Retratos da Avenida e Outros

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RETRATOS DA AVENIDA E OUTROS Contos Alberto Branquinho

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título: Retratos da Avenida e Outros – Contos

autor: Alberto Branquinho

edição gráfica: Edições Partenon®

paginação: Paulo S. Resende

capa: Ângela Espinha

1.ª edição

Lisboa, maio 2023

isbn: 978 989 8845 37 5

depósito legal: 513870/23

© Alberto brAnquinho

Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

publicação e comercialização:

(+351) 211 932 500

NOTA: O autor escreve segundo a ortografia anterior ao Acordo de 1990.

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OBRAS DO AUTOR Prosa:

CAMBANÇA / Guiné – morte e vida em maré baixa CONTOS COM ENCONTROS

PARIÇÕES & APARIÇÕES

CAMBANÇA FINAL / Guiné – Guerra Colonial FILHOS D’OUTREM OU D’ALGURES

POR SÉCULO E MEIO (2.ª edição)

SÓTÃO, RÉS-DO-CHÃO E OUTRAS VIDAS

DEIXEM A GUERRA EM PAZ / Guerra Colonial – GUINÉ

Poesia:

SOBRE VIVÊNCIAS QUASOUTONO?!

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RETRATOS da avenida

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ASSIM, COMO UMA EXPLICAÇÃO

Nos anos de Seiscentos, nas costas do Brasil, uma espécie de peixe, muito, muito pequeno (que, ao que parece, abundava, também, na Avenida) irritou o Padre António Vieira. Podemos constatar essa irritação no seu “Sermão de Santo António aos peixes”:

“ ( …) V

Descendo ao particular, direi, agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa; no mesmo dia que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que, sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar? Se com uma linha de coser e um alfinete torcido vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte por que não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores, e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. (…)”

Não tanto agora, mas noutros tempos da Avenida, Deus andaria muito distraído de si e de cuidar “abater e humilhar”

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os roncadores, porque não era isso que constatávamos. Talvez a razão estivesse no facto de, nos tempos de Seiscentos, menos gente roncasse do que a que, então, roncava por estas costas. Os tempos mudaram, mas deixaram as suas marcas.

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CHÁ DAS CINCO

Olá, meninas, boa tarde! Há um espacinho para mim?

Ó D. Graciete… Com certeza.

Uma das presentes foi-se afastando, de modo a conseguir espaço. O empregado aproximou-se com uma cadeira. Quando estava já sentada, perguntou-lhe: — A Srª. D. Graciete também vai tomar chá?

Sim, sr. Lopes. Que é que as minhas amiguinhas estão a mordiscar?

Um bolo especial. Receita da Milú. Na semana passada deu a receita à gerente e pediu para o fazerem.

Mas não suficiente. Ontem tive que lhe explicar… quase tudo.

Faz anos, minha querida?

Não, credo!

(Gargalhadas.)

Pois. Ninguém gosta de fazer anos. Não é?

Ora…

Vá, D. Graciete. Prove, então, um bocadinho. Todas as presentes ficaram suspensas do movimento do garfinho movimentando-se para o bolo. Depois, transportando já um pedacinho de bolo, o garfo caminhou lentamente desde a mesa

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até à boca, levemente entreaberta. Os lábios apresentaram-no à cavidade bocal e começou um discreto mastigar, mal perceptível, acompanhado por discretos (e não visíveis) movimentos da língua. A mão que transportara o pedaço de bolo ficou suspensa no ar, segurando o garfinho, ainda com uns restinhos de bolo. Os olhos da degustadora pestanejaram suavemente, depois olharam a dona da receita. Todas estavam expectantes.

Ai que delícia!

A tensão diminuiu imediatamente e houve respirações de alívio.

Eu também gostei muito e até perdi a cabeça. Já repeti duas vezes.

Ai Miluzinha, que delícia! A receita é mesmo sua ou copiou-a de alguma revista?

Não… É minha! Fui experimentando pouco a pouco e acho que está nas doses certas.

Muito bom, sim senhora. e tirou mais um pedacinho para o pratinho, depois de beber um golinho de chá. Enquanto a recém-chegada comia o segundo pedaço de bolo a mesa ficou em silêncio. Interrompeu-o ela:

Então, minhas amiguinhas, de que falavam? Continuem a vossa conversa. Ou estavam a falar mal de mim?

Ó Graciete! Que ideia!

Não estavam, não, Filomena?

Claro que não. Estávamos a falar das obras que a Maria do Céu fez em casa. A Clotilde estava a dizer que eles já voltaram para casa e, até, já foi visitá-la.

Bem, eu não fui visitá-la. A D. Maria do Céu é que me convidou.

E então?

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A casa de jantar e a sala de estar nem parecem as mesmas. Estão muito bonitas. E a cozinha! A cozinha nem parece que é uma cozinha. Está tudo “encastrado”. Olhando, assim, à primeira vista, nem se consegue perceber onde está o frigorífico, o fogão…

Também me convidou já para ir lá a casa. disse a D. Fátinha.

Ora! Estão a ver. Todas iremos ser convidadas. Uma a uma.

Até já deve ter feito a escala dos convites. Está a fazer um “road-show” da casa renovada.

Credo, Graciete!

Ou está a fazer promoção de vendas do empreiteiro. E dos fornecedores. Depois, recebe a comissão.

Graciete, já chega!

Também já foste convidada?

Não, mas não me importo de ir ver. E, até, gostava de fazer umas alterações assim na cozinha.

Vê lá se, em vez de “encastrarem” não te vão ”encanastrar” tudo.

Bem. É melhor falarmos de outra coisa. Têm ido ao cinema?

Não, não tenho ido.

Eu também não vou há muito tempo.

Pois, há televisão…

Instalou-se um notório mal-estar e, uma a uma, foram fazendo despedidas. Ficaram só Filomena e Graciete. Em silêncio. Pouco depois:

Não consigo entender de onde vem essa tua embirração com a Maria do Céu.

Embirração?! Eu?

Filomena fez sinal ao empregado para trazer a conta.

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Acho que vocês as duas são muito parecidas. E não podem estar as duas no mesmo poleiro.

Psicóloga de… pechisbeque.

Filomena colocou o pagamento no pratinho em cima da mesa. Imperatriz de bairro… é o que tu és.

Não estou para te aturar. — e começou a recolher as suas coisas para sair.

Filomena antecipou-se e caminhou para a porta.

Filomena, chega aqui, por favor.

Que queres?

Chega aqui.

Aproximou-se. Graciete encostou-lhe a boca ao ouvido:

Podes ir já contar tudo à tua amiga Maria do Céu.

Adeus. Cuida de ti…

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TERTÚLIAS

Estávamos em meados dos anos 60 do século XX.

Do lado poente da Avenida, mais ou menos a meio da sua extensão, havia, em ruas próximas, dois ou três restaurantes onde se comia bem e barato. Um deles era a “Adega dos Trinta”. Aí e no “Reservado” que nela havia, funcionava uma tertúlia (literária e não só) que, com o decorrer do tempo, passou a ser conhecida por “A coisa nova”.

Todas as noites das quintas-feiras se acomodavam no Reservado, para jantar, entre oito a dezasseis pessoas. Mas, por vezes eram dezoito e, até, vinte. Quanto maior era o número, maior era o número daqueles que desempenhavam o papel de público, jantando e bebendo as palavras dos intervenientes e o vinho da casa.

A seguir à chegada das primeiras sobremesas para aqueles que, nesse dia, tinham sido os primeiros abancar, um dos presentes tomava a palavra. No início teria que falar bem alto para se sobrepor às variadas conversas que decorriam pelas mesas e que demoravam a calar-se.

Eram membros permanentes da tertúlia quatro ou cinco poetas (dois deles considerados maiores pelos críticos literários e, também, seus amigos), um ensaísta, dois artistas plásticos, dois Preview

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ou três actores desempregados, um pequeno editor e, também, autor e um aspirante a cineasta (já com duas curtas metragens), que dizia procurar alguém com obra publicada que o motivasse a “voltar às lides”. Por vezes estavam alguns cantores, principalmente um, sempre preocupado em encontrar letristas para o seu repertório.

Quase encostados aos pratos ou junto aos copos abundavam maços de tabaco Marlboro, Winston, Lucky Srike e isqueiros dourados que eram objecto de cobiça e atenção de alguns dos presentes.

Havia noites em que o débito literário ou qualquer espécie de comunicação artística era quase impossível, porque os berros dos que assistiam ao jogo de futebol desse dia, na sala de jantar, entravam pelo “Reservado”. Nem a porta bem fechada evitava a intromissão dos barulhos desportivos exteriores, provando ser maior o interesse pelo desporto televisionado do que pelas intervenções confinadas àquele espaço reservado às artes. Procuravam, então, fazer as suas intervenções nos espaços de silêncio entre um golo e outro golo ou o remate falhado à baliza adversária.

Um dos poetas (nunca os dois mais reconhecidos) abria, quase sempre, a sessão, ao mesmo tempo que ia deglutindo pequenas quantidades de mousse de chocolate ou de tarte de amêndoa ou bebericando o café.

Antes da leitura de cada poema, costumava dar uma explicação sobre como fora “o processo criativo” do mesmo e explicava as várias alterações que sofrera. Estava tão concentrado a explicar a gestação do poema que não se dava conta do enfado que causava nos presentes. À leitura que se seguia acrescentava mais ou menos ênfase e era acompanhada dos gestos que entendia

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adequados. Acabada a leitura, todos os presentes aplaudiam. Ou quase todos, embora muitos se limitassem a aproximar, quatro ou cinco vezes e com enfado, as pontas dos dedos da mão direita da palma da mão esquerda.

Aguardava-se, então, cerca de um minuto para que pudesse ser feita alguma apreciação ou comentário. Os olhos percorriam a mesa, tentando adivinhar quem falaria a seguir.

O cineasta aproveitava, muitas vezes, estes momentos de espera para ler uma passagem do guião da próxima “curta” em que estava a trabalhar. Terminada a leitura, interrompia quem aplaudisse e dizia:

Não se deve aplaudir a leitura de um texto que é somente um rascunho de uma “obra cinematográfica em processo criativo” e que:

Muito agradecia se algum dos presentes conhecesse alguém das suas relações que fosse pessoa versada na matéria ou tema que pretendia abordar, o contactasse para o seu telefone cujo número dizia e repetia três ou quatro vezes olhando em volta, aguardando que tomassem a devida nota.

Por vezes, antes ou depois do cineasta, um artista plástico anunciava que as suas obras mais recentes ou uma retrospectiva que estava em exposição no espaço que indicava. A comunicação era acompanhada da distribuição de um folheto pelos presentes, com pedido de divulgação.

Falavam, ainda, alguns dos presentes, lendo poemas ou excertos de textos. Quando parecia que ninguém quereria falar ou, pelo menos, falar nos momentos mais imediatos, havia conversas em grupos, deslocando-se de uma mesa para outra. As conversas eram interrompidas com pedido de ouvirem mais uma intervenção ou porque dois ou três dos presentes elevavam a voz num

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desacordo de posições. Ao sentirem-se observados de forma crítica ou acintosa, baixavam o tom de voz ou acabava a discussão.

O convívio continuava pela noite dentro, com uma ou outra interrupção, até que um dos empregados abria a porta e, elevando a voz: — Algum dos senhores quer mais alguma coisa porque vamos fechar?

Havia sempre o pedido de mais uns cafés, uns bagacitos e a noite parecia acabar, mas alguns continuavam a discussão ou a conversa até altas horas, em plena rua.

Esta tertúlia teve uma vida de mais que cinco anos. Aí nasceram amizades, inimizades ou antagonismos, sentimentos que necessitavam da presença de outros para se alimentarem e continuarem vivos.

Por vezes havia um convidado, facto que introduzia novidade no convívio, embora nem sempre fosse um elemento catalisador.

Os convidados eram, muitas vezes apresentados no início do jantar sem que tivesse havido anúncio prévio. Ou porque o apresentador assim o desejara ou porque resultara de um encontro ou circunstâncias casuais acontecidas depois do último jantar.

E foi assim que, inesperadamente, surgiu na tertúlia um conhecido poeta brasileiro, levado pela mão de um dos poetas menores. Foi um sucesso! Não só pelo inesperado, pela figura em si mesma, mas, principalmente, pela comunicabilidade do convidado que prendeu a atenção dos presentes durante toda a noite, dizendo graças, citando nomes e dizendo textos de memória.

Um semanário de letras publicou no seu número seguinte, na primeira página, com chamada para uma página interior, uma fotografia do poeta brasileiro acompanhado do poeta menor que

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o convidara para a tertúlia, com a seguinte legenda: “O grande poeta brasileiro F… foi apresentado na tertúlia “A coisa nova” pelo patrono da tertúlia, o poeta português B…”.

Consequência: no encontro seguinte estiveram ausentes não só os dois “poetas” maiores como todos os outros e, ainda, os artistas plásticos; nunca mais compareceram.

O número de presenças na tertúlia passou a ser tão diminuto que, num dos jantares seguintes, o patrão negou o acesso ao Reservado, passando a destiná-lo a outros clientes mais ocupados e preocupados com actividades relacionadas com a sua agremiação de futebol.

E assim acabou mais uma tertúlia nas proximidades da Avenida.

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ESTACIONAMENTO INSUFICIENTE

A fúria de construção de imóveis para a habitação atacou fortemente nas zonas urbanas e suburbanas da cidade nos anos sessenta do século passado.

Mas, apesar de o parque automóvel estar também a crescer de forma notória, nem sempre foi acautelada a construção de garagens. Assim aconteceu, também, na construção de alguns prédios da Avenida. No entanto, os construtores, aproveitando o logradouro das traseiras, conseguiram fazer alguns espaços, fechados com portões, para parqueamento das viaturas dos futuros residentes. Mas nem sempre conseguiam espaço para todas as habitações.

Com este prédio de seis pisos (rés-do-chão mais cinco), com lado direito e esquerdo, totalizando, portanto, doze fracções habitacionais, acabaram por ficar duas fracções sem garagem. Na escritura de constituição da propriedade horizontal não foi atribuída garagem aos dois sextos andares, tendo presente que os andares mais altos eram os preferidos.

Os espaços de parqueamento eram pequenos. No entanto, o último do lado direito para quem entra no logradouro, ficou mais largo que os outros. Foi assim talvez por ter havido erro nas

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