de diversas maneiras. Alguns chegam a informar à população a partir de uma abordagem mais técnica, tomando para si a pretensão da objetividade impossível, visão há muito criticada por diferentes autores da área jornalística, a exemplo de Luiz Gonzaga Motta (2013), Genro Filho (1996) e Schudson (2010); outros agem de forma sensacionalista e há também aqueles que abordam essa temática formulando argumentos pautados na questão política.

O flagelo da fome e a insegurança alimentar e nutricional não é um acidente natural, ou um castigo divino, ela é, em grande parte, resultado de escolhas e não escolhas feitas por governantes de um país. O intelectual e cientista pernambucano Josué de Castro, a partir da obra Geografia da Fome (1946), já denunciava que o fenômeno da fome não era exclusivamente biológico, mas possuía um caráter multidimensional: sociocultural, político e econômico. O autor defendia que a fome, em toda a sua complexidade, deve ser combatida de maneira sistêmica e de forma permanente, através de diversas frentes e conforme as especificidades de cada contexto socioeconômico.

O fato é que a tematização midiática em torno da fome, especialmente do jornalismo local, muitas vezes, é abordada como algo circunstancial e passível de ser resolvida apenas com ações de solidariedade, diferentemente do que propunha Castro (1946). Não que tais ações não sejam importantes, especialmente quando se observa um completo abandono do Estado às pessoas que passam fome. E “quem tem fome, tem pressa”, como diria Herbert de Souza, o Betinho. A questão é que a fome deve ser enfrentada através das lutas e reivindicações de setores da sociedade civil de forma que garantam, por meio da implementação de políticas públicas, o acesso pleno à alimentação adequada e justa; e a mídia tem um papel fundamental nessa mobilização social.

Nesse sentido, não há como ser “objetivo” diante da falta de acesso à alimentação, um direito presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e garantido pela Constituição Federal de 1988. Também não se pode encará-lo de forma superficial. Esse é um direito básico e está relacionado a ter acesso, regular e permanente, a uma alimentação quantitativa e qualitativa de um povo, garantindo uma vida plena e satisfatória, livre de problemas causados pela escassez de alimentos (ZIEGLER, 2013).

A fome, portanto, não deve ser encarada por um viés meramente técnico, superficial ou sensacionalista, mas político; porque o direito à alimentação adequada e justa da população não está assegurado, pelo contrário, está sendo ainda mais comprometido com o aprofundamento dos efeitos perversos da pandemia. A fome oculta e invisível (desnutrição) gera prejuízos incalculáveis para todos os que não têm acesso mínimo ou satisfatório a uma alimentação regular e de qualidade. E essa é uma situação de calamidade pública que atinge tanto aqueles que vivem na cidade como no campo, sobretudo mulheres; pessoas sem renda mínima, a população negra, além das famílias rurais com acesso precário à terra, as comunidades quilombolas, ribeirinhas e as populações indígenas.

Por ser a fome uma questão política, em 2014, o Brasil atingiu um avanço considerável no combate à mesma com cobertura abrangente de programas como o Bolsa Família e saiu do mapa mundial da fome (levantamento realizado pela ONU, Organização das Nações Unidas, para identificar a carência alimentar nos países). O Ipea, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, verificou que em 15 anos, de 2001 a 2017, o Bolsa Família conseguiu diminuir a pobreza em 15% e a pobreza extrema em 27% (LIMA, 2021). Não à toa, em 2013, o país obteve o maior alcance de segurança alimentar e nutricional e a alimentação de 77,4% dos lares “podia ser considerada como plena e regular” (SILVEIRA, 2021).

Diferentemente de governos anteriores, o (des)governo de Jair Bolsonaro demonstra não possuir compromisso algum com a fome dos brasileiros, a exemplo da extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), no âmbito federal; a diminuição do PAA, Programa de Aquisição de Alimentos, e redução do Pnae, Programa Nacional de Alimentação Escolar, além do fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que fomentava diversos subsídios para a agricultura familiar. Recentemente, ainda vetou quase integralmente os itens da Lei Assis Carvalho (PL 735/2020), aprovada pelo Congresso Nacional, que iria garantir às trabalhadoras e trabalhadores rurais acesso a crédito, cisternas, auxílio emergencial, entre outros benefícios. Alterado e novamente

JORNALISMO E CIDADANIA | 8

aprovado em 9 de junho de 2021 pela Câmara, o projeto segue agora para o Senado.

Não é demais repetir que a fome possui um caráter político, social e econômico. No final de 2020, enquanto 19 milhões de pessoas passavam fome, assistia-se a uma “comoditização” dos alimentos. Nesse período, o agronegócio comemorava o “recorde de grãos e crescimento de 5,7% em relação à safra anterior” (CIMA et al, 2021). O Brasil é o segundo maior exportador de alimentos do mundo, de acordo com a Organização Mundial do Comércio (OMC), mas 75% dos domicílios do campo viviam em situação de insegurança alimentar no segundo semestre de 2020, de acordo com um estudo da Universidade Livre de Berlim. Desses, 27% passavam por insegurança alimentar grave, caracterizada quando os moradores de um domicílio passam por privação severa de alimentos ou fome (CARRANÇA, 2021).

O jornalismo precisa politizar a fome! Não é uma opção não se indignar com esse cenário, é um compromisso cidadão, humano e moral. Não é possível se observar com “distanciamento necessário” pessoas em situação de insegurança alimentar e retratar a sua realidade de forma “objetiva”, “espelhada”, ou se aproveitar de sua condição para explorar sua vida de forma sensacionalista, nem abordar esse assunto como se ele fosse obra do acaso. Diferentemente do que setores da grande mídia propagam, a fome não é um problema exclusivamente natural e/ou uma mera fatalidade por causa da propagação da Covid-19. Ela é uma expressão biológica de um problema político, econômico e social (ADAS, 1988). E é assim que deve ser amplamente denunciada e combatida, ao propor não apenas soluções assistencialistas e de curto prazo, mas através de transformações estruturais e profundas, que contribuam para que toda a população brasileira possa ter uma vida mais digna e plena, sem esse flagelo que assola o mundo durante longos períodos na história da humanidade.

Referências

ADAS, Melhem. A fome: crise ou escândalo? São Paulo: Moderna, 1988.

CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2003.

CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro do pão e aço. Rio de Janeiro: Antares /Achiamé, 1980.

CARRANÇA, Thais. 3 em cada 4 famílias do campo comem mal ou passam fome no Brasil. Disponível em: https:// economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/06/02/exportacao-recorde-alimentos-seca-pandemia-fome-campo.htm. Acesso em: 10 jun. 2021.

CIMA, Justina et al. Camponesas denunciam: além da covid 19, Bolsonaro espalha a pandemia da fome da fome. 2021. Disponível em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2021/06/camponesas-denunciam-alem-da-covid-19-bol-

sonaro-espalha-a-pandemia-da-fome/. Acesso em: 10 jun. 2021.

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. In: Revista da Fenaj. Brasília, Fenaj. ano I, n.1. maio 1996.

LIMA, Mário Sérgio. Inflação e pandemia podem empurrar Brasil de volta ao Mapa da Fome. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/04/01/inflacao-e-pandemia-podem-empurrar-brasil-de-volta-ao-mapa-da-fome. Acesso em: 10 jun. 2021.

MOTTA, L. G. Análise Crítica da Narrativa. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2013. 254 p.

SILVEIRA, Daniel. Fome no Brasil. Disponível em: https:// g1.globo.com/economia/noticia/2020/09/17/fome-no-brasilem-5-anos-cresce-em-3-milhoes-o-no-de-pessoas-em-situacao-de-inseguranca-alimentar-grave-diz-ibge.ghtml. Acesso em: 10 jun. 2021.

SCHUDSON, Michael. Descobrindo a notícia: Uma história social dos jornais nos Estados Unidos. Trad. Denise Jardim Duarte. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: Geopolítica da fome. São Paulo: Cortez Editora, 2013.

Inã Cândido é sociólogo e doutorando do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGS- UFPE).

Karolina Calado é jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco e professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Sergipe.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 9

Humberto Maturana: Queremos ou não conviver?

Por Marcos Costa Lima e Maria de Jesus de Britto Leite

“Todo ato de conhecer faz surgir um mundo”.

Humberto Maturana

O Biólogo chileno Humberto Maturana, falecido em maio de 2021, influenciou as ciências sociais com seus estudos sobre os seres vivos. Crítico das lógicas neoliberais, constatou, com sua teoria da autopoiese, que a humanidade pode reconstruir o mundo, mas a evolução só vem a partir do cuidado.

Nascido em Santiago do Chile, doutorou-se em Biologia por Harvard (1958), trabalhou em neurofisiologia no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e também transitou pela filosofia, antropologia e algumas áreas específicas da medicina, como anatomia, genética e cardiologia, com um interesse permeado pela compreensão dos seres vivos e, especialmente, do humano e da relação entre humanos.

Autopoiesis (do grego auto “próprio”, poiesis, “criação”) é um termo criado na década de 1970 por Maturana, junto com o também biólogo chileno Francisco Varela, que tinha sido seu aluno, para designar a capacidade dos seres vivos de se auto-refazerem. Segundo esta teoria, um ser vivo é caracterizado como uma rede fechada de produções moleculares (processos) em que as moléculas produzidas são geradoras da interação da mesma rede de moléculas que as produziu. A conservação da autopoiese e da adaptação de um ser vivo ao seu meio são condições sistêmicas para a vida. Portanto, um sistema vivo, como sistema autônomo, está constantemente se autoproduzindo, autorregulando, sempre mantendo interações com o meio, onde este desencadeia mudanças determinadas em sua própria estrutura, e não através de um agente externo (Rios Neto, 2021). Este conceito está desenvolvido no livro “Das máquinas e dos seres vivos”.

Como escreveu Cathalifaud (2021), “a difusão da teoria de Maturana nos convida a relativizar a validade atual das divisões territoriais do conhecimento e, por outro lado, as possibilidades de que os avanços científicos produzidos na periferia do mundo sejam incorporados ao desenvolvimento do conhecimento científico e, portanto, sua memória constitui um importante estímulo”.

Há tempos, seus criadores propuseram a seguinte questão: até que ponto a fenomenologia social pode ser considerada uma fenomenologia biológica? A palavra surgiu pela primeira vez na literatura internacional

em 1974, num artigo publicado por Varela, Maturana e Uribe, para definir os seres vivos como sistemas que produzem continuamente a si mesmos. São os tais sistemas autopoiéticos que, por definição, recompõem continuamente os seus componentes desgastados. Por isso, pode-se dizer, portanto, que um sistema autopoiético é ao mesmo tempo produtor e produto. Anteriormente, o processo de observação científica de um dado objeto pressupunha a análise estrutural de todos os seus elementos constitutivos isoladamente – conhecer algo significava poder determinar quais são as partes que determinam o todo desse objeto. Não se avaliava as relações entre os elementos, mas apenas sua condição/colocação no todo.

A proposta da teoria autopoiética, diferentemente da postura analítica tradicional, na Ciência, parte da observação de determinado objeto pela interação de seus elementos, possibilitando, assim, a construção de um arcabouço científico embasado nas relações entre os elementos e as funções exercidas no todo comunicativo dos sistemas. A autopoiese vem sendo utilizada também como marco teórico dos Direitos Fundamentais.

Em sua intensa e abrangente prática científica, Maturana deixou para a humanidade contribuições relevantes para a compreensão do que seja a vida, em especial, sobre os fundamentos biológicos que a sustentam (ou deveriam sustentar) não só o comportamento humano, mas também o social. O que dá origem ao social é a aceitação da legitimidade da existência do outro, sem a qual não poderia haver convivência humana. Diz Maturana: “a origem antropológica do Homo sapiens não se deu através da competição, mas sim através da cooperação”.

Uma primeira reflexão que trazemos sobre Maturana reside no campo das Ciências Sociais. Sabemos que a negação da política está atualmente em acelerada expansão em várias partes do mundo, como reflexo do exacerbamento do capitalismo por meio da doutrina neoliberal em curso nos últimos cinquenta anos. Ainda mais impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico, de um lado, desarticula e suprime as forças do Estado e, de outro, impõe o “padrão empresa” de sociabilidade. Ou, como prefere Maturana, estamos vivenciando a “abertura para a tirania empresarial”. Através de seus estudos, Maturana entendeu que estamos vivendo, há milênios, sob um paradigma civilizacional totalmente incongruente com os processos de sustentação da vida, que tem afetado as mais diversas dimensões da experi-

JORNALISMO E CIDADANIA | 10

ência humana: científica, econômica, cultural, política, social, religiosa, dentre outras.

Notadamente sobre Educação, em seu livro “Emoções e Linguagem na Educação e na Política”, Maturana introduz uma série de conceitos muito válidos, que se inicia pela questão “para que serve a Educação?” que logo desenvolve para “o que queremos da Educação?”. Para este grande pensador, não se pode refletir sobre isto sem se perguntar sobre o projeto de País. No caso do Chile, ele não reconhecia, naquele momento, um projeto. Lembrando de sua juventude universitária, diz que se dá conta da existência de dois projetos nacionais: um do passado e outro do presente. E recorda: “estudei para devolver ao país o que havia recebido dele”. Assim, esteve sempre mergulhado num projeto de responsabilidade social. Diz ele que as preocupações dos estudantes de hoje mudaram, pois se encontram no dilema de escolher entre o que deles se pede, que é preparar-se para competir no mercado profissional, e o ímpeto de sua empatia social “que os leva a desejar mudar uma ordem político-cultural geradora de excessivas desigualdades, que trazem pobreza e sofrimento material e espiritual” (p. 13).

Sua declaração é contundente quando afirma que num momento em que uma pessoa se torna estudante para entrar na competição profissional, ela faz de sua vida estudantil um processo de preparação que se define pela negação do outro, sob o eufemismo do mercado da livre e sadia competição. Maturana então responde: “a competição não é nem pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro” (p.13).

Uma terceira reflexão que ele nos oferece trata da relação entre Racionalidade e Emoção. Maturana fala aqui dos antolhos, ou seja, de todos os conceitos e afirmações sobre os quais temos refletido (e que aceitamos), porque parece que todo o mundo os entende. Dizer que a razão caracteriza o humano é um antolho, “porque nos deixa cegos frente à emoção, que fica desvalorizada como algo animal, ou como algo que nega o racional” (p.15): “ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional” (p. 15).

Maturana traz outras reflexões muito importantes que não podemos aqui desenvolver como mereceria, mas que registramos porque são centrais para entendermos como um projeto civilizatório entrou “em parafuso”, na medida em que valorizou a competição, o poder, a dominação, a hierarquia. Ele afirma que “sem a aceitação do outro na convivência, não há fenômeno social”, ou, em outras palavras, “que só são sociais as relações que se fundam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, e que tal constitui uma conduta de respeito” (p. 24).

Concluímos aqui, convidando a uma leitura nos escritos de Maturana. Há também muitos vídeos de conferências dele e com ele nos canais do Youtube. Num desses vídeos, diz ele: “Estamos muito limitados em nossa disposição de colaborar, e o colaborar não se faz entre especialistas, entre os donos da verdade, entre relações de autoridade, senão que pelo respeito mútuo”.

Referências

Mariotti, Humberto, Autopoiesis, Cultura e Sociedade. https://pt.scribd.com/document/171783457/Autopoiese-Cultura-e-Sociedade

Maturana, Humberto (2001), Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte: Editora UFMG.

Maturana, Humberto, “Charla Magistral “Educación, ética y democracia” del Profesor Humberto Maturana” 28 de abril de 2015 https:// youtu.be/3rEwfv4kZ-U acessado em 15 de maio de 2021.

Rios Neto, Antônio Sales (2021), “Maturana: sem cooperação e alteridade, não há futuro”. In Outras Palavras, 07/05/

Marcos Costa Lima é Professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

Maria de Jesus de Britto Leite é Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano e Coordenadora do Centro de Estudos Avançados da UFPE.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 11

A importância de se fazer uma boa pesquisa documental

Como todo trabalho jornalístico de qualidade, um livro-reportagem como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) precisa ter como um dos seus principais atributos uma pesquisa documental consistente. Muitas vezes essa etapa envolve dificuldades devido às condições de preservação de materiais de memória no Brasil. Mas, uma vez encontradas as fontes, mergulhar em documentos do passado, ao contrário do que pode parecer a princípio, costuma ser um trabalho prazeroso e que trará descobertas surpreendentes para a narrativa da biografia ou do relato jornalístico-histórico. Se o estudante formando está elaborando uma biografia, os documentos cruciais podem estar no baú ou nos arquivos dos seus entrevistados: certidões de nascimento, boletins escolares, recortes de jornais, preciosos diários, cartas, fotografias. Quando estava preparando a biografia de Paulo Coelho, intitulada “O Mago”, o jornalista e escritor Fernando Morais se deparou com uma situação curiosa envolvendo documentos íntimos. Já estava em estágio avançado

das entrevistas, tinha uma linha condutora narrativa já traçada para a obra quando certo dia encontrou, ao ler o testamento do escritor de “O Alquimista”, uma recomendação de que os seus diários dos 15 aos 30 anos fossem destruídos após a sua morte. Fernando Morais pediu acesso aos diários ao seu biografado e Paulo Coelho disse que só os liberaria se o biógrafo descobrisse quem foi que o torturou durante o governo militar. Experiente pesquisador do período, Fernando Morais logo descobriu o nome do torturador e teve acesso a um manancial riquíssimo de revelações sobre o biografado em incontáveis páginas. Teve então que parar todo o trabalho e retomar as entrevistas com novo viés. Essa história demonstra bem como o esmiuçar de documentos por vezes secretos pode ser um caminho de verdadeiros furos de reportagem em uma biografia, mesmo para TCC. Além dos documentos pessoais, jornais do passado auxiliam muito na hora de reconstituir panos de fundo históricos, descortinando para o leitor o que estava ocorrendo em termos sociais, políticos e culturais no período em que o biografado viveu. Ou mesmo quando o livro-reportagem tem como tema central uma reconstituição jornalística-histórica, uma obra sobre a história de uma cidade do interior, por exemplo.

Descoberta de personagens e entrevistas em profundidade

Um livro-reportagem de qualidade traz um número considerável de entrevistados. E a conversa com cada um deles precisa ser conduzida com calma, longamente, muitas vezes com mais de um encontro. Em primeiro lugar é preciso traçar uma lista inicial de entrevistados que vai nascer da leitura das fontes documentais, como jornais de época e obras que já trataram do tema que você está abordando no livro-reportagem. Ao marcar a entrevista com qualquer fonte, um bom método é solicitar que ela procure previamente nos seus arquivos todo e qualquer documento que vai ajudar a iluminar os relatos. Assim o próprio entrevistado, ao selecionar papéis do passado que tem a ver com o que vai contar na entrevista, já vai refrescar a sua memória antes da conversa com o jornalista-pesquisador. Outro bom método, claro, com distanciamento social em tempos de pandemia da Covid-19, é propor ao entrevistado um encontro em um local crucial do passado,

JORNALISMO E CIDADANIA | 12

como uma escola que ele estudou, ou mesmo em um espaço público em que ocorreu um determinado fato histórico. Este também é um método poderoso para reavivar as memórias. Tudo o que o entrevistado disser deve ser ouvido com atenção, mas é tarefa do jornalista checar toda e qualquer informação oral que foi fornecida, pois a memória é traiçoeira, principalmente com datas. Não perca a oportunidade de perguntar a cada entrevistado quem são outras fontes cruciais que você não colocou na sua lista. Em caso de fatos polêmicos ou controversos, o que é muito comum ocorrer no processo de apuração para um livro-reportagem, vale a velha regra jornalística: voltar às fontes que discordam entre si, apoiar-se em documentos, e, no caso de um impasse insolúvel, deixar claro para o leitor que duas ou três versões do mesmo acontecimento subsistem na memória dos depoentes. Também é básico gravar as entrevistas, mas sempre se mantendo atento ao que a fonte fala e fazendo anotações pessoais a respeito de reações não-verbais, como expressões do rosto, exasperações, silêncios momentâneos. Dependendo do tema da entrevista, muitas vezes o entrevistado pode ser tomado de uma emoção incontrolável, respeite. Perguntas muito íntimas ou mais polêmicas devem ser guardadas para o final, já que o entrevistado pode se irritar e cortar a relação com o repórter. Absolutamente cada detalhe é muito revelador e os seus entrevistados são a base para a produção de um livro-reportagem como TCC.

Organização é determinante ao elaborar um livro-reportagem

No processo de elaboração de um livro-reportagem como TCC, ainda mais com os prazos mais curtos que o estudante conta em um curso de Jornalismo, organizar previamente todo o material coletado vai ajudar bastante na hora de partir para a escrita. O método desenvolvido e recomendado pelo jornalista e escritor Ruy Castro, biógrafo de Carmem Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é um dos mais interessantes neste sentido. Ele abre um arquivo do Word para cada ano de vida do seu biografado e tudo o que descobre ao longo do caminho em termos documentais e a partir de entrevistas orais o escritor vai jogando no período correspondente à vida do biografado. Por exemplo: ao encerrar uma entrevista com uma personalidade que conviveu longos anos com o seu biografado, esta pessoa com certeza terá tratado com detalhes sobre períodos de tempo diferentes. Transcreva imediatamente a entrevista e separe as falas do entrevistado em cada arquivo correspondente ao ano que ele se referiu. Assim, em determinado momento cada arquivo do Word específico vai estar bem recheado de informações documentais e orais sobre o tema central do livro-reportagem nos seus locais certos, sem confusão. No caso

de um livro de reconstituição jornalístico-histórica, ou sobre um grupo social, uma comunidade, a divisão dos arquivos do Word pode ser, também, a partir da lógica que você estabeleceu previamente ao pensar no assunto de cada capítulo que vai compor a sua obra. Vai ser muito menos tortuoso começar a escrever um livro-reportagem depois da fase de pesquisa documental e entrevistas orais se o autor já for dividindo e organizando as suas descobertas em arquivos que seguem uma lógica específica.

Referências

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: livro-reportagem como extensão do jornalismo. 4. Ed. São Paulo: Manole, 2009.

MACIEL, Alexandre Zarate. Narradores do contemporâneo: jornalistas escritores e o livro-reportagem no Brasil. Recife, 2018. Tese (Doutorado em Comunicação)-Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

VILAS BOAS, Sergio Luís. Biografismo: reflexões sobre a escrita da vida. São Paulo: Unesp, 2012.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz e doutor em Comunicação pela UFPE, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 13

Maquiavel: Dissenso, Liberdade e Lei (I)

I – A virtù, a política e o “moderno príncipe”

Na Idade Média, cujos valores se inspiraram nos ensinamentos de Santo Agostinho,

[...] a obra humana não significava nada, pois era a pura expressão de nossa concepção de seres em queda. As verdadeiras ações dignas de elogio eram praticadas sob a inspiração divina, pela graça, e não tinham qualquer ligação com as qualidades individuais dos homens. Ora, a concepção republicana, própria aos humanistas, punha o homem no centro do universo, exigindo dele aquilo que, aos olhos de um pensador medieval, só a graça poderia dar (BIGNOTTO, 1991, p. 32).

O Renascimento operou uma conversão da atitude contemplativa, típica da Idade Média, para o comportamento que valoriza a ação, o protagonismo do indivíduo, o conhecimento e a liberdade. Progressivamente, o ascetismo religioso dá lugar ao hedonismo, ao amor, à força e à beleza. A atitude contemplativa dá lugar ao espírito de iniciativa, que se reflete nas audaciosas inovações introduzidas na vida econômica, social, política, artística e cultural. É nesse contexto que se inserem as análises de Maquiavel sobre a virtù. Os indivíduos que dela são portadores apostam na força transformadora da ação, impondo limites às incertezas da fortuna (a boa ou a má sorte, o imponderável, as incertezas da vida).

A virtù conjuga vários atributos, tais como a ousadia, temperada pela prudência (homem leão e raposa); espírito inovador; saber julgar e decidir, astúcia; capacidade de perceber para onde os ventos sopram e o rumo que tomarão os acontecimentos. O homem é maleável, inventivo e perspicaz.

Em síntese: “o carisma da virtù é próprio daquele que se conforma à natureza do seu tempo, apreende-lhe o sentido e se capacita a realizar, na prática, a necessidade latente nas circunstâncias” (MARTINS, 1979, p. 17). A virtù caracteriza as qualidades dos homens inovadores, mas também o espírito de alguns povos e de suas instituições. Pode designar tanto um dom natural como exercício de disciplina. Para Maquiavel (1469-1527), o político virtuoso, que tem estatura de um estadista, é aquele que demonstra espírito público, liderança e descortínio, traduzidos na percepção dos valores novos e na capacidade de tornar efetivo o progresso em benefício da nação.

O carisma do verdadeiro príncipe (entendido esse ter-

mo, neste texto, como sinônimo de um ou de vários governantes) se expressa, portanto, na sua capacidade de conquistar e conservar o poder, garantindo, ao povo de que é líder, estabilidade e progresso. Para tanto, deverá, de um lado, mostrar habilidade “jogando com a distribuição dos bens, das honrarias, das recompensas” (RUBY, 1997, p. 69) e, do outro, impedindo que a plebe seja esmagada pelos poderosos. A ação mediadora do príncipe é um atributo essencial da arte de governar, na qual ele deve ser mestre, devendo assumir, em consequência, “um papel ativo, e mesmo estruturante, no interior de um corpo político heterogêneo” (RUBY, 1997, p. 69).

Na atualidade, esses parâmetros analíticos são centrados na concepção segundo a qual “não é a intenção que valida o ato, mas o seu resultado” (MAZZEO, 1970, apud Moreira, 1975, p. 32) para avaliar a ação dos estadistas e governantes contemporâneos. Nesta avaliação, deve-se ter sempre presente a profunda diferença das práticas políticas das democracias atuais em relação às do primeiro quarto do século XVI, que ainda não se despedira do regime feudal. Com efeito, na democracia, o acesso ao poder se realiza sob a tutela de regras pré-definidas, sendo os governantes, eleitos pelo sufrágio universal, responsáveis pela garantia do Estado de Direito e pelo respeito às liberdades democráticas e à participação popular na gestão pública.

Como se verá adiante, o regime democrático gera práticas políticas dotadas de um conteúdo ético qualitativamente distinto do que vigorava na época do secretário florentino. Mas já existia, ao lado da aristocracia, a República, da qual Maquiavel era adepto. Destarte, o personagem de virtù capaz de “conduzir a nau a porto seguro”, não se encarnaria apenas em heróis individuais como César Borgia, em quem ele via o possível unificador de sua pátria italiana, dilacerada por conflitos internos. Em uma república virtuosa como Roma, residiria no povo, como ator coletivo, na sua determinação guerreira e no seu espírito cívico-patriótico, a força e a capacidade de afirmação da vontade estatal (PRÉLOT, 1977, p. 210).

Para Antonio Gramsci (1998), um dos mais influentes teóricos marxistas, o moderno príncipe seria encarnado pelo Partido Comunista, que, em nome do proletariado, reconstruiria os fundamentos do Estado, colocando-o a serviço da redenção socialista. Atualmente, estudiosos de diversas correntes de pensamento, críticos do statu quo, tendem a enfatizar o papel da sociedade organizada, participativa, notadamente a que se localiza no mundo do

JORNALISMO E CIDADANIA | 14

trabalho, como principal protagonista da construção de vontades coletivas nacionais capazes de criar um projeto alternativo à hegemonia “neoliberal”.

A construção de um projeto político e social transformador resultaria, pois, de ampla conjugação de forças, tanto no âmbito do Estado quanto no seio da sociedade civil, liderada por quem receber, nas urnas, o aval da confiança do povo para a efetivação de mudanças. O “moderno príncipe” – portador de hegemonia – não seria mais um único ente, e sim a encarnação da síntese dialética dessas múltiplas determinações.

II - Ética, política e razão de Estado

Maquiavel, em sua concepção sobre a ética do estadista – que a distingue claramente da moral individual –, deixa nítida a diferença entre, de um lado, o espaço público e, de outro, as relações privadas, numa visão que contrasta com a da época medieval, em que não se distinguia interesse público e privado, como foi o caso do poder exercido pelos senhores feudais.

Com a ampliação do espaço público e sua separação da esfera privada, o critério de julgamento da atuação do governante tende a orientar as ações do “príncipe” pela “razão de Estado”. Dessa forma, as suas opções serão ditadas pelas consequências (boas ou más) que elas terão para o êxito de suas iniciativas (ética da responsabilidade), e nunca por convicções morais (ética da consciência). Os meios utilizados são bons, por definição, quando se destinam a preservar o Estado, valor mais alto além do qual nada existe.

Portanto, não é possível considerar imoral a ação do estadista de virtù, quando voltada para a realização do valor supremo: o bem do Estado. A questão da relação entre meios e fins só é posta quando o sujeito identifica um conflito entre os primeiros e os segundos, em virtude de seus valores morais e éticos se chocarem com os meios adotados para a realização dos fins.

Para o pensador de Florença que foi também segundo chanceler dessa república, não subsiste dilema a esse respeito. Ao contrário, a ética na vida pública se realiza plenamente quando o estadista age em defesa do Estado, sendo sempre, dadas as características próprias do agir político, bons os meios empregados para essa defesa.

Nessa concepção, “a lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser imoral ao ponto de vista da ética privada pode ser virtù na política.” (CHAUÍ, 2000, p. 397). Em outras palavras, Maquiavel inaugura a ideia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indivíduos. “O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder.” (CHAUÍ, 2000, p. 397)

Maquiavel não fez, contrariamente ao que se divulga, a apologia gratuita da força. A sua utilização deve ser vir-

tuosa, somente em caso de necessidade, pois é preferível a astúcia da raposa à violência do leão. Não podia ser outra a sua posição, à luz da percepção dos valores de sua época, caracterizada pela presença da mais brutal violência nas relações sociais, ingrediente onipresente e principal suporte de poder nas relações políticas concretas então existentes. Basta lembrar que o chefe do governo que antecedeu aquele do qual participou Maquiavel na República de Florença – Savonarola – foi queimado na fogueira, como muitos outros “hereges”. Ele próprio não escapou de ser torturado após a queda do governo do qual era destacado participante.

É nesse contexto que se situa a moral propugnada por Maquiavel: “que é a do cidadão, homem que constrói o Estado, uma moral mundana”, a qual “emerge das relações reais que se estabelecem entre seres humanos” (GRUPPI, 1978, p. 11). Exemplo sempre lembrado de como Maquiavel distingue a ética pública da privada é o comentário sobre o assassínio de Remo por seu irmão Rômulo – ambos fundadores de Roma:

[...] alguém pode ser acusado pelas ações concretas que cometeu, e justificado pelo resultado destas. E, quando o resultado for bom, como no exemplo de Rômulo, a justificação não faltará. Só devem ser reprovadas as ações cuja violência tem por objetivo destruir, em vez de reparar (MAQUIAVEL, 1979, p. 49).

Quer dizer, se a ótica da análise fosse a da moral privada, poder-se-ia falar em um crime hediondo, um fratricídio. Porém, a morte de Remo, ao eliminar uma divisão que enfraquecia o poder do Estado nascente (o romano), fortaleceu-o, o que justificou o crime, do ponto de vista do interesse público. Nessa perspectiva, o pensador de Florença “confere valor supremo à autoridade do Estado e considera a devoção integral à Pátria como finalidade última da vida humana” (MORAES, 1981, p. 19).

(*) Doutor em Direito Público e Ciência Política e Professor Emérito da UFPB.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 15

Negócios do vento em Pernambuco e o papel do Iterpe

O Instituto de Terras e Reforma Agrária do Estado de Pernambuco (Iterpe) é uma autarquia vinculada à Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária. Com autonomia administrativa e financeira, usufrui da prerrogativa de controle das terras públicas, da intermediação de conflitos pela posse da terra, da implantação de assentamentos, da reformulação fundiária do território estadual e a da operacionalização do Programa Nacional de Crédito Fundiário.

Sua área de atuação tem tudo a ver com as questões vinculadas às áreas rurais, onde os conflitos pela terra são constantes e violentos. Nos últimos anos, mais um tema foi adicionado a tantos outros, que permeia os conflitos relacionados com a posse da terra: o da instalação de grandes parques eólicos. Essas instalações afetam diretamente os pequenos imóveis rurais, agricultores familiares que, em sua expressiva maioria, não têm a posse da terra onde vivem, trabalham e dela tiram seu sustento por gerações.

Como é do conhecimento geral, a instalação de aerogeradores, máquinas que transformam a energia do vento em energia elétrica, tem crescido exponencialmente no Brasil, em particular no Nordeste, onde estão localizados mais de 80% da potência eólica total instalada no país, correspondendo a pouco mais de 7.000 aerogeradores. O total dessas instalações em 2021 atingiu uma potência expressiva de 18 GW (em 2011, era menos de 1 GW). Em um cálculo rápido, pode-se considerar que 1 MW ocupa em torno de 1 ha, ou seja, 18.000 ha aproximadamente já foram atingidos por tais equipamentos em todo o território nacional; no Nordeste, aproximadamente 15.000 ha (correspondendo a 15.000 campos de futebol).

Falar da energia eólica em grandes unidades geradoras centralizadas significa falar na ocupação de grandes superfícies contínuas. E, quando essas instalações são no interior, a grande maioria, (outra situação são as instalações em áreas costeiras) ocupa o bioma Caatinga e os brejos de altitude, resultando em desmatamento e destruição ambiental. São nos terrenos de grandes altitudes que as maiores velocidades dos ventos são encontradas, resultando em maior geração de energia elétrica e mais lucros para os investidores dos parques eólicos.

Em Pernambuco, a “bola da vez” dos negócios do vento está apontado para os brejos de altitude (https:// racismoambiental.net.br/2018/04/02/usinas-eolicas-a-bola-da-vez-e-bonito-pe/), também conhecidos como

florestas de serra. Esses locais oferecem as melhores condições para o desenvolvimento de uma flora com características da Mata Atlântica e da Caatinga. Comuns nesses territórios são as nascentes de água, que alimentam importantes bacias hidrográficas. Para atender aos interesses dos negócios do vento, o governo estadual não tem medido esforços.

Com relação aos brejos de altitude, a Lei Estadual 15.621 de 2015 alterou a Política Florestal do Estado (Lei 11.206/1995). Anteriormente, era considerado que altitudes superiores a 750 m eram áreas protegidas de preservação permanente. Com a modificação, a proteção passou a ser de áreas superiores a 1.100 m, o que significou a plena abertura para os negócios do vento se instalarem nos brejos de altitude.

Em setembro de 2020, foi sancionada a Lei Estadual 17.041, que também alterou a Política Florestal do Estado, dispensando os empreendimentos eólicos e solares de manter áreas destinadas à manutenção da vegetação nativa, que corresponde a 20% do total da área do imóvel, as Reservas Legais.

Mesmo depois do afrouxamento de sua Política Florestal, o governo de Pernambuco continua a favorecer as empresas eólicas que precisam dos imóveis rurais para instalarem os aerogeradores. Necessitam, para adquirir as terras ou realizar os contratos de arrendamento, que os imóveis estejam regularizados, com a emissão do título de posse. Assim, o morador do imóvel poderá assinar esses contratos, cujo conteúdo contém cláusulas draconianas (https://www.ecodebate.com.br/2021/03/17/ negocios-do-vento-arrendamento-ou-expropriacao-de-terra/), contrárias a seus interesses.

O que se tem verificado em Pernambuco é a ação espúria, antiética e imoral dos representantes dos negócios dos ventos (https://www.ecodebate.com.br/2018/03/23/ negocios-do-vento-no-nordeste-brasileiro-caso-a-investigar-artigo-de-heitor-scalambrini-costa/), aliados ao Iterpe, para que os moradores dos imóveis tenham o título de posse dos mesmos (sonho acalentado pelos moradores) para poderem assinar o contrato de arrendamento. Assim, o que é um pleito, uma reivindicação dos moradores e das suas famílias, acaba se tornando um pesadelo, pois, com os contratos de arrendamento assinados, os arrendatários permitem que, durante 30 a 40 anos, essas terras sejam utilizadas pela empresa eólica. Faz parte das cláusulas contratuais, que obedecem à lógica da expropriação da terra, a renovação automática

JORNALISMO E CIDADANIA | 16

do período de arrendamento quantas vezes a empresa quiser, sem a aprovação dos proprietários.

O escandaloso nesse processo é a ligação umbilical e promíscua do interesse público com o interesse privado. A incompatibilidade dessa relação simbiótica tem a ver com as ações conflitantes e contraditórias do governo estadual. Por um lado, o Iterpe promove reuniões com a empresa Mundo dos Ventos (atual PEC Energia) para a assinatura de um Acordo de Cooperação Técnica para a regularização fundiária de imóveis rurais de interesse da empresa, nos municípios de Belo Jardim, Sanharó e Brejo da Madre de Deus. Por outro lado, o Conselho Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (Consema) aprovou, em novembro de 2020, durante a sua 56ª reunião extraordinária, a criação de três novas Unidades de Conservação (UCs): a Área de Proteção Ambiental (APA) Serras e Brejos do Capibaribe, com 73.781,65 hectares, entre os municípios de Brejo da Madre de Deus, Santa Cruz do Capibaribe, Belo Jardim, Vertentes e Taquaritinga do Norte; e o Refúgio de Vida Silvestre (RVS) Cabeceiras do Rio Capibaribe, com área de 6.926,25 hectares, localizada nos municípios de Jataúba e Poção; além do Refúgio de Vida Silvestre Mata do Bitury, localizado entre os municípios de Brejo da Madre de Deus e Belo Jardim, que deve proteger 888,25 hectares remanescentes de floresta de brejos de altitude. Lembrando que esses territórios são os mesmos ambicionados pelas empresas eólicas.

Tal mancomunação entre o Iterpe e representantes dos negócios do vento é nocivo aos interesses das populações rurais e das reservas naturais que vão sofrer inúmeros impactos (desmatamento, destruição das nascentes e a devastação do meio ambiente) decorrentes da implantação de parques eólicos ocupando grandes áreas contínuas. Essa ação coordenada entre a iniciativa privada e o setor público, contrária aos interesses do homem do campo, exige explicações e maior transparência.

Esse favorecimento de empreendimentos que, comprovadamente, provocam danos ao meio ambiente, faz parte de uma política deliberada do governo estadual, na ânsia de trazer para o estado novos empreendimentos, todavia, menosprezando a questão ambiental (o atual governo federal está fazendo escola).

O que ocorre em Pernambuco também acontece em outros estados da Federação onde se vale da presença da autoridade de instituições governamentais para agilizar a regularização fundiária (o que, geralmente, é um processo longo e penoso), com o intuito de atender interesses de grandes empresas, contando, muitas vezes, com recursos fornecidos pelas próprias empresas através de acordos de cooperação.

Associados à ignorância, à pobreza, à falta de políticas públicas e ao desconhecimento dos reais impactos dos parques eólicos, os moradores das áreas rurais ficam completamente à mercê da ganância dos negócios do vento, verdadeiros “vendedores de ilusão”. Assim, a regularização fundiária das terras dos pequenos imóveis

rurais, que deveria ser comemorada, torna-se um pesadelo.

A pergunta que não quer calar é: “o Iterpe está a serviço de quem?” Deixo a resposta para os leitores.

Heitor Scalambrini Costa é Professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 17

Mas o que é mesmo pós-colonial?

Por Mônica de Lourdes Neves Santana

Existe um entendimento inicial encontrado nos dicionários que remete à ideia de pós como o que vem depois, que se segue ao posterior, que supera o colonial, relativo ao período que sucedeu o fim do regime colonial. Tudo bem, isso é verdade em termos cronológicos. O prefixo “pós” aponta para a permanência da problemática colonial em contextos que permitem tomá-la como referência (RIBEIRO, 2010). Desde já, adiantamos que não é nossa pretensão abarcar a totalidade dos seus significados, mas esboçar algumas ideias iniciais. Então vamos lá.

Acontece que o pós-colonial que abordamos aqui é um discurso que, a princípio, realiza uma releitura da colonização com seus massacres, entre eles a violência imposta aos colonizados e à introjeção da visão de mundo do opressor como universal e natural, analisando as consequências. É no sentido de crítica ao colonialismo que manteremos nossa linha de diálogo.

Ademais, não existe uma única teoria pós-colonial, pois ela é formada por uma série de estudos com contribuições em diversas áreas — a saber, ciências sociais, história, política, filosofia — com críticas às narrativas eurocêntricas. De fato, o termo revela-se como heterogêneo e de difícil delimitação (GUERRA, 2021).

O pós-colonialismo se propõe a analisar como determinados lugares e pessoas são retratados como subalternos, em relação desigual e de fronteira aos que se acreditam superiores e desenvolvidos. Isso acontece em uma relação de poder entre Primeiro e Terceiro Mundo, conhecidos como Norte e Sul global (PEZZODIPANE, 2013). Na raiz desse pensamento, estão teóricos anticoloniais, como Frantz Fanon, Aimé Césaire, Albert Memmi, Édouard Glissant, Boaventura de Sousa Santos, Stuart Hall, Homi Bhabha, Gayatri Spivak, que, além da luta política e militar, trabalharam no discurso da diferença.

Como justificaria o teórico e crítico literário Bhabha (2012), precisamos do pós-colonial para nos mostrar a experiência completa da descolonização. Para o autor:

A crítica pós-colonial é testemunha das forças desiguais e irregulares de representação cultural envolvidas na competição pela autoridade políti -

ca e social dentro da ordem do mundo moderno. As perspectivas pós-coloniais emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das ‘minorias dentro das divisões geopolíticas de Leste e Oeste, Norte-Sul’”. Elas intervêm naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma ‘normalidade’ hegemônica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades, povos. Elas formulam suas revisões críticas em torno de questões de diferença cultural, autoridade social e discriminação política a fim de revelar os momentos antagônicos e ambivalentes no interior das ‘racionalizações’ da modernidade. Para adaptar Jurgen Habermas ao nosso propósito, podemos também argumentar que o projeto pós-colonial, no nível teórico mais geral, procura explorar aquelas patologias sociais — ‘perda de sentido, condições de anomia’ — que já não simplesmente ‘se aglutinam à volta do antagonismo de classe, [mas sim] fragmentam-se em contingências históricas amplamente dispersas’ (BHABHA, 1998, p. 239).

Tendo vivenciado a experiência colonial e sua brutalidade, que impôs submissão, obediência, desumanização, opressão, perda de identidade, diáspora, Bhabha apresenta um discurso de quem sabe o que diz e o que passou. Sendo assim, tornou-se um dos porta-vozes da situação. Estudiosos como ele se dedicam a rever o contexto e as condições em que certos setores da humanidade se encontravam excluídos para a compreensão dos fatos políticos, étnicos, sociais e culturais em países colonizados pela Europa (BONNICI, 2005, p. 9). Em O local da cultura (1998), Bhabha problematiza sobre a construção e a desconstrução da identidade do outro e como ele é apresentado de forma degenerada.

Digamos que o pós-colonialismo seja uma narrativa que faz oposição ao eurocentrismo, que se baseia na ideia de que os países da Europa Ocidental seriam culturalmente mais evoluídos e mais civilizados e que deveriam, dessa forma, administrar as periferias, justificando que as margens são inexperientes e precisariam de controle para o processo civilizatório, natu -

JORNALISMO E CIDADANIA | 18

ralizando a dominação do homem. Acreditamos que, nesse momento, o discurso de Césaire cabe bem para descrever a colonização:

O que é, em princípio, a colonização? Reconhecer que ela não é evangelização, nem empreitada filantrópica, nem vontade de fazer retroceder as fronteiras da ignorância, da enfermidade, da tirania, nem a expansão de Deus, nem a extensão do direito; admitir, de uma vez por todas, sem titubear, por receio das consequências, que, na colonização, o gesto decisivo é o do aventureiro e o do pirata, o do mercador e o do armador, o do caçador de ouro e o do comerciante, o do apetite e o da força, com a maléfica sombra projetada por trás por uma forma de civilização que, em um momento de sua história, se sente obrigada, endogenamente, a estender a concorrência de suas economias antagônicas à escala mundial (CÉSAIRE, 2010, p. 17).

O pós-colonial atua em novas epistemologias, valorizando os saberes e as vozes dos países periféricos quer sejam da África, da Ásia ou da América Latina. O seu principal objeto de investigação é a literatura escrita durante e após a ocupação colonial, e como a sociedade é representada nela, analisando os efeitos políticos, sociais e identitários que os países colonizados sofreram.

[...] a Europa Ocidental e os Estados Unidos arquitetaram a conquista política, econômica e cultural da África, Ásia, Oceania e América Latina. Repartiram o mundo entre si e organizaram poderosos impérios coloniais, que só tinham em comum o desenvolvimento da acumulação capitalista (BRUIT, 1987, p. 5).

Trata-se de trabalhar a questão da independência, da democracia, do reconhecimento dos direitos dos subalternos e, principalmente, da luta por identidade. Essa questão assume importância para os povos colonizados quando questionam um lugar que não seja o de sujeito dominado e discriminado pelo Ocidente, que se coloca no papel de protagonista da história. Nesse caso, é preciso um novo olhar, com uma nova e corrigida representação (SANTOS, 1999).

Finalmente, o pós-colonial oferece teorias para refletirmos e repensarmos o marco problematizador: o período colonial e uma reorganização de conceitos e perspectivas representando uma ruptura epistemológica.

Pelo andar da carruagem, parece que a complexidade da modernidade não significou o fim da era colonial, e o pós-colonial precisa ser reformulado porque existe uma nova onda de dominação que nos ronda.

Referências

BHABHA, Homi. O pós-colonial e o pós-moderno. A questão da agência. In: O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG. 1998.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad.: Myriam Ávila Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá: Eduem, 2005.

BRUIT, Héctor Hernan. O imperialismo. 2. Ed. São Paulo: Atual, 1987.

RIBEIRO, António Sousa. Pensamento pós-colonial. JANUS. Anuário de relações exteriores. 2010.

SANTOS, Boaventura Sousa. Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1999.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Blumenau: Letras Contemporâneas, 2010. pp. 7-85.

GUERRA, Luiz Antonio. Pós-colonialismo. Disponível em: https://www.infoescola.com/ historia/pos-colonialismo/.

PEZZODIPANE, Rosane Vieira. Pós-colonial: a ruptura com a história única. Revista Simbiótica - Universidade Federal do Espírito Santo - Núcleo de Estudos e Pesquisas Indiciárias, n. 3. 2013.

Mônica de Lourdes Neves Santana é Doutora em Relações Internacionais e Professora da Universidade Estadual da Paraíba. Atualmente, faz pós-doutorado em Ciência Política com o Professor Marcos Costa Lima na Universidade Federal de Pernambuco.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 19

Redes e jornalismo: a colaboração em foco

Por Ana Célia de Sá | Coluna Comunicação na Web

A atuação em rede é uma constante no jornalismo e ganhou peso ainda maior na internet devido à natureza multidirecional, multicanal e participativa do ambiente conectado. A remodelação espaço-temporal do ciberespaço, traduzida na quebra de barreiras físicas e na adoção da temporalidade social, também estimula a formação de redes colaborativas entre jornalistas e público em escala global, renovando rotinas, produtos e formas de difusão de conteúdo, em sintonia com a dinâmica fluida da sociedade contemporânea.

Para Heinrich (2011), o jornalismo em rede abrange justamente esse contexto digital. Nessa concepção, segundo a autora, produtores e distribuidores de conteúdo – jornalistas ou não – representam nós numa rede de informação. Esses nós se conectam por interatividade, constituindo o jornalismo em rede, o qual estimula a colaboração entre os participantes e, principalmente, modifica a estrutura organizacional do jornalismo e seus modos de produção em todas as plataformas jornalísticas que operam na sociedade em rede.

As organizações jornalísticas, conforme indica Heinrich (2012), tornam-se uma voz em meio a várias outras presentes na internet, a exemplo de blogueiros, influenciadores digitais e jornalistas cidadãos (comunicadores não profissionais). Apesar de ainda congregar audiências volumosas e possuir credibilidade social, a grande mídia centralizadora começa a dividir espaço com pessoas comuns ou que estão fora do circuito empresarial, mas com potencial agregador, desfazendo o monopólio da informação principalmente em plataformas de redes sociais.

Os fluxos informativos deixam de ser controlados exclusivamente pelo jornalismo e passam a envolver a audiência de maneira cooperativa nas diversas etapas produtivas na internet. Esse cenário relaciona-se ao posicionamento mais ativo do usuário, à busca por personalização, à criação de canais alternativos de circulação, ao acesso a tecnologias produtivas (hardwares e softwares), entre outras questões humanas e técnicas.

Recai-se na conceituação da cultura participativa, em que produtores e consumidores de mídia

JORNALISMO E CIDADANIA | 20

interagem e interferem nos conteúdos de diferentes formas e em diferentes níveis, levando em conta aspectos políticos, culturais, econômicos e técnicos. Formata-se um ambiente de “mídia propagável”, com circulação de conteúdos por canais múltiplos e incentivo ao engajamento do público na produção e na difusão dos produtos (JENKINS; GREEN; FORD, 2014).

Como lembra Heinrich (2012), a internet não criou as redes no jornalismo, uma vez que a atividade profissional sempre agregou conexões ao seu trabalho, com destaque para as fontes de informação. Porém, sem dúvida, a internet remodelou e reforçou essa estruturação em rede, pois aproximou o público da rotina produtiva em si, em sintonia com a própria lógica relacional do ciberespaço, que aposta na interatividade e na participação mesmo que existam limitações demarcadas por relações de poder e pelo uso de algoritmos.

Para acompanhar o cenário de comunicação atual e manter o seu estatuto social, o jornalismo precisa adaptar suas rotinas e propor inovações capazes de aliar os princípios profissionais (especialmente a qualidade da notícia, a confiabilidade e a defesa de princípios democráticos) às demandas do público (associadas à horizontalidade, à colaboração, à personalização e à transparência).

“Organizações jornalísticas que entendem a necessidade de se reorganizarem nesta esfera dinâmica e flexível do jornalismo em rede, que sistematicamente aprimoram suas redes e formam vínculos contínuos com nós – grandes e pequenos – podem não apenas ter um futuro, mas também desfrutar de um futuro muito brilhante” (“Journalistic organisations that understand the need to reorganise themselves within this dynamic, flexible sphere of network journalism, who systematically enhance their networks and form continuous links with nodes – large and small –might not just have a future, but may well enjoy a very bright one”) (HEINRICH, 2012, p. 66).

Em uma conjuntura de crescente desinformação e pós-verdade, destacadamente nas plataformas de redes sociais e nos aplicativos de mensagens, revigorar o compromisso social do jornalismo com foco no bem coletivo torna-se essencial não apenas para a sobrevivência da atividade profissional, mas principalmente para a constituição de uma sociedade ética, diversa e justa. Para isso, o jornalismo deve desenvolver um trabalho sólido, incluindo apuração precisa, busca por fatos de interesse coletivo, diversidade de fontes, interpretações conscientes e atualização técnica. Junto a isso, a atividade precisa levar

em consideração as demandas e contribuições do público, como ampliação informativa, sugestões de pauta, produção de materiais, apoio na difusão de conteúdos digitais, entre outras.

Referências

HEINRICH, Ansgard. Network Journalism: journalistic practice in interactive spheres. New York: Routledge, 2011.

_________________. What is ‘Network Journalism’? Media International Australia (MIA), v. 144, n. 1, p. 60-67, 2012. Disponível em: <https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1329878X1214400110>. Acesso em: 17 out. 2019.

JENKINS, Henry; GREEN, Joshua; FORD, Sam. Cultura da Conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. Tradução de Patricia Arnaud. São Paulo: Aleph, 2014.

Ana Célia de Sá é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM-UFPE).

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 21

A Internet e a Crise do jornalismo

O desalento que acomete os calouros do curso de jornalismo, ou os que estão em vias de entrar no mercado de trabalho, é reflexo de um pensamento dominante de que, com o advento da internet e a força das redes sociais, o profissional de jornalismo não é mais tão necessário. Mas diversos autores vão na contramão desse raciocínio e partem em defesa do jornalismo profissional. O livro do sociólogo francês Dominique Wolton Informar não é Comunicar (2010) traz uma contribuição teórica valiosa para a defesa do jornalismo profissional e o seu papel na articulação comunicativa em um ambiente tumultuado de informações, como a internet. Portanto, em contraposição à ideia de que o jornalista perde a importância no ambiente virtual frente à autonomia e liberdade dos internautas, Wolton acredita que a responsabilidade do profissional de comunicação é ainda maior nesse novo cenário, diante da incomunicação vigente.

Nesse ambiente em que as informações partem de todos os lados, sem os parâmetros éticos que as permitam funcionar como instrumentos da democracia, os intermediários das informações são essenciais. Esses intermediários, segundo Wolton, são os profissionais especializados, incluindo aqui os jornalistas, que atuam como comunicadores, mediadores do diálogo: “Refiro-me a profissões que exigem uma competência específica e a capacidade de organizar a convivência entre pontos de vista diferentes. Em suma, o sonho da democracia “direta”, uma sociedade “livre”, com o fim dos intermediários e a competência absoluta dos indivíduos, resvala rapidamente de uma ideia de emancipação para uma miragem favorável ao populismo” (Wolton, 2010, p. 64). Sendo assim, Wolton nos coloca diante do dilema da sociedade de redes que inclui a necessidade de ultrapassar a ideia de compartilhamento de informações desenfreadas e chegar a um estágio de negociação e coabitação, evidenciando o vínculo entre comunicação e democracia. Os jornalistas são profissionais essenciais nesse processo; cada vez mais necessários, portanto, numa sociedade cada vez mais conectada.

A realidade, contudo, aponta para uma tendência de desvalorização desses profissionais com o cenário de encolhimento das redações tradicionais. Entre as principais consequências desse processo,

apontadas por Gandour (2020), estão: a redução da capacidade de checagem; a redução das horas para discussões, aprimoramento do método jornalístico, treinamento; ou a diminuição da produção de reportagens mais detalhadas e elaboradas. Com isso, o jornalismo perde em qualidade e em público. Porém, apesar dessa tendência, uma pesquisa do Pew Research Center de 2010 constatou que a maior parte do conteúdo que o público consome é colocada em circulação na internet pelas redações tradicionais. Isso deduz que o conteúdo construído por meio do método jornalístico tradicional ainda continua pautando a agenda pública comum e servindo de base para a reconstituição dos fatos.

Em tempos de fake news e desinformação em massa, torna-se, portanto, cada vez mais necessária a defesa do jornalismo, alicerçada num “método jornalístico, numa atitude jornalística e numa narrativa jornalística”, conforme aponta Gandour (2020). O autor acredita que os próprios profissionais devem se engajar nessa defesa, que passa pela formação acadêmica, entrelaçada a uma prática calcada nos códigos deontológicos formais. Assim, “é o método estruturado que dá corpo e trilho para que a atitude jornalística se transforme e resulte em algo de interesse público, e sobretudo palatável ao público. [...] penso que a comunidade jornalística tem subestimado o peso e o valor do saber fazer, o know how, o como fazer. [...] comparo com o mesmo comportamento observado em outras “tribos”, como os médicos ou os engenheiros, profissionais que celebram, cultivam e compartilham técnicas, ferramentas e aprendizados” (Gandour, 2020, p. 46).

A pandemia do novo coronavírus veio reforçar a importância do know how jornalístico que permitiu a continuação da divulgação dos dados sobre a contaminação da covid no Brasil. Através do consórcio formado pelos veículos G1, O Globo, Extra, Estadão, Folha e UOL, foi possível burlar a falta de informação após o governo de Jair Bolsonaro limitar a divulgação dos dados pelo Ministério da Saúde em junho do ano passado. Além disso, conforme aponta matéria da Folha de S. Paulo, a audiência do telejornalismo brasileiro alavancou durante a pandemia. Devido não somente ao isolamento social, mas também à busca das pessoas por informações

JORNALISMO E CIDADANIA | 22

exatas e qualificadas, fugindo da desinformação proliferada nos grupos de WhatsApp.

Pesquisa realizada pelo DataFolha entre 18 a 20 de março de 2020, por telefone, com 1.558 entrevistados, revela que o público ainda confia primordialmente nas informações divulgadas pelas emissoras de TV (61%) e nos jornais impressos (56%). Sites de notícias foram apontados como mais confiáveis por 38% do público, enquanto apenas 12% diz confiar nas informações que vêem pelo WhatsApp ou Facebook. O jornal O Globo atingiu o pico histórico de audiência, alcançando a marca de 235 milhões de acessos aos seus conteúdos noticiosos pela internet somente no mês de março (até o dia 28). Essa tendência vem de encontro à tendência de descredibilização da grande mídia por parte, também, do presidente da República. Só em 2020, segundo dados da Federação Nacional de Jornais (Fenaj), foram 428 casos de violência contra os jornalistas profissionais, incluindo 175 ataques proferidos pelo presidente. Desse número, 145 casos foram de descredibilização da imprensa.

O jornalismo já possui uma histórica de desprestígio e desvalorização, que soma mais de cento e cinquenta anos de luta pelo reconhecimento do estatuto profissional, conforme aponta Traquina (2005). O processo de profissionalização começou somente com a criação das associações, clubes e sindicatos de jornalistas, na segunda metade do século XIX. Outro fator foi o surgimento dos primeiros cursos universitários, que ajudou a elevar a atividade à categoria de profissão devido à preparação e ao conjunto de técnicas normatizadas e exigidas para o exercício. Os códigos deontológicos também contribuíram para a construção de toda uma constelação de mitos, valores, símbolos e representações que constituem a cultura profissional, o ethos jornalístico.

“O código deontológico não define apenas normas para os membros da comunidade, mas esboça também todo um ethos para os membros composto por conceitos básicos como o universalismo (todos os clientes são tratados sem discriminação), o distanciamento (nenhum interesse próprio influencia as ações do jornalista), um princípio de equidistância em relação aos diversos agentes sociais (designado como imparcialidade ou objetividade do profissional) e o ideal de serviço à comunidade” (Traquina, 2005, p. 120).

Apesar das críticas que podem ser feitas a esses aspectos da ideologia profissional, a sua constituição é importante para que haja parâmetros e regras na divulgação de informações, capazes de prezar pelo interesse público. A legitimidade jornalística é, portanto, o grande desafio para os profissionais da comunicação contemporânea. Muitas vezes, é

questionada pelo público que não se sente representado pelo tipo de jornalismo que está sendo oferecido. Devemos lembrar que o jornalismo é um serviço público que, mesmo através das empresas privadas, deve atender aos interesses públicos, o que na prática nem sempre ocorre. Por outro lado, o processo de descredibilização da grande imprensa parte cada vez mais de grupos radicais que querem minar a busca pela verdade e pelo diálogo em prol de pós-verdades e realidades imaginárias.

Referências

Audiência de telejornalismo explode durante crise do novo coronavírus. Folha de S. Paulo, 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ ilustrada/2020/03/audiencia-de-telejornalismo-explode-durante-crise-do-novo-coronavirus.shtml>, Acesso em 20 de junho de 2021.

WOLTON, Dominique. Informar não é comunicar. Porto Alegre: Sulina, 2010.

GANDOUR, Ricardo. Jornalismo em retração, poder em expansão: a segunda morte da opinião pública. São Paulo: Sumus, 2020.

TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são. 2. ed. Floranópolis: Insular, 2005.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/03/audiencia-de-telejornalismo-explode-durante-crise-do-novo-coronavirus.shtml

https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/08/veiculos-de-comunicacao-formam-parceria-para-dar-transparencia-a-dados-de-covid-19.ghtml

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/01/26/ano-de-2020-tem-recorde-de-ataques-a-liberdade-de-imprensa-desde-inicio-da-serie-na-decada-de-1990-diz-fenaj.ghtml

https://www.sindjorce.org.br/datafolha-jornalismo-e-a-fonte-mais-confiavel-sobre-a-covid-19/

Marya Edwarda Lapenda é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 23

Stop Extradition to the US of Venezuelan Diplomat Alex Saab

Venezuelan diplomat of Palestinian origin, Alex Saab, is being held in detention in Cape Verde, victim of political persecution and facing extradition to the US for having brokered commercial deals that, in the face of the brutal US blockade against Venezuela, would bring food, medicines, fuel and other desperately needed items to the South American nation. US authorities have concocted a bogus charge of ‘money laundering’ to justify the extradition request.

Saab is a Special envoy and ambassador to the African Union for Venezuela (http://www. mppre.gob.ve/en/comunicado/venezuela-joins-request-african-lawyers-demands-government-cape- -verde-i m mediately-release-alex-s a ab/ : : : :textAlex%20Saab%2C%20Special%20 Envoy%20and,which%20is%20why%20Cape%20Verde), was on a humanitarian mission flying from Caracas to Iran to procure food and gasoline for Venezuela’s CLAP food assistance program. He was detained on a refueling stop (https://www.afriquemedia.tv/afrique/ cape-verde-heading-to-hell-paradise-destination-with-high-risk-of-ill-treatment-and-arbitrary-detention) in Cape Verde and has been held in custody ever since June 12, 2020.

The US government, that ordered the imprisonment, claims Saab’s ‘crime’ was money laundering. But Saab was conducting perfectly legal international trade between Venezuela and third countries, nothing to do with the U.S. legally, judicially, commercially, territoriality, or in any other way whatsoever. Saab’s brokered commercial deals do bring relief to Venezuelans who have been inflicted untold misery, suffering, pain and death by the illegal US economic sanctions, and it is this US imperialism is determined to prevent with the extradition request. The US has no legal jurisdiction whatever over a Venezuelan diplomat in Cape Verde on his way to Iran. US ruthless application of its laws extraterritoriality flagrantly contravenes international law, numerous international protocols, treaties, and even the UN Charter itself.

The legal fig leaf for what amounts to a kidnapping was an INTERPOL “red notice,” which was not issued until a day after Saab’s arrest and was subsequently dropped. Saab denounced being tortured (https:// orinocotribune.com/alex-saab-i-was-tortured-and-pressured-to-sign-voluntary-extradition/) and pressured “to sign voluntary extradition declarations and

bear false witness against my government.” That is, US rogue behaviour has nothing to do with money laundering and everything to do with regime change” in Venezuela.

Saab’s case has raised concern in Africa and internationally where influential voices have demanded his immediate release. The Economic Community of West African States (ECOWAS), ruled against Cape Verde’s detention of Saab, and in March 2021 asked for his immediate release (https://pmnewsnigeria. com/2021/05/12/alex-saab-falana-weighs-in-on-cape-verdes-violation-of-ecowas-judgement/). High-profile lawyer Baltasar Garzón, who also assisted in Assange’s defense, worked with Saab’s legal team.

Saab’s attorney in Cape Verde, Geraldo da Cruz Almeida, has explained the absurdity of the politically motivated legal case against his client: “Any serious judge who analyzes the case properly would come to the conclusion that the evidence presented is not sound; that it is not a money laundering crime but the fabrication of a money laundering crime – a crime that Mr Saab did not commit.” Furthermore, Saab has violated neither Cape Verdean nor Venezuelan law and his diplomatic status should have given him immunity from arrest, even if the US does not recognize Saab’s diplomatic status. Biden, following Trump, maintains the fiction that the self-proclaimed, Juan Guaidó (https:// thegrayzone.com/2019/01/29/the-making-of-juan-guaido-how-the-us-regime-change-laboratory-created-venezuelas-coup-leader/), is still “interim” president of Venezuela.

Nigerian lawyer, Femi Falana, recently said: “The United States instigated the Swiss general prosecutor to open a file and investigate the allegations of money laundering…” The Swiss general prosecutor [after a 2-year investigation] concluded there was no material evidence to support the allegation of money laundering charges against Mr Alex Saab… “A country that subscribes to the rule of law, would have ceased, would have closed the chapter, the file, but the United States of America, which is politically motivated as far as this case is concerned, has continued to harass and intimidate Cape Verde.” (https://thegrayzone. com/2019/01/29/the-making-of-juan-guaido-how-the-us-regime-change-laboratory-created-venezuelas-coup-leader/)

Ranking 185th among the countries of the world

JORNALISMO E CIDADANIA | 24

in terms of economic size, respectively, resource poor, and dependent on tourism and remittances from abroad, the Republic of Cape Verde is vulnerable to US strong-arm tactics. Shortly after Saab’s arrest, the US gifted $1.5 million to private sector entities in Cape Verde on top of some US$284 million total US aid in the last 20 years (https://cv.usembassy.gov/the-united-states-provides-over-1-5-million-to-help-cabo-verde-respond-to-covid-19/) .

Thus, despite the fact that Cape Verde is a founding member of ECOWAS Court, it refuses to recognise its jurisdiction on the Saab case, even though the Court’s rulings are binding on all members of the body. Though ECOWAS ordered Saab’s release on 15 March 2021, Cape Verde’s judiciary and executive refused to comply and have gone ahead with the extradition trial.

On 8 June 2021, the UN Human Rights Committee (UNHRC) ruled on Saab’s illegal detention and requested the government of Cape Verde to “refrain from extraditing Mr Alex Saab Naim Moran to the United States of America while his case is under review by the Committee or until further notice.” Furthermore, the UNHRC indicated to Cape Verde “to ensure access to appropriate health care [for Mr Saab], preferably by independent and specialised physicians of his choice.”

(https://orinocotribune.com/un-committee-rules-on-detention-of-venezuelan-diplomat-saab/). Saab, who suffers from cancer, has largely been denied health care.

An international emergency human rights delegation, headed by US resident, Cape Verdean Bishop, Felipe Texeira, arrived in Cape Verde on June 4 to “evaluate the flagrant violation of Saab’s diplomatic immunity and raise awareness of the humanitarian purposes of [his] work, but were denied access to see him.” The delegation got as close as half a block from his place of imprisonment but “Police, heavily armed with automatic weapons and some wearing black masks, turned us away while similarly clad and armed snipers watched down on us from neighbouring rooftops.” (https://orinocotribune.com/freealexsaab-delegation-first-day-in-cabo-verde-access-denied-to-alex-saab/).

US government sanctions have particularly targeted Venezuela’s state oil company that has substantially contributed to the sharp decline of Venezuela’s economy, have dealt a crippling blow to its oil industry thereby negatively impacting Venezuela’s capability to generate electricity, agricultural production and generate income from oil exports to fund social programs and import vital necessities (https://crsreports.congress.gov/product/pdf/R/R44841). This has had deadly consequences for ordinary Venezuelans: between 2017 and 2018 alone, over 40,000 ordinary Venezuelans died as the direct impact of the sanctions (https://cepr.net/images/stories/reports/venezuela-sanc-

tions-2019-04.pdf). US sanctions constitute a crime against the humanity of 30 million Venezuelans.

Venezuela has the largest certified reserves of oil in the world, intensely coveted by the US’s declining economy, which explains the empire’s systematic destabilisation efforts ever since the coming to office of Hugo Chavez as president in 1999.

The US case against Alex Saab is not only illegal, unfounded and disgraceful but, according to Montréal-based international human rights lawyer John Philpot https://thegrayzone.com/2019/01/29/the-making-of-juan-guaido-how-the-us-regime-change-laboratory-created-venezuelas-coup-leader/), it raises dangerous precedents in terms of extraterritorial judicial abuse, violation of diplomatic status, and even the use of torture to extract false confessions.

Alex Saab is not only totally innocent of the US trumped-up charges of money laundering, but the US government does not have any legal jurisdiction whatsoever over Venezuela, or Cape Verde. Therefore, Alex Saab should be immediately and unconditionally freed in line with the ECOWAS ruling of 15 March 2021. An international campaign, headed by Noam Chomsky, for Alex Saab’s immediate release has been launched, please join in and publicise it as widely as you can (https://afgj.org/free-alex-saab). By defending Saab we are defending the international rule of law against illegal US sanctions and aggression.

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 25
Francisco Dominguez é Professor da Universidade de Middlesex / Inglaterra.

Palavras

Todos os linguistas dão importância à palavra e ao discurso. Cito a linguista brasileira e professora da UNICAMP, Eni Orlandi, autora de vários livros sob títulos diversos, entre eles Análise de Discurso. Logo no início desse livro, encontro: “Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e de sua história” (ORLANDI, p.13). Distingo aí as palavras trabalho social e história. Além de envolver o contexto social e histórico, nela também vejo o conceito de formação econômico – social, que qualifica cada sociedade real.

Creio que se observamos a mídia televisionada e escrita dos principais jornais nacionais e estrangeiros em relação à desigualdade social revelada, para alguns brasileiros, pela Covid-19, veremos uma série de palavras que denotam uma circunstância social.

Para fins didáticos, dividirei esse pequeno artigo em dois grandes blocos. O primeiro diz respeito à desigualdade social tratada pela Covid, e no segundo grande bloco falo do comportamento social do presidente da República.

No que tange à desigualdade social, aparecem referências à baixa sociedade brasileira sob as consequências da pandemia. São palavras que justificam uma circunstância social e não apenas temporária. Nelas surgem Famílias, Invisíveis e Negros.

As famílias receberam, graças aos deputados e senadores, 600,00 reais no ano passado e neste ano, cuja quantia não dá para adquirir a alimentação necessária, desde que só o gás de cozinha, do qual depende a grande maioria, custa quase R$90,00. Mas os discursos pronunciados tratam da moradia – favelas, palafitas, pau a pique – na qual falta a mínima condição higiênica: água potável. E dada a grande densidade populacional, morando tudo juntos - pais, filhos, avós ou outro parente - tais moradias são consideradas precárias. A questão aqui é permanente não apenas resultado da Covid, mas essa agrava ainda mais o quadro social. Basta olharmos os vídeos e demais imagens que os nossos olhos se enchem dessa cruel realidade nacional.

Invisível ou invisíveis só o ministro Paulo Guedes e o presidente da República não os viram. Estão eles aí nos sinais de trânsito, perambulando pelas ruas e praias das cidades brasileiras. Formam o grande contingente populacional que inclui os desempregados, se não forem eles mesmos a sofrer esse grande sacrifício.

Negros que aqui estão focalizados em dupla referência, isto é, atingidos pela Covid e por uma condição estrutural. Segundo o IBGE, no Censo de 2010, já que o de 2020 não foi realizado, veremos que sob a rubrica de negros temos 14.051.642 milhões, pardos são 82.277.333 milhões. Juntando os dois, somam um total de 96.828.975 indivíduos. Graças à ação diversa do Movimento Negro muitos pardos, que estão na categoria de pardos, se consideram agora negros. Nesse total, há mais mulheres negras e pardas do que homens. Sabemos por depoimentos que há mães que foram abandonadas pelos maridos e mães solteiras. Essa é a triste realidade do país. O aspecto estrutural é determinado por além da Covid-19. Os negros são discriminados pela instituição policial, que faz parte da estrutura estatal de cada Estado da federação. De acordo com o site, conectas.org/causas/violência-institucional, homens negros são maioria nos presídios, mas também alvo preferencial das ações abusivas das polícias”. No que diz respeito ao aspecto estrutural, que não tem nada a haver com a Covid, “O combate às drogas promove a ocupação violenta das favelas, impõe um quotidiano de guerra a milhares de famílias e cobra a vida de muitos jovens” e acrescento, como se viu no caso de jacarezinho, no qual a polícia assassinou mais de 28 pessoas. No bairro, existe uma população de mais de 37 mil famílias e é dominada pelas milícias. Fica esse bairro, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Esse luto e a dor das famílias não podem ser quantificáveis. Por que os jovens aderem às milícias? Eis a questão que está na cabeça de todo mundo. Porque há uma ausência completa do Estado, inexistem políticas públicas dirigidas aos jovens e às suas famílias, ou se quisermos, à população em geral.

No que concerne ao segundo grande bloco, as palavras que mais aparecem são Falta de uma orientação geral do Poder Executivo maior e Negativista. Em resumo, essas palavras se dirigem ao presidente Jair Messias Bolsonaro. Poder-se-ia desdobrar a palavra “falta” em muitos campos, mas, ela pode ser sintetizada na recusa do presidente à adoção de medidas restritivas temporárias das atividades econômicas, com sérios e evidentes riscos à vida humana, enquanto se nega o fechamento das fronteiras, ou faz tardia e seletivamente, decisão que é da competência exclusiva do poder central. Tanto os senadores da CPI da COVID-19, exceto o grupo de choque governista, quanto a maioria da po-

JORNALISMO E CIDADANIA | 26

pulação brasileira, cobram do governo federal como um todo uma ação. O meio ambiente só faz se agravar ainda mais com a pandemia. O meio ambiente está para a Covid como o espírito está para o corpo.

A outra palavra é negativista. Com isso se inclui a negação à vacina, especialmente àqueles insumos vindos da China. “Vachina“ disse o senhor presidente e ainda que ninguém, prestem atenção, ninguém tem “interesse”. As filas em busca da vacina é um desmentido cabal e constitui, na prática, uma desobediência civil. É por isso que as pesquisas mostram uma queda acentuada na avalição presidencial, chegando a menos de 23%. Sem dúvida alguma, temos um incontestável desrespeito aos direitos da pessoa humana, segundo o artigo 5, inciso 3º da Constituição Federal e a resolução nº 217 A III, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro 1948.

Sobre as mortes, que hoje já ultrapassam mais de 500 mil, Jair Bolsonaro disse: “e daí”? “Não sou coveiro”. Essa insensibilidade com os mortos não tem qualificação. Só mesmo saindo da boca de Bolsonaro.

Se o Ministério da Saúde, na gestão de Pazuello, não obedecesse às ordens do presidente e respondesse aos ofícios da Pfizer e do Butantã, teríamos começado a vacinar bem antes, no ano de 2020. Apenas para lembrar as palavras arrogantes: “não abro mão de minha autoridade”, mandando cancelar todos os contratos com o Butantã. E mais tarde em uma visita a Pazuello, que se recuperava da covid-19, esse ministro exprimiu sorrindo: “pessoal é simples assim, um manda e outro obedece”. Na CPI, o ex-ministro expressou que se tratava de um jargão da internet. Mentiu tanto que vai ser reconvocado. Pazuello e Bolsonaro se merecem.

Se o governo federal em lugar de espalhar mentiras contra o STF, que numa decisão revelou que a Constituição Federal prevê a ação coordenada das três esferas governamentais, ou seja, do poder Executivo central, dos governadores e dos prefeitos, e tivesse agido de forma coordenada, o governo federal não seria acusado de falta de ação e objeto da indignação dos brasileiros.

O próprio presidente não tomou publicamente a vacina. Presidentes e primeiros ministros vieram à público e tomaram, entre eles Joe Biden, Boris Johnson e Benjamin Netanyahu, além da rainha da Inglaterra, mostrados pela TV mundial.

Tudo isso mostra que Bolsonaro tratou a Covid como uma “gripezinha” necessitando de remédios.

A OMS divulgou, mundo afora, que a cloroquina não tem eficácia contra a Covid, os bolsonaristas a defendem. Muitos brasileiros a repudiam.

Estejamos atentos que Paulo Guedes e Bolsonaro divulgarão, em campanha nacional, em 2022, ano eleitoral, os recursos financeiros dados aos Estados e municípios para tratarem da Covid. E que no próximo ano aumentarão, em muito, a contribuição federal às

famílias pobres. As famílias pobres, especialmente do Nordeste, têm contas a pagar e a alimentação que lhes falta hoje, virá no ano vindouro ou quem sabe até ainda nesse ano, a depender da 3ª onda, não de pessoas compadecidas com a miséria, que assola o nosso país, mas do governo federal.

Abdias Vilar de Carvalho é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAM).

Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE | 27

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.