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O Atropelar de Mandela | António Mateus

Mandela vincava a quem o escutava que não aceitaria ser libertado em Pretória ou Joanesburgo, como pretendia o governo, mas sim a pé e daquela prisão, nas proximidades de Cidade do Cabo, onde ao entrar, anos antes, o então comandante lhe dissera que nunca dali sairia vivo.

O Atropelar de Mandela!

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por António Mateus

Faltavam poucas semanas para ser libertado, após 27 anos de cadeia, de uma sentença de prisão perpétua por ter liderado o lançamento da luta armada contra o sistema de apartheid na África do Sul.

No pátio da residência, para onde fora transferido na prisão de Victor Verster, o carcereiro informou-o de que iria poder, pela primeira vez em quase três décadas, contactar com crianças. E logo com os netos que nunca conhecera.

A cara de Nelson Mandela arredondou-se num sorriso de orelha a orelha. E, por uma vez, apressou os cumprimentos aos adultos, para se ir apresentar aos meninos, tentando sem muito sucesso quebrar o gelo dos jovens, cujas atenções se grudavam na mais de uma dúzia de polícias à civil, corpulentos, que enquadravam a visita a céu aberto.

Mandela repôs a atenção nos mais velhos que aguardavam em silêncio. Depois de cumprimentos e de galanteios, rodeou-se de um pequeno grupo, trocou com eles algumas palavras e convidou-os a sentarem-se sob um dos sombreiros, onde sabia estarem embutidos microfones de escuta dos serviços secretos. O tema era a dignidade. Mesmo na hora rara de acesso de um preso de alta segurança a amigos e familiares, a prioridade era sempre o caminho e o sentido da liderança. De uma liderança servidora. Construtora de pontes assentes em pilares sólidos.

Ao falar com os seus companheiros, próximo dos microfones (mal) escondidos dos serviços secretos, induzia nuns e noutros uma mensagem de valorização da dignidade, como terreno comum suprarracial. A cara de “Madiba” (seu nome de clã, pelo qual era tratado carinhosamente) pareceu petrificar-se com as sobrancelhas franzidas e os lábios apertados numa linha estreita.

Mandela vincava a quem o escutava que não aceitaria ser libertado em Pretória ou Joanesburgo, como pretendia o governo, mas sim a pé e daquela prisão, nas proximidades de Cidade do Cabo, onde ao entrar, anos antes, o então comandante lhe dissera que nunca dali sairia vivo.

O seu era por isso um gesto – explicava ele – não de despeito ou de provocação, mas de dignidade. A bandeira que um ser humano nunca deve ceder, nem retirar aos outros. De repente calou-se, com os olhos fixos no fundo do quintal onde netos e afilhados gracejavam ruidosamente em língua Xhosa e alguns mimetizavam a postura e movimentos dos polícias à civil, vigilantes do encontro.

A cara de “Madiba” (seu nome de clã, pelo qual era tratado carinhosamente) pareceu petrificar-se com as sobrancelhas franzidas e os lábios apertados numa linha estreita.

Pediu um momento aos que o rodeavam e dirigiu-se, em passo célere, aos meninos que minutos antes lhe tinham acendido um sorriso e o subtraíam agora: - Escutei bem aquilo que me chegou aos ouvidos? – perguntou aos jovens, visivelmente surpreendidos e incrédulos com o raspanete do ancião, que o tinham aprendido a encarar como mito-vivo. - Vocês estão mesmo a faltar ao respeito e a ridicularizar aqueles senhores por serem polícias e brancos? – insistiu na sua língua materna, fora da compreensão dos agentes

Um dos interpelados, mais desenvolto, ainda tentou justificar a situação; - Tata (“avô”, em Xhosa), são da raça que te prendeu e ainda por cima polícias, os que perseguem, torturam e matam os nossos…”.

Mandela crispou ainda mais os lábios antes de tocar-lhe na cabeça com a palma da mão virada para baixo e unir num círculo, desenhado com o indicador da outra mão, o grupo de meninos: - Parte do que me dizes é verdade. Mas parte também é falso. Eu fui preso. Outros torturados e mortos. Mas fômo-lo por um sistema. E não por uma raça qualquer. O sistema foi defendido e combatido por gente de todas as raças, incluindo brancos, que foram por isso acusados de trair os “seus”. - Só que eles entenderam que os “seus” somos todos nós. E não os brancos. Ou os indianos. Ou os asiáticos ou os mestiços. Da mesma forma que houve negros que apoiaram o sistema de apartheid.

Por convencer, o mesmo jovem insistiu: - Esses eram os traidores Tata! Um dia trataremos deles! -prometeu, arrancando gestos de anuência dos outros.

Mandela abanou a cabeça em reprovação e dirigiu-se ao grupo de meninos: - Foi para isso que estou preso há 27 anos? Para sermos os selvagens em que somos descritos pelos justificadores do apartheid? Ou o caminho não será mostrarmos que em circunstância alguma baixamos nós próprios a fasquia da nossa dignidade, portando-nos como selvagens? - Sim há polícias maus, como os há bons, que guardam o nosso sono. Insultá-los como grupo só dá razão aos que nos vêem e tratam como sub-humanos. Não se constroem pontes atirando tijolos, mas procurando ligá-los num caminho comum.

Tal como aprendera com o seu pai biológico, o chefe Mphakanyiswa Gadla Mandela, e depois, da morte deste, com o adoptivo, rei dos Tembos, Jongintaba Dalindyebo, a união da nação passava pela conciliação de expectativas, receios e pulsões emocionais muitas vezes opostas. E, principalmente, de saber escutar sem rejeitar e só depois disso avançar a sua própria opinião.

Quando, nos dias que correm, se agravam as clivagens e o apontar de dedos, de cariz racial, género e religioso e se procura rescrever a História, sob palas cerebrais de cariz ideológico ou “politicamente correctas” mas de profundidade asinina (e interpretando escritos antigos à letra dos nossos dias e não do tempo em que foram redigidos) apercebemo-nos da fragilidade da herança de Mandela.

E se o esclavagismo, praticado há milénios por todas as raças em todos os continentes, foi erradicado por decretos, a xenofobia e o racismo, ainda recorrentes em todos os continentes e praticados por pessoas de todas as raças, por maiorias sobre minorias, só serão vencidos sem “nós” e os “outros”.

Erradicando as ervas daninhas, os discursos de ódio e de vitimização. De todos. Sobre todos. Vendo SERES HUMANOS, onde alguns vêem raças.

Nota prévia: Este texto é escrito por vontade expressa do autor à revelia do Acordo Ortográfico. António Mateus é jornalista e escritor, autor de vários livros:

“MANDELA: A CONSTRUÇÃO DE UM HOMEM”, Oficina do Livro

“MANDELA: O REBELDE EXEMPLAR, Editora Planeta

“OLHAR O MUNDO”, Editora Marcador

“SELVA URBANA”, Editora Colibri

“GENTE VESTIDA DE PELES DIFERENTES”, Editora Ulmeiro

“NADA É NUNCA APENAS AQUILO QUE PARECE, para gente de todas as idades com criança lá dentro”, Edição de autor.

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