Pela Vida, de Passagem…

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AGOSTINHO CADETE

PELA VIDA, DE PASSAGEM...

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Vivendo a infância na quietude da província num meio pequeno e fechado, atrasado e pobre, misto de urbano e rural, um jovem vê-se compelido no início dos anos 60 do século passado a emigrar para a grande urbe, fazer-se à vida, como tantos, em busca de um futuro melhor. Perante a grandeza do que vê e o deslumbramento que sente, a par do receio que o invade, não lhe falta ânimo, alguma ambição e clarividência de pensamento, bastantes para perceber o que quer e que caminhos trilhar para conseguir os objetivos que se propôs. Para atingir o desiderato viu uma saída: muito estudo e trabalho árduo. Os gloriosos anos 60 prosseguiam a bom ritmo. Entre trabalho e estudo e parca diversão entra na Universidade mas é, entretanto, apanhado pela prestação do serviço militar obrigatório. Enviado para a Guiné-Bissau, passa dois anos na guerra, e, ao regressar espera-o o casamento. Longe de cumprido o objetivo que se propôs quando rumou a Lisboa e sempre com a bússola por perto não se deixou deslumbrar, nem perder nem desviar dos objetivos que traçou, continuando o trabalho intenso durante o dia e o estudo interessado em pós-laboral, agora reforçados por responsabilidades familiares com o nascimento de um filho. Com a atividade profissional a ser recompensada por via de funções que no contexto profissional eram crescentes e exigentes, é confrontado, quase que de supetão, com a Revolução de 74 que irá dar início a uma nova era, obrigando-o durante alguns anos a envolver-se numa tentativa de salvar a empresa onde trabalhava e a que os pendores revolucionários o obrigavam. É com a Revolução que no âmbito das responsabilidades inerentes às funções que desempenhava na empresa onde colaborava, que se consolida um sentimento intenso: verdadeira paixão pelo Direito e pela Justiça e que o conduzem à Advocacia. Viaja quando pode para saber um pouco do mundo que o rodeia e que o levam a locais fabulosos que jamais imaginaria conhecer, proporcionando-lhe conhecimentos, amizades, e, encontros e reencontros pessoais. Entre gostos e desgostos, venturas e desventuras, a vida vai continuando. O trabalho, esse, repartido entre a gestão e a advocacia, fluindo, tornando-se mais uma paixão do que uma obrigação, porque os objetivos traçados vão-se alcançando, antes mesmo do timing previsto. Deixa a gestão empresarial para se dedicar em exclusivo à advocacia, paixão tardia mas materializada em momentos inolvidáveis e compensadores de uma profissão dura mas de uma enorme nobreza. Aos 75 anos de idade, no ocaso da vida, bafejado por um matrimónio de 50 anos, considera que a missão está cumprida e que é tempo de repensar o futuro, no fundo, agarrar o tempo que ainda lhe resta. Inopinadamente, a maldita pandemia chegou, trocando as voltas, alterando os dados, adiando projetos. Mas a vida, essa, continua e só resta esperar que a Covid passe ou sofra mutações que a tornem numa banal doença sazonal, para que a vida, finalmente, prossiga com a normalidade desejada.

(QUASE) MEMÓRIAS, O QUE A VIDA ME ENSINOU...

Agostinho Cadete nasceu em Borba no ano de 1943. Começando a trabalhar ainda na pré-adolescência e sempre atento e empenhado na aprendizagem do ensino básico e secundário, desde cedo aprendeu, e muito, com os ensinamentos da universidade da vida que, quase sem dar por isso, frequentou. Enveredou pelo ensino técnico-profissional na área comercial. Estudou Contabilidades, Ciências Empresariais e afins no Instituto Comercial de Lisboa e no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa. Estudou Direito na área de Ciências Jurídicas na Universidade Lusíada e na Universidade Autónoma Luís de Camões. Fez gestão de empresas, auditoria e consultadoria nas áreas contabilística, comercial, fiscal e financeira. Foi autor de livros relacionados com sociedades comerciais. Publicou em jornais e revistas vários artigos versando questões de natureza comercial e fiscal e sobre a problemática que envolveu o Banco Privado Português (BPP). Exerce Advocacia desde o ano de 1990.



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Passagem… Cadete edição: Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) autor: Agostinho

imagem de capa:

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título: Pela Vida, de

Pintura em acrílico sobre tela da autoria de Maria José Cadete Ângela Espinha paginação: Paulo Resende capa:

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1.ª edição Lisboa, junho 2022 isbn:

978­‑989-9028-63-0 500761/22

depósito legal:

© Agostinho Cadete

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Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao seu autor, a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total. publicação e comercialização:

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(QUASE) MEMÓRIAS, O QUE A VIDA ME ENSINOU ...


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«Lembrem-se de olhar para as estrelas e não para os vossos pés.

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Nunca desistam do trabalho. O trabalho dá um sentido e um propósito à vida, que fica vazia sem ele.

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Se tiverem a sorte de encontrar o amor, lembrem-se que é raro e não o desperdicem»

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Conselho dado por Stephen Hawking a seus filhos


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ÍNDICE 1.

EM JEITO DE JUSTIFICAÇÃO: A CIRCUNSTÂNCIA

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2.

O LUGAR ONDE NASCI E ONDE DEI OS PRIMEIROS PASSOS

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3.

A FAMÍLIA, A VIDA EM FAMÍLIA E A PRIMEIRA INFÂNCIA

41

ÁRVORES GENEALÓGICAS

95

A INFÂNCIA E A TRANSIÇÃO PARA A ADOLESCÊNCIA

5.

A ADOLESCÊNCIA, A TRANSIÇÃO PARA A VIDA ADULTA, E…

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4.

O GRANDE SALTO PARA A VIDA (OU, PARA A VIDINHA, COMO DIZIA ALEXANDRE O’NEILL)

O SERVIÇO MILITAR E… A GUERRA

7.

A MUDANÇA DE VIDA: PROFISSIONAL, PESSOAL, O

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6.

CASAMENTO

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25 DE ABRIL DE 1974: A REVOLUÇÃO E O INÍCIO DE UMA NOVA ERA… PARA O BEM E PARA O MAL…!!!

235

O INÍCIO DE UMA NOVA CAMINHADA: O CURSO DE DIREITO

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8.

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10. VIAGENS PARA RECORDAR

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11. UMA AMIZADE INESPERADA

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12. OUTRAS VIAGENS QUE NÃO ESQUECEMOS

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13. A CONCLUSÃO DO CURSO DE DIREITO E A VIRAGEM PROFISSIONAL

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14. A PASSAGEM À REFORMA OU, MELHOR, À SITUAÇÃO DE PENSIONISTA

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15. UM PARÊNTESE

281

16. ALGUMAS NOTAS SOLTAS

285

17. UM PERCALÇO QUE, APÓS LUTA ÁRDUA E PERSISTENTE, ACABOU EM BEM 18. PERCURSOS DE VIDA…

291 317


327

20. DE «GERAÇÃO RASCA» À «GERAÇÃO À RASCA»

343

21. A ADVOCACIA

349

22. UMA EXCELENTE VIAGEM COM DISSABOR À CHEGADA

393

23. UMA VIAGEM QUE NÃO CHEGOU A REALIZAR-SE…

437

24. OS MEUS 75 ANOS DE IDADE…O OCASO DA VIDA!

443

25. AS BODAS DE OURO MATRIMONIAIS --UM CASAMENTO DE 50 ANOS

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26. POST SCRIPTUM: A PANDEMIA

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27. POSFÁCIO

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19. MAIS UMAS NOTAS SOLTAS -- APONTAMENTOS DE VIAGENS


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EM JEITO DE JUSTIFICAÇÃO: A CIRCUNSTÂNCIA

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Deixar memórias não é um ato de vaidade. Muitas vezes me interroguei acerca dos meus antepassados e lamentei que a imaturidade não me tivesse permitido em tempo oportuno questioná-los sobre quem foram, quem eram e o que fizeram e, recuando, ainda sobre os seus progenitores, como eram ou como foram, o que fizeram, enfim, confrontá-los sobre questões a que a curiosidade apela, curiosidades absolutamente naturais, diga-se, que só podem ser satisfeitas mediante o conhecimento oral ou escrito. Entretanto, as pessoas, em obediência à ordem natural das coisas, vão desaparecendo e os registos, sobretudo os não escritos, que a maioria das vezes já são escassos, vão-se apagando da memória e perdendo na memória do tempo…. Com que e com quantas questões desejaria hoje confrontar meus Pais e meus Avós, que em tempo não fiz ou por não me ocorrerem ou pela dinâmica de vida que me envolvia e desviava o pensamento para questões que entendia prioritárias e vitais. 11


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Um dia, estou certo, os vindouros hão de ter ou poderão vir a ter a curiosidade natural de querer saber algo mais acerca do escrevinhador das linhas que se hão de seguir, para além do conhecimento superficial e genérico que possam ter tido, decorrente de contatos fugazes que com ele mantiveram, circunscritos, praticamente, a encontros familiares ou de amigos, de curta duração e de circunstância, impedindo um conhecimento aprofundado ou, até, uma relação afetuosa mais próxima e menos preconceituosa, de confiança, descomplexada e sem tabus que, diga-se, teria sido desejável. Talvez agora, no ocaso da vida, a experiência de uma vida já longa, vivida e sofrida, possa dar a alguns dos que me vierem a ler o contributo sempre precioso para o enfrentamento da vida em sociedade atento o mundo cão que nos rodeia. Orgulho-me do meu percurso de vida e não o enjeito nem o escondo, embora tenha trabalhado muito para o conseguir, pois, como diz o nosso povo, comi do pão que o diabo amassou. Todavia, ainda assim, não me lamento e entendo que a vida foi, razoavelmente, generosa para comigo. Daí, eu estar de bem com a vida. É claro que o Homem é um ser racional e emocional e não escondo que amiúde me emociono ao falar da minha história de vida. As memórias que se seguem, dirigem-se em primeira mão ao seu escrevinhador, primeiro porque foi um deleite escrevê-las, depois, porque lhe permitiram recordar 12


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momentos interessantes, uns mais outros menos, é certo, passados ao longo da sua vida. Depois, têm como destinatários, também, os visados no escrito, que poderão ou não achar interessante o que fiz constar mas que, decerto, perdoarão o atrevimento, pois trata-se de uma visão meramente pessoal e subjetiva. Do mesmo modo, estas memórias se destinam a outros amigos que não sendo visados, porque são tantos, mas conhecendo o autor poderão achar interessante e ficar a conhecê-lo melhor. E, por fim, como destinatárias finais destas memórias, as minhas netas na esperança, na quase certeza, de que um dia venham a lê-las e melhor possam vir a conhecer o avô, a avó, a família paterna.

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O LUGAR ONDE NASCI E ONDE DEI OS PRIMEIROS PASSOS Um pouco mais de sol… eu era brasa

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Um pouco mais de azul… eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa…

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Mário de Sá-Carneiro

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Corria o ano de 1943. A segunda grande guerra mundial, conflito avassalador de que mais tarde ouvi falar e tomei consciência dos seus efeitos devastadores, estava no auge. A Europa estava a ferro e fogo. Nesse Outono, rigoroso, de 1943, a 08 de Novembro, uma 2ª feira, nasci! Nesse dia 08 de Novembro de 1943, noticiava o jornal Diário de Notícias que, a par do jornal O Século eram os mais lidos no País, na sua primeira página, vários acontecimentos nacionais e internacionais que agitavam o Mundo. Dentre esses acontecimentos, incentivava-se a produção cerealífera; enaltecia-se a acção do Presidente do Conselho «Salazar homem de pensamento e acção»; os 15


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Bombeiros Voluntários de Lisboa comemoravam as suas bodas de diamante; anunciava-se a ‘invasão’ (tal qual) da Europa ocidental, prevendo-a para Março ou Abril; informava-se ter havido um tremor de terra em Évora; e, imagine-se, noticiava-se que o Belenenses ia a caminho de ganhar pela 5ª vez o campeonato de Lisboa..., embora o Benfica tenha conquistado o título de vencedor do Campeonato Nacional da Primeira Divisão. O jornal Diário de Notícias tinha como seu Director Augusto de Castro e o seu preço de venda era de $50 (cinquenta centavos, ou, como vulgarmente se dizia, cinco tostões). Esse ano de 1943 foi pródigo em acontecimentos. O mundo estava em alvoroço em plena segunda grande guerra mundial, sendo governado nesse ano por Philippe Pétain (França), Benito Mussolini (Itália), Winston Churchill (Reino Unido), Joseph Stalin (URSS), Franklin Roosevelt (EUA), Papa Pio XII (Vaticano), Adolfo Hitler (Alemanha), Francisco Franco (Espanha), Imperador Hiroito (Japão) e António de Oliveira Salazar (Portugal). Portugal era, na verdade, governado por Oliveira Salazar que, na qualidade de Presidente do Conselho como, então, era denominado, punha e dispunha do País a seu bel-prazer. Era Salazar quem mandava em tudo e em todos. António de Oliveira Salazar era um ditador, o chefe de um regime fascista moderado quando comparado, é certo, com outros regimes ditatoriais como o de Itália de Benito Mussolini e o de Espanha de Francisco Franco. 16


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O regime criado por Oliveira Salazar, designado de Estado Novo, apoiava-se e tinha suporte em alguns pilares absolutamente aberrantes: a) Censura, sob a égide de uma Comissão de Censura, composta por um conjunto de pessoas tacanhas e vesgas que procediam à censura antecipada dos filmes, livros, jornais, etc.. No caso dos jornais, antes de os mesmos saírem da tipografia e irem para as bancas, tinham de passar pela Comissão que, invariavelmente, cortava ou truncava artigos que lhe eram submetidos a apreciação. E, com excepção dos livros, que muitos deles eram objeto de apreensão, os jornais e os filmes tinham sempre a inscrição ‘visado pela comissão de censura’; b) Polícia política, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), criada em 1945, uma polícia tenebrosa e torcionária responsável pela repressão a quem não era afeto à situação, ou seja, ao regime político vigente. Manteve-se até à morte de Oliveira Salazar em 1969, sendo substituída, ou melhor, mudando o nome com a ascensão ao poder de Marcelo Caetano para DGS (Direcção Geral de Segurança) embora mantendo idêntica intervenção até à sua extinção com a revolução em 25 de Abril de 1974; e, c) Propaganda, com sustentáculo no ‘Secretariado Nacional da Informação’, o famoso SNI, que promovia o regime, pintando-o cor-de-rosa de modo a que Portugal parecesse um oásis.

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Três sustentáculos interessantes em que o antigo regime se apoiava e apelativos para quem, interessando-se pelo tema, os queira aprofundar. Bem, de certa forma, pese embora a pobreza em que o povo vivia, que levava à emigração ‘a salto’ como se

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chamava, sobretudo para França e a nível interno para os grandes centros populacionais do país, vivia-se um clima de paz (há quem diga que de paz podre), de acalmia e de respeito.

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Salazar, honra lhe seja feita, conseguiu habilmente que Portugal não entrasse na segunda grande guerra mundial

(1939 -- 1945) e com isso poupando, porventura, milhares de vidas, sendo o nosso País um refúgio e um ponto

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de passagem para muitos estrangeiros, sobretudo judeus, que fugidos da guerra aqui se acolhiam e por aqui ficavam (poucos) ou aguardavam oportunidade de saírem, sobretudo para os Estados Unidos da América. Antes da subida de Salazar ao poder no ano de 1928,

e segundo me contava meu Avô Agostinho, havia governos

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que duravam dias e revoluções e bombas e greves eram a toda a hora. A escassez de géneros e as filas para abastecimento de bens alimentares de primeira necessidade faziam parte do quotidiano dos portugueses. Era a regra que se vivia diariamente. Daí meu Avô Agostinho ser um indefetível de Salazar

que se emocionava ao ouvir os seus discursos e ter um profundo sentimento nacionalista. 18


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Salazar, mais do que aclamado era idolatrado pelo povo em geral. O seu grande erro foi ter-se perpetuado no poder ao longo de quarenta anos (1928--1968). O Presidente da República era, à altura, Óscar Fragoso Carmona, Marechal do Exército, uma figura meramente decorativa. Nesse ano de 1943 se estreou, também, um dos filmes da minha vida que não me canso de rever: «Casablanca», protagonizado por Humprey Bogart e Ingrid Bergmann, realizado por Michael Curtiz e ganhando dois Óscares, um para o ‘Melhor Filme’ e, outro, para ‘Melhor Realizador’.

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Nasci na pequena e pacata vila de Borba, onde tudo e nada acontecia, na Rua António Joaquim da Guerra, nº 29, conhecida como Rua da Fontinha por nessa mesma rua e, sensivelmente, a meio se encontrar um poço que fazia parte das brincadeiras de infância e cuja descida ao fundo sem ajuda era, em regra, como que um ritual de passagem da infância para a adolescência, como que iniciação para afirmação e aceitação por parte de qualquer gaiato que se prezasse e na rua morasse. Foi naquela residência de meus Pais na Rua da Fontinha que o parto de minha Mãe teve lugar, sendo acompanhado e assistido por uma das duas parteiras que havia na vila, como era uso da época, uma vez que não existia qualquer local apropriado, muito menos uma maternidade, onde as parturientes pudessem ir dar à luz. Residiam, também, na Rua António Joaquim da Guerra, meus Avós maternos, Laura e António, no nº 40 e meus 19


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Pais, mais tarde, deixando o nº 29, foram morar no nº 44 dessa mesma rua. Foram meus Padrinhos de baptismo meu avô paterno (Agostinho Rodrigues Cadete) e meu avô materno (António Fernandes Florindo). Daí, como era usual na época, ter tomado os nomes próprios dos meus avós -- Agostinho António -- e os respectivos apelidos -- Florindo Cadete. Questionada minha Mãe da razão de no registo de nascimento não ter Madrinha, recordo-me de me dizer que a seu pedido, provavelmente ao Padre como era uso na época, tinha sido Nossa Senhora da Conceição. Era costume naquela zona do Alentejo em atenção ao facto de Nossa Senhora da Conceição ter sido coroada pelo Rei D. João IV Rainha de Portugal, encontrando-se a Imagem com a coroa real na Igreja que se encontra no interior do castelo de Vila Viçosa, atribuir-lhe a qualidade informal de madrinha, cerimónia que ao que me foi dito consistia na intermediação do Padre, que com uma mão tocava no manto da Santa e com a outra na cabeça do bebé baptizando. Durante a minha infância não se falava muito na segunda grande guerra mundial que havia destruído grande parte da Europa, talvez por Portugal não ter entrado no conflito. Falava-se, isso sim, na guerra civil que anos atrás havia ocorrido em Espanha, provavelmente por a vila que me viu nascer se situar relativamente perto da fronteira. Comentavam-se, então e ainda, os terríveis bombardeamentos à região de Badajoz que aí se ouviam e dos 20


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refugiados que com muita dificuldade se acolhiam do lado de cá da fronteira, bem como em toda a região raiana. Curiosamente, revejo na RTP Memória «A Raia dos Medos», uma série em episódios da autoria de Moita Flores que já havia passado há uns tempos. Uma excelente retrospectiva da guerra civil de Espanha, que se desenrola no Alentejo, junto à fronteira com Espanha, entre Campo Maior, Elvas e Barrancos, com actores de primeira água, alguns já desaparecidos, e com um desempenho notável do melhor que tenho visto e conheço. Nasci no Alto Alentejo, no distrito de Évora, na vila de Borba, na freguesia de S. Bartolomeu, terra bonita onde passei a minha infância e aí vivendo em permanência até aos meus doze anos de idade. Era a vila de Borba uma terra rica, pois, na verdade, tinha tudo para o ser: para além de haver boas pessoas e pessoas menos boas (como por toda a parte, afinal), tinha mármore, azeite e vinho em abundância. Mas em Borba, à época, as pessoas viviam mal com excepção de umas quantas famílias, poucas. Havia muita pobreza. Pobreza, diga-se, que revestia duas formas: a pobreza explícita à vista de todos e em muitos casos pobreza extrema; e, a pobreza envergonhada, dissimulada, escondida, porventura, não menos difícil de suportar. Na década de quarenta, cinquenta, do século passado na região do Alentejo onde nasci, os pobres, que eram a maioria esmagadora, viviam do trabalho no campo: na monda, arrancando da terra as ervas daninhas que danificavam as sementeiras nas terras de cultura; na ceifa, época 21


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do ano em que se fazia a colheita dos cereais, se segavam as espigas, mormente do trigo; nas vindimas, colhendo as uvas e fazendo o transporte para as adegas para as transformarem em vinho; ou, na apanha da azeitona com vista, sobretudo, à produção do azeite mas também destinada ao consumo doméstico. Aquelas quatro atividades eram duras e tormentosas devido ao esforça físico que exigiam e, também, à intempérie que tinham de suportar. A monda e a apanha de azeitona faziam-se sob chuva e frio intenso; a ceifa, debaixo de calor abrasador, inclemente; e, as vindimas sob a dureza do clima também mas, outrossim, da rapidez da apanha da uva que não se compadecia com delongas sob pena de a produção e a qualidade do produto final – o vinho – ficarem comprometidos. Depois, havia o mármore, a maravilhosa pedra branca e rosa, o famoso ouro branco como era chamado, extraído de forma artesanal com equipamentos à época bastante rudimentares e à força braçal, arrancado de enormes crateras abertas na terra, as chamadas pedreiras, que ocupavam muitos trabalhadores com trabalho mais regular, menos precário, mas que, não raro, ceifava vidas humanas a troco de magros salários. Uma das atividades que ocupavam, sazonalmente, muitos trabalhadores eram as vindimas. Era bonito de ver no final do verão a azáfama e o frenesim dos trabalhadores com carros de bestas atulhados de uvas com destino às muitas adegas de pequenos produtores que na terra existiam e aí fazendo, artesanalmente, o afamado vinho de Borba, com incidência no branco. 22


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Na verdade, à época, em Borba não se ligava muito ao vinho tinto. A primazia era dada ao vinho branco, de tal sorte, que ainda hoje em Borba a tradição, arreigada, se impõe. Quando um residente convida alguém para beber um copo de vinho lhe pergunta: «vai um branquinho?». Havia depois, os comerciantes com loja aberta de mercearia polivalente na maioria de pequena dimensão e onde se vendia de tudo, os artesãos sapateiros, os latoeiros, as tabernas que na vila proliferavam… As principais lojas de comércio eram na vila de Borba a do ‘Joaquim do Coxo’, a do ‘João da Havaneza’, a do ‘Chico Lapão’ e a do ‘Machado’. Nos artesãos sapateiros pontuava o ‘Zé Barroso’, um verdadeiro Mestre, onde na sua loja os operários sentados em bancos baixos à volta de uma grande sala, confecionavam por encomenda e à medida, desde sapatos e botas, até todo o tipo de conserto de calcantes. Mas, atenção, o Zé Barroso era uma pessoa muito interessante que cultivava o convívio e a conversa e um autêntico figurão. Certa vez, chamado a depor como testemunha no Tribunal de Vila Viçosa, perante o Juiz que ao pretender a identificação lhe perguntou o nome completo, disse chamar-se José Manuel Letras Barroso, acrescentando o Juiz: «e sapateiro de profissão». O Zé Barroso interrompeu de imediato o Juiz, esclarecendo: Saiba Vossa Excelência Senhor Doutor Juiz que não sou sapateiro mas industrial de calçado. Havia um latoeiro, o ‘Pirica’, um verdadeiro artista na moldagem da chamada folha de flandres, fabricando 23


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objectos e reparando outros. Barbeiros mais conhecidos e que tinham os seus estabelecimentos em plena praça, havia dois. Um dos barbeiros era o ‘Mestre Crispim’, analfabeto e com desgosto grande, que não escondia, de não saber ler nem escrever.

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Pela confessada frustração que sentia, na sua barbearia além do ofício que praticava com os seus ajudantes, o Mestre Crispim vendia livros infantis destinados à gaiatada que ele via e revia já que ler não sabia.

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Outro dos barbeiros era o (António Inácio) Mouquinho, conhecido pela alcunha de ‘Salsinha’ que, contrariamente

ao Mestre Crispim, tinha uma boa prosa, dotes oratórios e alguma cultura, e daí que em algumas cerimónias públicas

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fosse o orador de serviço.

Outra figura muito interessante e incontornável da vila

era o Senhor Urbino (de Jesus Catarino), de que falarei à frente e que além de electricista exímio, era o aferidor credenciado pelo Município de Borba que certificava os pesos e medidas usados no comércio e tinha a sua loja/oficina na

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Rua António Joaquim da Guerra, vulgo Rua da Fontinha. E tinha, também, o Senhor Urbino competência confe-

rida pela Câmara Municipal para examinar os candidatos a ciclistas que, para o efeito, se submetiam a um exame sumário, prático, onde montados no velocípede teriam entre outras ‘habilidades’, obrigatoriamente, de descrever um oito, para conseguir a aprovação e a obtenção do almejado ‘cartão de ciclista’. 24


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Não conseguindo à primeira tentativa, tinha o Senhor Urbino a paciência e a generosidade de deixar o candidato a ciclista encartado ir fazendo tentativas até conseguir. E não deixarei de salientar e recordar o famoso e fabuloso presépio que todos os anos por alturas do Natal o Senhor Urbino montava e expunha na sua loja, tendo a paciência e a sabedoria de ir movimentando as peças que integravam o presépio de acordo, supostamente, com os ensinamentos bíblicos à medida que o dia de Natal e que ia até ao dia de Reis se aproximavam. Também na Rua da Fontinha havia a Farmácia do Senhor Guerra Semedo. O Senhor Guerra Semedo era uma figura muito respeitada na terra, que se deslocava, semanalmente, de comboio a Lisboa comprar medicamentos para a sua Farmácia. Achava muita graça quando entrava na farmácia, ver o Senhor Semedo de bata branca vestida no laboratório que ficava na sala em frente, parecendo autêntico laboratório de alquimista, com fumaradas saídas de provetas e de frascos, manipulando medicamentos que ele próprio fabricava. Como só havia naquela altura um Médico na terra, o distinto, abnegado e generoso Doutor Verão, para males menores recorria-se com frequência ao Senhor Semedo que, sendo pessoa muito delicada, atenciosa e sábia, nunca deixava o paciente que a ele recorria de mãos a abanar. Ou seja, o Senhor Semedo tinha produtos de sua própria fabricação. Por exemplo, se o paciente se apresentava com uma ferida, uma borbulhagem, um furúnculo, 25


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