Expediente ÍNDICE
Editor Geral | Heitor Rocha Professor PPGCOM/UFPE
Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE
Concepção Gráfica | Ivo Henrique Dantas Professor Caesar School
Diagramação | Rafaela Lima Bacharel em Biblioteconomia
Revisores | Laís Ferreira e José Bruno Marinho Doutorandos de Comunicação PPGCOM/UFPE
Colaboradores |
Alfredo Vizeu
(Professor PPGCOM UFPE)
Pedro de Souza
(Ex-supervisor executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento)
Túlio Velho Barreto
(Fundação Joaquim Nabuco)
Gustavo Ferreira da Costa Lima (Pós-Graduação em Sociologia/UFPB)
Anabela Gradim
(Universidade da Beira Interior Portugal)
Ada Cristina Machado Silveira
(Professora da Universidade Federal de Santa Maria- UFSM)
Antonio Jucá Filho
(Pesquisador da Fundação Joaquim NabucoFUNDAJ)
João Carlos Correia
(Universidade da Beira Interior Portugal)
Leonardo Souza Ramos
Professor do Departamento de Relações
Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)
Rubens Pinto Lyra
(Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB)
Alexandre Zarate Maciel
(Professor da UFMA e Doutor em Comunicação pela UFP)
Heitor Rocha
Invasão da Ucrânia pela Rússia: algumas considerações | 4
Filipe Reis Melo
As incógnitas das eleições em Portugal | 7
Pedro de Souza
Mudanças climáticas e governança conservadora | 9
Gustavo Costa Lima
A Conciliação | 12
Abdias Vilar de Carvalho
Resiliência antes que seja tarde | 14
Marcos Costa Lima
Bahia e Minas: como transformar crise das cheias em oportunidade | 16
Antonio Jucá
Honduras’ Left-Wing Breakthrough | 18
Francisco Dominguez
Mercado editorial do livro-reportagem passou por etapas de consolidação | 21
Alexandre Zarate Maciel
Mulheres na política em tempos de internet: avanços e entraves | 24
Luciana Ferreira
A Democracy that Divides and Oppresses: A Focus on Bengal | 27
Suranjit Kumar Saha
Revista
EDITORIAL
Heitor Rocha
A manipulação que a mídia noticiosa vem realizando sobre a invasão da Rússia na Ucrânia não se deve unicamente ao enquadramento maniqueísta de que significa a barbárie de um déspota oriental afrontando o “mundo livre” ocidental, o único vilão da história, mas sim ao fato de não levar em conta que o papel de xerife do mundo que os Estados Unidos teimam em encenar não se sustenta diante de uma mínima apuração e investigação sobre o que a politica externa dos EUA tem praticado na Síria, Iraque, Afeganistão e inúmeros outros países, quando implantou ditaduras sanguinárias, como a de Samoza, na Nicaraguá, Noriega, no Panamá, Pinochet, no Chile, e em quase toda a América Latina. Tampouco a covarde sanção de embargo à pequena Cuba há mais de 60 anos. Então, não cogita sanções econômicas por estas atrocidades.
Alguns especialistas lembram que a condição de potência militar e econômica monopolar do mundo usufruída pelos Estados Unidos desde o fim da União Soviética, no final do século passado, efetivamente, não existe mais. Quanto mais os EUA insistem em querer manter o simulacro de xerife do mundo, mais fica evidente a sua perda de estatuto, mesmo que, no aspecto miliar, seus armamentos estejam possibilitando a Ucrânia uma resistência que não era esperada, e, no aspecto econômico, as sanções que impõem à Rússia tenham tido a adesão de seus subordinados ocidentais, antigos países que ainda tentam manter sua imagem de colonizadores imperialistas. Parecem querer repetir o cerco do exército branco do ocidente contra os primeiros anos da Revolução Soviética.
Contudo, é constrangedora a forma como estes países subordinados aos EUA na OTAN tentam excluir os aspectos mais negativos destas medidas econômicas, principalmente os que dependem da importação do gás e do petróleo da Rússia. Também é descarada a tentativa dos Estados Unidos de conseguir importar petróleo da Venezuela, país ao qual também impôs sanções e considerava integrante do “eixo do mal”. E mais ainda querer convencer que os efeitos negativos para a economia norte-americana e do resto do mundo das sanções que determinou contra a Rússia são culpa de Putin. A mídia noticiosa ocidental faz de conta que não vê estas evidências, ou pelo menos, não apura adequadamente nos seus enquadramentos e, no geral, atualiza, à exaustão, a ideologia anticomunista da Guerra Fria, sem reconhecer que também Putin é anticomunista.
Na espetacularização midiática da política de formação, ou deformação, da opinião pública mundial, a poderosa indústria cultural norte-americana, que constitui num dos itens mais rentáveis das suas exportações, não só econômica mas também ideologicamente, procura legitimar a ação de desterritorialização das leis do país estendendo-as ao resto do mundo. Recentemente no seriado de televisão FBI Internacional, a polícia federal dos EUA, que tem jurisdição exclusiva dentro do país, narra as aventuras de um escritório de agentes interrogando e prendendo no leste europeu, demonstrando como o xerife “Tio Sam” acredita poder impor seu poder de polícia aos países considerados subalternos, expandindo a aberração jurídica da base militar e prisão de Guantánamo, em Cuba, onde pessoas são torturadas e mantidas presas por anos sem acusação formal, crime registrado pelos próprios seriados norte-americanos.
Como consequência destas distorções na comunicação verificam-se manifestações de ódio, como no Brasil a ameaça a uma jovem russa que está há dois anos no País. Não causa tanto espanto esta postura de pessoas ignorantes no Brasil onde o presidente da República mantém um escritório do ódio no Palácio da Alvorada e dissemina disparos de fake news raivosos contra as instituições democráticas. No entanto, é estarrecedor como setores da “alta” cultura da Europa se ocupam de perseguir e demitir uma cantora lírica, como se deu na Itália, e também demitir um maestro da orquestra sinfônica de uma grande cidade alemã, unicamente por serem russos, expressando a “Russofobia” como tem sido chamado este histérico preconceito.
Por fim, é lamentável como a mídia noticiosa não investiga a valorização da indústria bélica e de seus acionistas, especialmente a norte-americana, com esta guerra e outras que se configuram como crimes contra a humanidade. Neste aspecto, como poderiam ter sido diferente a história de outras guerras se a mídia ocidental tivesse tido mesma sensibilidade humanística que dedica aos ucranianos, no caso dos iraquianos, afegãos, sírios, vietnamitas, etc.
Heitor Rocha é Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
Invas ã o da Ucrânia pela R ú ssia: algumas considera ç ões
Filipe Reis MeloPrimeiro, é importante deixar claro que este conflito não é um conflito entre Rússia e Ucrânia, mas sim entre os EUA e a Rússia. A Ucrânia é o teatro das operações. Com o fim da União Soviética em 1991, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) , que reunia os EUA e os seus aliados ocidentais, perdeu o sentido de existir, já que a OTAN havia sido criada em 1949, durante o período da Guerra Fria, para combater a União Soviética e seus aliados. Nas conversações que ocorreram durante a década de 1990 entre a Rússia e os EUA, o acordo foi que a OTAN não seria ampliada em direção à Rússia. Um dos documentos que trazem essa informação é a transcrição do diálogo sobre a reunificação da Alemanha, ocorrido em 1990, entre James Baker, o então Secretário de Estado dos EUA, e Mikhail Gorbatchov, que foi o último presidente da União Soviética. Baker afirma: “[...] se os EUA mantêm a sua presença na Alemanha no âmbito da OTAN, nem um centímetro da atual jurisdição militar da OTAN se espalhará na direção leste” (NATIONAL SECURITY ARCHIVE, 2017).
Os EUA não respeitaram esse acordo e avançaram em direção ao leste, incluindo novos membros da Europa Oriental. Durante a década de 1990, a Rússia não estava em condições de se contrapor à ameaça da OTAN, mas atualmente a Rússia se encontra numa posição mais fortalecida. Para entender essa posição da Rússia, basta imaginar se os EUA aceitariam que a Rússia instalasse mísseis na fronteira do México com os EUA. Obviamente que não. Mísseis hipersônicos lançados do território ucraniano alcançariam Moscou em cinco minutos, tempo insuficiente para qualquer reação defensiva.
Também é importante entender que as culturas russa e ucraniana estão intimamente imbricadas. É comum que famílias russas tenham parentes ucranianos e vice-versa. A mãe de Gorbatchov, por exemplo, era ucraniana. Ucrânia e Rússia têm uma história de séculos em comum. Para que o leitor tenha uma pequena ideia do isso significa, há um provérbio russo que diz “Kiev é a mãe de todas as cidades russas”. Kiev é a capital da Ucrânia. Esta frase está no Conto dos Anos Passados, escrito por volta do ano 1.110. A Ucrânia tem maioria de população de ascendência russa no leste, na região conhecida como Donbass. Foi em Donbass que, em 2014, surgiu um movimento de independência de Donetsk e Lugansk que contrapôs rebeldes dessa região contra a força militar ucraniana.
Em 2014, houve um golpe de Estado na Ucrânia apoiado pelos EUA. A partir daquele ano, a situação no leste da Ucrânia se deteriorou com os combates entre rebeldes independentistas de Donetsk e Lugansk e forças leais ao governo ucraniano. Milícias neonazistas também estiveram implicadas nos ataques às populações das regiões independentistas. Os países ocidentais deram apoio ao governo ucraniano e a Rússia apoiou os independentistas. Para tentar resolver esse problema, surgiram os Acordos de Minsk (capital da Bielorrússia) que foram organizados pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), uma organização que reúne 57 países, entre eles EUA, os países da União Europeia e a Rússia. Os Acordos de Minsk previam o cessar-fogo, negociações para o estabelecimento de maior autonomia regional e a garantia da integridade do território ucraniano. O governo
ucraniano foi o primeiro a não respeitar o cessar-fogo e, de 2014 até hoje, cerca de 14 mil pessoas perderam a vida. Hoje há cerca de 120 mil refugiados ucranianos do Donbass que fugiram para a Rússia e cerca de 500 mil de outras regiões da Ucrânia, que foram, em sua maioria, para Polônia, Eslováquia, Hungria, Romênia, Moldávia e Bielorrússia (REFUGIADOS, 2022).
Possível envolvimento de outros países no conflito
Provavelmente, nem os EUA, nem nenhum país ocidental queira se envolver em combates diretos contra a Rússia. Elenco aqui quatro motivos. Primeiro porque a Ucrânia não faz parte da OTAN e, por isso, não é possível acionar o seu artigo 5º que prevê uma resposta da OTAN contra qualquer membro da organização que for agredido. Segundo porque o Ocidente não parece disposto a se arriscar numa guerra que não é sua. Os ucranianos estão sendo utilizados pela OTAN, leia-se EUA, para ameaçar a Rússia. Se a empreitada não der certo, os ucranianos podem ser abandonados à própria sorte. Terceiro, porque de acordo com especialistas em armamento, a Rússia ocupa hoje a posição mais avançada no mundo no que diz respeito a armas hipersônicas. Seria uma aposta muito arriscada do Ocidente. Finalmente, e talvez este seja o motivo mais relevante, é que a Ucrânia representa um espaço fundamental para a Rússia, mas não é fundamental para o Ocidente. Ou seja, a Ucrânia não ingressar na OTAN não representa nenhuma perda para o Ocidente, mas a entrada da Ucrânia na OTAN representaria um dano gigantesco para a Rússia. Portanto, o mais provável é que os desdobramentos ocorram nas esferas econômicas, políticas e diplomáticas, com o azedamento das relações entre a Rússia e os países ocidentais que vão impor sanções à Rússia.
A guerra de informação ou de contrainformação ocorre antes, durante e depois da guerra militar. Isso sempre existiu. A diferença de hoje com relação ao passado é que, com o advento da internet e o desenvolvimento dos meios de comunicação e das redes sociais, essa guerra informacional se intensificou. O caso paradigmático de manipulação nas relações internacionais foi quando, em 2003, Colin Powell, que era o Secretário de Estado dos EUA, foi ao Conselho de Segurança da ONU afirmar que o Iraque possuía armas de destruição em massa e, assim, justificar a invasão do Iraque.
Se buscarmos entender o que ocorre na Ucrânia recorrendo à BBC, à CNN, ao Le Monde, ao El País ou aos veículos da grande mídia brasileira, como o G1 e Folha de São Paulo, a narrativa é sempre a mesma, bem alinhada com a posição oficial dos EUA. Se queremos ampliar a nossa visão e ter acesso a outras narrativas, é necessário contrastar as informações desses meios ocidentais com as da mídia russa (RT, Sputnik ou TASS), da mídia chinesa (CGTN), da mídia iraniana (HispanTV), ou mesmo latino-americana (TeleSur).
Significado para o mundo e para o Brasil
Só com o passar do tempo será possível fazer uma análise mais precisa. No entanto, pode-se dizer que esse conflito reacende o embate entre os EUA e a Rússia que marcou o período da Guerra Fria (1945-1991). Outro indicador deste evento é a perda relativa de poder dos EUA no mundo, pois, desde o fim da União Soviética em 1991 até 2021, a única superpotência que invadiu e que bombardeou outros países foram os EUA (Somália – 1993, Iugoslávia – 1999, Afeganistão – 2011, Iraque – 2003, Líbia – 2011, Síria – 2014), o que era um indicador da unipolaridade daquele período. É certo que a Rússia fez
uma intervenção armada na Geórgia em 2008, mas não teve a magnitude do que ocorre hoje na Ucrânia. Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, os EUA já não estão sozinhos nesse quesito. Pode ser que os historiadores, daqui a alguns anos, considerem que a invasão da Ucrânia pela Rússia tenha sido o marco de uma nova ordem mundial multipolar.
Para o Brasil, as principais consequências podem ser o aumento da inflação por dois motivos: aumento do preço do petróleo e aumento do preço de fertilizantes. No caso do petróleo, a Rússia é o segundo maior produtor do mundo, atrás apenas dos EUA. Se a sua produção é reduzida, a tendência é o aumento do preço do petróleo. O governo Bolsonaro determinou que a Petrobras seja administrada como se fosse uma empresa privada e que siga a política de preços de paridade de importação (PPI), o que significa que o preço do petróleo brasileiro acompanha o preço do petróleo internacional. No que se refere aos fertilizantes, o Brasil é o terceiro maior produtor agrícola do mundo, atrás dos EUA e da China. O Brasil importa 80% dos fertilizantes que utiliza e a Rússia é o maior exportador de nutrientes derivados de nitrogênio. Se as sanções contra a Rússia forem implementadas, o Brasil não poderá mais adquirir da Rússia e terá que buscar outro fornecedor a preços mais caros. Portanto, haverá aumento dos custos na produção agrícola no Brasil, o que significa que as rações animais ficarão mais caras. Com ração mais cara, produtores de carne bovina, de frango e de ovos aumentarão seus preços. Os exportadores de soja, de carne bovina e de frango também podem ser prejudicados com as sanções, pois não poderão mais exportar para a Rússia. O comércio do Brasil com a Ucrânia é pouco significativo para a economia brasileira. Resumindo, tendo em conta a situação financeira difícil da maioria dos
trabalhadores em 2022, as consequências para a população brasileira são bastantes negativas.
Referências
NATIONAL SECURITY ARCHIVE. Record of conversation between Mikhail Gorbachev and James Baker in Moscow . (Excerpts). The George Washington University. 2017. Disponívelem: https://nsarchive.gwu.edu/document/16117-document-06-record-conversation-between.
REFUGIADOS da Ucrânia: quantos estão deixando o país e para onde estão indo? BBC News Brasil . disponível em: https://www. bbc.com/portuguese/internacional-60570352. Acesso em: 02/03/2022.
As incógnitas das eleições em Portugal
Pedro de SouzaOatual primeiro-ministro português, António Costa, inventor da famosa geringonça, que permitiu incluir, no jogo democrático português, a extrema esquerda, o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda pela primeira vez desde o 25 de Abril, será, muito provavelmente, o próximo primeiro-ministro português. O Partido Socialista (PS) conquistou a maioria dos deputados na Assembleia da República nestas eleições legislativas de 30 de janeiro último, fato relativamente raro na história política portuguesa recente. O presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, terá de chamá-lo a formar governo.
Mas é uma história inacabada, na sua narrativa e no seu desfecho. O presidente dissolveu a Assembleia no dia 5 de dezembro de 2021 devido ao fato de os partidos de extrema-esquerda não terem aprovado o Orçamento de Estado para 2022. A maioria da gerigonça teria assim soçobrado, o país ficava acéfalo no momento crucial das negociações da União Europeia para o relançamento da União, passada a pandemia . Os partidos de extrema esquerda poderiam ter aprovado o orçamento na “generalidade”, e depois ter negociado na “especialidade”, capítulo por capítulo, como tem acontecido. Mas não foram por esse caminho. António Costa poderia também ter negociado à exaustão um outro orçamento, mais palatável para a extrema esquerda, sobretudo no que respeita o Serviço Nacio-
nal de Saúde, a educação e o salário-mínimo. Nenhum dos partidos cedeu, o espírito da geringonça não vingou.
É verdade que as eleições autárquicas (locais) de outubro não correram muito bem para o PS, sobretudo pelo fato de o presidente da Câmara de Lisboa (prefeito), sucessor de António Costa nesse posto, ter sido vencido pelo candidato da direita. Esse acontecimento inabitual pode ter entusiasmado a direita e o presidente da República, sonhando que a vitória estava à mão. Ou talvez Costa tenha concluído que estava na hora de tentar ganhar a maioria absoluta, evitando o desgaste do poder, quando as sondagens lhe eram altamente favoráveis.
Talvez o presidente Marcelo tenha achado que devia se desembaraçar dos partidos de extrema esquerda e tentar favorecer um governo de centro, de “grande coalisão PS/PSD” (PSD é o seu partido), quando os fundos europeus iam começar a “jorrar” pelas artérias dos negócios. Talvez os partidos de extrema esquerda tenham concluído que essa longa associação com o PS arriscasse diluir a sua imagem. O conjunto desses fatores acabou com uma experiência que trouxe algumas vantagens para a população portuguesa, depois da pílula amarga da Troika orquestrada pelo primeiro-ministro de direita, Pedro Passos Coelho, em uníssono com a União Europeia de Merkel e Macron, que vendeu metade de Portugal.
Na última semana da campanha, em
janeiro, alguns institutos de pesquisas de opinião deram como possível que o PSD, aliado a outros partidos de direita, criasse uma “geringonça de direita”, incluindo o partido Chega, xenófobo, de extrema-direita. Com base em que cálculos esses institutos lançaram essas ideias na praça pública, é um mistério, visto que o PSD ficou 14 pontos abaixo do PS. Possivelmente, eram movidos por alguma dessas manipulações digitais teleguiadas pelas oficinas obscuras que estão minando as democracias ocidentais.
O desfecho de todas essas interrogações é que o PS de António Costa ganhou as eleições, com dois deputados acima da maioria absoluta (117/230, faltando ainda contar os quatro deputados dos portugueses do exterior, que, de hábito, se repartem igualmente entre PS e PSD). A extrema-esquerda perdeu metade do número de deputados com que contava na precedente legislatura, e a extrema-direita avançou.
A população, com receio do radicalismo da direita, provavelmente optou pelo voto útil, que beneficiou o PS, autor de um trabalho louvável na luta contra a pandemia, e sobretudo ao evitar a “quebradeira” das empresas mais frágeis e o desemprego em massa.
Resta saber o que acontecerá doravante. Irá o Partido Socialista manter as opções políticas que têm sido as suas nos mandatos de António Costa, ou procurará acordos de geometria variável, consoante às perspectivas e às orientações europeias, atavicamente liberais? A conclusão mais clara da pandemia, e suas consequências, é que, num momento de crise grave, sanitária, social e econômica, quem segura as nações não são as empresas privadas, e sim o Serviço Nacional de Saúde, e o Estado. Efetivamente, não são as empresas privadas. Mas não será por isso que o capital deixará de se concentrar na mão de cada vez menos pessoas, sobrando as migalhas para as classes médias, trabalhadores e indigentes.
Infelizmente, o mais certo é que nada mude. O momento é de grande perplexidade, pois, à pandemia, que não será certamente a última, se soma a crise climática, e o summit de Glasgow deixou claro que os
governos não sabem “por que ponta” pegar esse problema avassalador. A esses dois desafios, se sobrepõem-se as fragilidades econômicas bem conhecidas, as migrações em massa, e um aroma de Guerra Fria que vai pôr em causa qualquer política bem-sucedida localmente.
Portugal é um país cuja dimensão não afeta a Europa e, menos ainda, os rumos do mundo. O país dispõe apenas de um recente e frágil soft-power, que se dissolve velozmente na boca dos que guardam, ainda, alguma esperança de que algo mude.
Pedro de Souza é editor, pesquisador e ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
Mudanças climáticas e governança conservadora
Gustavo Costa Lima
Asmudanças climáticas são hoje reconhecidas como o principal problema ambiental contemporâneo e, quiçá, o principal problema da humanidade. Isso porque é um problema sistêmico de âmbito mundial que já produziu severos impactos através de eventos extremos e pelos riscos previstos em diversas dimensões da vida humana e não- humana, como o abastecimento de água e de energia, a produção econômica, a saúde pública, a produção agropecuária, a segurança alimentar, a biodiversidade da flora e da fauna da terra e dos oceanos, a sustentabilidade das cidades e as migrações entre outros aspectos.
Preocupa, adicionalmente, porque atinge principalmente as parcelas mais vulneráveis da população, porque dificulta o combate a pobreza já existente e porque implica em uma urgência temporal que cresce com o aquecimento assim como os custos para intervir sobre o problema (GIDDENS, 2010; IPCC, 2021). É, portanto, um problema multidimensional que envolve gestão ambiental, política nacional, geopolítica global, economia, desigualdade social, educação, comunicação, avaliação de riscos, valores culturais, dilemas éticos, além de conflitos socioambientais de diferentes níveis e proporções. Sendo assim, não aceita reducionismos nem leituras monodisciplinares.
O estado da arte da crise climática nos informa que o aquecimento global não é um problema natural, mas um fenômeno decorrente das ações humanas que se agravou com o processo de desenvolvimento do capitalismo desde a modernidade industrial. Esse processo envolveu a intensificação da exploração de recursos naturais, o uso crescente de combustíveis fósseis, sobretudo, a partir do pós II guerra, o crescimento demográfico, o incremento do desmatamento e das formas de uso do solo, a modernização da agropecuária desde a Revolução verde em meados do século XX e a expansão do consumo de bens primários. Esses processos configuram o que a comunidade científica tem denominado de Antropoceno. O Antropoceno expressa a escala e a velocida-
de da degradação ambiental verificada até os dias atuais e coloca a humanidade como a principal força geradora desse complexo de mudanças que inauguram uma nova era geológica (CRUTZEN, 2002; PÀDUA, 2015). Moore (2016), e outros autores, reconhecem a importância do debate sobre o Antropoceno, mas abre uma divergência com ele por entender que o termo atribui uma responsabilização genérica da espécie humana e, nesse sentido, consideram que o termo Capitaloceno é mais adequado para representar o processo em curso porque responsabiliza o sistema econômico hegemônico desde a modernidade industrial e não todos os indivíduos de forma genérica.
As pesquisas do IPCC estimam que a temperatura média do planeta aumentou até o momento 1,1ºC em relação ao período pré-industrial (1850-1900). As expectativas do Acordo de Paris de 2015 foram de manter a temperatura média global abaixo de 2º C até o final do século XX com a recomendação enfática para que ela não ultrapasse 1,5º C. O novo relatório do IPCC de 2021 (AR6) traz um tom mais pessimista ao afirmar que a previsão de 2015 é insuficiente para garantir uma sobrevivência humana segura e estima um aquecimento de 1,5º a 2 º C nas próximas décadas se não houver uma forte redução de emissões de gases do efeito estufa (ALVES, 2021; IPCC, 2021).
Tais evidências suscitam alguns questionamentos: 1. O que caracteriza a complexidade da crise climática? Por que diante de todo o conhecimento reunido as reações à ela são tão ineficientes e decepcionantes? O que na natureza do problema faz com que ele pareça insolúvel? O que tem produzido a atual governança conservadora da crise climática?
A complexidade e os desafios da crise climática
A multidimensionalidade da crise climática, seu caráter global, a falta de vontade e de prioridade política, a prevalência da lógica expansiva do capitalismo, a erosão do estado nacional, o consumo como va-
lor civilizatório e a relativa invisibilidade do problema, entre outros fatores, configuram a complexidade da crise climática. A seguir analisamos alguns desses fatores constitutivos e sua interatividade cruzada.
Em primeiro lugar ressaltam os obstáculos econômicos-políticos. Historicamente são determinantes porque foi essa díade econômica-política que constituiu o modelo de produção e consumo que está na origem do aquecimento global. Por outro lado, são os macroatores econômicos, como as grandes corporações globais, financeiras ou produtivas e os Estados nacionais, em especial, os mais ricos, que adotam posições conservadoras na governança da crise climática em defesa de seus inte¬resses particulares, da rentabilidade de seus investimentos e da manutenção de sua competitividade na economia e geopolítica globais (VIOLA, 2012). A fragilização do Estado, no contexto da globalização neoliberal, agrava esse quadro porque reduz o poder de regulação dos governos e os subordina aos ditames da iniciativa privada. A recusa dos governos dos EUA e da China de participarem de conferências e de acordos do clima em diferentes momentos e a influência decisiva dos lobbies das grandes corporações são ilustrativos dessa situação.
Um segundo elemento é a ausência de organismos internacionais com força suficiente para mediar, legislar e criar compromissos vinculantes entre as nações. Sabe-se que a ONU, o PNUMA e organismos semelhantes são instrumentos insuficientes para tanto porque regidos por uma larga assimetria de poder que tende a atropelar sua autonomia diante de conflitos que contrariem os interesses dos países mais ricos e poderosos, como ficou claro, entre outros casos, na guerra do Iraque em março de 2003.
A crença na ecoeficiência tecnológica é um outro fator funcional à manutenção do status quo na medida em que alimenta um repertório infinito de soluções paliativas para que a lógica expansiva do crescimento econômico não seja interrompida. É evidente que a ecoeficiência é um recurso necessário e importante à governança da sociedade atual, à produção econômica e
ao bem-estar da população. Ocorre que, do ponto de vista ambiental e climático, esse recurso não é suficiente para conter a escalada da degradação e do aquecimento porque a população e o consumo seguem crescendo em ritmo geométrico (ABRAMOVAY, 2012; ROCKSTRÖM, 2009).
Além dos desafios elencados, há também um outro conjunto de problemas, mais subjetivos, que dificultam o equacionamento da crise climática. São fatores ligados ao conhecimento existente, à comunicação do problema e à própria percepção que o público forma sobre ele. Apesar do avanço das pesquisas e evidências já confirmadas, persiste uma pequena dose de incerteza sobre a intensidade dos impactos do aquecimento, sobre sua localização e momento temporal de ocorrência. Essas incertezas dão margem a controvérsias, à desinformação, aos negacionismos e à ação de lobbies contrários às políticas e iniciativas de combate às mudanças climáticas. Assim, volta e meia, essas expressões da dúvida e do negacionismo invadem o debate ainda que essa ocorrência venha se reduzindo ao longo do tempo.
Associado ao problema anterior verifica-se que a própria invisibilidade da crise climática na vida cotidiana produz uma certa inércia na ação dos indivíduos. Para Giddens (2010), essa invisibilidade do risco constitui o paradoxo que nos induz à inércia e à passividade, ainda que a espera para que as consequências dos problemas amadureçam e se tornem visíveis tornará as respostas para sua reversão tardias. Ou seja, não reagimos porque não percebemos o problema com clareza, mas se formos esperar que ele se torne visível já será tarde demais.
Por último, mas não menos importante, se revelam o poder de alguns valores e ideias culturais introjetados no imaginário social. Há, por exemplo, o mito do crescimento econômico como um valor positivo e desejável e como solução universal para quase todos os problemas sociais. Associado a isso, aparece a questão do consumo como componente indissociável na formação da identidade dos sujeitos contemporâneos e na concepção dominante da felicidade nas sociedades pós-industriais.
Desse balanço surgem novas perguntas: o que podemos fazer que ainda não fizemos? Que caminhos são mais promissores que os adotados até o momento?
O debate social e científico tem demonstrado a necessidade de discutir e adotar alternativas ao modelo de produção e consumo vigente, de rever os limites do crescimento com abertura ao tema do decrescimento, de praticar políticas de distribuição de renda, de desativar os mecanismos de obsolescência programada, de usar instrumentos econômicos de contenção do consumo supérfluo, de descarbonizar a matriz energética, de transferir tecnologia limpas e investimentos aos países periféricos visando mitigação e adequação, de reduzir o desperdício e adotar os princípios de redução, reutilização e reciclagem em direção a uma economia circular e de priorizar o uso de bens e serviços coletivos em detrimento individuais, como é o caso das estratégias de transporte entre outras.
É evidente que nada disso é fácil, implica sempre em conflitos e luta política. Mas, diante das evidências existentes se for mantido o atual padrão de governança conservadora da crise climática, com todas as suas consequências e riscos, no médio e no longo prazos as alternativas parecem ser a escolha entre um decrescimento planejado e consensuado entre todos ou um decrescimento compulsório e caótico que suporia conflitos e guerras distributivas generalizados e a falência das instituições e do mundo como o conhecemos (SEMPERE, 2008).
Referências
ABRAMOVAY, R. Desigualdades e limites deveriam estar no centro da Rio+20. EstudosAvançados, São Paulo, v. 26, n. 74, p. 2133, jan/abr, 2012.
ALVES, J. E. D. O relatório do IPCC e a gravidade da crise climática. Ecodebate, 2021. Disponível em: https://www.ecodebate. com.br/2021/08/11/o-relatorio-do-ipcc-e-a-gravidade-da-crise-climatica/ . Acesso em: 7 fev. 2022.
CRUTZEN, Paul Josef. Geology of mankind: the Anthropocene. Nature, London, v. 415, p. 23, 2002.
GIDDENS, A. A política da mudança climática. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
IPCC. Climate Change 2021. The physical basis: Summary for policemakers. IPCC, Geneva, Switzerland, 2021.
MOORE, J. W. (Ed.).Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism: PM Press, 2016.
PÁDUA, J. A.Vivendo no antropoceno: incertezas, riscos e oportunidades. In: Oliveira, L. A. Museu do amanhã. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015.
ROCKSTRÖM, J. et al. Planetary boundaries: exploring the safe operating space for humanity. EcologyandSociety, v. 14, n. 2, p. 32, 2009. Disponível em:<https://www. ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/>. Acesso em: 08 jun. 2010.
SEMPERE, J. Decrescimento e autocontenção.Revista Ecologia Política, n. 35, p. 3544, 2008.
VIOLA, E.; FRANCHINI, M. Sistema internacional de hegemonia con¬servadora: O fracasso da Rio + 20 na governança dos limites planetários. Ambiente & Sociedade, Campinas, v. xv, n. 3, p. 1-18, set./dez. 2012.
Gustavo Costa Lima é Doutor em Sociologia (UNICAMP) e Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: Gust3lima@uol.com.br.
A Conciliação
Abdias Vilar de CarvalhoConstruí essa hipótese, baseada no conceito de conciliação. Conciliação nacional que tem sua predominância na sociedade brasileira. Vejo assim essa sociedade na atualidade. Como pode o povo brasileiro aceitar e praticar essa conciliação nacional?
Para o povo em geral, a questão teórica pouco importa, por isso faz a diferença entre ser de direita e ser de extrema direita como se houvesse rigorosamente na prática e em âmbito teórico uma diferença substancial. Ser de direita ou de extrema direita, para mim, é a mesma coisa. O que os diferencia, segundo meu pensamento, é apenas graus, que se manifesta no comportamento político.
Ser de direita exige um certo tipo de comportamento contrário que se refere aos excluídos na sociedade, ao papel do Estado na economia e à democracia como regime político e como valor e prática social.
A intelectualidade e os jornalistas são quase unânimes em atribuir essa conciliação em termos de que tanto faz ser de direita ou ser de esquerda, ou como diria uma aluna minha “dança-se conforme a música”. A linguagem mais usada que remete ao tempo do primeiro império é: “Era voz corrente que nada parecia mais com um liberal do que um conservador” (Conferir Emília Viotti da Costa e Nelson Saldanha: História das ideias políticas no Brasil). Enganam-se eles? No momento, há toda uma ideologia que demarca cada partido. É só ler os programas de cada partido de esquerda. Uns dão mais ênfase na questão ambiental, outros seguem a tendência da social democracia, mas todos eles vivem uma crise de identidade e de legitimidade, expressa na frase “eles não nos representam” dita por várias classes sociais. Essa crise é generalizada e acontece em todos os países - é necessário ver o caso dos EUA e da França. Difícil é, no entanto, se pensar a direita no Brasil de hoje. Muitos artigos fazem referência ao bolsonarismo, como dizem os franceses “et pour cause”.
Três exemplos são bem marcantes: a) a transição política entre o regime militar e a verdadeira democracia foi feita dentro desse espírito, sem que houvesse um pacto com o povo ou seus representantes. A eleição indireta pelo Colégio eleitoral, montado pelo regime militar, terminou sendo aceita pela nação como um mal menor e por isso teve sua aceitação; b) a ideia de uma chapa
Lula/Alckmin pode ser uma jogada política, uma excelente estratégia eleitoral, mas ao nível do conceito, que funda esse artigo, é bem revelador da conciliação. Um terceiro exemplo, vivido nos dias atuais, pode ser encontrado na CPI da COVID, como assim ficou denominada. Ela espelhou em alto grau esse comportamento conciliador. A composição em si mesma, aos olhos de muitos, sempre foi bem vista, pois reunia vários partidos de direita indo até a esquerda. Mostra, no entanto, que, para combater Bolsonaro e “camarilha”, acaba ser necessária a reunião de todas, ou quase todas, tendências ideológicas. Até um governista pousava de independente, para se revelar, no final da CPI e quando se aprovava o relatório final, um fervoroso governista.
Os partidos de direita, principalmente aqueles que estão com o governo federal, tentam viabilizar esse governo através da militarização da política e de um golpe militar. A militarização entendo no sentido genérico do termo e pela presença de militares na administração pública.
Contrariando a Constituição, até um general da ativa foi nomeado ministro da Saúde e após sua saída do cargo, desempenha atualmente função importante na casa Civil, reduto da direita: Secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria de Assuntos Estratégicos, nomeado por Jair Messias Bolsonaro, sob o argumento de que é o comandante supremo das Forças Armadas. E tal permanência de um general da ativa conta com o apoio dos atuais dirigentes das Forças Armadas.
O inciso II do art.142 da Constituição é suficientemente claro: “o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea “c”, será transferido para a reserva, nos termos da lei”. O referido inciso menciona: “é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso X.
Insuflado por alguns civis, mas o desfecho final e cruel é dos militares: o golpe de Estado ou militar. Nascido com a Proclamação da República, redunda em uma ameaça subjetiva e prática. Não adianta os militares negarem tal intenção, que ninguém acredita. O problema reside na herança histórica. Não aliviam o comportamento dos militares e dos grupos bolsonaristas, pois aqueles não entregarão facilmente os cargos que
preenchem na Administração, e estes, a se acreditar na internet, preferem tumultuar as próximas eleições e inviabilizar o novo governo, saído das urnas. Segundo uma filósofa e professora aposentada da UFPE, os militares não entregarão de “mão beijada” os cargos que exercem no Governo Federal. Preocupa tal perspectiva, bem como o comportamento do governo, que terá quase três meses para inviabilizar a nova administração pública.
O último golpe militar foi em 31 de março de 1964, derrubando um governo eleito democraticamente, e instalou uma ferrenha ditadura que durou 21 anos. O Brasil vive hoje uma democracia, sob estilos políticos mais variados e sob ameaça constante do governo Bolsonaro. A maioria dos brasileiros veem uma insatisfação qualquer das Forças Armadas que redunde em novo golpe de Estado. Bolsonaro e adeptos bem que planejaram um golpe no dia da Independência do Brasil. Houve reações contrárias imediatas do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, para ficar nesses exemplos. Seguindo os passos de Gramsci, pode-se afirmar que a instalação do regime militar foi uma revolução passiva negativa ou regressiva.
Alguns autores e jornalista irão ver no STF o Poder Moderador, outros enxergam no STF a judicialização da política. Não é afeita à Constituição de 1988 tais poderes. Se existe a judicialização é por consequência dos políticos e dos partidos.
Sobre os partidos de direita, é notório que o Centrão, como é assim chamado, o grupo de partidos de direita que dão sustentáculo ao atual presidente da República, defende arduamente o Poder Moderador. Sublinhei apenas aqueles que dão apoio ao presidente, mas os partidos de direita no Centrão são conhecidos por sua infidelidade.
Seguindo o que consta nesse artigo, convém explicar o Poder Moderador Moderno ou Contemporâneo exercido pelas Forças Armadas. Se introduzi um adjetivo no final é para diferenciá-lo do existente no reinado. A Constituição de 1988 é taxativa contra tal Poder. Só entende como Poderes da República: o Poder Executivo, o Congresso Nacional e o STF.
A Emenda 23 de 1999 ao art.91 consta que terá assento no Conselho de Defesa Nacional o Ministro de Estado da Defesa. Os demais artigos constitucionais referem-se à hierarquia e a disciplina.
“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanen-
tes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Nem sempre os militares conseguem diferenciar disciplina da subalternidade.
Abdias Vilar de Carvalho possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (1970) e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2002). Foi professor de Sociologia da Universidade Federal de Sergipe, da Universidade de Brasília e da USP/ESALQ. E também ocupou os cargos de Secretário de Coordenação Institucional do MIRAD, superintendente do INCRA-SP e do INCRA-PE e Coordenador Geral do PRORURAL-PE.
Resiliência antes que seja tarde
Marcos Costa LimaÉumconceito oriundo da física, que expressa a capacidade de voltar ao estado normal. Na psicologia, a resiliência significa resistência ao choque, à adversidade. É um termo usado em diversas áreas do conhecimento e, mais recentemente, na ecologia.
Utilizada para descrever o comportamento humano, fala-se que uma pessoa é resiliente quando se mostra capaz de voltar ao seu estado habitual de saúde (física e mental) após atravessar uma experiência difícil. Ou seja, é a capacidade de enfrentar e superar adversidades. O comportamento resiliente leva em conta dois fatores centrais, a crise e a superação. Diante de uma situação crítica ou adversa, as pessoas reagem de forma diferente. A pessoa resiliente é aquela que compreende o problema que está diante dela e mobiliza recursos para superá-lo.
Neste sentido, gostaria de tratar nesse breve artigo, fazendo três menções que me parecem importantes, sobre o nosso tema.
I) O Stockholm Resilence Centre, um Centro da University of Stockholm que tem reconhecimento internacional e que vem promovendo pesquisas e produção acadêmica no campo ambiental, com foco nos estudos dos Oceanos, dos alimentos, da água, da integridade da Biosfera, nas mudanças do sistema da Terra.
Foi neste Centro que foram estabelecidos Sete Princípios para construir resiliência nos sistemas sócio-ecológicos. Segundo os pesquisadores, o nosso planeta está profundamente marcado e influenciado pela presença humana. Cientistas têm argumentado que nós entramos na era do Antropoceno, uma época geológica onde os humanos, usando de muitos recursos que acabam por tornar disruptivo os nutrientes e os fluxos de energia do planeta como um todo, deixando quase todos os ecossistemas do planeta com marcas de nossa presença.
Os sistemas que são moldados pelas interações entre pessoas e ecossistemas, dizem eles, são a essência do que chamamos do sistema sócio-ecológico.
A abordagem do pensamento sobre resiliência investiga como esses sistemas de interação de pessoas e natureza podem ser melhor gerenciados diante de distúrbios, surpresas e incertezas. “Definimos a resiliência como a capacidade de um sistema, seja um indivíduo, uma floresta, uma cidade ou uma economia, para lidar com a
mudança e continuar a se desenvolver (https://www.stockholmresilience.org/research/research-news/“.
II) A segunda menção diz respeito a um filme/documentário encontrado na NETFLIX intitulado “Breaking boundaries: the science o four planet” ou “Rompendo Barreiras: a ciência de nosso planeta”, narrado pelo naturalista britânico David Attemboorough e que tem como personagem central o cientista sueco Johan Rockstörm, que é professor em ciência ambiental com enfase nos recursos da Água e na Sustentabilidade global. Antes de focar na escala planetária, a pesquisa desenvolvida por Rockstörm foi direcionada para compreender a construção de resiliência em regiões com escassez de água, as quais estudou ao longo de vinte anos.
Ele coordenou e estabeleceu, em 2009 e atualizou em 2015, a pesquisa intitulada os nove limites planetários que são considerados fundamentais para manter um “espaço operacional seguro para a humanidade”. Esse quadro tem sido adotado como uma abordagem para o desenvolvimento sustentável, e tem sido usado para ajudar a orientar governos, organizações internacionais, ONGs e empresas que consideram o desenvolvimento sustentável. São eles que determinam a capacidade de auto-regulação do planeta: 1) Mudanças climáticas; 2) Acidificação dos oceanos; 3) Diminuição ou depleção da camada de ozônio estratosférico; 4) Carga atmosférica de aerossóis; 5) Interferência nos ciclos globais de fósforo e nitrogênio; 6) Taxa ou índice de perda de biodiversidade; 7) Uso global de água doce; 8) Mudança no Sistema do Solo (Land-System Change); e 9) Poluição química.
III) E, finalmente, a terceira menção, que diz respeito ao Brasil e as vicissitudes e violência que o atual governo brasileiro vem cometendo nas questões relativas ao meio ambiente, muito embora como afirmam Fensterseifer, Tiago e Ingo Wolfgang (2020), na leitura da Lei Fundamental brasileira de 1988, o paradigma científico relacionado ao princípio da integridade ecológica encontra-se consagrado expressamente por meio de expressões como “processos ecológicos essenciais” e “função ecológica”, neste último caso com vedação de práticas que provoquem a extinção de espécies da biodiversidade (fauna e flora). As expressões referidas pela nossa Constituição de 1988 possuem equivalência em termos de significado, para o campo jurídico, com o conceito de “limites ou fronteiras planetárias”,
“juridicizando” o conceito de “subsistemas” interdependentes que devem ser necessariamente protegidos para assegurar o equilíbrio e integridade do(s) ecossistema(s) não apenas nas esferas local, regional e nacional, mas também global ou planetária”.
Em que pesem as diretrizes constitucionais, nada tem sido respeitado, desde a preservação das florestas, o estimulo à grilagem, a agressão sistemática aos indígenas, entre outras e, mais recentemente, a Câmara Federal aprovou o Pacote do Veneno – PL nº 6299/2022 que, entre outras: 1. Dispensa de registros e de estudos agronômicos, toxicológicos e ambientais os agrotóxicos produzidos em território nacional com fins exclusivos de exportação, deixando os cidadãos que trabalham nessa produção ainda mais expostos; 2. Concede registro temporário para agrotóxicos que não tenham sua avaliação concluída nos prazos estabelecidos pelo projeto de Lei, ao mesmo tempo que determina prazos não factíveis para registro e reavaliação de agrotóxicos, já que são extremamente curtos quando comparados com a realidade dos órgãos e a complexidade das análises; 3. Mudança do nome “agrotóxicos” para “defensivo fitossanitário” e a exclusão dos órgãos responsáveis por avaliar os impactos sobre a saúde e o meio ambiente (ANVISA e IBAMA) da avaliação e do processo de registro dos agrotóxicos no Brasil, 4. Sugere, no âmbito das doenças crônicas não transmissíveis e do câncer, que seja feita a “análise de riscos” dos agrotóxicos ao invés da “identificação do perigo”. A implementação do PL 6.299/2002 possibilitará o registro de agrotóxicos com características teratogênicas, mutagênicas e carcinogênicas, colocando em risco a saúde da população exposta a esses produtos e o meio ambiente.
O atual governo está na contramão da vida, da saúde da população e contrário a todas as instituições que se pronunciaram contra o pacote: ONU; Anvisa; Ibama; Conselho Nacional de Direitos Humanos; Fiocruz, Instituto Nacional do Câncer, entre outras.
Referências
Fensterseifer, Tiago e Ingo Wolfgang, “Os limites planetários como parâmetros para a progressividade das “leis dos homens” de proteção ecológica em face da força imperativa das “leis da natureza”. in http://genjuridico.com.br/2020/08/17/ limites-planetarios-como-parametro/ 17.ago.2020, acesso em: 12 de fev. de 2022
ROCKSTRÖM, Johan et all), Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space
for Humanity. Ecology and Society, Vol. 14, N. 2, 2009, Dezembro, pp. 1-32. Disponível em: https://www.ecologyandsociety.org/ vol14/iss2/art32/)
MINISTÉRIO DA SAÚDE INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA NOTA PÚBLICA ACERCA DO POSICIONAMENTO DO INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER SOBRE O PROJETO DE LEI Nº 6.299/2002.
Marcos Costa Lima é Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco
Bahia e Minas: como transformar crise das cheias em oportunidade
Antonio JucáAsmudanças climáticas estão aí, especialmente atingindo os mais vulneráveis, que residem em áreas de risco. Eles sabem do perigo, mas não têm opção e não são poucos. Em 1972, como estudante de arquitetura, realizei minha primeira pesquisa sobre os morros de Casa Amarela, no Recife, e de Olinda. Depois, em 1987, como arquiteto, fundei um grupo de arquitetura e urbanismo no Centro Josué de Castro, no Recife, quando, além de prestar serviços a prefeituras, voltei à pesquisa sobre os morros da Região Metropolitana, no entorno do Recife. Isso foi feito não apenas levantando os problemas, mas também estudando as soluções técnicas para os mesmos. Nessa época, estive em um encontro de países da América do Sul em que muitos grupos de arquitetos urbanistas “de pés descalços” expuseram várias técnicas de urbanização de bairros carentes. No Brasil, essas técnicas eram raramente utilizadas. Aqui, houve o Triângulo de Peixinhos e o Projeto João de Barros que se destacaram como alternativas que foram efetivadas e efetivas. Contudo, como tudo mais exige continuidade e manutenção, o Triângulo de Peixinhos virou uma lástima. Fiz uma visita ao local há poucos anos e percebi que, com o aumento das marés, as condições de todos os bairros às margens do Beberibe se tornaram muito tristes. Seria preciso criar um dique em boa parte da extensão do rio e, possivelmente, manter a drenagem do subsolo, como se faz na Holanda, bombeando água de volta ao rio. Nesse país europeu, alguns moinhos
antigos ainda realizam essa função. Como diriam os ingleses - está funcionando, deixa, é só manter. Ainda assim, observe-se, um critério nas licitações desses estados é a relação qualidade/custo.
Estudei a industrialização da construção, a construção informal de moradias, o saneamento básico nas suas quatro vertentes, a urbanização sustentável; conquistei todos os títulos, sempre com uma perspectiva ao final aplicada, e fiz algumas contribuições, mas nada efetivamente mudou substancialmente em cinquenta anos. Em cinquenta quilômetros de favelas percorridas em boa parte do Brasil, as tendências da urbanização são as mesmas. Como diria Joaquim Nabuco - a mentalidade escravocrata irá demorar para ser ultrapassada. Quanto à reparação da escravidão, penso eu que é o povo que terá que tomar as rédeas de seu destino, e nosso desenvolvimento se dará com a prosperidade deste.
Deixando de lado os lamentos, já temos profissionais de urbanização de favelas e precisamos de mais gente, mais alternativas, pois teremos grande necessidade de resolver os problemas que serão gerados pelas mudanças climáticas em áreas de risco (que precisam ser mapeadas, inclusive considerando eventos extremos e passíveis de intervenções).
Em resumo, as atuações consistem em criar residências permanentes próxi-
mas, o que pode significar a reconstrução programada de áreas inteiras, para a qual a construção de moradias provisórias pode ser necessária. Outra solução é a remoção acordada para loteamentos urbanizados. Em todos os casos, o controle urbano deverá ser efetivo.
Relembrando: muitos projetos na linha alternativa, ditos como pilotos, perderam seus pilotos políticos e não tiveram continuidade ou manutenção, portanto terão que se tornar política de estado.
Não vejo muito propósito, aqui, para tratar da crise das enchentes recentes, a qualificando-as ou quantificando-as. O que vi foi o resultado: destruição e desabrigo.
Sem rodeios, imaginei a criação imediata de:
1. Loteamentos para abrigos provisórios;
2. Tais abrigos provisórios poderiam ser até tendas dentro de lotes, onde, posteriormente, poderiam ser construídas habitações permanentes;
3. Deveriam ser destinados alguns lotes para serviços comuns, de imediato, para a distribuição de alimentos, água e prevenção à pandemia, além de, possivelmente, um local para refeitório coletivo;
4. Subsequentemente, para a distribuição de água, tanques de plástico poderiam ser estrategicamente erguidos nesses lotes comuns para a distribuição por mangueiras; caminhões-pipa os abasteceriam, e, logo que possível, cada tenda teria um ponto d’água;
5. O esgotamento sanitário se daria também por dutos plásticos compatíveis, dirigidos a fossas e sumidouros coletivos (tanques plásticos adaptados) colocados em lotes comunitários;
6. A rede elétrica poderia também ter várias soluções com melhorias no tempo, iniciando-se com pouca carga, com o cuidado de informar o que poderia se utilizar em cada abrigo;
7. As comunidades organizadas deveriam participar, de algum modo, das instalações, e a triagem dos beneficiados deve ser rápida, legítima e pouco burocrática (listagem coletiva de reconhecimento).
Temos o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), criado para efetivar o direito à terra rural. Será necessário um Instituto Nacional de Urbanização e Reforma Urbana, institucionalizando o direito à terra urbana e à cidade, que poderia ser um órgão de capacitação de quadros locais. Considero que, com isso, as prefeituras teriam a chance de iniciar um processo de ordenamento urbano e habitacional, com a prevenção de novos desastres socioambientais em áreas de risco. Seria necessário coragem e vontade política para uma campanha de sensibilização e coordenação de interesses para a disponibilização de áreas adequadas a loteamentos do tipo, com propósito preventivo. Os projetos e a execução dos loteamentos deveriam ser realizados de forma bastante rápida, simplificando exigências e procedimentos burocráticos, todavia considerando as disposições legais para futura regularização formal.
Referências
World Cities Report 2020: the value of sustainable urbanization. Disp.: www.unhabitat.org
Cities and Climate Change: global report on human settlements 2011. Disp.: www. unhabitat.org