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Chefs (e gestores) na escola
from Seafood Brasil #48
Falta de contato dos alunos com o pescado é um dos principais desafios na formação de trabalhadores nas cozinhas especializadas. No entanto, o interesse é crescente
Texto: Ricardo Torres
As provas mais decisivas dos inúmeros reality shows de gastronomia disponíveis na TV e na web normalmente têm um ponto em comum. De Gordon Ramsay a Erick Jacquin, todos os jurados renomados gostam de colocar os participantes em maus bocados, cozinhando pratos com algum ingrediente aquático. Pressionados pelo tempo, pelas câmeras e pelo furor dos chefs/personalidades/jurados, os cozinheiros muitas vezes se perdem na falta de intimidade na manipulação e cocção das inúmeras espécies de peixes, crustáceos e moluscos disponíveis.
Muitos chefs da vida real, que ocupam as cozinhas de todo o planeta sem o glamour das transmissões, também sentem um frio na barriga quando o prato é com pescado. Os professores e coordenadores de cursos diversos consultados pela Seafood Brasil indicam que o problema não é necessariamente de ordem técnica. O Le Cordon Bleu Brasil, cujos cursos têm módulos que ultrapassam R$ 20 mil, tem alunos que apresentam pouco contato com o tema, como conta o chef e professor francês Alain Uzan “A maior parte não sabe mexer [com pescado], mas estamos aqui para ensinar. Tem quem gosta e quem não gosta, mas todos sabem que precisam desse repertório na cozinha. Nós ensinamos as técnicas para qualquer tipo de produto, desde uma sardinha até um pirarucu de 30 kg.”
Mesmo a gastronomia japonesa, a principal porta de entrada para o consumo de pescado nos restaurantes brasileiros, enfrenta a barreira da falta de intimidade dos trabalhadores com as matérias-primas aquáticas. Não apenas no preparo dos pratos, mas na recepção e conservação dos produtos. “Profissionais de cidades do interior mais afastadas têm muita necessidade de manter o peixe por mais dias, já que não têm muita rotatividade de entregas, mas não conseguem fazer isso mantendo a qualidade”, sublinha Nanci Kawahito, professora da Nagoya Sushi School. O impacto é direto no consumo: ”Eu já ouvi gente dizendo que não gosta muito de sushi porque provou e sentiu que não era bom.” Afinal, peixe vencido nem um niguiri salva.
Outro fator complicador é a resistência de alguns cozinheiros no aprendizado de novas técnicas. “Já tive alunos que recebem o curso do restaurante em que trabalham e não aceitam executar as técnicas avançadas, porque acreditam que as que eles próprios desenvolveram são melhores”, diz Kawahito. A Nagoya é a única escola credenciada e representante da World Sushi Skills Institute (WSSI) e a All Japan Sushi Skills Institute (AJSA), única associação de sushi credenciada pelo governo japonês. Mas ainda assim, há profissionais que preferem apostar nos próprios conhecimentos empíricos para se diferenciarem.
A situação se torna mais complexa quando os alunos não têm qualquer formação além da prática e não conseguem arcar com o investimento necessário para nivelar o conhecimento com o que se faz no mercado. Pensando em contornar a situação, a Gastronomia Periférica foi fundada há cinco anos com o intuito de oferecer cursos gratuitos para formar cozinheiras e cozinheiros oriundos das periferias do Brasil. Hoje, já são 20 Estados brasileiros atendidos, além de mil alunos formados dentro do curso de gastronomia e, só em 2022, a escola formou cerca de 300 cozinheiros e empreendedores.
Conforme detalha a sócia fundadora, Adélia Rodrigues, o maior incômodo desde a origem do projeto era justamente a falta de formação de quem já trabalhava na cozinha, ao passo que outras pessoas com formação não necessariamente eram bons cozinheiros. Neste processo dicotômico, acharam um objetivo específico. “A principal bandeira é o combate ao desperdício. Se olharmos para a periferia, estão lá as cozinheiras que ocupam todas as cozinhas. Se elas tiverem acesso à informação [de redução de desperdício] e fizer sentido para elas que dá para aproveitar a cabeça e a cauda para fazer um fundo, por exemplo, conseguimos modificar de fato os restaurantes, não só pelo convencimento do dono.”
Não por acaso, a maior parte dos alunos formados pela escola é de mulheres. “É por uma escolha nossa, mas também por um retrato social. Quem pensa em fazer os cursos é a mulher que não teve oportunidade, fez outras escolhas, principalmente familiares e, através de um curso totalmente gratuito, ela poderá olhar para a própria formação.” Para o chef Édson Leite, também sócio fundador da Gastronomia Periférica, não é correto dizer que uma cidadã ou cidadão periférico não têm interesse no pescado porque não têm contato. “Em um monte de quebradas tem restaurante japonês e todo mundo sabe o que é um salmão ou camarão. O desejo de ir a estes locais é real. Nas redes de supermercado da periferia, por exemplo, vende-se mais pescado do que carne de porco.”
O pescado na jornada formativa
Na maior parte dos cursos de gastronomia destinados a formar profissionais para as cozinhas de todo o Brasil, o pescado é um item a mais dentro de outras disciplinas, como a de cozinha quente. Mas algumas instituições dão ênfase na pluralidade da oferta de pescado disponível, bem como aspectos relacionados à origem, logística e técnicas de manipulação e cocção.
É o caso do Senac-SP, que oferece cursos de graduação em quatro semestres em dois dos campus mais reconhecidos da área no Brasil: Campos do Jordão e Águas de São
Pedro. “O Senac São Paulo aborda peixes e frutos do mar em toda sua complexidade. Desde a classificação, tipos, como precisam ser manipulados para limpeza, evisceração, armazenamento até as diferentes formas de preparo e apresentação. Claro que cada curso traz o assunto e insumos de forma diferente, considerando a complexidade que é necessária para o tema”, explica Débora Kucher, coordenadora de gastronomia do Senac São Paulo. Ela se refere às diferentes modalidades além da graduação, como cursos livres, técnicos, extensão e pós-graduação.
A linha é similar à adotada pelo mais tradicional instituto de gastronomia do mundo, o Le Cordon Bleu. Fundado há 128 anos na França, está presente em 20 países com 35 unidades, que já formaram mais de 20 mil alunos de 100 nacionalidades diferentes. No Brasil desde 2018, a escola aborda o pescado tanto no Diplôme de Cuisine – uma certificação em níveis básico,
Para Zenir de Melo Ferreira, do Senac, ainda há preconceito dos alunos com pescado congelado intermediário e superior – quanto no Cordontec – formação voltada para quem tem interesse em atuar em cozinhas profissionais.
O chef instrutor Alain Uzan garante que o destaque à área é grande nos dois cursos. “Peixes e frutos do mar são cerca de 40% do conteúdo direcionado às proteínas”, aponta. “De acordo com a proposta pedagógica e carga horária de cada programa, há uma diferença nos tipos de peixe utilizados.” O Cordontec explora o salmão, a pescada e a tilápia, enquanto o Diplôme de Cuisine contempla também insumos mais exóticos, como o king crab. “É um campo de conhecimento essencial para qualquer aprendiz da área gastronômica. Os cozinheiros precisam saber o comportamento de diferentes carnes, de lula, polvo, mexilhão, vôngole, camarões, lagostins, e dominar diferentes formas de cocção, molhos e interação de ingredientes.”
O objetivo é oferecer um panorama completo sobre frutos do mar, peixes de mar e de rio. Também abordamos espécies presentes no Brasil e na Europa, além de ícones de outras nacionalidades. “A partir daí, expomos aos alunos comparativos de formatos, tipos e qualidade. Eles aprendem a manipular corretamente, tirar filé, espinha, métodos de cocção e principais influências técnicas e culturais culinárias de várias partes do mundo, incluindo o Brasil”, detalha o chef Uzan.
Na Nagoya, com unidades físicas em São Paulo e Rio de Janeiro, os cursos são básico e iniciante, intermediário e avançado. Desde o primeiro módulo do básico, os alunos são provocados a compreender a importância da manipulação correta de peixes, crustáceos e moluscos, respeitando as exigências para cada espécie. “Não adianta a indústria fazer o tratamento depois de sair da água, com tecnologia e cuidado com a conservação, e o profissional no restaurante não cuidar da higiene e conservação. O peixe tem que ser mantido bom em todos os dias da duração dele, não só no primeiro dia. E cada peixe tem um comportamento. Alguns são melhores manter inteiros, outros em filé etc”, aponta Nanci Kawahito.
Ela usa o próprio exemplo junto aos alunos. Sócia do restaurante Emi Sushi, em Itaguaí (RJ), a professora leva os peixes direto do restaurante e os desembala em frente aos alunos, que então conhecem os métodos empregados ali. “Mostro como se usa [o pano] perfex na barriga, falo sobre a textura, o cheiro e como fica depois de 3, 4 dias.” Se a aula é domingo, ela recebe o peixe na quinta-feira para levar à escola. “Um aluno olhou e disse que estava melhor que o dele que recebe todos os dias.” Mas nem sempre foi assim, como a própria professora conta no testemunho pessoal do Box da página 80.
Pré-conceitos formadores
Os mestres que formam os cozinheiros e cozinheiras de todo o Brasil também são responsáveis por transmitirem as informações mais precisas possíveis sobre o complexo universo do pescado, mas nem sempre isso acontece. As entrevistas para esta reportagem mostram que alguns temas ainda têm pouco consenso, como o uso de espécies de aquicultura ou selvagens, itens importados em oposição a nacionais, produtos resfriados ou congelados e até fraudes no pescado.
Zenir Aparecida Dalla Costa de Melo Ferreira, coordenadora do curso Tecnologia em Gastronomia do Senac, reconhece a má vontade de alguns com determinadas apresentações. “Existe um pouco de preconceito com pescado congelado. No entanto, se congelado da forma correta, mantido em temperatura certa e descongelado corretamente, o pescado pode entregar a mesma qualidade de um pescado fresco”, atesta. Ela menciona como exemplo o comércio de pescado do Japão para restaurantes americanos, com itens ultracongelados como o atum bluefin.
O falso dilema “congelado x fresco” é uma questão que precisa ser abordada sob a ótica administrativa, de gestão de estoque. Essa é a linha do trabalho desenvolvido pelo EGG Educa, núcleo de educação para chefs executivos do grupo EGG. “Um congelado bem tratado é melhor do que um fresco mal tratado. Do ponto de vista de gestão, um congelado é sempre melhor porque a cadeia de frio tende a ser mantida de forma mais coesa”, aponta Ivan Achcar, sócio fundador do EGG
No entanto, ele pondera sobre o temor que os compradores de pescado do food service têm sobre o glazing. “Muitas empresas trabalham com congelados e um banho de gelo muito grande. Então, você perde 25% do produto em água”, comenta Achcar. “Sendo assim, os congelamentos precisam ocorrer de forma estruturada, monitorada, para se calcular o fator dessa mercadoria para saber exatamente o preço que se está pagando no produto”, completa.
Para o chef Uzan, do Le Cordon Bleu, há dois reflexos associados aos problemas na cadeia do frio. “O peixe verdadeiramente fresco é muito difícil de se obter em uma cidade como São Paulo, enquanto nos congelados, eu acho difícil ter garantia de qualidade”, opina. Ele completa. “A gente não sabe com certeza há quanto tempo foi congelado ou os métodos de
Formar a área administrativa
O chef Ivan Achcar é especialista em estruturação de conceitos e plano de negócios para restaurantes, aceleração de negócios e estratégias de marketing e aquisição de clientes para o food service. Ele fundou o que considera ser a primeira e única escola da américa latina 100% dedicada à gestão de negócios da gastronomia, com mais de 100 professores e 7 mil alunos formados. Ele teve a ideia após considerar que existe um “apagão gigante” de formação de mão de obra para a gestão de serviços de alimentação.
“Precisamos entender que você pode cozinhar a melhor comida do mundo, mas isso não vai fazer diferença nenhuma no seu negócio do ponto de vista de sucesso.”
Os peixes, crustáceos e moluscos não são objetivo de uma disciplina específica, mas entram nos estudos sobre a gestão de compra de proteínas. “Falamos muito sobre a importância da curva ABC [análise que ajuda as empresas a identificarem os produtos com a melhor relação compra-vendaestoque]. Peixes e frutos do mar tem um custo elevado, mas também agregam muito valor nos cardápios e têm margens de contribuição bem gordas.” congelamento. Muitas vezes, a carne do peixe está meio cozida pelo congelamento.” A saída, segundo ele, é encontrar um fornecedor confiável e desenvolver diversos requisitos para realizar a compra.
Uzan é um dos que têm opiniões fortes a respeito dos peixes da aquicultura, ecoando o que a maior parte dos chefs da alta gastronomia pensam sobre o cativeiro. “Um peixe de cativeiro nunca vai ser igual ao selvagem. O peixe em seu habitat natural se alimenta de um certo jeito e, no cativeiro, alimenta-se de ração. A qualidade é sempre inferior, não há dúvida. Mas em alguns casos como as ostras, por exemplo, se não forem de cativeiro, eu não consumo. É um animal que precisa de vigilância sanitária para se cuidar do que ela come, senão tornase perigosa à saúde.”
Ele ainda aponta outros problemas junto à cadeia de fornecimento que prejudicam os processos formativos das escolas. “O mais complicado na cadeia de fornecimento de pescados é a má fé. As pessoas vendem produtos que não são frescos e falam que são. Está cada vez mais difícil encontrar peixe realmente fresco com qualidade. O recongelamento é uma prática perigosa e as pessoas fazem mesmo assim.”
Suporte dos fornecedores
treinamentos, visitas técnicas, entre outras possibilidades.
Para Adélia Rodrigues, a Gastronomia Periférica só não criou ainda um curso específico de pescado para os alunos periféricos em função da falta de envolvimento dos fornecedores para ajudar a suportar os custos envolvidos. “Olhar para a periferia e para a imensa oportunidade de levar esse tipo de conhecimento requer uma inteligência gigantesca. Acho que ninguém está percebendo isso tão claramente.” O chef Edson Leite lembra que os trabalhadores dos restaurantes que operam com pescado em geral têm origem periférica. “Uma marca de pescado nos ajudaria a dar esta formação para que as pessoas entendam que o que ela faz é bom e é importante. É uma ferramenta para transformar a vida dos nossos pela formação”, diz.
Da escola para o trabalho
“Não existe peixe ruim. Existe cozinheiro que não sabe lidar com aquele peixe”, diz Ivan Achcar, da EGG
As indústrias que comercializam seus produtos junto às escolas têm um papel que extrapola o mero fornecimento de um produto confiável. Cada vez mais, as empresas são instadas a transmitir informações sobre a origem, as condições de captura e produção, se houve segurança e respeito laboral no processo. É crescente o interesse dos alunos nos processos da água ao prato, o que também acontece nos salões junto aos consumidores. Isso abre uma oportunidade de parcerias com estas instituições em forma de patrocínio,
O encaminhamento profissional é outra vertente de atuação das escolas, que são acionadas pelos operadores do food service em busca dos melhores talentos. “Quando os alunos se formam e nos procuram, nós tentamos ajudar o máximo possível. Acionamos os contatos de chefs no mercado que temos. Temos muita segurança em encaminhar nossos alunos a todo tipo de cozinha profissional porque no Le Cordon Bleu, todas as pessoas são submetidas a um nível técnico alto e avaliações bem rígidas”, defende o chef Alain Uzan.
No Senac, há uma área exclusiva para atender à demanda de empregabilidade. “Muitas empresas nos procuram por conta da qualificação da mão de obra e regularmente, fazemos interações entre empresas e/ou profissionais do mercado com os alunos a fim de proporcionar mais possibilidades de caminhos para os nossos egressos”, declara a coordenadora Débora Kucher. A professora da Nagoya Sushi School, Nanci Kawahito, já recebeu a alcunha de “agenciadora de sushimen”, como ela própria menciona, às gargalhadas. “Tem muito restaurante que nos liga pedindo indicação de aluno. Pedem alunos que já tenham passado pelo básico, para que ele já tenha absorvido a parte de higiene.” É como se os profissionais já em atuação por aí não tivessem noções básicas de manipulação, segundo ela, o que reforça a importância da capacitação.
Cozinha-sala de aula do Le Cordon Bleu, em São Paulo: escola francesa tem 40% do conteúdo de proteínas voltado a pescado
Texto: Ricardo Torres