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w w w. s i s t e m a s o l a r. p t
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Segalen por Georges-Daniel de Monfreid (1909)
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Victor Segalen O DUPLO RIMBAUD (com um preâmbulo de Benjamin Fondane)
tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
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TÍTULO ORIGINAL: LE DOUBLE RIMBAUD
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA TRADUÇÃO © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, MARÇO DE 2022 ISBN 978-989-568-005-4 DEPÓSITO LEGAL 496449/22 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA ULZAMA
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índice
Preâmbulo de Benjamin Fondane . . . . . . . . . . . . . . Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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O Profeta e o Vidente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Duplo Rimbaud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Apêndice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eu é um Outro (Rimbaud por ele próprio) . . . . . . . . O Vidente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Solas de Vento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Africano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Isabelle Rimbaud: Os Últimos Dias de Rimbaud . . .
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Benjamin Fondane (1909)
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preâmbulo de benjamin fondane
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É preciso que a solução destes problemas se encontre numa vida e não num livro. Um drama ou um poema é uma resposta aproximativa e oblíqua. Emerson
Jean-Arthur Rimbaud nasceu em Charleville, a 20 de Outubro de 1854, numa excelente família burguesa, católica. Uma mãe das Ardenas avarenta, autoritária e fria, sem nenhuma imaginação; um pai da Borgonha, oficial de carreira (guarnição militar na Argélia, a campanha da Itália, da Crimeia) com um carácter volúvel e extravagante, mau marido, pai inexistente, grande devorador de estradas; nada de particular, que pudesse fazer-nos prever o génio de Jean-Arthur. Faz os seus estudos no colégio de Charleville, e mostra desde logo uma inteligência fortemente aplicada; é um espantoso aluno; faz a alegria e o incómodo dos seus professores: «Tem toda a inteligência que quisermos reconhecer-lhe, mas vai acabar mal», dizia o director. É no colégio que ele encontra Izambard, jovem professor afectuoso e simpático que se debruçou sobre o estranho aluno, lhe transmitiu as suas ideias liberais e proporcionou livros proibidos, recebendo em troca poemas e cartas. É também a ele que Rimbaud, por volta de 1870, envia a famosa carta chamada Do Vidente.
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Retrato aos doze anos por Paterne Berrichon
É nesta época, em plena guerra franco-alemã, em plena Comuna, que se situa o primeiro plano de evasão de Rimbaud, a sua primeira fuga. Embarcou rumo a Paris, não conseguiu pagar o bilhete do comboio, foi preso e regressou não isento de desgosto à casa materna. Nada nos prova, como foi mais tarde afirmado, que tenha tomado parte num qualquer dos motins que sublevaram, mais ou menos nessa data, os subúrbios de Paris. Dezassete anos: deixa de escrever versos inspirados em Banville, Gautier e Hugo; está invadido por uma abundância, uma fonte de visões, uma desmesurada ambição, um repúdio universal; acabou-se a criança bem comportada do primeiro prémio do colégio. Escandaliza os habitantes de Charleville com a forma de se apresentar desordenada, as maneiras, os insultos; escreve: «Que Deus vá à merda» nas paredes das igrejas; está para outra coisa amadurecido.
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Retrato de Rimbaud por Jean-Louis Forain
1870-1871: é recebido em Paris por Verlaine e Banville, a quem tinha enviado versos desde o fundo da sua província; acompanha Verlaine até Londres, depois até Bruxelas; em Paris desagrada a todos com as suas formas de falar e ainda mais com as suas formas de se calar, provocatórias. É a época das drogas, do absinto, da sua iniciação sexual; as relações Verlaine-Rimbaud foram objecto de muitos comentários, maledicências e defesas de causa que bastam para não se fazer sobre elas silêncio. Mais tarde, Paterne Berrichon quis a todo o preço demonstrar a absoluta pureza de Arthur; Marcel Coulon fez exactamente o contrário: argumentou a sua culpa. Apesar de os costumes pessoais de Verlaine serem suficientemente conhecidos e Rimbaud parecer isento de suspeitas, quanto mais não fosse por se levar em conta a sua idade, a opinião geral acusava-o de ser o corruptor do poeta de Hombres. Foi Rimbaud
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Benjamin Fondane
quem pôs Verlaine «fora dos trilhos»? Teve, de qualquer forma, um grande papel no mal-entendido que nasceu entre Verlaine, desde há pouco casado, e a sua mulher, e no divórcio que a seguir aconteceu. Também foi ele quem mais depressa se fartou de tudo isto e decidiu romper uma amizade que moralmente, ainda mais do que fisicamente, se tinha tornado nauseabunda. Aconteceu em Bruxelas, onde Verlaine perseguiu Rimbaud com o seu revólver e o seu ciúme; onde atirou e feriu ao de leve o seu amigo; onde foi levado para o posto da polícia, e a seguir se limpou com os dois anos de prisão que lhe permitiram escrever Sagesse mas não o fizeram mais sensato. Ter-se-á de ver nisto uma intervenção directa de Rimbaud, uma deliberada intromissão nos problemas íntimos de Verlaine, ou simplesmente a influência do seu espírito dado a extremos, a influência saturniana, um «reflexo» do ódio que Rimbaud votava nesse momento à família, à sociedade, o seu gosto pela liberdade livre, a sua moral ligada à vagabundagem? Através do álcool, da droga, da inversão, da fé, Verlaine mais não fazia do que procurar uma satisfação dos sentidos; até a sua mística era carnal. Em Rimbaud, pelo contrário, há um apetite espiritual, uma ambição poética, e ainda por cima «o lugar e a fórmula»: foi pela repulsa de ver as suas ideias a serem vividas por Verlaine, que procurou romper essa amizade impossível, que acabou por pensar nele como um «porco» e, finalmente, dominado pelas suas ideias religiosas, um «Loiola». Depois do incidente-Verlaine, Rimbaud escreveu Uma Época no Inferno, a sua única obra impressa por decisão própria, mostrando nela o espírito dos seus poemas anteriores, a sua teoria do Vidente, e afirmando ao mundo o seu voto de
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silêncio: «Mais nenhumas palavras!» No entanto, mal a pequena brochura foi impressa sentiu o ridículo, o absurdo que era comunicar ao mundo uma crise que apenas a si, contas feitas, interessava; queimou os exemplares de autor em seu poder, pensando que o resto, depositado nas instalações do editor não pago, nunca veria a luz do dia. Fez longas viagens, percorreu o mundo a pé, tentou levar a cabo a ascensão dos Alpes, tentou a sua sorte em Viena, na Itália, em Estocolmo, na Holanda, em Chipre, tentou ter os mais variados, os mais estranhos ofícios: intérprete em espectáculos de circo, pedreiro, empreiteiro de construções, professor; fez-se recrutar no exército colonial holandês com destino a Java e pouco depois desertou; regressou à França mas acabou por se instalar em Adém, depois em Harare como ambicioso comerciante, ávido explorador de tráficos no desconhecido. Enviou de lá caravanas até à Abissínia, importou armas da Europa e ele próprio traçou com a sua caminhada novas estradas. De dia trabalha, dando o corpo ao manifesto, e passa as noites a estudar os múltiplos idiomas africanos: o que irá fazer com essas belas línguas ingénuas, quase todas aprendidas com o suor do rosto? Dando crédito a algumas testemunhas, os indígenas tomavam-no por um santo e veneravam-no; dando crédito a outras, para aprender o linguajar daquelas terras Rimbaud procurava dicionários vivos: de todo um harém de mulheres que ele guardava na sua casa. Mas no processo de Rimbaud terá de ser regra desconfiarmos das testemunhas, e não podemos em nenhum momento afastar-nos dela. Seja como for, deixou uma impressão mais do que honrosa neste país de inferno; e poucos europeus podem dizer o mesmo.
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Benjamin Fondane
Chega a vez da fortuna. Neste clima atroz, cansativo, extenuante, que Rimbaud compara numa carta ao que há de mais parecido com o inferno clássico, viveu a sua vida com angústias materiais, tédio e agitação. «Nunca hei-de trabalhar», tinha ele escrito; trabalha agora furiosamente. No final de tudo isto, não é a felicidade que ele espera conquistar mas o ouro, o repouso, enfim! Deixa de escrever. Contas, cartas, uma memória que envia à Sociedade de Geografia de Paris e nada mais. Um estilo seco, despojado, avarento, sem a menor imagem, sem levantar o menor voo; correcção e limpeza; só se não compreendermos nada de Rimbaud, podemos pensar que este estilo brota de si com naturalidade e a poesia abandonou por completo o poeta; não passa de mais uma prova de que Rimbaud não mudou de opinião e tem, como nunca, horror à poesia; de que ele cumpre a sua promessa; esta prosa, para quem souber lê-la transpira vontade e teimosia. Um dia, uma dor lancinante não lhe larga o joelho direito. Rimbaud não é homem para se deixar abater com facilidade; resiste, monta a cavalo e entrega-se a uma grande volta no deserto. Mas o destino interior que o persegue não o larga; choca contra uma árvore, cai doente, vê-se forçado a «fechar a loja» e voltar a Marselha para o examinarem. Uma vez lá, tem de abdicar da sua perna; mas não faz mal; encomendará uma perna artificial. Não é abandonado pela esperança de regressar a Harare. Até se diz que projecta casar-se com uma pobre rapariga, se possível órfã, e que a levará com ele, para lá. Durante este tempo, a sua irmã Isabelle trata dele, incita-o à conversão; durante este tempo a gangrena cancerosa espalha-se,
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Preâmbulo
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sobe desde o coto amputado até à anca e alcança o ventre. O padre apareceu, chamado por Isabelle. Rimbaud confessa-se sem grande convicção, se acreditarmos no testemunho da sua irmã, infinitamente suspeito por causa de todas as suas piedosas mentiras. Mas resigna-se dolorosamente à morte. «Vou para debaixo da terra», diz-lhe ele, «e vais tu andar ao sol.» Ao que parece, neste momento Isabelle ignora a actividade literária do seu irmão; estamos em 1891. No entanto, as Iluminações já andavam pelas livrarias desde 1886. Rimbaud nunca irá tocar-lhe neste assunto. Quando soube em Harare que era amado na França e passava por um chefe de escola, teve uma grande fúria. Não podiam esquecê-lo, deixá-lo em paz? A 10 de Novembro de 1891 morre no hospital De la Concepcion, em Marselha. Nesta vida habitualmente vista como «aventureira», esqueçamo-nos das «aventuras», sejam elas quais forem. Nem o drama com Verlaine, nem as suas inúmeras viagens, nem a sua morte, libertam o essencial de Rimbaud. Do aventureiro só conserva a sede, o desespero, a vontade de não deixar as coisas correrem, de nunca se resignar, de não morrer. Resta a sua vida interior, da qual nos será entregue um quase-nada para além do rasto de uma crise que decidiu a sua vida futura. Todas as hipóteses foram encaradas, desde a do «trapaceiro com êxito» de François Coppée, ele próprio um imbecil «com êxito», até à de Remy de Gourmont a quem por uma vez a perspicácia falhou. «É provável», escreveu ele, «que ao desprezar o que não é brutal prazer, a aventura selvagem, a vida violenta, este poeta entre todos singular tenha renunciado de boa vontade à poesia.» De boa vontade, sim e não; como troca de brutais prazeres,
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Benjamin Fondane
não. Está outra coisa em jogo na vida deste homem que nunca procurou o prazer, nunca a felicidade «com um dente que é suave na morte», que teve a ambição de encontrar «o lugar e a fórmula», que viveu no Inferno sem amor, sem alegria, sem consolação, sozinho, sempre sozinho, à espera de possuir, quer «a verdade numa alma e num corpo», quer uma conta num banco — não, um punhado de ouro na sua bolsa. Foi-lhe concedida essa verdade? Encontrou o que procurava? A sua vida foi um mal-entendido? Uma linha precisa? Teria sido um vidente, como hoje vários afirmam? Um «gandulo», um «insuportável gandulo», um «estroina», como pensava De Gourmont? Um «místico em estado selvagem», como declara Claudel? Na sua curta passagem através da poesia do século XX (aos vinte anos deixou de vez «a mão que escreve»), Rimbaud foi outra coisa além de um cometa e mais do que um «assinalável transeunte». O seu génio, como se tivesse pressa de se soltar, sobrevoa a idade, o tempo, a falta de experiência e — amadurecido não sei à luz de que sol de além-túmulo — explode e derrama-se. O que espanta na sua obra não são tanto as virtudes do escritor, ainda assim fulgurantes, mas a espessura da página, a densidade do vivido, as riquezas do subsolo. O poeta desdobra-se, pluraliza-se; faz sobre todas as coisas «o salto do animal feroz». Estou por uma vez perfeitamente de acordo com a sua irmã Isabelle, ao descobrir sob a multiplicidade das personagens dos seus poemas o único rosto do Jean-Arthur e do escritor: ele tanto é o «brick» do «Promontoire» como «o turista ingénuo» do «Soir historique»; ele é «Hélène»; ele é «Hortense»… É ao mesmo tempo o «cidadão» e a «metrópole que se crê moderna»
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do «Ville». No «Ouvriers», «Henrika» e «eu» são duas partes da sua personalidade. O mesmo acontece com «um homem e uma mulher magníficos» de «Royauté»; o mesmo com «uma neve» e um «Ser de beleza e grande estatura» de «Being beauteous»; o mesmo com a «alvorada» e «a criança» de «Aube», etc. O jovem Casal só é ele. Os «conquistadores do mundo» e o «casal jovem isolado na arca» do «Mouvement» são ele, só ele. Os «estranhos muito sólidos» de «Parade» são apenas um: «ele». Apesar de um longo movimento incerto, a influência da obra de Rimbaud tinha outrora actuado sobre Verlaine, e através deste sobre a escola simbolista. No entanto, esta influência ainda não passava de pele; com a insurreição do Dadá e da doutrina surrealista é que Rimbaud entrou seriamente na arena. Foi resolvido imprimir, triturar, exprimir a sua obra até aos derradeiros redutos. Mas o verdadeiro prestígio de Rimbaud chega de outro lado, que não o dos seus «ilustres textos»; se pôs o seu génio no poema, jogou a sua eternidade na vida. Para poder «perseverar no seu ser», teve de quebrar a sua obra e o poeta que em si havia. A solução de certos problemas, dizia Emerson, só pode ser obtida com a resposta oblíqua de um livro, seja ele qual for; e não é para isto excessiva toda uma vida de homem.
Nota: Em 1898, Benjamin Fondane nasceu na Roménia. Chegou a Paris em 1923, com uma profunda descrença em tudo o que pudesse chamar-se Beleza. A poesia parecia-lhe uma mentira, e só alguma verdade encontrava em Baudelaire e Rimbaud. Sobre cada um deles escreveu um livro, e o que trata de Rimbaud com o curioso título Rimbaud le Voyou (ou seja, num português aproximado, Rimbaud o Gandulo).
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Vi c t o r S e g a l e n
Tzara e Voronca fizeram-no descobrir o Surrealismo, que ele enfrentou de sobrolho carregado e profundamente avesso ao automatismo como fonte de inspiração. Em 1933 Rimbaud le Voyou, que dava a conhecer uma interpretação «subversiva» do poeta, que atirava por terra a esforçada interpretação católica de Claudel, mas também a dos surrealistas, foi recusado pela editora Gallimard. Teve, no entanto, a compreensão das edições Denoël et Steele. Durante a Segunda Guerra Mundial foi-lhe descoberto o defeito de ter ascendência judaica. Conheceu Auschwitz e depois Birkenau, onde morreu em 1944, nu e asfixiado numa câmara de gás.
A.F.
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«Não és como os outros», dizia-lhe o olhar católico da sua mãe Marie-Ambroisine Segalen; mas o filho rebelde não era maleável à sua austeridade de mulher atenta a todos os desvios de um padrão muito firme e inquestionável, aquele que a determinava em todos os actos da vida. Victor tinha nascido no ano 1878 em Brest. E o mais extraordinário, quase miraculoso — virá a escrever para falar de si em Essai sur Soi-Même — é que vivi ou sobrevivi. Sob o ponto de vista médico eu tinha um peso insuficiente; e a Ciência, envergonhada com a minha teimosia, veio a declarar-me bom para certas doenças pulmonares que nunca quiseram nada comigo — embora por muito tempo me fosse imposta a humilhação mais vergonhosa que um homem, dos seis aos dezasseis, pode enfrentar: estava proibido de «correr muito, como os outros»; proibido de sentir calor até suar, e mais ainda de sentir frio até gelar; os meus pais desde o desmame me ensinaram que eu «não era como os outros». Foi o primeiro e singular serviço que a minha mãe me prestou: «Não és como os outros», «não vais ser como os outros», palavras mágicas que proibiam, interditavam e também prometiam maravilhas. Comecei por protestar. Lutei. Acabei por aceitar. Mas só na adolescência vim a ser como os outros — e não isento do sinal de algumas feridas. A mãe matriarca, com um muito preciso sentido do que era desejável perante o desastre físico do seu filho, decidiu que ele devia ser
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músico: sentou-o ao piano, pôs-lhe o queixo a roçar madeiras de violino, esticou-lhe o braço até ao preconizado para um melhor som das cordas. Mas Victor tanto resmungou, que a sua mãe condescendeu em fazê-lo frequentar o curso que faria dele um farmacêutico. E o rebelde, com destino numa farmácia totalmente fora dos seus sonhos, teve de chegar mais longe na luta doméstica; teve de combater, de vencer pela desobediência até conseguir qualquer coisa que lhe prometesse distâncias: a Medicina; não a de um consultório dedicado a moléstias citadinas, mas a de um navio; navio de longos cursos que o levasse às grandes diferenças daquela provinciana Europa. A medicina, mal tolerada por Segalen na École de Santé Navale de Bordéus, atirou-o para o refúgio das letras, embora não o dispensasse do mar. (E como é que ele poderia gostar do mar, se o seu céu astrológico lhe dava um excesso de seis planetas com imensas forças de terra?) Segalen, médico de bordo só a suportar os oceanos com a esperança de surpresas em futuros portos, embarca no Durance em Outubro de 1902, pressentindo que vai ver de perto o que ainda resta de «Gauguin no seu último cenário». O capitão da fragata virá a descrevê-lo «com cabelo e sobrancelhas castanhos, testa alta, olhos escuros, nariz e boca de tamanho médio, rosto alongado, a medir um metro e sessenta e nove.» E a estes dados físicos, um certificado médico assinala uma acentuada miopia. Em Agosto de 1903, o Durance e Segalen estão nas Marquesas, onde Gauguin tinha três meses antes morrido. Segalen consegue consultar o espólio do pintor e tomar muitas notas sobre aquele que espantava os habitantes da ilha por «pintar cavalos cor-de-rosa». E, no regresso desta investigação sobre Gauguin, permitir-lhe-á também o Durance uma significativa aproximação com recordações directas sobre o «segundo» Rimbaud.
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Neste regresso, Batávia e Colombo antecederam uma escala em Djibuti, principal centro de «O Corno de África», onde Segalen permanecerá sete dias. Trazia consigo, invencível, a obsessão pelo caso-Rimbaud que o assombrava desde a adolescência; a que o tinha levado a decorar com memória de juventude O Barco Bêbado e a recitá-lo, com uma voz alta capaz de assustar quem o ouvisse nas áleas do jardim botânico de Brest; que o tinha feito intrigar-se com o poeta de génio, autor de surpreendentes versos escritos entre os dezasseis e os vinte anos de idade, e depois oculto no comerciante falhado dos vinte anos, prolongado até aos trinta e sete da pouca idade a que tinha chegado quando morreu. O Segalen já escritor até sonhava com um livro intitulado Os Fora-daLei, onde reuniria estudos sobre três homens de personalidade dupla: Gauguin, Rimbaud e Siddartha; projecto que nunca chegou a concretizar-se sob esta forma e ficou disperso por textos autónomos sobre Gauguin e Rimbaud, e cinco actos teatrais que dramatizaram o caso de Siddartha, o ser humano que se fez Buda.
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Em Djibuti, o Café de la Paix era dirigido por um grego chamado Athanase Righaz. Tinha conhecido Rimbaud; e Constantin, um dos seus irmãos que dirigia o Café de France no outro lado da mesma rua, privara muito de perto com ele nos dias em que tinha sido seu assistente na agência da Casa Bardley em Harare; para além disto, Constantin até se encarregara de mandar construir a padiola que transportou Rimbaud desde Harare até ao porto de Zeitah, onde embarcou no navio que o fez regressar a Marselha. No dia 14 de Janeiro de 1905, Segalen falou com Athanase1; e dois dias depois com Constantin, que pouco acrescentou ao já ouvido no Café de la Paix. Destas palavras também temos um registo do próprio Segalen: Fica confirmado o Rimbaud muito sóbrio; sem nunca beber vinho; apenas café; o Rimbaud com uma altiva bazófia contra as insolações, com «o casaco aberto» e por vezes uma camisa árabe; o que negligenciava as habituais cortesias mas era franco, admirável para com os seus amigos e fiel a todos aqueles que o serviam (o seu criado Djama teve direito a uma pequena herança que M. Tinan expediu de Aden); o Rimbaud que também tinha maravilhosas qualidades como negociante mas se manteve sempre subalterno, com a excepção da infeliz tentativa com Labatut.2…; o Rimbaud completamente duplo porque nunca fez nenhuma referência aos seus escritos do passado, e na colónia só uns quantos puderam considerá-lo como escritor por redigir memórias coloniais. 1 O essencial desta conversa encontra-se reproduzido mais à frente, no texto «O Duplo Rimbaud» (p. 56) (N. do T.) 2 Rimbaud, no papel de comerciante de armas, resolveu vendê-las ao rei Menelik de Choa, empreendimento que foi um desastre. O seu fornecedor Labatut morreu, sem lhe fornecer armas já pagas, e Rimbaud teve com esta fracassada transacção um enorme prejuízo. (N. do T.)
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— O Rimbaud era competente no comércio; tinha alma de negociante? — Não, embora fosse «extraordinário»… era um bom contabilista que não pensava muito nos negócios… devia ter na cabeça outras ideias, dificuldades com a sua família ou «qualquer outra coisa» contra o seu país. — Se não tinha muito um ar de negociante, que outra coisa parecia desejar? Não era tentado pelo dinheiro. — Era muito parcimonioso, muito resistente, mas nem mesmo grandes lucros o deixariam satisfeito. Fazia aquilo por ser uma vida que lhe agradava… — E como eram as suas relações com os indígenas? — Frequentava-os pouco… durante o primeiro ano nem sequer os frequentou. Fui eu (como é natural) quem lhe mostrou a necessidade de lidar com aquela gente, se quisesse tirar dali algum proveito. — E mulheres? — Teve ao princípio uma abissínia, mas não a conservou durante muito tempo. Nem com ela conseguiu entender-se. (Estamos longe do Rimbaud que comentava o Corão, que surge no prefácio de Berrichon1!) — Para resumirmos, foi sempre um subalterno; alguma vez deu provas de iniciativa comercial? (Resposta vaga. Mas abandono, cada vez mais, a ideia do Rimbaud explorador de génio, a não ser como protótipo de resistência ao calor!) 1 Paterne Berrichon, poeta, pintor e escultor, casado com a irmã de Rimbaud; além de uma Vie de J.-A. Rimbaud, escreveu um prefácio a Lettres de J.-A. Rimbaud. (N. do T.)
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(Nenhuma prova, afinal, do faro de Rimbaud para negócios, das previsões de águia a respeito de Harare, da Abissínia!) (No que respeita a negócios encontro-lhe, além do mais, um capital defeito: ter falhado.) De novo na França, em 30 de Outubro de 1905 Segalen teve um encontro com Isabelle Rimbaud e o seu marido Paterne Berrichon, momento também reportado numa nota: Mais um interior «pobre» que me desagrada. Dufour, aliás Berrichon, está a ficar grisalho. Barba e fato de veludo muito «à escultor». Agora «pinta» e faz literatura, apesar de os médicos a proibirem (neurastenia, tumor cerebral…). Tem uma pintura honesta e tão pastosa como a sua palavra. Se no seu livro estrondeia, é por ser por si próprio agressivo. Às primeiras palavras, chama logo a sua mulher. A irmã de Rimbaud velha, de cara redonda, olhos claros, com o nariz e os lábios de todas as fiéis máscaras de Arthur, evoca-me intensamente o seu irmão. É lenta e intensa a falar. Acho-a inteligente, mais do que o seu marido. Julgo que sentiu plenamente o irmão e também acha (confirma-o) que todas as suas poesias são recordações da infância. Muitas estatuetas caseiras, diz-me Paterne, dão-lhe um vislumbre de Rimbaud; bibelots de família esclarecem os seus poemas. Isto confirma a minha tese: os seus versos foram para ele prodigiosos bibelots. Tenho aliás a grande alegria de confirmar uma a uma as minhas conclusões: Rimbaud foi até ao fim poeta, embora recusasse a sua produção poética; fê-lo ao ponto de temer a leitura de um só verso pertencente a outros. Era uma curiosa e intensa fobia, diz-me Isabelle Rimbaud. «Durante a sua última doença eu fazia-lhe leituras. E bastava aparecer um verso, um só, para me suplicar que saltasse por cima dele. Tinha horror à poesia.»
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O seu atavismo: dentro de si a mãe orgulhosa, dura, áspera. E uma frase de Isabelle mostra-a também filha da mesma mulher: «O Arthur encarregou-me de mandar uma soma em dinheiro para os seus indígenas que lá estavam! Mas eles tinham morrido durante a epidemia de cólera de 92, e foram as suas famílias a herdá-lo. Soubesse o meu irmão disto e não teria, por certo, feito esse envio.» Passou-lhe pelo rosto uma nuvem de arrependimento. Em 15 de Abril de 1906 surgiu na revista Mercure de France o seu texto «O Duplo Rimbaud». Em cada um de nós, dirá Segalen, e para cada uma das nossas formas de pensar, de querer e sentir, existe um irredutível e não utilizável covil que não podemos, com complacência ou à força, com ódio ou amor, entreabrir aos outros.» Estaremos perante um labirinto onde os leitores não encontram nenhuma saída? Segalen faz-nos crer que Rimbaud fala sempre de si próprio, com uma chave que só ele sabe utilizar; que os seus poemas são imaginadas memórias das coisas e dos dias da sua infância, e só ele os compreende na sua integralidade. Depois desta análise passa ao «segundo» Rimbaud, o de uma «curiosa e intensa fobia»; o que tem «horror à poesia», di-lo a sua irmã categórica e, por decisão, detentora de uma única e irrecusável verdade. Com estas duas faces, Segalen confirma em Rimbaud um bovarysmo aceite pela definição que Jules de Gualtier lhe dá no seu livro Le Bovarysme. Madame Bovary, a heroína do romance de Flaubert, é para Gualtier o perfeito exemplo «do poder, concedido ao homem, de se conceber como outro que ele próprio não é». Segalen encontra em Rimbaud um transtorno de exemplar correspondência com esta singularidade; uma oposição entre o imaginá-
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rio absoluto e o real; uma pobre realidade, para além do sensível e do inteligível, que surge apenas como seu baço reflexo. A sua obsessão pelo poeta terá outras ocasiões para se manifestar. A 10 de Janeiro de 1905, alguns meses antes da publicação do seu texto, escreveu no que viria a ser o seu Journal des Îles: Incluído apertadamente em tudo isto, também me assombra a comemoração de Rimbaud! Nalguns documentos descobertos tento aqui imaginar o que poderia ter sido O Explorador. Porque deste poeta já outros falaram. Mas será alguma vez possível conciliar nele estes dois seres tão diferentes um do outro? Ou que estas duas faces do Paradoxal possam ambas depender de uma única personagem mais alta e até agora não reconhecida? Três anos depois da publicação do seu texto, o registo do seu diário volta a ser dominado, durante uma escala em Aden, por Rimbaud: Aden ergueu à minha frente o espectro doloroso de um equívoco augúrio: Arthur Rimbaud. Ele viveu lá e sofreu angústias que o povo desconhece. Ergueu-se neste Aden ressequido e barrou a estrada, dizendo-lhe: «Vê as minhas dores, vê as minhas esperanças infinitamente decepcionadas; vê os meus esforços espantosamente inúteis, vê o meu lamentável fim: encontra nestas cavernas secas, onde um ar cavo ressoa, uma pequena parte dos ecos dos meus lamentos. Por sorte, esta vida é única e mais nenhuma há; nenhuma outra poderemos imaginar mais lamentável…» Terei de seguir em frente. E sigo. E respondo: Lutaste pelo Real. Fizeste-o corpo a corpo. Homem vão! Tinhas começado por despojar a mais esplêndida das armaduras. Poeta, renegavas-te! Gabavas-te de ter músculos e ossos. Mas o poeta que desprezavas voltava a conduzir-te; e por vingança e para tua perda, desconheceste-o. Neste mesmo ano de 1909, também confessa numa carta a Hélène Hilpert que as poderosas sílabas de O Barco Bêbado desde há
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vinte anos o assombram; e persiste na mesma obsessão quando faz uma «Homenagem a Saint-Pol-Roux»: Rimbaud, tão contraditório, não tinha sido mais do que um único homem, um poeta: o condutor de ritmos que procurava o luxo e a beleza da acção. A China vai ter uma força que o distrairá um pouco de Rimbaud. Segalen será poeta de versos e prosas poéticas impregnados de um Oriente de estelas e subtilezas que traçam um esquivo caminho entre as realidades do seu quotidiano. Chega, nas vizinhanças da Cidade Proibida, a René Leys, o mais alto ponto da sua carreira literária, o romance de um conhecimento impossível, o livro que não houve, como pode ler-se nas suas primeiras linhas. Em 1919 foi-lhe diagnosticada uma neurastenia aguda (muito provavelmente causada pelo seu afastamento do ópio); uma neurastenia que as diferenças da Argélia não abrandaram, que a bucólica placidez de Huelgoat não amainou. Segalen caiu inanimado numa floresta, interrompido por uma síncope no seu passeio matinal e com um exemplar do Hamlet na mão. Só quarenta e oito horas mais tarde o encontraram assim, bastante frio na sua morte romântica. Tem o túmulo em Huelgoat, mas desde 1934 o nome inscrito numa das paredes do Panteão de Paris, que o recorda com uma frase patriótica e cronologicamente inventiva: «Escritor morto pela França, durante a guerra de 1914-1918». Deixemos aqui uns versos de Stèles: Estou sem desejo de regresso, sem saudades, sem pressa e sem fôlego. Não sufoco. Não solto gemidos. Reino com doçura e o meu palácio negro satisfaz-me. A morte é agradável, e nobre, e suave. A morte é muito habitável. Habito a morte, e isso agrada-me. A.F.
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o profeta e o vidente
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Céu astrológico de Rimbaud
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