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Dona camponesa: a desconstrução e reconstrução do papel da mulher do campo
DONA CAMPONESA
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A desconstrução e reconstrução do papel da mulher do campo
Eduarda Boettcher e Tayvon Bet
Corpo, cada corpo conta com suas marcas, às suas histórias de prazeres e desprazeres tórridos. Estudando comunicação aprendemos que tudo o que usamos é uma forma de comunicar, nossas roupas, adornos e porque não, nossos trejeitos corporais. De forma que marcas roxas comunicam uma possível agressão e um sorriso uma possível felicidade, os ombros caídos e os braços grossos comunicam que esse corpo, é um corpo de mulher camponesa, marcado pelos anos que correm nos rostos e na mente.
Às mulheres camponesas, assim como tantas outras mulheres, para não dizer todas, estão inseridas dentro de uma construção patriarcal machista, marcada também pela presença da igreja. Os ensinamentos dessas mulheres são passado de mãe para filha, geralmente, sem tempo para ensinar minuciosamente, esses saberes são adquiridos pelo olhar atento e pela necessidade de aprender para poder ajudar, e porque em geral, servirão de lastro junto aos saberes "masculinos" do marido, assim que casar-se.
Podemos perceber que às mulheres que nascem e são criadas no campo, compartilham de uma visão essencialista, o que gera o pensamento crente de que seus deveres são com os papéis imutáveis de mãe, cuidadora da casa, e em muitos casos, instituídos por Deus pai. Frente à isso, podemos dizer que o corpo da mulher camponesa nasce grudado, quase como gêmeas siamesas, às suas obrigações e deveres de mulher, construídos com o passar dos anos.
Às mulheres camponesas vivem sobre um função utilitarista, isto é, estão sempre em função de serem úteis, raramente encontraremos elas com tempo ocioso. Estão sempre em movimento, cuidando do quintal de casa, participando de reuniões da comunidade, fazendo guloseimas ou até os trabalhos da roça. A noite, é um dos poucos momentos nos quais há um espaço para lazer. Mas nem sempre para todas, existe mulheres que mesmo após o entardecer, seguem trabalhando, geralmente limpando a casa, pois dedicaram o dia aos fazeres externos.
Um mito sobre as camponesas, é que suas funções se limitam à casa. Há toda uma jornada tripla de trabalho, além da casa e dos filhos, o trabalho na roça junto ao marido é parte da rotina rural. Plantar fumo, tirar leite, regar a terra, passar veneno, fazer queijos e outros produtos coloniais para a alimentação da família, são alguns dos muitos trabalhos que essas mulheres realizam.
Outro ponto importante, quando discutimos sobre a vida das mulheres camponesas, são suas construções com relação ao sexo e sexualidade. As informações sobre relações sexuais, são passadas de mãe a filha de maneira tímida e pouco explicada. O corpo e o sexo para a mulher ganha um tom perigoso de pecado, fruto da presença histórica da igreja dentro das comunidades. Assim, se institui um sentimento de vergonha e medo sobre seus próprios corpos e também com relação aos homens, que poderiam roubar a “pureza” que guardão.
Para entender melhor isso é preciso voltar no tempo, quando o clero da Igreja Católica formado por sacerdotes, reconhece o poder da sexualidade das mulheres sobre os homens, então, com tentativas falhas de exorcizar a sexualidade delas, expulsão todas às mulheres dos momentos de liturgia e do Ministérios dos Sacramentos. Com isso, transformam a sexualidade feminina em um peso de vergonha, resultando no pouco conhecimento e timidez enraizadas nas famílias camponesas e outras tantas cristãs.
É necessário olhar para a mulher camponesa como um símbolo de resistência e como olhos críticos a criação instituída a elas. Com o passar do tempo é comum que por necessidade, a sociedade mude em processo de evolução, as discussões sobre feminismo e machismo estão fomentando mudanças e as mulheres do campo, diferente do que muitos pensam não ficam para trás. O pensamento crítico sobre suas realidades está constituindo novos horizontes, por mais que suas criações enraizadas pelo utilitarismo tomem boa parte do seu tempo. Hoje, a criticidade brota firme e forte para efetuar transformações.
Com isso em mente fomos até a comunidade São Pedro e São Paulo, no distrito de Alto da Serra, cidade de Chapecó. Nós Eduarda Boettcher e Tayvon Bet, repórteres entrevistadores, fomos acompanhados por Sirlei Bet, mulher camponesa, de 53 anos, amiga das entrevistadas, mãe de Tayvon, nossa motorista quase particular e nesse dia entrevistadora também.
DONA ZENILDE
Era um domingo de sol quente, com cheiro das flores desabrochadas por consequência da primavera. Chegamos na casa de Dona Zenilde Mendes Cinelli de 70 anos, por volta de meio dia e quarenta, um pouco inconveniente de nossa parte chegar tão cedo após o almoço. Encontramos uma senhora de cabelo loiro, voz doce e calma, cheia de simpatia e sorrisos, sentada em uma cadeira na sua varanda conversando com uma de suas três filhas, a mais jovem, Adriana. Logo o companheiro Elias Cinelli chega e junta-se a nós.
Dona Zenilde conta que nasceu na comunidade Colônia Bacia, Chapecó. É a irmã mais velha de quatro filhos. Aos oito anos seus pais se divorciam e sua mãe se muda para Porto Alegre, Zenilde e os irmãos ficam com o pai no campo. É nesse momento que ela assume, ainda que tão jovem, as obrigações e responsabilidades com a casa, o pai trabalhava na roça o dia todo, enquanto ela cuidava dos irmãos mais novos.
Zenilde diz que chegou a passar fome por não saber cozinhar e que aprendeu a fazer pão e outras comidas observando o pai. E em alguns outros momentos, quando sobrava tempo, seu pai ensinava algo novo para ser feito em casa, diferente da história de muitas jovens e fugindo da condicionalidade do campo, onde a maioria das mulheres aprendem a cuidar da casa com a mãe, já que por construção social seria responsabilidade das mulheres transferir esses ensinamentos.
O tempo não para, continua correndo. A menina de oito anos cresce, mas não muito. Com 12 anos Zenilde começa a trabalhar como doméstica, para ajudar na renda da família. Com o proceder do tempo, fica um pouco mais velha e se muda para Chapecó, onde continua trabalhando como doméstica. Aos 19, em um baile, conhece seu atual companheiro o já citado Elias. “Nos conhecemos porque era para ser, um mês e pouco depois de conhecê-lo,
meu pai acabou morrendo”. Conta ela, enquanto troca um olhar doce com o companheiro.
Após o casamento Zenilde e Elias voltam a morar no campo, dessa vez, na Linha São Pedro e São Paulo no interior de Chapecó. No início Zenilde não gostava da vida que levava na roça, sentia falta da convivência com os vizinhos e amigos que tinha na cidade, já que no campo, não havia alguém próximo. Zenilde sentia-se sozinha em muitos momentos, ela comenta que chegou a chorar escondida. Mesmo contrariada, continuou a viver no campo, trabalhando ao lado de seu marido nas atividades rurais e também cuidando da casa.
A solidão pode ser uma consequência da vida no campo para muitas mulheres, isso pode tornar as coisas ainda mais difíceis, pois além do trabalho braçal e dos muitos afazeres que elas realizam durante o dia, estar só, sem ninguém para conversar quando necessário, é amedrontador. O marido nem sempre é um apoio para esses tipos de conversar, afinal, homens são ensinados a não conversarem sobre sentimentos e aflições, o que geralmente não compactua com a criação das mulheres.
Perguntamos à Dona Zenilde sobre às mudanças positivas na vida da mulher do campo, a resposta, veio cheia de percepções otimistas e antenadas. “A mulher possui mais liberdade hoje, antigamente isso não existia no campo. São mais livres dos maridos também, agora elas podem fazer o que querem, como o marido sempre fez. Porque o homem sempre foi livre.” Zenilde ainda recorda de outro ponto positivo, “Antigamente, os filhos não poderiam ficar juntos com os pais nas rodas de conversa, hoje a família conversa junto.” Sirlei também complementa que hoje em dias as mulheres do campo também dirigem, e mesmo dentro das cidades isso é visto como uma conquista feminina.
Em seguida, perguntamos sobre educação sexual e Zenilde não exitou em responder. “Naquele
tempo não falávamos muito, tínhamos vergonha. Eu sentia vergonha de explicar algumas coisas para minhas filhas, porque também não fui ensinada. Hoje isso mudou, minhas amigas comentam que conversaram com seus filhos e filhas sobre. Melhor saber antes do que depois, agora eu vejo a importância desse saber” afirma.
Por fim, perguntamos o que ela mais gosta na vida do campo, a resposta veio assim que a pergunta foi feita, estava na ponta da língua. “A liberdade. Na cidade não tenho a liberdade que tenho aqui, posar lá, só quando é necessário.” Zenilde diz que, hoje, gosta muito da vida calma que leva no campo e que não pensa em mudar-se. Para ela, o campo se tornou algo doce e agradável, após anos de muito trabalho duro.
“Hoje as terras que eram usadas para o plantiu sao arrendadas.” Zenilde Mendes Cinelli
DONA CEMA
Após terminar e entrevista com Dona Zenilde, entramos no carro e fomos até a próxima morada, desta vez para conversar com a Dona Iracema Bolsonni. Ao chegar comentamos “Desculpa vir incomodar a senhora”. Dona Cema carrega um tom de humor natural, sem intenção de causar risos, então responde “Incômodo é doença”. Em seguida, colocamos nossos celulares para carregar, estavam quase sem bateria devido à entrevista feita minutos antes com dona Zenilde. Sentamos para conversarmos um pouco, Sirlei toma a frente na conversa e a gente o roteiro de pergunta para serem feito.
Passado alguns minutos, interrompemos a conversa das duas, que estava muito boa por sinal. Começamos a explicar (desta vez pessoalmente) para dona Cema o porquê de nossa visita e conversar sobre seu dia à dia, tudo em off. Cema, logo começa a contar coisas extremamente relevantes para a realização desta matéria, pedimos para que pare e aguarde até que nossos celulares estejam em mãos.
Cema nos conta que nasceu em Linha Feliz, em Caxambu do Sul e que morava com sua família. Hoje é mãe de quatro filhos, que pariu em em casa com auxílio da sua mãe que era parteira. Os filhos são carinhosamente chamados por apelidos, Nenê, Nego, Neninho e Andrea, única filha mulher e única sem um apelido fofo.
Em seguida perguntamos sobre como conheceu seu companheiro, “Um dia a mãe disse para mim ir limpar a calçada de casa, quando sai para fora vi que tinha um homem parado perto de um caminhão que carregava porcos, ele ficava me encarando”, comentá. “Voltei para dentro de casa e disse para minha mãe que me sentia incomodada de limpar a calçada, enquanto aquele estranho me observava.” O estranho que Cema conta, era João Carlos seu futuro marido, que estava trabalhando na propriedade do pai de Cema.
Alguns meses depois a família de Cema se muda para a vila do Alto da Serra, fugindo da roça propriamente dita. Lá a família se torna vizinha de Carlos. Alguns dias de depois, o namoro se inicia, com um pedido de namoro feito ao pai de Cema, sem consultá-la. “O pai chegou e disse para mim fazer um chimarrão que Carlos está vindo para namorar contigo. Nem sabia fazer chimarrão”, relembra ela, ao contar a história. O namoro era permitido até às 20 horas de noite, depois Carlos ia para casa.
“Benzo de bixas, minguas, tormenta.” Iracema Bolsonni
Com algum tempo de namoro, Carlos busca Cema na casa de seus pai e os dois fogem para morar juntos no campo. “Ele diz que a gente não fugiu, mas se ele não tivesse me pego em casa, não teria vindo”, ri ao pontuar a frase. 16 dias depois da fuga, o pai de Dona Cema fez o casal firmar o relacionamento perante a igreja. Cema se casa com 13 anos, enquanto Carlos possuía 26. Agora casada, os dois começam a construir suas vidas juntos. São anos de trabalho duro, dedicado a roça.
Dona Cema diz que seu marido nunca pediu para que ela trabalhasse na roça e deixa bem claro quando diz em tom de voz firme “Eu trabalhei por que eu quis”. Ela ainda relatou algumas histórias que passou com o trabalho pesado, como por exemplo, quando ainda não sabia que estava grávida de seu último filho e teve que passar veneno na lavoura de milho, em baixo de um sol muito forte, com mais de dez litros de água nas costas, durante horas, e quando chegou em casa ao anoitecer, ao invés de descansar foi fazer o serviço da casa.
A luta pelo empoderamento feminino envolve e muito a visibilidade de diferentes tipos de mulheres, em distintos contextos. A mulher do campo está inserida em um local periférico, já que a colônia está muito afastada dos grande centros urbanos. Conversando com as ilustres Dona Zenilde e Dona Cema, percebemos a real importância e dimensão da realidade das mulheres camponesas. Já no meio urbano, há toda uma romantização sobre a colônia, e aos mesmo tempo, uma desvalorização.
Muitos comentam que a vida no campo, é a melhor vida que alguém poderia levar, ignorando todo o esforço e desgaste físico que a lida na roça exige, principalmente, por parte das mulheres camponesas. A desvalorização vem dessa mesma ignorância, não se compreende que os alimentos comprados no mercado vem do trabalho puxado dos camponeses. Os homens e mulheres do campo, além de produzir seus próprios alimentos, alimentam todas as cidades do país e mundo.
Por outro lado, é nítida a evolução dos conceitos e responsabilidades de homens e mulheres nesse meio, principalmente das mulheres. A conquista pelo plena liberdade segue firme e demandando energia, a percepção sobre suas realidades está cada vez mais nítida, como uma foto que vai se revelando ao poucos. As mulheres camponesas estão mais antenadas nas discussões sobre feminismo, e cada vez mais empoderadas. Mesmo estando longe de uma harmonia perfeita e utópica entre gêneros, essas mulheres, continuam firmes na discussão sobre e fomentação destas mudanças.
DONA DE SI
Uma mulher forte, que suportou muitas dificuldades físicas, hoje tem um problema ainda maior, além de lidar com dores corporais, ela também sofre de um cansaço psicológico, pois a vida no campo exige muito esforço e dedicação. Cema diz estar exausta do trabalho na roça, afinal, ao 61 anos continua plantando fumo. Para Cema a vida no campo continua árdua e difícil.
A mulher camponesa, carrega em sua mente e mãos, um conhecimento interminável sobre plantas, chás, rezas e benzimentos, culinária, plantio e mitologia. Em seu sangue, corre uma força inquestionável, coragem de sobra e marcas históricas de lutas e conquistas. Ser uma mulher camponesa é antes de tudo, ser um corpo político, cheio de lembranças para contar. Entre flores e espinhos que essa vida camponesa traz, há ainda muita vida de luta e de mudanças para serem enfrentadas. Valorizemos e admiramos mais, estas mulheres de luta.