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Olivro deste mês é uma obra que captura com perspicácia o espírito de nossos tempos. Junto a questões atemporais, como a fragilidade das aparências, Coisas humanas traz questões relevantes sobre o feminismo atual, imigração e as dinâmicas das redes sociais. Tudo isso envolto no julgamento de um suposto caso de abuxo sexual.
Como lemos a seguir em uma apresentação do romance, Karine Tuil parece criar um “espaço de decantação” para dilemas da sociedade contemporânea, imprimindo um ritmo de re exão distinto daquele do mundo virtual.
Para aprofundar a sua experiência, publicamos ainda outros textos de apoio ao livro, entrevistas com a autora e a curadora, assim como sugestões de obras que representam tribunais e disputas judiciais na cção.
Boa leitura!
MAR
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VAMOS LER COISAS HUMANAS
Criamos esta experiência para expandir a sua leitura. Entre no clima de Coisas humanas colocando a playlist especial do mês para tocar. É só apontar a câmera do seu celular para o QR Code ao lado ou procurar por “taglivros” no Spotify. Não se esqueça de desbloquear o kit no aplicativo da TAG e aproveitar os conteúdos complementares!
Leia até a página 91
Após conhecermos os principais personagens da trama (e seu mundo marcado pelas aparências), chegamos a um momento de muita tensão para Jean Farel. Em plena cerimônia de condecoração no Palácio do Eliseu, ele não apenas recebe uma notícia perturbadora como precisa lidar com uma presença um tanto ameaçadora. Devastado por uma conversa ouvida no banheiro do local, Alexandre chega ao apartamento de Adam e Claire, onde encontra uma das lhas do namorado da mãe.
Leia até a página 150
Há um clima de tensão no ar após a última noite e, de repente, a vida dos personagens vira de ponta-cabeça. O que será que vem pela frente?
Leia até a página 200
As últimas páginas revelaram uma série de interrogatórios, e as cenas do julgamento estão cada vez mais eletrizantes, com direito a pareceres detalhados da personalidade dos envolvidos. A descoberta de eventos do passado de Mila podem fragilizar a sua versão dos fatos. Quais são as suas impressões até aqui? Conte lá no app!
Leia até a página 248
Uma declaração de Jean ameaça de vez a sua carreira, e novos elementos, como o depoimento de uma testemunha inesperada, parecem embaralhar ainda mais as cartas do julgamento. Quanta emoção!
Leia até a página 283
Terminamos o livro acompanhando as novidades que cercam a vida de Alexandre após todos os acontecimentos. O que você achou do desfecho e do “destino invariável das coisas humanas”?
projeto gráfico
A capa deste mês leva a assinatura de Ana Elisa Egreja, artista brasileira que se dedica à pintura, com obras marcadas pela exploração detalhada de cores e texturas. A composição que ilustra Coisas humanas representa o cômodo de uma casa, com uma estrutura em primeira instância requintada, mas que está coberta de rachaduras e mofo onde antes possivelmente havia uma fotogra a familiar. Esses elementos aludem à corrosão, no livro de Karine Tuil, do mundo de aparências da família Farel. As guras dos patos produzem ainda certa estranheza no ambiente, ressaltando o caráter animalesco do comportamento e das relações dos personagens.
A biblioteca dos taggers, não importa o tamanho, costuma ser um cantinho de encher os olhos. Pensando nisso, o mimo de março foi concebido como um objeto de decoração desse espaço, para tornar a literatura ainda mais presente na sua rotina. A ilustração do item remete a um ex-libris, inscrição usada para registrar a propriedade de um livro.
Coisas humanas pode ter terminado, mas a experiência não!
Aponte a câmera do seu celular para o QR Code ao lado e escute o episódio de nosso podcast dedicado ao livro do mês. No aplicativo, con ra também a nossa agenda de bate-papos.
COISAS HUMANAS
“Karine Tuil confronta-nos sobretudo, no seu décimo primeiro romance, com o paradoxo das existências blindadas por princípios e sua oposição à realidade.”
Le Figaro Littéraire
“Um romance emocionante que fala de seu tempo com sutileza e inteligência.”
La Presse
“Karine Tuil explora com eficácia os mecanismos das violências sociais e íntimas.”
Le Devoir
Por que ler o livro
Publicado em 2019, Coisas humanas é um dos romances mais recentes da escritora Karine Tuil, expoente da literatura francesa contemporânea e vencedora, com esse livro, do prêmio Goncourt des Lycéens. A trama criada pela autora é uma verdadeira caixa de ressonância de questões atuais. Com uma escrita límpida e afiada, inspirada por um caso real de violação sexual ocorrido em Stanford, ela apresenta aos leitores um elenco de personagens bem-desenvolvidos, enredados em eventos que põem em xeque seu mundo de aparências. A obra ganhou uma adaptação cinematográfica dirigida por Yvan Attal e estrelada por nomes como Charlotte Gainsbourg e Pierre Arditi.
Entre a violência e a verdade
LAURA SCHUCHEm Coisas humanas, Karine Tuil retira da velocidade midiática questões atuais de envergadura, criando um espaço de decantação para alguns desses problemas
Como fenômenos midiáticos atuais podem se tornar objetos pertinentes à cção? Ou, então: como a literatura pode contribuir na re exão sobre as dinâmicas coletivas do tempo presente?
Décimo primeiro romance de Karine Tuil e ganhador dos prêmios Interallié e Goncourt des Lycéens 2019, Coisas humanas tem o traço da experiência e da dedicação imersiva da autora. Advogada de formação, ela parece preencher de vida algumas de suas inquietações pro ssionais, desenrolando-as no tempo do romance. Partindo de uma curiosidade pessoal pela repercussão midiática do “caso Stanford”, em 2016 — em que um estudante da universidade norte-americana foi acusado de ter estuprado uma jovem dentro do campus —, ela contou com a consultoria de dois advogados e frequentou longamente a área reservada ao público do tribunal de Paris a m de trazer textura e nuance ao universo de seu livro.
O romance acompanha as trajetórias individuais dos personagens da família Farel, enredados no mesmo escândalo — Jean, um apresentador de televisão cínico e vaidoso em batalha permanente contra a passagem do tempo; Claire, sua esposa vinte e sete anos mais jovem, uma acadêmica feminista cuja vida regulada se transforma a partir de uma paixão fulminante; e Alexandre, o estereotípico lho da elite parisiense cuja vida é regida pela performance nos estudos e no esporte. Dividido em três partes (“Difração”, “O território da violência” e “Relações humanas”), o romance conduz o leitor lúcida e descritivamente pelo cotidiano de seus personagens, de gestos automáticos a re exões íntimas, com direito a ashbacks elucubrativos e diálogos interiores. A primeira parte apresenta os envolvidos e estabelece as peças do mecanismo que
será gradualmente colocado em marcha — os ideais e máscaras que serão erodidos ao longo da trama. Em continuidade temporal, as duas primeiras partes mostram os dias anterior e posterior à noite em que se dá o motor da obra. Situada dois anos mais tarde, a terceira parte apresenta o julgamento do caso e coloca o leitor diante das declarações contraditórias de defesa e acusação e da violência que o processo produz na vida de todos os envolvidos. O leitor-jurado assiste às audiências, e a di culdade da verdade se apresenta como a outra face de uma realidade tão diligentemente retratada.
Sobre um fundo de ar do tempo (abundam as citações a escândalos sexuais famosos, como o de Bill Clinton, de Dominique Strauss-Kahn, dos ataques em massa em Colônia e do atentado contra a escola judaica em Toulouse; sem falar na coincidência do processo de escrita com a de agração do caso Weinstein e do movimento #MeToo), Tuil retira da velocidade midiática questões de envergadura. Se discussões políticas complexas, como o racismo e o sexismo, ganham visibilidade e capilaridade com as plataformas contemporâneas de comunicação, elas são privadas, pela própria dinâmica que as faz emergir, de uma análise mais profunda. Coisas humanas pode ser lido como um espaço de decantação para alguns desses problemas.
Consentimento, integração, dinâmicas de poder funcionam como um campo de exploração para duas questões de fundo que o livro faz emergir: a da verdade e a da violência. O aspecto naturalista da obra desvela que, na interface entre o íntimo e o social, há disputa. A autora esculpe a nãototalidade da verdade, expondo o leitor a choques entre suas diversas manifestações — jornalística, religiosa, coletiva, subjetiva, jurídica. A violência se desdobra não apenas em violência de gênero, classe e raça, mas também da paixão, do imprevisto, das relações parentais, das instituições, dos fenômenos de massa, da passagem do tempo. Em Coisas humanas, a vida pode ser transformada a qualquer momento por “um episódio de 20 minutos”. O livro nos conduz, com a aparente transparência de sua linguagem, a essa opacidade absoluta, irredutível, onde a nuance e a ambiguidade inscrevem na realidade o território da literatura.
"O aspecto naturalista da obra desvela que, na interface entre o íntimo e o social, há disputa."
Curadora do mês, Tatiana Salem Levy conta à TAG como entrou em contato com Coisas humanas, destaca as qualidades do romance e compartilha livros que a marcaram como leitora
JÚLIA CORRÊA
F oi ao ir atrás de livros sobre estupro, tema que permeia seu mais recente romance, que Tatiana Salem Levy chegou à obra da francesa Karine Tuil, de quem nunca havia ouvido falar. Assim como Coisas humanas, cujo enredo é baseado em um caso de abuso ocorrido em Stanford, Vista Chinesa, lançado em 2021 pela editora Todavia, parte de uma história real: nele, a autora luso-brasileira toma a violência sofrida por uma diretora de TV como referência para abordar a trajetória de Júlia, personagem que é estuprada em uma mata do Rio de Janeiro em plena euforia que tomou conta da cidade às vésperas da Copa do Mundo de 2014. Como avalia na entrevista a seguir, a publicação simultânea de romances com essa temática é fruto do movimento feminista atual, que, segundo ela, abriu espaço para mulheres abordarem suas experiências traumáticas.
Nascida em Lisboa em 1979, nossa curadora é um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Pesquisadora e ensaísta, ela é colunista do jornal Valor Econômico. Além de Vista Chinesa, publicou os romances A chave de casa, de 2007 (com o qual venceu o Prêmio São Paulo de Literatura como autora estreante), Dois Rios, de 2011, e Paraíso, de 2014. Sua produção também inclui elogiados contos, crônicas e obras infantojuvenis. Na conversa com a TAG, além de detalhar a sua indicação ao clube, ela menciona a escrita de um novo livro.
“A escrita de Tuil levanta questões que nos fazem pensar para além do óbvio”
Como você entrou em contato com Coisas humanas? Já conhecia outras obras de Karine Tuil?
A publicação do meu romance Vista Chinesa coincidiu com a publicação de outros romances sobre estupro em diversos países — fruto, sem dúvida, do movimento feminista, que abriu espaço para as mulheres falarem e escreverem sobre suas experiências traumáticas. Fui atrás desses livros, e foi assim que me deparei com Coisas humanas. Eu nunca tinha ouvido falar em Karine Tuil, mas, depois da leitura desse romance tão forte e bem-escrito, quei logo interessada em conhecer melhor a obra da autora.
Quais vocês considera as principais qualidades do romance? Por que decidiu indicá-lo ao nosso clube?
Eu me interesso sempre pela estrutura dos romances, pela forma como as histórias são narradas. O narrador de Coisas humanas se aproxima cada hora de um personagem, mas sobretudo dos personagens do lado do acusado de estupro. Isso dá uma complexidade enorme ao livro, faz dele um mosaico de subjetividades e, consequentemente, de verdades. Supostamente, há um único fato: o estupro ocorreu ou não; mas a escrita de Tuil vai nos confundindo, levantando questões que nos fazem pensar para além do óbvio. Alguns anos antes, o acusado havia vencido um concurso de loso a com o tema "Os homens são violentos por natureza ou por causa da violência social?". O romance de Karine — com suas personagens bem-construídas, sua trama bem-amarrada, que, num determinado ponto, nos prende e não larga mais — coloca essa questão o tempo todo, mas em forma de literatura.
Imigração, feminismo, cancelamento nas redes sociais... Esses são alguns temas levantados pela obra de Karine Tuil. Em que medida você acredita que a autora captura, nesse romance, o espírito de nosso tempo?
Penso que se trata de um romance completamente imerso nos tempos que correm. Karine não deixa escapar nada, está bem atenta às questões que nos rodeiam. E também às contradições que elas carregam.
A nal, é um mundo que exige uma perfeição alcançável apenas de mentirinha, em instantâneos nas redes sociais. Está claro que todos nós, em algum momento, vamos falhar, vamos nos contradizer, vamos escorregar. É o que acontece com todos os personagens do livro. A nal, são todos feitos de coisas humanas.
A violação sexual é uma temática em comum entre Coisas humanas e seu livro Vista Chinesa, lançado em 2021 pela Todavia. Qual você considera a importância da literatura na re exão acerca de eventos traumáticos como esses?
Olha, não acho que essa pergunta tenha uma resposta muito óbvia. É mais fácil responder sobre o papel das leis, das organizações não governamentais, en m, de entidades que atuam diretamente contra a violência sexual. Mas eu poderia dizer que a literatura, através de determinada experiência com a linguagem, nos aproxima do indizível, do horror, criando empatia, nos colocando no lugar da outra. E isso é muita coisa, né?
Não faltam personagens ambivalentes em Coisas humanas, capazes de nos fazer sentir desprezo e, ao mesmo tempo, empatia por eles. Considerando a sua experiência de leitura, como você vê essa complexidade dos personagens? Houve algum que a marcou em especial? Como eu disse antes, para mim, esse é o ponto forte do livro, a capacidade da autora de complexi car os personagens. Impressionante como, em determinado momento, eu questionei a vítima e, em outros, eu odiava o acusado e tinha uma empatia enorme pela vítima. Essa oscilação dos nossos sentimentos é fascinante, pois, como leitores, nunca camos parados num mesmo lugar. Eu quei particularmente marcada pela Claire, porque ela tem um desa o enorme, com
o qual me identi co. É feminista, luta pelos direitos da mulher e é mãe de um menino. Ela se pergunta o tempo todo se, como mãe, fez a coisa certa, se educou direito seu menino branco privilegiado para que ele não repita a violência da qual somos vítimas há milênios. Como feminista e mãe de um menino, acho essa tarefa a mais difícil de todas. Sou mãe de uma menina também, e acho mais fácil educar para se defender, para lutar, do que educar um menino feminista, porque tudo na sociedade ainda é feito para os meninos crescerem machistas.
Você indicou essa obra de Karine Tuil ao nosso clube. Recentemente, Annie Ernaux venceu o Prêmio Nobel. Você acompanha com atenção a atual literatura francesa produzida por mulheres? Se sim, poderia nos recomendar outras autoras que estão no seu radar? Nossa, eu amo a Annie Ernaux! Ela foi, e é, fundamental para as mulheres se escreverem, para mostrar para o mundo que as nossas questões também são literatura. Eu também gosto bastante da Leïla Slimani, da Virginie Despentes, da Delphine de Vigan.
Você deve lançar algum novo livro em breve? Tem projetos em andamento? Tenho, sim. Eu diria que estou na metade, mas a metade pode durar anos, nunca se sabe...
O primeiro livro que leu: Mico Maneco, da Ana Maria Machado, com ilustrações do Claudius.
O livro que está lendo: The Pear Field, da escritora georgiana Nana Ekvtimishvili.
O livro que mudou a sua vida: Memórias de uma moça bem-comportada, de Simone de Beauvoir, e Laços de família, de Clarice Lispector.
O livro que você gostaria de ter escrito: Moby Dick, de Herman Melville.
O último livro que a fez chorar: Garotas em tempos suspensos, de Tamara Kamenszain.
O último livro que a fez rir: Memória de ninguém, de Helena Machado (embora seja um livro tristíssimo).
O livro que dá de presente: As pequenas virtudes, de Natalia Ginzburg, e Um esboço do passado, de Virginia Woolf.
O livro que não conseguiu acabar: Finnegans Wake, do Joyce.
Um romance sobre a sociedade moderna
Coisas humanas discute a disfuncionalidade das relações íntimas e sociais e a onipresença das redes em um mundo que demanda exibição permanente
Claire Farel é uma ensaísta reconhecida nacionalmente por seu engajamento com o feminismo. Casada com Jean Farel, um dos jornalistas de TV mais famosos da França, os dois têm um lho brilhante, Alexandre, estudante da Universidade de Stanford. De fora, uma família perfeita. De dentro, uma fachada prestes a desmoronar após um suposto crime de abuso sexual que toma a mídia, as redes sociais e o debate público do país europeu.
Nesse enredo, que tem como pano de fundo a sociedade francesa contemporânea, Karine Tuil traz uma re exão sobre a violência, mesclando o que chama, conforme suas palavras para a imprensa, de “brutalidade que valoriza a performance” e um mundo de “exibição permanente”, com redes sociais demandando que cada um mostre seu mundo perfeito. Ou, ao menos, perfeito para quem vê de fora. Em seu livro, Tuil escancara a fragilidade por trás das aparências e deixa às claras a disfuncionalidade da sociedade moderna e das relações humanas.
Para escrevê-lo, acompanhou por dois anos julgamentos de violações sexuais, ouvindo depoimentos de homens agressores e de mulheres se defendendo. É o que explica a riqueza e a delidade dos detalhes de seu texto. A autora buscou transcrever a violência e a complexidade da sociedade, opondo pontos de vista e sem julgamentos morais.
Em Paris, manifestantes protestam contra a violência sexual (2018)
Crédito: Jeanne Menjoulet
O livro traz ainda elementos como o movimento feminista #MeToo e suas nuances na França, propondo uma re exão sobre o papel e as condições das mulheres em tempos de maior liberdade de expressão, especialmente com as trajetórias da jovem Mila, de 18 anos, da ensaísta Claire, de 40 anos, e da veterana jornalista Françoise, de 70.
Romper padrões
Para Isabelle Anchieta, doutora em Sociologia pela USP e autora da trilogia Imagens da mulher no Ocidente moderno, a novidade do período contemporâneo é romper com a “naturalização da culpabilização feminina” e permitir a estruturação de um debate sobre abusos e assédios sexuais que não acontecia no passado. Para ela, tal mudança é fruto de avanços de direitos humanos e da luta do movimento feminista, que empoderaram indivíduos tidos como marginalizados. “A novidade é esse novo conjunto de forças que se contrapõe e desnaturaliza o que foi culturalmente construído”, explica.
Ela avalia que a importância de movimentos contra assédio e agressão sexual, como o #MeToo e o #BalanceTonPorc (“Denuncie seu porco” em francês), é alterar o jogo de poderes estabelecido. “Eles mostram como as mulheres unidas conseguiram tirar do trono guras que tinham um poder aparentemente intocável”, explica.
“Uma hierarquia é quebrada e subvertida por essa nova organização que faz uma destruição moral daquele personagem. Às vezes, até antes de um julgamento ocial pela justiça”, diz. Um dos casos mais emblemáticos é o de Harvey Weinstein, ex-produtor de Hollywood
Crédito:
denunciado por dezenas de mulheres e condenado por crimes sexuais. No livro, Tuil transforma o julgamento da trama no “caso Farel”, que ocupa diariamente as manchetes e as redes na França.
Vale destacar que, devido a uma série de diferenças culturais, as manifestações feministas ganham contornos variados no país europeu. No auge do #MeToo, movimento que eclodiu nos EUA, um grupo de francesas encabeçado por guras como a atriz Catherine Deneuve e a escritora Catherine Millet produziu um manifesto que, a despeito de reconhecer a “legítima tomada de consciência a respeito da violência sexual”, aponta um suposto “puritanismo” no #MeToo e no próprio #BalanceTonPorc, mais alinhado ao grupo norte-americano. O texto gerou uma série de controvérsias. “Os porcos e seus (suas) aliado(a)s estão preocupado(a)s? É normal. Seu velho mundo está desaparecendo. Muito devagar — devagar demais —, mas inexoravelmente”, rebateu um grupo de mulheres francesas em outro texto também publicado no Le Monde.
Imigração e terrorismo
Além da violência contra a mulher, Coisas humanas trata da relação entre franceses e imigrantes, sobretudo os muçulmanos. Ensaísta e doutor em Literatura Francesa pela UFRGS, Rodrigo de Lemos recorda que essas tensões estão presentes na sociedade francesa há décadas, mas atentados como os do Charlie Hebdo (2011 e 2015), do Bataclan (2015) e o de Nice (2016) potencializaram os debates. “Especialmente sobre o islamismo, termo que se refere aos movimentos
"Je suis Charlie" virou slogan após atentados contra o jornal Charlie Hebdo.
Keno Photography
político-ideológicos extremistas inspirados no Islã e que pouco têm a ver com a prática cotidiana pací ca dessa religião”, a rma o pesquisador.
Hoje, quase 30% dos imigrantes do país vieram de nações muçulmanas, como Argélia, Marrocos e Tunísia. Lemos conta que, em regiões mais dinâmicas, como Paris,é mais fácil perceber essa multiculturalidade — na comida, na música, na moda, nos costumes e nas línguas que se escutam na rua — promovendo um ambiente mais progressista e diverso.
Mas essa não é a regra para os 67 milhões de habitantes do país, em especial os de cidades pequenas e médias, onde é mais frequente a presença de grupos menos favorecidos pela globalização. “Podemos observar, por vezes, um fechamento identitário em torno de comportamentos ‘tipicamente franceses’”, comenta. “Para alguns, a defesa da baguete com queijo camembert contra o kebab árabe virou realmente um combate”, compara. Lemos explica ainda que a luta contra a in uência da Igreja durou séculos na França, culminando em um estado laico a partir do século XX, um valor forte na sociedade atual. “Esse é um dos elementos por trás de polêmicas como a da lei de 2004 que proibiu o véu islâmico (e quaisquer símbolos religiosos) nas escolas públicas e laicas, e a discussão sobre a observância às restrições alimentares muçulmanas nas cantinas escolares.”
Segundo Rodrigo de Lemos, o mesmo se dá com os direitos sexuais, sobretudo de mulheres e de minorias, já que foram importantes na história francesa o feminismo e o ativismo LGBTQIA+. “Muitos se identi cam
com a imagem internacional de um país onde se respeitam os direitos civis de trans e homossexuais e onde as mulheres têm seus corpos livres, fazem topless na praia, mantêm uma vida afetivo-sexual independente e traçam carreiras autônomas”, avalia. “Esses valores nem sempre são os mais prezados por algumas comunidades imigradas que, por vezes, têm sobre esses temas visões muito diferentes, oriundas de outra história e de outro contexto. O estranhamento mútuo é frequente”, diz.
O livro de Karine Tuil mostra, por exemplo, um caso ocorrido na cidade de Colônia, na Alemanha, na noite de réveillon de 2015 para 2016, quando centenas de alemãs registraram queixas de agressões sexuais e, entre os suspeitos, encontravam-se imigrantes africanos. Convidada a opinar sobre o caso, a personagem Claire argumenta que “jovens provenientes de países muçulmanos foram criados num ambiente patriarcal bem forte, no seio de sociedades regidas pela ordem religiosa” e, com isso, diz ela, “assistimos […] a uma coisi cação da mulher que leva às violências cometidas contra seu corpo”. As declarações da personagem geram uma intensa polêmica.
Crédito: Lorie Shaull
Esse cenário de diferenças culturais, impulsionadas pelo avanço das redes sociais e impactadas pelo crescimento do discurso populista, ajuda a explicar a polarização política que levou ao segundo turno Marine Le Pen, representante da extrema direita e hoje a maior força de oposição ao governo de Emmanuel Macron. “Não podemos esquecer que a França é o país do Iluminismo, mas também de uma poderosa tradição intelectual reacionária, que ressurge em tempos de crise.”
Ilustração do mês
Gabriel Renner é ilustrador freelancer e designer. Passou pelas redações de Zero Hora, Diário Gaúcho, ND Notícias e Grupo Editorial Sinos, além de ter ilustrado para as revistas Superinteressante, Mundo Estranho e Sexy. @rennergabriel
A pedido da TAG, o artista interpretou uma passagem do livro do mês: “Estavam todos lá: representantes das principais empresas francesas, os grandes donos da imprensa, jornalistas, escritores, editores, ministros, antigos e em exercício, 90 pessoas escolhidas a dedo — essencialmente homens — se dirigindo à escadaria de acesso ao Eliseu, seus convites incrustrados de letras douradas na mão (alguns os tinham fotografado para postá-los nas redes sociais). [...] No centro, Farel brilhava como um astro. Aqui estamos, pensou ele [...]. Em sua vida, tudo o predestinava à sordidez e ao naufrágio, e eis que ele conseguira chegar ao ápice do Estado. [...] Farel caminhou até o Presidente, que prendeu a condecoração na lapela de seu terno antes de abraçá-lo e apertar seu braço com a mão num gesto cordial”.
POSFÁCIO
Se você ainda não leu o livro, feche a Revista nesta página.
A seguir, você confere conteúdos indicados para depois da leitura da obra.
A escrita me permite compreender e questionar o mundo”
Karine Tuil detalha a sua inspiração para escrever Coisas humanas, re ete sobre o impacto das redes sociais na atualidade e revela algumas de suas referências literárias
JÚLIA CORRÊA
Karine
Tuil (Paris, 1972) tem uma produção atenta aos dilemas da vida contemporânea. É formada em Direito e Comunicação, áreas que perpassam boa parte de suas narrativas, que abordam ainda as relações íntimas e a identidade judaica. In uenciada por autores como Philip Roth, iniciou a sua carreira no nal dos anos 1990 ao participar de um concurso de manuscritos. Seu texto foi notado pelo jornal Le Figaro e, desde então, ela já publicou mais de uma dezena de livros, consolidando seu nome no cenário literário francês. A seguir, a autora dá mais detalhes da concepção de Coisas humanas e revela suas principais referências.
Para escrever Coisas humanas, você se inspirou em um caso real ocorrido em Stanford. Por ainda abordar temas como feminismo, imigração e terrorismo, seu livro é muito representativo do espírito de nosso tempo. Por que esses tópicos lhe interessam?
O que me interessa é entender as disfunções de nossa sociedade, revelar as falhas, as fraturas. A literatura é sempre política. A escrita me permite compreender e questionar o mundo, identi car a sua complexidade.
Para escrever meus romances, gosto de enfrentar a realidade, ir a campo, fazer investigações e tentar encontrar uma linguagem que também dê conta de meu projeto literário. Comecei Coisas humanas em 2016, quando descobri o caso Stanford: um jovem foi acusado de agredir sexualmente uma jovem no campus universitário. Ele havia sido condenado a seis meses de prisão, três dos quais foram suspensos. Isso me marcou muito porque o pai do réu disse ao juiz que não se podia destruir a vida de seu lho por "vinte minutos de ação". Essa expressão terrível usada para resumir uma agressão sexual que destruiu a vida da menina me fez perceber a distorção entre a percepção da vítima e a do acusado, de sua família. O rapaz minimizou os fatos diante de uma jovem que sofria. A partir daí, quis trabalhar sobre esse assunto, participei de julgamentos por estupro em tribunais da França. Achei que essa história deveria ser contada do ponto de vista do acusado, já que é ele quem está no centro do julgamento criminal na França.
Seu livro começa mencionando o escândalo sexual envolvendo Bill Clinton, em 1998, nos EUA. O caso Farel, por sua vez, se passa na década de 2010, quando a internet está muito mais presente na vida social. O que mudou de lá para cá? Como você vê o impacto da tecnologia em nossas relações sociais e na opinião pública?
O impacto da tecnologia hoje em nossas vidas sociais e especialmente nas de guras públicas é absolutamente assustador: qualquer um pode revelar, difundir, transmitir e comentar elementos de sua vida privada na
internet ou nas redes sociais. Isso cria situações bastante trágicas, em que se instala uma espécie de tribunal midiático, um mecanismo generalizado de intimidação que se traduz em ataques e julgamentos peremptórios nas redes sociais sem que o agredido possa se defender. Abala a presunção de inocência, os princípios básicos dos direitos humanos; levanta questões éticas, políticas e sociais, tanto pelo que essas novas ferramentas naturalmente têm de interessante (porque permitem disseminar informação, criar ligações) quanto pelo que representam de perigo quando essa comunicação serve a interesses antidemocráticos, que minam a dignidade ou a privacidade das pessoas.
A preocupação com as aparências é um tema central em Coisas humanas. O casamento fictício de Jean e Claire e a perturbação dele com o envelhecimento são exemplares disso. Em seu livro, a vaidade e a hipocrisia irrompem fortemente, mas livres de julgamentos. Quão preocupada você estava em evitar esses juízos morais?
O que me interessa é a obsessão pela representação, a comédia social, as máscaras que usamos, os comportamentos dos indivíduos na sociedade — tudo o que temos de fazer para encontrar o nosso lugar para sobreviver, subindo a escala social. Mas revelar não é denunciar. Sartre disse: “revelar é mudar”. Quero mostrar uma certa realidade, mas tento fazê-lo com nuances, porque realmente estamos em uma sociedade em que o pensamento se torna bastante binário, os julgamentos são precipitados, de nitivos. Sou muito apegada ao
pluralismo, ao debate democrático, à multiplicidade e à oposição de ideias; gosto de pensar contra mim mesma. Quis abordar um assunto delicado mostrando a complexidade humana, trazendo ambiguidade e re exão — a literatura é o espaço do tempo estendido e, ao contrário das redes sociais, nela, o pensamento pode se desenvolver.
O livro mostra um julgamento que se dá por palavra contra palavra. Com uma linguagem muito racional, a própria estrutura narrativa não permite descobrir quem está falando a verdade. Foi difícil para você encontrar esse equilíbrio entre as versões?
Na verdade, procurei me manter el ao funcionamento de um julgamento tradicional na França: é o julgamento do acusado, então é ele quem deve se defender e, em última análise, a vítima tem muito menos espaço e visibilidade. Durante os julgamentos a que assisti, descobri que, nesse tipo de processo, muitas vezes, é palavra contra palavra: há as declarações da vítima e de um réu que nega ou que não tem a mesma percepção. Sem testemunhas, é extremamente complicado para os jurados e juízes encontrarem o que se chama a verdade judicial. E o julgamento é para isso, para a manifestação da verdade, mas, às vezes, a gente não sabe — lidamos com algo vago, opaco; o acusado nega o que fez e a vítima ca estupefata. No livro, também queria que ouvíssemos a voz da vítima. O #MeToo foi um movimento verdadeiramente revolucionário, cujos efeitos ainda se fazem sentir. O meu objetivo era abordar um assunto delicado, colocando, claro, a
vítima no centro do dispositivo, mas contar a história do ponto de vista da família do réu, porque me parecia que isso nunca tinha sido feito. Li muitos depoimentos de vítimas, mas não li nada do lado dos réus e de suas famílias; no entanto, é um ponto de vista interessante porque, obviamente, se você é a mãe do acusado, você reage de maneira diferente. Claire Farel é uma feminista empenhada, uma intelectual reconhecida, mas, quando é o seu lho que é alvo de uma denúncia por violação, pensa acima de tudo em salvá-lo, quer acreditar nele, e aí está todo o dilema e toda a ambiguidade do livro: o leitor pensa “E se eu estivesse no lugar dela, como teria reagido? O que eu teria feito?”.
Como foi lidar com a linguagem jurídica com precisão sem torná-la cansativa para os leitores? Foi um verdadeiro desa o. Trabalhei muito nesse material para torná-lo romanesco. Os leitores são frequentemente fascinados por notícias de escândalos. Enquanto leem, eles dizem para si mesmos: isso pode acontecer comigo também... O que faz a vida mudar em dado momento? São assuntos que perturbam a nossa identidade profunda. Coisas humanas conquistou um público muito vasto, desde jovens que se identi caram com Alexandre e Mila aos leitores de 40-50 anos que se identi caram com os pais. Houve trocas intergeracionais em torno do livro, avós falaram com suas netas sobre o que elas sofreram... Espero que, de alguma forma, o livro tenha contribuído para libertar a palavra e tenha instigado debates para que os códigos culturais possam nalmente mudar.
É possível notar um desequilíbrio de poder entre os personagens. A opressão masculina que emana de Alex — ainda que conheçamos suas fragilidades — é acentuada por sua origem social: ele vem de uma prestigiada família burguesa. Por sua vez, Mila vem de um mundo religioso e pertence a uma classe mais modesta. Como você vê esse choque de universos?
Eu realmente queria confrontar universos sociais: um background burguês, com pessoas que pertencem à elite política e social da França, e pessoas que vêm de um background muito mais simples. Foi interessante porque vemos no contexto de um julgamento o confronto das forças presentes, ou seja, a família Farel sente-se superior, acha que vai conseguir evitar um julgamento, que só vai ter de pagar a Wizman para obter a retirada da denúncia. Por meio desse livro, também tinha interesse em abordar a questão do con ito de classes, que é um tema bastante central em meu trabalho.
Philip Roth parece ser uma influência para você. Além de uma citação explícita de Pastoral americana (1997), é possível identi car ecos da produção do autor em Coisas humanas. Você pode falar sobre a importância dele para você? Aliás, que outros escritores e escritoras instigam a sua imaginação?
Philip Roth foi, de fato, um autor que signi cou muito para mim e que continua sendo importante mesmo depois de sua morte, porque soube melhor do que ninguém como fazer cair máscaras: ele ia além das aparências, denunciando a hipocrisia da sociedade. Ele era ousado, brilhante, transgressor. Em suas obsessões, encontrei as minhas: judaísmo, morte, criação. Os autores contemporâneos de que gosto são, entre outros, Emmanuel Carrère, Michel Houellebecq, Marie NDiaye, Nicole Krauss, Maggie Nelson, Roberto Saviano, Jonathan Safran Foer… São muitos.
O primeiro livro que leu:
A metamorfose, de Franz Kafka.
O livro que está lendo: A mulher calada, de Janet Malcolm.
O livro que mudou a sua vida: O estrangeiro, de Albert Camus.
O livro que você gostaria de ter escrito: A marca humana, de Philip Roth.
O último livro que a fez chorar:
Le gosse, de Véronique Olmi.
O último livro que a fez rir: Le dernier testament de Maurice Finkelstein, de Sophie Delassein.
O livro que dá de presente:
Lições de poética, de Paul Valéry, ou as edições Pléiade de Kafka.
O livro que não conseguiu acabar: O homem sem qualidades, de Robert Musil.
Uma encenação trágica
ISADORA SINAY
No romance de Karine Tuil, as “coisas humanas” são também demasiadamente políticas
Os Farel, protagonistas de Coisas humanas, de Karine Tuil, são um casal poderoso: Jean é um apresentador de televisão popular, embora um pouco envelhecido, e Claire é uma ensaísta e intelectual feminista renomada. Ambos são guras importantes da cena cultural francesa e seu casamento é menos movido por amor que pela vontade de manutenção desse status social e pro ssional.
Contudo, apesar do arranjo mutuamente bené co e confortável, o que cada um deles tira da situação revela diferenças de gênero importantes: Jean dá a Claire acesso pro ssional e segurança nanceira, enquanto ela lhe dá as vantagens domésticas de ter uma esposa, além da vantagem publicitária de ser casado com uma mulher muito mais nova.
Isso porque Jean é, na verdade, apaixonado por Françoise, jornalista de sua idade com quem mantém um relacionamento de anos, que não tem coragem de assumir por medo de que o público nalmente lhe reconheça como um homem de setenta anos. Por outro lado, Claire vê nesse casamento uma proteção contra os desejos do corpo, que representam para ela sempre a ruína das ambições mentais de uma mulher. Seu primeiro encontro com essa sabedoria veio quando sua mãe abandonou a família por um amante, e cristalizou-se quando, em um estágio na Casa Branca, seu caminho se cruzou com o de Monica Lewinsky.
Dessa forma, o casamento dos Farel é construído como o primeiro ato de uma tragédia grega: ambos os personagens buscam fugir de seu pathos, refugiando-se em situações que não podem deixar de levá-los à ruína. E é assim que, quando o livro começa, Claire
acaba de abandonar Jean por Adam, um professor de literatura judeu por quem sente uma paixão fulminante. Se Jean era atraente por con rmar sua entrada na elite francesa, tudo em Adam é inadequado para a mulher que Claire deseja ser: sua pro ssão sem glamour, seu status de homem casado, com duas lhas, e, talvez mais importante, sua religião.
Um dos temas centrais que Tuil levanta em seu romance é a oposição essencial entre desejo e respeitabilidade, a atração irresistível que se encontra fora das normas do aceitável e, portanto, no seio da intelectualidade francesa, e é no judeu que se localiza o elemento desorganizador representado pelo desejo carnal.
Os judeus de Tuil são complexos e ambivalentes tanto em sua relação com a própria identidade quanto com a sociedade francesa mais ampla: acuados por um antissemitismo real e violento, os Wizman se entrincheiram no judaísmo, primeiro com uma emigração desastrosa para Israel e, em seguida, com a conversão à ortodoxia de parte da família. Assim como os Farel, os Wizman se veem diante de um dilema trágico: a identidade judaica secular, moderna e intelectual se mostra impossível justamente no país que primeiro permitiu sua existência, e, quanto mais eles buscam se diminuir em meio a um entorno violento, mais representam um incômodo.
Assim, os elementos desorganizadores do desejo e do judaísmo con uem e tornam inevitável o esfacelamento da bem-organizada vida dos Farel. E, contudo, o motor da queda não é nenhum dos pais, mas o lho, Alexandre, um jovem de vinte e um anos que deixou Paris para estudar Engenharia em Stanford. Um dia, de visita na casa da mãe, ele é pressionado a levar Mila, lha mais velha de Adam, a uma festa. Alexandre acha a menina sem graça e indesejável, mas obedece. No dia seguinte, Mila o acusa de estupro.
O romance é expressamente inspirado no “caso Stanford”, de 2016, no qual um estudante da
"[...] os elementos desorganizadores do desejo e do judaísmo confluem e tornam inevitável o esfacelamento da bem-organizada vida dos Farel."
universidade foi acusado de estuprar uma garota desacordada atrás de uma caçamba. No entanto, Tuil complica a situação e descreve em seu romance uma cena muito mais ambígua, onde a diferença entre o consentimento dado e percebido é nebulosa tanto para os envolvidos quanto para o leitor.
E, uma vez começada a descida, são os defeitos trágicos dos protagonistas que a impulsionam: a arrogância e o machismo de Jean complicam sua situação e a de seu lho, e o feminismo autocentrado de Claire acaba com sua carreira ao mesmo tempo que a torna consumida pela culpa de ter criado um homem capaz de tal feito. No entanto, como no mundo real, erros não possuem o mesmo peso para homens e mulheres, e é ela que termina punida mais do que o próprio acusado.
O que Tuil parece dizer com sua narrativa é que as “coisas humanas” — o desejo, a violência, o egocentrismo e a arrogância — são justamente isso, humanas, e o maior erro dos Farel é acreditar em uma existência em que essas coisas possam ser eliminadas ou controladas. E, embora elas representem o que há de mais instintivo e corporal em nós, o efeito de sua entrada é profundamente moldado pelas estruturas de poder e da política. Nesse sentido, é interessante ver uma escritora mulher adentrar esse terreno já tão explorado por escritores judeus homens, como Philip Roth e Saul Bellow: o edifício da respeitabilidade cristã (ou supostamente laica, no caso da França) é construído em cima de uma repressão profunda do desejo sexual, que passa a ser atribuído a tudo aquilo que se encontra fora da norma, e esses movimentos cristalizam-se em uma série de estereótipos sexuais antissemitas tão diversos quanto antigos. Entretanto, onde os homens se embatem com uma imagem de impotência e ausência de virilidade, Tuil retoma a judia sedutora, a Jéssica de O mercador de Veneza, capaz de levar um homem bom à ruína. Mila Wizman é o oposto dessa imagem, uma garota tímida e pouco uente nas coisas do mundo e do sexo, mas, ainda assim, é sua presença e seu apego à própria identidade religiosa que movem a acusação de Alexandre. No nal do romance, as coisas humanas são de fato demasiadamente humanas, mas são as mulheres — e, mais do que todas, a mulher judia — que sucumbem sob seu peso. Humanas, mas também demasiadamente políticas.
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Tribunais da ficção
JÚLIA CORRÊA
No embalo de Coisas humanas, conheça outras obras com histórias de julgamentos
“Ao cial do tribunal citou os nomes, enquanto a presidente depositava uma bilha dentro de uma caixa a cada vez que a palavra “presente” era pronunciada. [...] Ela se dirigiu gentilmente a Alexandre Farel: era seu direito recusar até quatro deles, ele ou seu advogado.” Tal descrição detalhada dos mecanismos de um tribunal aparece em Coisas humanas, livro em que a francesa Karine Tuil narra o julgamento de um jovem acusado de estupro. Acompanhamos, então, a intensa disputa de versões entre o jovem Farel e Mila Wizman, personagem que teria sido violentada por ele.
A literatura sempre se mostrou um terreno privilegiado para a investigação da vida em sociedade e dos atos humanos — e, claro, aqueles de natureza criminosa não cam de fora. Como consequência, são frequentes as representações de personagens levados ao banco dos tribunais.
As formas de julgamento são diversas e incluem até mesmo deuses como juízes. Encenada pela primeira vez em 458 a.C, Eumênides — a última parte da trilogia Oréstia, de Ésquilo — mostra o julgamento de Orestes após ele ter matado a própria mãe ao buscar vingar a morte do pai, pela qual ela havia sido responsável. É à deusa Atena que cabe a apreciação do caso.
De qual assunto humano Shakespeare não tratou? Em O mercador de Veneza, comédia trágica escrita entre 1596 e 1598, uma dívida leva os personagens Antônio, um rico mercador, e Shylock, o célebre usurário, ao tribunal do Duque de Veneza para uma disputa singular:
Antônio assinara um contrato aceitando pagar com um pedaço de sua própria carne, no lugar dos juros, na hipótese de atraso. A peça foi levada ao cinema com atuações de Al Pacino e Jeremy Irons.
Em A casa soturna, romance de 1853, Charles Dickens questiona a morosidade da justiça com uma trama sobre uma disputa que se arrasta nos tribunais e faz com que integrantes de diferentes gerações das famílias envolvidas nutram rancor uns pelos outros. Há casos em que o suposto crime não ca claro nem para os réus. É o que ocorre em O processo, de Franz Kafka, cujo protagonista se vê em uma situação absurda, sem saber os motivos pelos quais está sendo acusado. Publicado em 1925, um ano após a morte do autor, o livro tornou-se um exemplo recorrente da irracionalidade e do terror dos cada vez mais complexos labirintos da burocracia moderna, desumanizadora e sem sentido. As disputas jurídicas aparecem também em “Testemunha de acusação”, conto publicado em 1925 por Agatha Christie. Na história, um homem é julgado pelo assassinato de uma senhora rica que zera dele seu único herdeiro. A obra ganhou uma icônica adaptação cinematográ ca dirigida por Billy Wilder e estrelada por nomes como Charles Laughton e Marlene Dietrich. Outra narrativa de tribunal é O sol é para todos, de Harper Lee. Ambientada no sul dos Estados Unidos na década de 1930, a trama gira em torno de uma garota cujo pai, advogado, decide defender um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca. Também adaptada para o cinema, a obra foi levada à tela grande em 1962 sob direção de Robert Mulligan.
O livro de Karine Tuil mostra que, em nossa época, uma outra dinâmica de julgamento ganha proeminência: os tribunais das redes sociais. Em seu livro, a autora destaca como essa novidade tem impacto profundo na reputação das pessoas. O brasileiro Michel Laub representou essa questão em O tribunal da quinta-feira, livro sobre o julgamento coletivo que se forma em torno de um publicitário que tem conversas íntimas expostas pela ex-mulher e vira alvo de uma espécie de linchamento virtual.
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Guia de perguntas sobre Coisas humanas
1. O que você achou do modo como a autora construiu os personagens? O que pensa da personalidade de cada um e das suas contradições?
2. Como você avalia a inserção de questões atuais no romance, tais como as dinâmicas do movimento #MeToo e discussões sobre imigração e terrorismo? Que efeitos a presença delas gera na narrativa?
3. As redes sociais e o mundo virtual como um todo tangenciam a trama de Coisas humanas. Como você avalia essa questão? Acredita que a autora propõe algum tipo de crítica ao expor esses elementos?
4. O que pensa da forma como a autora alternou os diferentes pontos de vista ao longo do processo? O que achou do julgamento?
5. Quais são as suas impressões sobre o nal da história? Aproveite para comparar o desfecho dos personagens homens com o das mulheres.
Não se engane com o nosso livro de abril! Por trás da aparência de autoajuda, há uma narrativa profunda e impactante que nos lança para uma localidade da Ásia emergente. O autor é um paquistanês radicado na Inglaterra que já gurou na tradicional lista de indicações de Barack Obama.
Para quem gosta de: narrativas inventivas, outras culturas, cção contemporânea
Política, relações familiares e terrorismo são temáticas presentes no livro de maio, que propõe uma releitura contemporânea da peça Antígona, de Sófocles. O título foi indicado pela escritora brasileira Nara Vidal. Ah, não se preocupe: embora também tenha sido escrito por uma autora de origem paquistanesa, é um romance muito diferente do de abril.
Para quem gosta de: cção contemporânea, autoria feminina, temas políticos
“O fato é que compreender os outros não é uma regra na vida. A história da vida é se enganar sobre eles, sempre e sempre, e sem cessar, com obstinação, e, após ter refletido sobre isso, enganar-se novamente. Aliás, é assim que sabemos que estamos vivos: a gente se engana.”
– PHILIP ROTH, PASTORAL AMERICANA